ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 3

Relato de caso: neutropenia congênita

Congenital neutropenia: a case report

RESUMO

A neutropenia congênita abrange uma família de distúrbios neutropênicos, permanentes e intermitentes, graves ou leves, que pode causar repercussão em outros sistemas orgânicos. A neutropenia pode levar desde infecções piogênicas leves a quadros de sepse com risco de morte, e cada infecção sucessiva pode deixar sequelas permanentes. O risco de infecção é inversamente proporcional à contagem de neutrófilos polimorfonucleares circulantes e é particularmente alto em contagens abaixo de 0,2G/l. Cerca de metade das formas de neutropenia congênita, sem manifestações extrahematopoiéticas e imunidade adaptativa normal, são devidas às mutações na elastase de neutrófilos. Alguns pacientes apresentam neutropenia permanente grave e infecções frequentes no início da vida, enquanto outros apresentam neutropenia intermitente leve. A dificuldade na suspeita diagnóstica da neutropenia congênita e, consequentemente, o tempo de início do tratamento podem acarretar complicações infecciosas e colocar a vida do paciente em risco.

Palavras-chave: Neutropenia, Infecção, Anormalidades Congênitas.

ABSTRACT

The term congenital neutropenia embrace a family neutropenic disorders, that can be permanent or intermittent, severe or pleasant, which can cause repercussions in other organ systems. Neutropenia can range from mild pyogenic infections to life-threatening sepsis, and each successive infection can leave permanent sequelae. The risk of infection is approximately inversely proportional to the circulating polymorphonuclear neutrophil count and is particularly high at counts below 0.2G/l. About half of the forms of congenital neutropenia, without extrahematopoietic manifestations and normal adaptive immunity, are due to mutations in neutrophil elastase. Some patients have severe permanent neutropenia and frequent infections early in life, while others have mild intermittent neutropenia. The difficulty in suspected diagnosis congenital neutropenia and, consequently, the time to start treatment can lead to infectious complications and put the patients’ life at risk.

Keywords: Neutropenia, Infection, Congenital Abnormalities.


INTRODUÇÃO

A neutropenia congênita é uma doença rara, com diferentes graus de hereditariedade, que pode ser classificada como de grau leve, moderado ou grave1. Geralmente se manifesta com infecções recorrentes desde os primeiros anos de vida, indo desde abscessos cutâneos a quadros de sepse2.

O diagnóstico é realizado pela suspeita clínica, associada à citopenia demonstrada em exame laboratorial e aspirado de medula óssea, o qual evidencia ausência de neutrófilos maduros e maturação interrompida, principalmente na fase de promielócito, além do diagnóstico molecular3.

O tratamento tem como objetivo a realização de antibioticoterapia adequada para infecções bacterianas e uso de fatores de crescimento hematopoiético recombinante humano, para aumentar o número absoluto de células de defesa, e, em último caso, um transplante de medula óssea, garantindo assim, melhor sobrevida ao paciente4.


RELATO DE CASO

Paciente, sexo feminino, nascida em 17 de julho de 2013. Deu entrada no Pronto Atendimento Pediátrico (PAP) do Hospital Universitário da Universidade Federal da Grande Dourados (HU-UFGD) no dia 30/05/2017, aos 3 anos e 10 meses de idade, procedente de Sete Quedas/MS, devido à presença de pápula em região infraumbilical, pruriginosa, há 5 dias, associada à dor, eritema e aumento da temperatura local, além de edema de parede abdominal. Em 72 horas de início do quadro, paciente evoluiu com oligúria e anasarca. Procurou atendimento no hospital da cidade de origem sendo encaminhada ao HU-UFGD.

Na admissão no PAP, a paciente apresentava estado geral regular, hipocorada 2+/4+, hidratada, eupneica, afebril, com fácies de dor; bulhas cardíacas rítmicas e normofonéticas, em dois tempos, sem sopros audíveis; murmúrios vesiculares presentes globalmente, sem ruídos adventícios; abdome com presença de celulite em faixa em região de cicatriz umbilical, com sinais flogísticos.

A mãe relatou história médica pregressa de inúmeras infecções de pele, com necessidade de internação para realização de antibioticoterapia. Aos 15 meses houve internação para tratamento de pneumonia, além de episódios de infecção de pele e estomatite tratados ambulatorialmente.

Foi levantada a hipótese diagnóstica de celulite secundária ao acidente por animal peçonhento; coletados exames laboratoriais (Tabela 1) e internada em UTI pediátrica, onde foi iniciado antibioticoterapia empírica com ceftriaxona e clindamicina. Devido à piora do quadro foi trocado o antibiótico para piperacilina+tazobactam e, posteriormente, para vancomicina e meropenem.




A paciente foi transferida para enfermaria pediátrica, onde evoluiu com piora da lesão. Necessitou da realização de desbridamento da lesão periumbilical, o qual não evidenciou lesão purulenta, mas necrose gordurosa. Devido à persistência da piora laboratorial foi realizado troca de antibioticoterapia, por sugestão da equipe de infectologia, por imipenem.

Após dez dias de tratamento e com melhora da lesão abdominal, a paciente então evoluiu com leucopenia importante, associada à neutropenia grave (Tabela 2), sendo iniciado filgastrim. Mesmo assim, a evolução continuou com piora progressiva da neutropenia. Foi avaliada pela equipe de hematologia pediátrica, sendo levantada hipótese de neutropenia induzida por fármaco. Assim, foi suspenso o imipenem e realizado exames de controle em 48 horas, os quais mantiveram presença de neutropenia.




Devido à melhora e estabilidade clínica, a paciente recebeu alta no dia 28/07/19, com retorno ambulatorial para investigação do quadro.

No dia 30/08/19 foi realizado biópsia de medula óssea e mielograma. O mielograma evidenciou medula óssea diluída, com fragmentos normocelulares, megacariócitos em número normal e sem alterações morfológicas, série granulocítica com parada maturativa em mielócitos e com presença de células imaturas em número reduzido, série eritróide sem alterações morfológicas, série linfocítica sem alterações morfológicas. Biópsia evidenciando medula óssea normocelular para idade, com discretas alterações displásicas, discreto aumento de formas jovens da série granulocítica, eosinofilia moderada, ausência de fibrose ou siderose, foi sugerido imunohistoquímica.

Paciente evoluiu com febre após o procedimento de biópsia de medula óssea. Ao realizar exame físico e laboratorial, diagnosticou-se otite média aguda, associada à neutropenia febril, foi realizada internação para tratamento com antibiótico por 10 dias.

No dia 08/10/2017 evoluiu com pneumonia e neutropenia febril, necessitando de nova internação para realização de antibioticoterapia por 10 dias. No dia 01/11/2017 foi realizado imunohistoquímica com resultado inconclusivo. Paciente foi então encaminhada para investigação no Grupo Brasileiro de Síndrome Mielodisplásica no Hospital do Câncer de Barretos – SP, onde obteve como laudo final: neutropenia congênita.

Devido ao risco de evolução para mielodisplasia, a paciente seguiu em acompanhamento com a equipe de hematopediatria. Optou-se por não iniciar fatores de crescimento hematopoiéticos recombinantes, pois apresentariam mais riscos do que benefícios, uma vez que as infecções manifestadas não eram graves e podiam, em sua maioria, serem tratadas com antibioticoterapia ambulatorialmente.


DISCUSSÃO

A neutropenia congênita é uma condição que faz com que os indivíduos afetados sejam propensos a infecções recorrentes. Pessoas com essa condição têm uma deficiência de neutrófilos, sendo que, pela idade da paciente deste caso, os valores deveriam estar entre 1.500 a 8.000/mm3, e apresentavam o valor de 3.234/mm3 quando deu entrada no pronto atendimento pediátrico - diferente do que é esperado de acordo com as literaturas referentes à patologia - evoluindo posteriormente para 138/mm3 e mantendo-se com contagem sempre inferior a 1.000/mm3.

Além de anormalidades quantitativas, muitos pacientes com neutropenia congênita mostram desordens qualitativas de neutrófilos. Um achado proeminente na neutropenia congênita grave é a chamada “parada de maturação” na diferenciação de neutrófilos, ou seja, os pacientes apresentam um quadro persistente, pois suas células progenitoras manifestam eficiência proliferativa, contudo decorre uma imperfeição no sazonamento da formação de promielócitos para mielócitos5.

Os locais preferenciais de infecção são altamente variáveis, contudo, os mais frequentes são a pele e a mucosa; ouvido, nariz e garganta; e os pulmões. As infecções estomatológicas são muito frequentes após os 2 anos de idade em pacientes com neutropenia central profunda e são caracterizadas por gengivite erosiva, hemorrágica e dolorosa associada a pápulas (furúnculos orais semelhantes a aftas) da mucosa da língua e da bochecha2.

Neutropenia congênita é uma condição que faz com que os indivíduos afetados sejam propensos a infecções recorrentes, sendo aparente no nascimento ou logo depois, tratando-se de uma rara desordem (1 a 2 por milhão)6 que possui múltiplas formas de herança genética, podendo ser autossômica dominante (mais comum), autossômica recessiva (síndrome de Kostmann clássica), recessiva ligada ao cromossomo X e esporádica7.

Dentre os tratamentos mais utilizados na neutropenia congênita os antibióticos são empregados, principalmente nos casos graves e que desenvolva febre. Os exames laboratoriais de sangue devem ser realizados para identificar a possível causa da infecção e durante esse período o paciente é tratado com antibióticos intravenosos. Fator estimulador de colônias de granulócitos (G-CSF) que é administrado via injeções subcutâneas, estimula a produção de medula óssea e a maturação de neutrófilos. O objetivo é levar a contagem de neutrófilos ao normal, de forma consistente, para prevenir infecções4.

Porém, no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Ministério da Saúde (2010) foi observado que a utilização do fator estimulador de colônias de granulócitos, em pacientes com neutropenia congênita e síndrome de Shwachman-Diamond, pode apresentar maior risco de desenvolver mielodisplasia e leucemia mieloide aguda8. Por isso, a opção do corpo clínico pediátrico foi em não submeter a paciente a esse tratamento, uma vez que grande parte das infecções apresentadas, poderiam ser tratadas com antibioticoterapia.


CONCLUSÃO

A neutropenia congênita é uma doença rara cujo diagnóstico é um desafio ao pediatra, uma vez que precisa ser descartado inúmeros diagnósticos diferenciais, como HIV, leishmaniose, leucemia e reação medicamentosa. Além disso, é uma doença que exige acompanhamento rigoroso do paciente, tendo em vista à gravidade com a qual o mesmo pode evoluir e suas possíveis complicações.

REFERÊNCIAS

1. Skokowa, J.; Dale, D.C.; Touw, I.P.; Zeidler, C.; Welte, K. Severe congenital neutropenias. Nat Rev Dis Primers, v. 8, n. 3, 2017.

2. Stoppler, M.C. Neutropenia Symptoms, Causes, Levels, Defined, & Treatment. Informative Report, 2017.

3. Donadieu, J.; Fenneteau, O.; Beaupain, B.; Mahalaoui, N.; Chantelot, C.B. Congenital neutropenia: diagnosis, molecular bases and patient management. Orphanet J Rare Dis, v. 6, p. 1-28, 2011.

4. Yates, A. Severe congenital neutropenia. Nat Rev Dis Primers, v. 3, p. 17-32, 2017.

5. Burns DAR, Silva MAA. Imunodeficiências congênitas ou primárias. In: Burns DAR, Silva MAA, eds. Genética baseada em evidências – síndromes e heranças [Internet]. 2017; [acesso em 2019 Fev 03]; 593. Disponível em: https://docplayer.com.br/35014162-Imunodeficiencias-congenitas-ou-primarias-dennis-alexander-r-burns-monica-de-araujo-alvares-da-silva.html#show_full_text

6. Santos, L.F.M.; Mukai, A.O.; Bertoli, C.J.; Fernandes, T.A.R.; Suetugo, C.P. Relato de um caso de neutropenia congênita grave em um lactente jovem. Rev Paul Pediatr, v. 29, n. 4, p. 680-684, 2011.

7. Boztug, K.; Welte, K.; Zeidler, C.; Klein, C. Congenital neutropenia syndromes. Immunol Allergy Clin North Am, v. 28, p. 259-275, 2008.

8. Brasil. Ministério da Saúde. Consulta Pública Nº 7, de 11 de fevereiro de 2010. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas anemia aplástica, mielodisplasia e neutropenias constitucionais e mielodisplasia uso de fatores estimulantes de crescimento de colônias de neutrófilos.










Hospital Universitário da Universidade Federal da Grande Dourados, Residência de Pediatria - Dourados - MS - Brasil

Endereço para correspondência:

Ana Luiza Augusto
Hospital Universitário da Universidade Federal da Grande Dourados
R. Ivo Alves da Rocha, 558 - Altos do Indaiá
Dourados/MS, 79823-501
E-mail: ana_luizaga@hotmail.com

Data de Submissão: 23/10/2019
Data de Aprovação: 30/01/2020