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Nacionalidade e etnicidade em fronteiras

RESENHAS

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto; BAINES, Stephen G. (Org.). Nacionalidade e etnicidade em fronteiras. Brasília: Editora UnB, 2005. 278 p. (Coleção Américas, Coordenação Ana Maria Fernandes).

Cristhian Teófilo da Silva

Universidade de Brasília – Brasil

"Tell me, sir, in confidence", he says, "what are these barbarians dissatisfied about? What do they want from us?" (Coetzee, 1982, p. 50).

O livro Nacionalidade e Etnicidade em Fronteiras, organizado por Roberto Cardoso de Oliveira e Stephen Grant Baines a partir das comunicações proferidas por antropólogos sul-americanos no Seminário Internacional: Antropologia em Fronteiras (Ceppac, Universidade de Brasília, 25 a 26 de outubro de 1999), representa uma didática e provocativa iniciação à complexa realidade etnográfica das populações que vivem entre as fronteiras nacionais do continente americano. Nesses cenários as fronteiras surgem como efeitos do poder dos Estados em formação e, nesse sentido, representam mais que um mero pano de fundo para o desenrolar das relações interétnicas. O leitor não encontrará nesse livro um manual ou um guia, mas um mosaico de situações que, mesmo intrinsecamente distintas, não deixam de ser reciprocamente elucidativas.

Os colaboradores do seminário e do livro, à exceção de Diego Escolar (na época doutorando em Antropologia Social e professor da Universidad de Buenos Aires), passaram pela Universidade de Brasília em pelo menos um de seus programas de pós-graduação voltados para a formação de antropólogos e cientistas sociais: o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, vinculado ao Departamento de Antropologia, e o Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados sobre as Américas, vinculado ao Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas.

A presença de pesquisadores de alto nível em torno da temática das fronteiras resulta do envolvimento pessoal de Roberto Cardoso de Oliveira como coordenador de dois projetos de pesquisa financiados pelo CNPq e dedicados ao estudo nas fronteiras. O primeiro, em parceria com Mireya Suárez, no Ceppac, intitulado: "Fronteiras: Lugares Concretos, Espaços Imaginados"1 1 Ver Faulhaber (2001). e o segundo, criado em 1998, em parceria com Stephen Grant Baines, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, intitulado: "Etnicidade e Nacionalidade em Fronteiras". Ambos os projetos beneficiaram-se, por sua vez, do diálogo com Elizabeth Cancelli (então diretora do Ceppac), executora do projeto também financiado pelo CNPq: "Novas Dinâmicas na América do Sul: Cultura, Política e Desenvolvimento".

Essas informações são suficientes para indicar o potencial de maximização teórica e metodológica que resulta do encontro e articulação de projetos científicos distintos, mas com perspectivas complementares. Nesse sentido, o livro se beneficia teoricamente de uma antropologia das relações interétnicas, mas avança para a compreensão das múltiplas dimensões (culturais, políticas, econômicas, legais, morais, demográficas, geopolíticas, ambientais, etc.) constitutivas dos Estados nacionais e responsáveis pela perenidade de suas identidades e etnicidades.

A exemplo de Fredrik Barth (1976) em "Os Grupos Étnicos e suas Fronteiras", Roberto Cardoso de Oliveira introduz a discussão da coletânea propondo uma abordagem antropológica às nacionalidades nas fronteiras. Sua proposta parte da revisão das lições de Barth e Cohen sobre a etnicidade e a identidade étnica, porém sublinha a complexidade dos sistemas de interação entre nacionalidades que tendem a sobredeterminar as relações interétnicas.

Para Roberto Cardoso de Oliveira, se a lição da etnicidade é que esta é essencialmente uma forma de interação entre grupos operando no interior de contextos sociais comuns, então as áreas de fronteira (como as áreas de fricção interétnica, noutro momento) representam contextos privilegiados para a descrição e análise da produção social da diferença nacional; em suas palavras: "[...] isso confere à população inserida no contexto de fronteira um grau de diversificação étnica que, somado à nacionalidade natural ou conquistada do conjunto populacional de um e de outro lado da fronteira, cria uma situação sociocultural extremamente complexa" (p. 14)

Nesses termos, o processo transnacional adquire nas fronteiras uma espessura empírica passível de descrição sistemática (p. 14), pois encontra nas nacionalidades em conjunção um objeto de investigação antropológica ao mesmo tempo evidente e central para as populações envolvidas. Trata-se de um sistema inter e transnacional, onde as identidades e relações interétnicas não ocorrem no interior de um único Estado-Nação (a exemplo do que ocorre nas áreas de fricção interétnica), mas no interior de (no mínimo) dois Estados nacionais.

A complexidade dessa situação, ao que tudo parece indicar, seria também responsável pelo fenômeno contemporâneo de multifacetação da identidade nacional. Afinal, onde mais um Ticuna poderia ser simultânea e ambigüamente ticuna e peruano ou colombiano para os brasileiros e ticuna, brasileiro ou peruano para os colombianos e assim por diante, senão na tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia?

As identidades no quadro (inter)nacional

Não é acaso que cinco dos oito capítulos que compõem o livro enfoquem grupos e identidades indígenas. Onde quer que tenham sido delineadas, as fronteiras nas Américas sempre foram traçadas sobre terras e territórios indígenas e os índios, por sua vez, sempre se viram forçados a reconhecer seus contornos, bem como a se posicionar politicamente em seu interior. Além disso, o caráter de sistema presente nas áreas de fricção interétnica e nas áreas de fronteiras nacionais conferem uma unidade de comparação para pensar a realidade de índios e imigrantes enquanto minorias sociais (p. 9). Daí os Ticuna, Huarpe, Mixteco, Miranha, Uitoto, Macuxi, Taurepangue e Uapichana aparecerem ao lado, senão lado a lado, de brasileiros, argentinos, uruguaios, paraguaios, colombianos, peruanos, brasiguaios, entre outros.

Se o colonialismo que afeta as populações indígenas tem algo a dizer sobre os problemas que afetam os moradores das fronteiras, esse algo certamente tem a ver com relações de dominação. As pesquisas nas fronteiras devem, desse modo: "[...] gerar interrogações que sejam significativas não só para o pesquisador, mas também para o morador da fronteira" (p. 20).

O método apontado em Nacionalidade e Etnicidade em Fronteiras para atender a essa expectativa é essencialmente etnográfico e inescapavelmente comparativo. Propõe-se, desse modo, que somente a pesquisa de campo nas fronteiras aliada à comparação das perspectivas situadas em ambos os lados seja passível de "lançar novas luzes sobre questões socioculturais que nos pareçam relevantes e que sejam observáveis no amplo e diversificado espaço das fronteiras" (p. 20).

Como afirma Stephen Grant Baines (p. 271) ao final do livro, torna-se necessário, portanto, estabelecer um plano de comparabilidade dos projetos. Esse plano, conforme sua interpretação, encontra-se representado num grande tema, qual seja: "...a dialética entre a questão da etnicidade e a nacionalidade na situação vivida por populações em fronteiras. Uma situação repleta de ambigüidades e ambivalências, reveladas pela análise do processo identitário, e caracterizado por assimetrias." (p. 273).

A questão da identidade é colocada, assim, como um problema conhecido e amplamente debatido, útil, portanto, para adentrar terrenos desconhecidos dos centros de decisão que tendem a conceber as fronteiras como longínquas áreas de conflito e entraves ao crescimento e integração econômicos na sociedade global. Cultura e identidade são conceitos centrais para a teoria antropológica e podem ser (como foram no livro) heuristicamente empregados para a realização de etnografias nas fronteiras, elucidando novos objetos de observação em meio a velhos problemas de pesquisa, tais como: desterritorialização e reterritorialização, etnogênese, cidadania multicultural, desigualdade econômica e social, colonialismo, soberania, etc.

Após essas primeiras considerações pode-se explicitar o eixo metodológico sobre o qual se desdobram os trabalhos publicados em Nacionalidade e Etnicidade em Fronteiras. Trata-se de uma metodologia em três etapas: 1) pesquisa de campo nas fronteiras com vistas a examinar a interação entre identidades étnicas e nacionais em conjunção; 2) comparação entre o ponto de vista de nativos e sistemas interétnicos que se configuram a partir de múltiplas redes de sociabilidade em ambos ou mais lados da fronteira e no interior dos Estados nacionais; e 3) problematização dos processos de construção estatal da nação.

Os resultados e conclusões a que chegam os autores seguindo essa abordagem são variados (como são as vidas nas fronteiras), porém possibilitam certas generalizações.

Alejandro Grimson dedica-se à fronteira entre Uruguaiana (Brasil) e Libres (Argentina). Dali o mesmo contesta a crença de que as fronteiras estão em processo de desaparecimento por razão da globalização. Seus argumentos par-tem teoricamente das constatações de Peter Sahlins (1989) – para quem as fronteiras podem emergir da atividade das localidades periféricas ao invés de assumi-las como monopólio e efeito dos Estados e metrópoles centrais – e etnograficamente dos discursos dos atores sociais e políticos das localidades em questão, nomeadamente: o Estado central, os governos estaduais, as prefeituras, os comerciantes e os pasadores ou chiveros.

Claudia Leonor López nos introduz à história de formação das fronteiras na região do Alto Amazonas/Solimões, revelando o papel central das empresas caucheras, em uma espécie de "colonialismo privatizado", bem como a resistência ticuna por meio da auto-invisibilização (e não seria a assunção de múltiplas identidades, uma forma de se manter invisível?).

Diego Escolar oferece uma das análises mais criativas do livro, em particular por lidar com uma certa "longa duração" das fronteiras e seu papel na dissolução e (re)criação de identidades étnicas indígenas. Escolar enfatiza a etnogênese huarpe na fronteira argentino-chilena e levanta instigantes questões sobre como Estados e comunidades locais se articulam subjetivamente para a conformação de consciências étnicas e adesões nacionais.

Luciana de Andrade Mendonça parte de definições operacionais de "fronteira" e "integração" para enquadrar os dramas ambientalistas vividos por Brasil e Argentina em torno dos parques nacionais do Iguaçu e Iguazú. Seus dados e indagações sobre o porquê da viabilização de hidrelétricas por meio de acordos binacionais enquanto planos de manejo e conservação ambiental são fontes de conflito e desentendimentos constituem uma contribuição singular para a apreensão de "fronteiras ambientais" e a sobreposição de cosmografias (ver Little, 1996).

Luis Eugenio Campos parte das migrações feitas por índios mixtecos que atravessam o México em direção aos Estados Unidos da América para caracterizar o próprio México como um país de passagem ou uma "larga fronteira". Seu estudo aponta, assim, para o relativismo das fronteiras. Quer dizer, as fronteiras não estão em um único lugar. Elas não são uma constatação cartográfica. Elas acompanham migrantes (indígenas ou não) ao longo de sua travessia obstaculizada por agentes estatais. Percebê-las ou não é uma questão de perspectiva, dependendo da posição que se ocupa em uma escada de identificações e status no interior e entre nações.

Márcia Anita Sprandel nos oferece o único trabalho do livro que não parte de uma fronteira geográfica como campo de pesquisa, mas de uma abordagem histórica às concepções classificatórias e teóricas sobre a fronteira. O pensamento geopolítico no Brasil é tematizado na qualidade de um saber do Estado, sendo possível traçar-lhe a "linhagem teórica" (que chegaria até o presente livro?) e seus efeitos para a região. Seu estudo é o que mais se aproxima de uma contribuição consciente a uma "antropologia do Estado nacional".

Os dois últimos capítulos, de Maxim Repetto e Priscila Faulhaber, retornam aos temas interétnicos envolvendo índios, fronteiras e Estados nacionais. Repetto enfatiza os conflitos engendrados pelos grandes projetos desenvolvimentistas criados por Estados nacionais vizinhos e que não levam em consideração os interesses e capacidade política de comunidades locais e indígenas. Sob esse foco o mesmo constata que: "[...] los indígenas no quedan frente a frente con el otro país. Si no, que quedan en contra de sus propios Estados" (p. 230). E Faulhaber aborda o conflito interfronteiriço existente entre Brasil e Colômbia em torno de áreas de extração da borracha que implicaram escravização, deslocamentos e tutela de povos indígenas, entre eles os Miranha e os Uitoto.

Partindo dos discursos geopolíticos, diplomáticos e indigenistas no Brasil, Faulhaber conclui que redes de dominação perpassam as fronteiras nacionais e se nutrem delas a despeito de distintas legislações e disparidades socioeconômicas – em um comércio de escala continental (diria Escolar, p. 101).

Diante desses estudos, uma inquestionável contribuição de Nacionalidade e Etnicidade em Ffronteiras é revelar a vocação dos Estados para demarcar fronteiras sobre territórios, populações e paisagens com o intuito de transformá-los em parcelas da nação. Nelas, índios, pasadores, chiveros, imigrantes, camponeses e a própria natureza "selvagem" são vistos e tratados como "bárbaros", contrários à civilização e ao progresso, devendo ser transformados em "trabalhadores nativos" e integrados em "grandes projetos" – "úteis à construção nacional" (p. 261). Se isso contar como resposta à epígrafe desta resenha, cabe indagar: o que mais eles poderiam esperar dos Estados?

Referências

BARTH, Fredrik (Comp.). Los grupos étnicos y sus fronteras. México: Fondo de Cultura Económica, 1976.

COETZEE, J. M. Waiting for the Barbarians. New York: Penguin Books, 1982.

FAULHABER, Priscila. A fronteira na antropologia social: as diferentes faces de um problema. BIB: Revista Brasileira de Informação em Ciências Sociais, v. 51, p. 105-126, 2001.

LITTLE, Paul. Superimposed cosmographies, fractal territories: territorial disputes on Amazonian regional frontiers. Tese (Doutorado em Antropologia Social)–Ceppac/Universidade de Brasília, 1996.

SAHLINS, Peter. Boundaries: the making of France and Spain in the Pyrenees. Berkeley: University of California Press, 1989.

  • 1
    Ver Faulhaber (2001).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Set 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2007
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