Acessibilidade / Reportar erro

A atuação dos psicólogos em unidades básicas de saúde na cidade de São Paulo

The practice of psychologists in primary care units in the city of São Paulo

Resumos

Este artigo foi produzido com base em pesquisa qualitativa, cujo objetivo foi estudar a atuação do psicólogo em Unidades Básicas de Saúde (UBS). Foram realizadas 17 entrevistas semiestruturadas com psicólogas atuantes na atenção básica à saúde, pertencentes à Coordenadoria de Saúde da região oeste da cidade de São Paulo. A análise foi de conteúdo do tipo temática e tomou por referencial teórico-conceitual a produção em análise institucional, em estudos sobre o trabalho em saúde e sobre a história da psicologia como profissão. Enfocaram-se dois aspectos interligados: as mudanças e novas necessidades de trabalho e atuação profissional que a regulamentação da profissão trouxe para a psicologia, e as políticas públicas de saúde mental no Estado e na cidade de São Paulo a partir da década de 1970. Os resultados revelam as mudanças, tensões e contradições no processo de institucionalização da psicologia clínica, tradicionalmente uma prática liberal realizada em consultório que passa a apresentar ao psicólogo novos desafios com sua inserção em instituições de saúde pública, em especial em UBS, cuja atuação passa a incluir práticas clínico-sanitárias e a ter regulações de ordem político-institucional.

Saúde pública; Psicologia clínica; Profissional da saúde; Políticas públicas de saúde; Saúde mental


This paper describes the results of a study about the practice of psychologists in primary care units in the city of São Paulo, Southeastern Brazil. It was a qualitative research and 17 semi-structured interviews were performed with psychologists who work in those services. Collected data were analyzed through Theme-based Content Analysis, and the theoretical framework was Institutional Analysis, health work studies and the history of Psychology as a profession. Two connected points were focused: the social status changes that the regulation of the profession brought to Psychology in Brazil and the public mental health policies in the State and city of São Paulo from the 1970s onwards. Results revealed changes, tensions and contradictions between traditional clinical psychology and institutional clinical psychology and also revealed new challenges when psychologists started to work with clinical and sanitary practices, and had to accept political-institutional impositions.

Public Health; Clinical Psychology; Health Personnel; Public Health Policies; Mental Health


ARTIGOS

A atuação dos psicólogos em unidades básicas de saúde na cidade de São Paulo1 1 Texto baseado em Dissertação de Mestrado cuja pesquisa foi financiada com bolsa pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

The practice of psychologists in primary care units in the city of São Paulo

Auryana Maria ArchanjoI; Lilia Blima SchraiberII

IPsicóloga Especializada em Saúde Coletiva. Mestre em Medicina Preventiva, Endereço: UBS Jd. Boa Vista, Rua Candido Fontoura, 620, Jd. Boa Vista, Butantã, CEP 05583-070, São Paulo, SP, Brasil, E-mail: amarchanjo@yahoo.com.br/auryana@usp.br

IIMédica. Livre-Docente e Professora do Departamento de Saúde Coletiva – FMUSP. Membro titular da Cátedra UNESCO de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância e bolsista produtividade 1B do CNPq, Endereço: Av. Dr. Arnaldo, 455, 2o andar, Pinheiros, CEP 01246-000, São Paulo, SP, Brasil, E-mail: liliabli@usp.br

RESUMO

Este artigo foi produzido com base em pesquisa qualitativa, cujo objetivo foi estudar a atuação do psicólogo em Unidades Básicas de Saúde (UBS). Foram realizadas 17 entrevistas semiestruturadas com psicólogas atuantes na atenção básica à saúde, pertencentes à Coordenadoria de Saúde da região oeste da cidade de São Paulo. A análise foi de conteúdo do tipo temática e tomou por referencial teórico-conceitual a produção em análise institucional, em estudos sobre o trabalho em saúde e sobre a história da psicologia como profissão. Enfocaram-se dois aspectos interligados: as mudanças e novas necessidades de trabalho e atuação profissional que a regulamentação da profissão trouxe para a psicologia, e as políticas públicas de saúde mental no Estado e na cidade de São Paulo a partir da década de 1970. Os resultados revelam as mudanças, tensões e contradições no processo de institucionalização da psicologia clínica, tradicionalmente uma prática liberal realizada em consultório que passa a apresentar ao psicólogo novos desafios com sua inserção em instituições de saúde pública, em especial em UBS, cuja atuação passa a incluir práticas clínico-sanitárias e a ter regulações de ordem político-institucional.

Palavras-chave: Saúde pública; Psicologia clínica; Profissional da saúde; Políticas públicas de saúde; Saúde mental.

ABSTRACT

This paper describes the results of a study about the practice of psychologists in primary care units in the city of São Paulo, Southeastern Brazil. It was a qualitative research and 17 semi-structured interviews were performed with psychologists who work in those services. Collected data were analyzed through Theme-based Content Analysis, and the theoretical framework was Institutional Analysis, health work studies and the history of Psychology as a profession. Two connected points were focused: the social status changes that the regulation of the profession brought to Psychology in Brazil and the public mental health policies in the State and city of São Paulo from the 1970s onwards. Results revealed changes, tensions and contradictions between traditional clinical psychology and institutional clinical psychology and also revealed new challenges when psychologists started to work with clinical and sanitary practices, and had to accept political-institutional impositions.

Keywords: Public Health; Clinical Psychology; Health Personnel; Public Health Policies; Mental Health.

Introdução

Este artigo apresenta os resultados de pesquisa que teve como objetivo estudar a atuação do psicólogo em Unidades Básicas de Saúde administradas por uma das Coordenadorias de Saúde da cidade de São Paulo. Analisou-se a atuação profissional através do processo de institucionalização da psicologia clínica na saúde pública, discutida pela interligação de dois aspectos históricos principais: o estatuto sócio-profissional dado quando da regulamentação da profissão, e as mudanças ocorridas nesse estatuto a partir das políticas públicas de saúde mental no Estado e município de São Paulo da década de 1970. Com base em estudos sobre o trabalho em saúde (Mendes-Gonçalves, 1992, 1994; Schraiber, 1993, 2008; Teixeira, 2000, 2004), partiu-se do pressuposto de que existe uma mútua influência entre o que o psicólogo realiza no serviço e o que lhe é exigido pelo contexto de trabalho em que se insere, aí considerando as questões do mercado de trabalho e a modalidade de organização no interior da produção social em que presta seu serviço, ou seja, como proprietário de seu consultório, em que responde como representante de uma categoria profissional, ou como funcionário de uma organização, em que responde às políticas de planejamento e gestão do serviço e de seu setor social de produção. Partiu-se do fato de que essas duas esferas de exigências para sua atuação – uma mais centrada no profissionalismo (Machado, 1995) e outra na produção social de um trabalho (Schraiber, 1993) – não necessariamente se identificam, havendo, ao revés, um processo de negociação constante com diferentes instâncias, as quais ora convergem e permitem ações conjuntas, ora se dissociam, gerando tensões, que podem contribuir na manutenção do que já está dado (instituído), ou em sua renovação, instando processos de criação com novas integrações de saberes e práticas (instituinte). Essa dualidade instituído-instituinte segue as referências conceituais da análise institucional (Lourau, 1993, 1995; Altoé, 2004; Saidón, 2008), para a qual o instituído é caracterizado pela ordem estabelecida e pelos valores e modos de representação da organização considerados normais. Corresponde ao que já é conhecido e a jogos de forças que tentam produzir imobilidade. No entanto, tais forças estão em constante contradição com forças instituintes, as quais representam a contestação e a capacidade de inovação. O instituinte corresponde ao "novo", ao "estranho", ao "desconhecido" (Lourau, 1993, p. 9; Altoé, 2004). Seguindo Lourau (1993), para quem a institucionalização corresponde permanente luta entre instituído-instituinte, todos estão implicados de alguma forma e assumem posição e papel que contribuem para que a instituição seja sempre um campo aberto, em que forças vindas de múltiplos sentidos interajam, negociem e, por vezes, se tensionem. Assume-se que a inserção do psicólogo nas UBS pode ser examinada dessa perspectiva.

A profissionalização da psicologia foi concebida como um processo sócio-histórico, utilizando-se a divisão em períodos da história da Psicologia no Brasil proposta por Pessotti (1988). O período estudado correspondeu ao início dos anos 1960 até os dias atuais, considerando-se os marcos da regulamentação da profissão pela Lei nº 4.119 de 27 de agosto de 1962, e aquele dado pela mudança advinda das políticas de saúde nos anos 1970, que produziu o novo estatuto profissional com a abertura de postos de trabalho no interior do setor público de produção de serviços de saúde, em particular na atenção básica. Essa política afetou as características da atuação do psicólogo tanto em termos de profissionalismo, quanto em termos da profissão como produção de um trabalho social com nova disposição junto ao mercado de trabalho. Buscando um diálogo entre referências na teoria das profissões (Machado, 1995) e na do processo de trabalho em saúde (Schraiber, 1993), apontam-se os momentos históricos de configuração e de consolidação da profissão em Psicologia no Brasil, identificando-se os novos desafios para a produção do trabalho do psicólogo quando passa a ser realizado na rede pública de serviços de saúde e em nível de sua atenção básica.

A configuração de uma profissão dá-se no reconhecimento da importância de um determinado saber técnico-científico à sociedade. Segundo Machado (1995), uma profissão se define tanto pelo corpo de conhecimentos que controla quanto pelo monopólio de sua prática em mercado, e a autoridade profissional é centrada naquele que possui o conhecimento especializado para o problema do cliente. Desse modo, ao conceituarmos a prática assistencial como uma profissão, a retenção do conhecimento, sua especificidade e o mistério ("saber esotérico") em torno dele é que formam seu eixo central, o do profissionalismo. Sem negar a importância do saber na definição de profissões, ao se examinar esse elemento da prática profissional da perspectiva da produção social dos trabalhos, como o faz a teoria do trabalho em saúde, os estudos destacam o produto alcançado pela aplicação do saber em contextos práticos e de produção de trabalhos na sociedade. Para a teoria do trabalho, é o produto da intervenção em Psicologia que valoriza socialmente seu saber. Assim, é o resultado da ação profissional do psicólogo na produção de seu trabalho cotidiano que, se socialmente bem-sucedido e alcançando finalidades sociais esperadas para essa intervenção em Psicologia, dá valor social ao conjunto de conhecimentos mobilizados por seu saber. A esse valor social, tanto em termos da teoria sobre as profissões como para a teoria do trabalho em saúde, corresponde um valor ético-político, em razão de serem a construção e o exercício desse saber dados por um grupo específico e particular de indivíduos na sociedade: os agentes em Psicologia. Por isso, quer se veja a prática em Psicologia como o exercício de uma profissão, quer como a realização de um dado trabalho social, ambas as referências articulam a configuração dessa atuação profissional à possibilidade sócio-histórica de se delimitar um campo privativo de saberes e práticas a um grupo de profissionais, os quais passam a ter uma formação específica e a serem identificados por um Código de Ética e fiscalizados por seus Conselhos de classe. O saber, a categoria profissional e os contextos de trabalho regulamentam, pois, a prática em Psicologia.

Já em sua consolidação, a profissão é vista diante de um processo contínuo de questionamentos internos, sobretudo em termos de sua finalidade social, indagando-se os caminhos que a profissão vinha seguindo e se estes eram realmente o que se esperava dela. As discussões giraram em torno de dois eixos principais: 1) a crítica de que a psicologia caracterizava-se principalmente como uma profissão liberal, elitista e excludente, cujo foco era a prática clínica tradicional realizada em consultório particular e centrada em um indivíduo abstrato e a-histórico, tendo como base a relação dual, o modelo médico e o atendimento à classe socioeconômica média e alta; 2) a função do psicólogo deveria ser social, em que primeiro era preciso divulgar ao público leigo e a outros profissionais a especificidade da psicologia em relação a outras categorias profissionais e expandir seus serviços à população brasileira atendendo as necessidades da sociedade e utilizando seus recursos técnico-científicos na resolução de problemas diversos relacionados à realidade de nosso país (Mello, 1983).

Internamente à área, intensificaram-se os ques­tionamentos sobre a formação profissional e a prática clínica ao molde liberal, ambas intimamente ligadas, já que a formação, de cunho predominantemente teórico e voltado à clínica tradicional, formava profissionais para exercer principalmente essa prática no mercado de trabalho privado. Nesse sentido, o papel da formação passou a ser pensado para acompanhar as mudanças socioculturais e se adaptar aos avanços científicos nacionais. Duas mudanças importantes ocorreram nesse processo. Primeiro, tentou-se aproximar teoria e prática ao se pensar em uma formação básica generalista, que integrasse as várias abordagens psicológicas e estas a outras áreas do conhecimento; também se tentou investir em uma aprendizagem em contextos diversificados que contribuísse no desenvolvimento de uma postura crítica dos alunos. Segundo e em concordância com essa nova tendência, mudou-se a perspectiva do conhecimento de unidisciplinar para multidisciplinar, tanto dentro da própria psicologia, em que se tentou articular um diálogo entre diferentes linhas teóricas marcadas pela fragmentação, quanto fora da área, na articulação com outros saberes a depender do campo de atuação. O social e sua diversidade em termos econômicos, políticos e culturais surgiu como um novo item a ser incluso no currículo de graduação na tentativa de suprir o déficit marcado pela ênfase na prática clínica tradicional, centrada na abordagem de cada indivíduo em particular (CFP, 1994; Ferreira Neto, 2004).

Em relação à Psicologia Clínica, pode-se dizer que o momento sócio-histórico pelo qual passava o Brasil entre as décadas de 1970 e 1980 foi propício para sua expansão, sobretudo ligada ao setor saúde. As crises econômicas mundiais unidas à nacional com o fim do "milagre econômico" também atingiram a classe média brasileira, principal consumidora dos serviços de psicoterapia, e fez os psicólogos procurarem formas mais estáveis de inserção no mercado de trabalho via concursos públicos. Na Saúde, a crise na previdência social após décadas de investimento no setor hospitalar privado e o processo da Reforma Sanitária e Psiquiátrica, conexo ao de redemocratização do país marcado por lutas de diferentes movimentos sociais, com um novo modo de pensar e agir em saúde, somaram na valorização de equipamentos substitutivos para tratamento de doentes mentais, voltando-se para os serviços básicos, como as unidades de atenção primária ligadas ao trabalho de equipe multiprofissional. Esses processos marcaram um redesenho das políticas de saúde (Leonardis e col., 1990; L'Abbate e Luzio, 2006).

Tal ênfase na atenção básica à saúde e no trabalho multiprofissional, em que se inseriu o do psicólogo, passou a ser uma tendência mundial, e documentos como a Declaração de Alma-Ata (1978), sobre cuidados primários de saúde, e a Carta de Ottawa (1986), sobre promoção da saúde, reforçaram o incentivo a ações sanitárias no país. Particularmente no Brasil e em especial em São Paulo, as primeiras iniciativas de criar serviços, em que uma equipe multiprofissional se instituía, foram as propostas de integrar a assistência médica individual à saúde pública que ocorreram no final da década de 1960, ligadas à reforma administrativa da rede de Centros de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde. Reorientados enquanto unidades básicas de saúde (UBS), tais serviços passaram a integrar um nível próprio de atendimento com a função de resolver um conjunto de necessidades básicas de saúde, que incluíam ações clínicas (prevenção, diagnóstico e tratamento) e sanitárias (prevenção e promoção à saúde), e incorporavam especialidades médicas e outras profissões em práticas assistenciais diversas, estabelecendo um trabalho coletivo em saúde através de equipes multiprofissionais. Falava-se em atenção primária, por se destinar a uma clientela que procurava o serviço para tratar pela primeira vez de algum tipo de sofrimento, e também se falava em atenção básica, a qual se referia à intervenção sobre as necessidades básicas de saúde (Hoisel-Pitta, 1984; Mendes-Gonçalves e Schraiber, 2000; Cambraia, 2004). Adicionalmente, apontava-se também para essa atenção uma peculiar oportunidade ao desenvolvimento de uma atenção integral à saúde, tanto por sua característica de cuidado ambulatorial, quanto pela assistência territorializada, com implicações de atuações também extramuros, isto é, no território. Por isso a UBS é considerada o espaço adequado para se desenvolver um cuidado mais global e que permite atuar com a dimensão subjetiva das práticas em saúde, cujas ações técnicas unidas a relações interpessoais impeçam a "coisificação" das necessidades de saúde, como se as demandas de seus usuários fossem naturais e não construções sócio-históricas. Por ser a atenção primária "porta de entrada" não somente para a rede de serviços de saúde, mas também para uma variedade de outras demandas sociais e da vida, o trabalho multiprofissional e a articulação intersetorial tornam-se importantes (Mendes-Gonçalves e Schraiber, 2000; Teixeira, 2000).

É sobre esse terreno que, na capital paulista, se processam as principais mudanças nas políticas de saúde mental, iniciadas com o governo de André Franco Montoro (1983-1987) e cujo prefeito da capital à época era Mário Covas Júnior (1983-1986). Em 1983, o município aderiu à execução do Programa de Ações Integradas à Saúde (AIS), que permitiu a ampliação da rede ambulatorial e a contratação de equipes multiprofissionais. O Programa Metropolitano de Saúde (PMS) foi outra proposta de implantar um sistema integrado e hierarquizado de saúde, que já pensava vincular uma população delimitada a uma Unidade Básica de Saúde (UBS).

Essas mudanças irão representar para a profissão em Psicologia uma diversificação das possibilidades em mercado de trabalho, em especial quanto à atuação clínica. Analogamente a transformações históricas ocorridas com o trabalho dos médicos (Schraiber 1993, 2008), entendemos que para os psicólogos, embora com distintas conotações sócio-profissionais, ao que se chamou de Psicologia Clínica Liberal – marcada pela produção independente de serviços no consultório particular e por características bastante pessoais do profissional nessa produção –, surge em acréscimo no mercado de trabalho o que chamaremos de Psicologia Clínica Institucional – marcada pela produção da assistência em estabelecimentos da rede institucional de serviços do setor público. Nessa nova modalidade produtiva verificou-se a perda relativa de autonomia do psicólogo na produção de seus serviços, o assalariamento do profissional e a abertura para o desenvolvimento de ações sanitárias, com o que ocorreram diversas mudanças relacionadas à atuação antes estabelecida a esse profissional.

Primeiramente, a articulação da prática clínica com a sanitária passou a colocar o psicólogo frente a duas atuações distintas daquela para a qual se formou: uma clínica modificada (regulada por sua institucionalização) e uma possível atuação sanitária (na prevenção e promoção à saúde). Segundo, a prática clínica rompeu com a "endogamia social" existente no consultório (Albuquerque, 1978, p. 63), ou seja, a identidade de classe social entre o profissional e seu paciente/cliente. Tal "endogamia" fazia com que aspectos socioeconômicos fossem isolados dos elementos tidos como centrais na formação das subjetividades e não geravam tensão, o que também se verificava em função de certa homogeneidade de clientela. Ao começar a atuar no setor público e se deparar com novas realidades de existência no mundo, iniciou-se um processo de desestabilização necessário, em que práticas voltadas às classes média e alta passaram a ser questionadas. Terceiro, o contexto assistencial passou a definir as atuações profissionais em razão das estruturas dos serviços e da organização de suas modalidades de produção de assistência. O profissional liberal tornou-se um assalariado, e a autonomia sobre sua prática, bem como a relação com a clientela, sofreram mudanças de acordo com os propósitos político-institucionais, as políticas de saúde. Nesse contexto, puderam ser identificadas tensões e contradições provenientes de vários sentidos, com as quais o psicólogo, mesmo sem preparo, começou a lidar.

Observando essas mudanças históricas é que o presente estudo indagou como os psicólogos já incorporados a essa nova condição de trabalho e estatuto profissional estariam vivenciando e percebendo suas concretas possibilidades e também os limites de atuação em Psicologia. Indagou-se se estariam operando com o instituído, buscando reiterar os desempenhos clínicos tradicionais em Psicologia, ou buscando, diante desse instituinte que foi sua inserção em UBS, criar novas instituições, novas formas de trabalho e de atuação profissional.

Metodologia

Utilizou-se da pesquisa qualitativa, cuja abordagem possibilita a aproximação e interação entre sujeito e objeto, sendo proveitosa para explorar as subjetividades, isto é, como os sujeitos expressam (descrevem, pensam, opinam e avaliam) suas realidades vividas (Mendes-Gonçalves, 1992; Minayo e Sanches, 1993; Schraiber, 1993; 1995; 2008).

Nesse sentido, esse estudo buscou analisar as percepções e representações dos psicólogos acerca de suas atuações no cotidiano de trabalho em UBS, explorando suas subjetividades e fazendo do principal material da pesquisa qualitativa, a saber, o depoimento e a palavra do participante, o conteúdo a ser analisado.

Dentre as abordagens possíveis na pesquisa qualitativa optou-se pelo uso de entrevistas semiestruturadas para a produção de dados, uma vez que se trata de uma técnica flexível, que permite tanto adicionar questões quanto explorar novos pontos necessários conforme os objetivos propostos (Schraiber, 1995).

O roteiro seguiu a trajetória profissional das entrevistadas, iniciando com perguntas que se relacionavam à escolha pela Psicologia e às disciplinas e estágios com os quais mais se identificaram durante a graduação. Em seguida, foram elaboradas perguntas relacionadas à entrada no mercado de trabalho e às experiências profissionais até a inserção no serviço público, identificando os percursos dentro dele até iniciar a atuação em UBS, tomada, então, como foco no restante da entrevista. O objetivo desse trajeto foi tentar identificar possíveis influências que a escolha da profissão, aquelas feitas durante a graduação e as diferentes atuações no mercado de trabalho pudessem exercer sobre a atuação em UBS.

Foram considerados sujeitos da pesquisa os psicólogos que trabalhavam há, pelo menos, um ano em Unidades Básicas de Saúde sob administração de uma das Coordenadorias de Saúde da cidade de São Paulo.

Além da entrevista, documentos oficiais e estudos sobre a profissão em Psicologia complementam em triangulação a metodologia, contribuindo na contextualização da atuação em UBS e do próprio espaço de trabalho institucional.

O estudo foi submetido e aprovado por dois Comitês de Ética em Pesquisa: da Secretaria Municipal de Saúde (CEP-SMS) de São Paulo (Parecer nº 52/10) e da Faculdade de Medicina e complexo Hospital das Clínicas (CAPPesq; Protocolo nº 1075/08).

Antes do início do trabalho de campo, foram feitas três entrevistas pré-testes com psicólogas que estavam atuando ou já tinham atuado em UBS, com o objetivo de verificar qualquer alteração necessária no roteiro e para avaliar o tempo médio de cada entrevista. Estas duraram aproximadamente duas horas cada uma e não houve alterações significativas no roteiro.

Do ponto de vista da interpretação, os dados da pesquisa foram analisados através da análise de conteúdo do tipo temático. Esse tipo de análise visa compreender o pensamento do sujeito por meio do conteúdo de sua falas e de depoimentos em texto e permite tanto aprofundar os temas que foram propostos pelo roteiro de entrevista, quanto identificar temas emergentes. (Schraiber, 1995; Caregnato e Mutti, 2006; Minayo, 2008).

À análise interpretativa seguiu, primeiramente, a leitura individual de cada entrevista produzida, respeitando o critério de impregnação (Schraiber, 1995; Minayo, 2008), em que se lê o material empírico de modo a apreender o pensamento de cada sujeito em seu todo. Em seguida, foi feita a leitura comparativa dos depoimentos, em que se buscou a compreensão do que havia de transversal no conteúdo das falas e que permitiu generalizá-lo para aquele grupo específico, no caso desse estudo, para o trabalho do psicólogo nas UBS estudadas.

Resultados e Discussão

Caracterização dos participantes

De 28 psicólogos que se enquadravam no critério de sujeito da pesquisa, 17 aceitaram participar, correspondendo a dez UBS no total. Todos eram do sexo feminino com formação entre 1973 e 1987, período em que, efetivamente, iniciou o processo de institucionalização dos psicólogos nos serviços públicos de saúde. Dezesseis tinham mais de 15 anos de experiência no serviço público, e nove tinham quinze ou mais anos de experiência em UBS.

Escolha pelo serviço público de saúde

O principal motivo de escolha pelo serviço público de saúde apontado foi a estabilidade empregatícia e financeira, seguido da influência familiar, da vontade de se dedicar à área e da oportunidade para isso. Apesar disso, tal estabilidade não pode ser observada enquanto trajetória de produção dos serviços, já que cada participante envolveu-se em atividades profissionais nem sempre assumidas por escolha própria, mas por prioridades político-institucionais.

... acho que tem duas, duas coisas né, uma é salário garantido, né, porque o, o consultório dependia de ter clientes, de ter indicação, ... tem acho que outra coisa que, um pouco, é, tem um tradição engraçada assim, cê conversar com, com funcionário público, normalmente, tem, é familiar de funcionário público, minha mãe era funcionária do Estado e eu acho que isso de alguma maneira traz uma referência... eu acho que era um jeito de eu também investir em clínica, é, com menos risco nessa questão salarial....

Os depoimentos revelam que atuar no serviço público de saúde estava diretamente ligado a uma oportunidade estável de permanecer na área clínica em um período de crise nacional, tanto por meio do atendimento clínico institucional, quanto da manutenção do consultório particular. Ao mesmo tempo, algumas falas apresentavam indícios das mudanças entre Psicologia Clínica Liberal e Psicologia Clínica Institucional como, por exemplo, "o consultório dependia de ter clientes, de ter indicação" que, implicitamente, indica que no trabalho institucional não era necessário nem busca pela clientela nem negociação de honorários, já que havia um salário mensal fixo e clientela preestabelecida.

Mesmo que a escolha tenha sido uma forma de permanecer na área clínica de atuação, não foi somente a prática clínica institucional que sofreu modificações. Quem manteve um consultório em paralelo usufruiu da experiência oferecida e da destreza exigida pelo serviço público. Não se trata de saber qual delas é melhor para qual espaço; o que interessa é o intercruzamento de ambas, que permite para certas situações ou utilizar aspectos da clínica liberal dentro da UBS, ou aspectos da clínica institucional dentro do consultório, por meio de sua diversidade de recursos e flexibilidade teórico-prática.

A atuação em UBS

Pelo tempo no serviço público, os depoimentos revelaram um rico material histórico de inserção do psicólogo em UBS na cidade de São Paulo e explicitaram uma nova dinâmica para seu trabalho, que envolvia determinantes institucionais (nova forma de organização e produção do trabalho; relação com outros profissionais; trabalho comunitário; novos desafios teórico-práticos) e transversais (imposição das políticas públicas de saúde; constantes mudanças nas gestões de governo, demandas sociais). Foram idas e vindas entre passado e presente, que davam um caráter mutante ao papel do psicólogo e faziam-no implicado num constante movimento e negociação com aquilo que era exigido dele como representante de uma categoria profissional e como agente institucional.

A análise de conteúdo permitiu identificar diversos pontos de tensão que, apesar de vivenciados por várias das participantes como formas instituídas limitadoras das ações, nesse estudo foram percebidos também como mobilizadores de reflexão e de críticas em relação às práticas e seus pressupostos e, nesse sentido, assumindo um caráter instituinte. A nosso ver, a tensão é justamente o que está entre essas duas dimensões da mesma experiência e, por isso, não é só imobilidade, mas também ato criativo e de transformação, o que faz da instituição dessa nova prática profissional movimento constante (Lourau, 1993; Altoé, 2004), bem como faz das necessidades de saúde produções cotidianas e não somente necessidades já prontas para serem solucionadas. O que tende ao imutável não anula o que tende à permanente mudança e é na interação de ambos que se constrói o processo de trabalho em saúde (Mendes-Gonçalves, 1994; Teixeira, 2000, 2004; Lourau, 1993).

Quanto à formação, a tensão girava em torno dos seguintes pontos: entre a escolha exigida ao aluno de uma linha teórica dentre várias existentes na psicologia e da compartimentalização entre as mesmas; entre os especialismos e a desespecialização, e entre teorias já dadas e a produção de conhecimentos condizentes com a realidade do país. Ao longo da graduação, por mais que as entrevistadas se identificassem com diferentes disciplinas e que alguns estágios também fossem realizados institucionalmente, a carga horária era reduzida e a intervenção se focava na instrumentalização técnica, sendo o hospital psiquiátrico ainda o principal espaço de treinamento profissional. A diversidade do serviço público de saúde trouxe a possibilidade de diálogo entre as abordagens teóricas e a percepção da dicotomia entre teoria e prática, o que intensificou a busca por formação complementar e a abertura a outros campos teórico-práticos.

... o posto de saúde, ele é muito amplo né, é, é, eu tava super habituada a atender criança e, de repente, começou a aparecer uma demanda grande de adulto, né, eu fui fazer a psicoterapia breve por causa disso, então conforme a demanda foi aparecendo, eu fui procurando me, me formar naquela área né....

Em relação à prática, se algo precisa ser definido da atuação do psicólogo em UBS é a expectativa entre o que esse profissional espera fazer, o que ele realmente faz ou lhe é exigido que se faça, e o que é proposto para esse tipo de serviço. Segundo algumas participantes, os primeiros psicólogos que começaram a trabalhar em UBS tinham como função ações preventivas, educativas e de promoção à saúde mental realizadas na/com a comunidade. Ao mesmo tempo, a UBS foi planejada para integrar ações clínico-sanitárias, portanto, que também visavam ao diagnóstico, tratamento e acompanhamento do usuário enfermo. Por isso, há uma constante tensão entre curativo e preventivo. Apesar de se reconhecer que a UBS é espaço para se realizar os dois tipos de intervenção, há sempre a reclamação de que a demanda de doença é muito maior do que a de saúde; inclusive, ações preventivas e de promoção foram colocadas por algumas entrevistadas como não sendo valorizadas e a exigência é para que se atenda o maior número de pessoas possível, o que causa desconforto no profissional, que precisa lidar com exigências políticas e com as de seus órgãos fiscalizadores de conduta, os quais nem sempre encontram um consenso. Há certa concordância de que se a UBS é 'porta de entrada' do sistema de saúde deveria servir para triar a demanda e oferecer agilidade nos encaminhamentos, o que também revela outro tipo de tensão vivenciada pela saúde mental: o cumprimento de metas e a pressão por produtividade baseados no número de procedimentos e consultas, o que para a psicologia se torna sempre um desafio a alcançar.

... sempre houve uma demanda clínica na UBS, né, mas, é, havia um enfoque onde a prioridade era prevenção e promoção e o psicólogo trabalhava muito nessa área....

... sempre tem uma reclamação de que a gente atende pouco né, talvez, o ideal fosse fazer só grupos né, mas numa sala deste tamanho não tem como você fazer grupo [...] o espaço não dá, o material não dá... eu tenho crianças autistas, que eu não tenho pra onde encaminhar, né, é, são essas crianças que tão comigo a cinco anos né, [...] Eu acho que o posto de saúde deveria agilizar mais, deveria ser mais pras psicoterapia breves, pros atendimentos mais rápidos, ... se você for pegando muitos casos crônicos, vai fechando a porta de entrada da população....

Apesar de a expectativa das entrevistadas ser de um trabalho para fora do serviço, a especificidade do psicólogo de UBS foi identificada nos depoimentos como próxima à psicologia "de consultório", cujas ações se voltam a orientações, psicodiagnóstico e psicoterapia, que são práticas internas ao serviço. Ao mesmo tempo, tudo o que é realizado em equipe não é considerado específico do psicólogo – "... o que não é em psicoterapia não é específico, é da equipe" –, e corresponde ao que geralmente envolve ações externas à UBS (visita domiciliar, matriciamento, atividades comunitárias, dentre outros) e em grupos educativos. Nesse sentido, pode-se considerar que a prática clínica tradicional ainda é uma forma de se reconhecer como psicólogo, mas não se pode dizer que assim o é para todas as participantes. Muitas delas realmente querem realizar mais trabalho conjunto, ter mais espaços de troca e atuar em uma equipe verdadeiramente integrada, mesmo com toda a resistência a se manter decisões que vêm "de cima" e ações com "cara de consultório".

Usuários, outros funcionários e gerência também esperam que o psicólogo realize consulta do tipo médica e atendimento rápido, e parece não ser somente o usuário que vê nesse profissional a solução de todos os seus problemas. Quando foi perguntado o que o psicólogo faz em UBS, as respostas se referiram a um profissional que "faz um pouco de tudo" e inúmeras atividades foram identificadas. Dentre elas, estava a de "mediador de conflitos" entre funcionários e destes com usuários; como "bombeiro", que precisa dar apoio à equipe e "apagar os incêndios" do serviço, além de ser quem daria o limite tanto da falta de limites dos usuários quanto daquilo que os outros profissionais ou não sabem ou não têm paciência para lidar.

.. um pouco como bombeiro, tem alguém surtando, corre chamar o psicólogo, é interessante que nessa hora eles não chamam o médico, que é o detentor do poder....

Portanto, a atuação exigida nesse espaço marca-se pela diversidade de ações que seriam atribuições do psicólogo em UBS. Isso não reflete falta de definição de sua função, mas sim uma expectativa de múltipla atuação. E ao que parece tal característica não é uma questão desse profissional específico, mas uma expectativa de atuação para todos que ali se encontram, como se o trabalho em UBS fosse definido por essa diversidade. O que é necessário questionar é o modo como tamanha diversidade tem sido trabalhada. As iniciativas de trabalho compartilhado ainda são pontuais e realizadas pela vontade própria de profissionais e usuários; no geral, cada um "corre pra um lado" e tenta dar conta sozinho do "seu paciente", esquecendo-se de que, a partir do momento em que o usuário entra no serviço, ele é de responsabilidade de todos que ali se encontram. Até porque as demandas de saúde estão cada vez mais associadas a demandas sociais e, se o psicólogo é o "termômetro mais sensível da demanda social", conforme colocado por uma entrevistada, ele recebe cada vez mais casos complexos como, por exemplo, os de violência, que necessitam de intervenção intersetorial e interinstitucional (Hanada e col., 2010).

Internamente à área, o Código de Ética Profissional exige que o psicólogo não aceite trabalhar em locais onde não sejam oferecidas condições para que se realize um trabalho de qualidade, o qual ainda é bastante baseado nas condições estruturais e no tipo de privacidade e sigilo que se consegue dentro do consultório particular. Se a principal reivindicação do psicólogo na UBS é ter uma sala fixa de atendimento, como fazer com que se cumpram normas de conduta tão diversificadas e por vezes discrepantes de sua realidade profissional? Se ele trabalha em equipes, preenche protocolos, escreve em prontuários coletivos, como garantir o sigilo das informações? Se ele realiza ações em espaços cada vez mais diversos, como manter a privacidade? Essas são questões que precisam ser urgentemente discutidas entre a categoria profissional e os representantes que formulam e implantam as políticas públicas de saúde, porque também se torna um dilema ao psicólogo que não sabe se abandona esse trabalho em UBS, o qual também é parte de seu mercado de trabalho, ou continua fazendo o possível para não infringir a ética profissional.

Considerações Finais

Costa e colegas (2005) pontuam que, no geral, a psicologia não tem se utilizado das discussões em torno de seu compromisso social e de uma atuação que abrange as diferentes realidades e as condições de vida dos usuários dos serviços públicos de saúde. No entanto, o que pode ser percebido do estudo apresentado neste artigo é um movimento constante de luta na busca de novos referenciais técnicos e éticos para a profissão. Não se espera um campo já construído, mas em permanente processo de constituição.

Freire (1983, p. 16), ao discorrer sobre o compromisso do profissional com a sociedade, diz que a primeira condição para assumir um ato comprometido é ser capaz de refletir e agir e, "estando no mundo, saber-se nele". Não há possibilidade de compromisso autêntico se a realidade for tida como dada e imutável. É necessário superar os especialismos e sempre aperfeiçoar seu modo de ser no mundo, adquirindo uma visão crítica da realidade.

Atualmente, a atenção básica é considerada um local privilegiado para o ensino-aprendizagem, onde é possível articular ações individuais e coletivas, e realizar um trabalho multiprofissional e interdisciplinar. É necessário investir no contato dos alunos com esse tipo de serviço ainda no início da graduação, oferecendo outras possibilidades de formação para além do hospital e desenvolvendo nos futuros profissionais de saúde habilidades de trabalho em equipe, de construção de vínculo e de articulação entre saberes e práticas (Brasil, 2009).

Dimenstein (2001) questiona o que vem a ser o compromisso social do psicólogo no contexto da saúde coletiva e coloca que é permitir aos usuários construir ativamente suas histórias de vida para além dos sintomas e do diagnóstico, voltando-se para a qualidade do cuidado, para a criação de estratégias que mudem a realidade dessas pessoas, respeitando sua diversidade cultural e subjetividade, e para práticas comprometidas com a produção social da saúde, com o bem-estar social e com a construção da cidadania.

De acordo com Romagnoli (2006), é necessário apostar na lógica relacional, que se posiciona no "entre" e que aceita desestabilizações e quebras de dicotomias, percorrendo caminhos pela transdisciplinaridade. A autora coloca que além da fragmentação da saúde, dividida em especialidades, ainda existem os saberes e poderes hierarquizados, que acabam servindo de sustentáculos aos saberes instituídos.

Barros (2005) questiona qual tem sido o compromisso ético-político dos psicólogos com suas práticas, diante da fundação da psicologia em dicotomias que levaram à separação entre individual e social, entre clínica e política, entre saúde individual e saúde das populações; que dividiu as práticas em áreas de atuação, as quais ainda se definem pela separação, quando não, pela desqualificação umas das outras. A autora sugere que se arrisque no comprometimento político, numa experiência de crítica/análise das formas instituídas, e se utiliza de três princípios éticos que acredita contribuir para o debate sobre as interfaces entre Psicologia e SUS. O princípio da inseparabilidade refere-se à psicologia tomada como campo do saber que estuda a subjetividade, a qual passa a ser considerada como um processo de produção coletivo, em que o produto é sempre inacabado. Já no princípio de autonomia e co-responsabilização, a autora coloca ser impossível pensar em práticas psicológicas que não estejam comprometidas com o mundo, com o Brasil, com as condições de vida da população, e que não implique na produção de sujeitos ativos, autônomos e corresponsáveis por suas próprias vidas. Por último, o princípio da transversalidade implica dizer que é entre os saberes e no limite de seus poderes que cada um deles pode contribuir para uma nova forma de se fazer saúde. É somente no intercruzamento desses três eixos que se pode pensar na efetivação dos princípios de universalidade, equidade e integralidade do SUS; é investir na criação de espaços onde diversos atores podem estar um com o outro nas decisões, onde gestão e atenção possam andar juntas.

Com o objetivo de superar obstáculos e desafios, algumas propostas tentam inovar, como, por exemplo, o estudo de Lima (2005), que apresenta uma forma de atuação coletiva da psicologia em UBS, por meio do que ela chamou de atuação psicológica coletiva (APC), que utiliza esse serviço como local de difusão e não de limitação das ações do psicólogo.

O Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP), junto com o Conselho Federal de Psicologia, iniciou, em 2008, uma pesquisa nacional e ainda em andamento sobre a atuação do psicólogo em atenção primária à saúde, que tem como objetivo construir coletivamente referências técnicas para o setor.

Em 2006, o I Fórum Nacional de Psicologia e Saúde Pública continha em seu relatório final 184 propostas divididas nas sete temáticas seguintes: 1. Contribuições políticas à saúde; 2. Gestão do trabalho e educação permanente em saúde; 3. Atenção Básica; 4. Atenção de média complexidade; 5. Alta complexidade; 6. Formação e 7. Controle Social.

Já em 2007, outra iniciativa foi a fundação da Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME), que tem como objetivo apoiar articulações entre "centros de treinamento, ensino, pesquisa e serviços de saúde mental; o fortalecimento das entidades-membro e a ampliação do diálogo entre as comunidades técnica e científica e destas com serviços de saúde, organizações governamentais e não governamentais e com a sociedade civil" (ABRASME, 2009).

Por fim, tem-se resgatado pressupostos da Psicologia Social Comunitária, que podem fornecer importantes contribuições teórico-metodológicas e práticas para o trabalho da atenção primária, através de estratégias de pesquisa-ação, estudos psicossociológicos, intervenções institucionalistas e de fomento a práticas em parceria com a comunidade, que priorize trabalhos educativos e que promova a conscientização da população para criarem seus próprios meios de melhoria de suas condições de vida (Rodrigues e Ronzani, 2006; Martins e Vecchia, 2009).

Quanto às políticas de saúde, duas importantes iniciativas que se articulam nesse processo de ações e que são extremamente significativas na relação estabelecida entre saúde mental e atenção básica vêm sendo implantadas: a Política Nacional de Humanização (PNH) e o apoio matricial, que têm sido utilizados pelo Ministério da Saúde como arranjo organizacional que visa estabelecer ações conjuntas. Desde 2008, as equipes matriciais têm sido formadas através dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), regulamentados pela Portaria GM nº 154 de 24 de janeiro de 2008, e tem como recomendação a existência de, pelo menos, um profissional de saúde mental como parte da equipe multiprofissional, e, em 2009, a PNH foi pensada para a atenção básica à saúde (ABS) tomando como parâmetro a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB).

É momento de ir além e revelar o que o limite mostra de novas possibilidades, experimentações e, por que não, de novos conflitos e tensões. O importante é estar ciente de que por mais que se tente definir padrões, estes deverão ser sempre revisados e avaliados e, cada vez mais, serão difíceis de serem enquadrados como privativos de uma ou outra área do saber. Espera-se que essa tendência não acirre ainda mais as lutas corporativas, em que cada categoria profissional defende como pode uma identidade que permite seu reconhecimento social e garanta mais espaço no mercado de trabalho, mas também prenda-a na rigidez de suas especialidades. O momento é para desenvolver a capacidade de "inventar-se e reinventar novas saídas..., reconhecendo o que se tem de potência" (Brasil, 2009). E isso não diz respeito somente aos usuários, mas a todos os atores implicados no processo de construção do SUS.

Recebido em: 14/09/2010

Aprovado em: 08/08/2011

  • ALBUQUERQUE, J. A. G. Metáforas da desordem: o contexto social da doença mental. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
  • ALTOÉ, S. (Org.) René Lourau, analista institucional em tempo integral. São Paulo: HUCITEC, 2004.
  • ABRASME - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE MENTAL. Disponível em: <http://www.abrasme.org.br> Acesso em: 06 maio 2009.
    » link
  • BARROS, R. B. A Psicologia e o Sistema Único de Saúde: quais interfaces? Psicologia e Sociedade, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 21-25, maio/agosto 2005.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. O HumanizaSUS na atenção básica Brasília: Ministério da Saúde, 2009.
  • CAMBRAIA, M. Políticas de Saúde Mental no Estado de São Paulo: o cenário das mudanças ocorridas entre 1990 e 2004. São Paulo, 2004. Tese (Doutorado em Saúde Pública), Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, 2004.
  • CAREGNATO, R. C. A.; MUTTI, Regina. Pesquisa Qualitativa: análise de discurso versus análise de conteúdo. Texto Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 15, n. 4, p. 679-684, out./dez. 2006.
  • CFP - CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Psicólogo Brasileiro: práticas emergentes e desafios para a formação. 2a ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1994.
  • COSTA, A. L. F. et al. A Psicologia, o Sistema Único de Saúde e o Sistema de Informações Ambulatoriais: inovações, propostas e desvirtuamentos. Interação em Psicologia, Curitiba, v. 9, n. 2, p. 273-283, jul./dez. 2005.
  • DIMENSTEIN, M. D. B. O psicólogo e o compromisso social no contexto da Saúde Coletiva. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 6, n. 2, p. 57-63, jul./dez. 2001.
  • FERREIRA NETO, J. L. A formação do psicólogo: clínica, social e mercado. São Paulo: Escuta; 2004.
  • FREIRE, P. O compromisso do Profissional com a Sociedade. In: FREIRE, P. Educação e Mudança 9Ş ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p. 15-25.
  • HANADA, H. et al. Os psicólogos na assistência a mulheres em situação de violência. Revista Estudos Feministas (UFSC. Impresso), 2010.
  • HOISEL-PITTA, A. M. Sobre uma Política de Saúde Mental. São Paulo, 1984. Dissertação (Mestrado em Medicina Preventiva) Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, 1984.
  • L'ABBATE, S.; LUZIO, C. A. A reforma psiquiátrica brasileira: aspectos históricos e técnico-assistenciais das experiências de São Paulo, Santos e Campinas. Interface Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 10, n. 20, p. 281-198, jul./dez. 2006.
  • LEONARDIS, Ota et al. Desinstitucionalização, uma outra via: A Reforma Psiquiátrica Italiana no Contexto da Europa Ocidental e dos "Países Avançados". In: NICÁCIO, Fernanda (Org.). Desinstitucionalização São Paulo: HUCITEC, 1990, p. 17-59.
  • LIMA, M. Atuação psicológica coletiva: uma trajetória psicológica em Unidade Básica de Saúde. Psicologia em Estudo Maringá, v. 10, n. 3, p. 431-440, set./dez. 2005.
  • LOURAU, R. Análise institucional e práticas de pesquisa Rio de Janeiro: UERJ, 1993.
  • LOURAU, R. A Análise Institucional. 2Ş ed. revista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
  • MACHADO, M. H. (Org.). Profissões de saúde: uma abordagem sociológica. Rio de Janeiro: Fio Cruz, 1995.
  • MARTINS, S. T. F.; VECCHIA, M. D. Desinstitucionalização dos cuidados a pessoas com transtornos mentais na atenção básica: aportes para a implementação de ações. Interface Comunicação, Saúde e Educação. Botucatu, v. 13, n. 28, p. 151-164, jan./mar. 2009.
  • MELLO, S. L. Psicologia e profissão em São Paulo 1a ed., 5a impressão. São Paulo: Ática; 1983.
  • MENDES-GONÇALVES, R. B. Práticas de Saúde: processos de trabalho e necessidades. Cadernos CEFOR. Textos, 1. São Paulo: CEFOR, 1992.
  • MENDES-GONÇALVES, R. B. Tecnologia e Organização Social das Práticas de Saúde: Características Tecnológicas do Processo de Trabalho na Rede Estadual de Centros de Saúde de São Paulo. São Paulo: HUCITEC/ABRASCO, 1994.
  • MENDES-GONÇALVES, R. B.; SCHRAIBER, L. B. Necessidades de saúde e atenção primária. In: Schraiber LB, Nemes MIB, Mendes-Gonçalves RB. Saúde do Adulto: programas e ações na unidade básica. São Paulo: HUCITEC; 2000. p. 29-47.
  • MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11Ş ed. São Paulo: Hucitec, 2008.
  • MINAYO, M. C. S.; SANCHES, O. Quantitativo-Qualitativo: Oposição ou Complementaridade? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 239-262, jul./set. 1993.
  • PESSOTTI, I. Notas para uma História da Psicologia Brasileira. In: Conselho Federal de Psicologia. Quem é o psicólogo brasileiro? São Paulo: EDICON; 1988. p. 17-31.
  • RODRIGUES, M. C.; RONZANI, T. M. O psicólogo na atenção primária à saúde: contribuições, desafios e redirecionamentos. Psicologia: ciência e profissão, Brasília, v. 26, n. 1, p. 132-143, março 2006.
  • ROMAGNOLI, R. C. Algumas reflexões acerca da clínica social. Revista do Departamento de Psicologia UFF,Niterói, v.18, n. 2, p. 47-56, jul./dez. 2006.
  • SAIDÓN, O. Devires da clínica. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008.
  • SCHRAIBER, L. B. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Editora Hucitec, 1993.
  • SCHRAIBER, L. B. Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do relato oral e produção de narrativas em estudo sobre a profissão médica. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 29, n.1, p. 63-74, fev. 1995.
  • SCHRAIBER, L. B. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008.
  • TEIXEIRA, R. T. Informação e Comunicação. In: Schraiber LB, Nemes MIB, Mendes-Gonçalves RB. Saúde do adulto: programas e ações na unidade básica. 2a ed. São Paulo: HUCITEC; 2000. p. 251-261.
  • TEIXEIRA, R. T. As redes de trabalho afetivo e a contribuição da saúde para a emergência de uma outra concepção de público. Working-paper apresentado na Research Conference em: Rethinking "the public" in Public Health: Neoliberalism, Structural Violence, and Epidemics of Inequality in Latin America. Center for Iberian and Latin American Studies. University of California, San Diego. Abril, 2004.
  • 1
    Texto baseado em Dissertação de Mestrado cuja pesquisa foi financiada com bolsa pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jul 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2012

    Histórico

    • Recebido
      14 Set 2010
    • Aceito
      08 Ago 2011
    Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. Av. dr. Arnaldo, 715, Prédio da Biblioteca, 2º andar sala 2, 01246-904 São Paulo - SP - Brasil, Tel./Fax: +55 11 3061-7880 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: saudesoc@usp.br