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O trabalho de vigilância nos centros comerciais

The work of security guards in trade centres

Resumos

Este artigo visa escrutinar em termos sociológicos a atividade profissional dos vigilantes nos centros comerciais, analisando o tipo de competências profissionais exigidas, a configuração da hierarquia profissional da vigilância e sua articulação com a comunicação cotidiana entre os vigilantes e, por fim, os desafios e dilemas subjacentes ao ato de vigiar. A pesquisa baseia-se metodologicamente em dados obtidos a partir de entrevistas semidiretivas a vigilantes e observação direta dos seus espaços de trabalho. De acordo com os resultados, a atividade dos vigilantes nos centros comerciais revela uma relação de serviço singular com clientes, dada a natureza específica do espaço organizacional, das tarefas que realizam e dos clientes que vigiam e com quem interagem. Ela evidencia uma relação de poder derivada da classificação social dos clientes pelos vigilantes, sintonizada com a panóplia de regras construídas pela administração do centro comercial, que encara a segurança privada como um meio imprescindível para a concretização das suas lógicas comerciais.

Vigilância; Atividade de trabalho; Produção de segurança; Centros comerciais


This article scrutinizes in sociological terms the professional activity of security guards in trade centres, looking to analyze the kind of professional skills and qualifications demanded, how the hierarchy within their profession is configured and how this connects to the everyday communication between the security guards and, finally, the challenges and dilemmas informing their work. Methodologically the research is based on data from semi-directed interviews with guards and direct observation of their work spaces. The findings show that the activity of security guards in trade centres involves a unique service relationship with clients, determined by the specific nature of the organizational space, the tasks that they perform and the clients that they protect and with whom they interact. The study reveals a power relation derived from the social classification of clients by the guards, in tune with the array of rules developed by the administration of the trade centre, which sees private security as an indispensable means of implementing its commercial logic in concrete terms.

Security guards; Work activity; Producing security; Trade centres


ARTIGOS

Charles GadeaI; Sofia Alexandra CruzII

IProfessor de sociologia na Universidade de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines e membro do Centro de Investigação "Versailles Institutions Publiques" (VIP) (França). E-mail: <charles.gadea@uvsq.fr>

IIProfessora de sociologia na Faculdade de Economia da Universidade do Porto e pesquisadora do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (Portugal). E-mail: <sacruz@fep.up.pt>

RESUMO

Este artigo visa escrutinar em termos sociológicos a atividade profissional dos vigilantes nos centros comerciais, analisando o tipo de competências profissionais exigidas, a configuração da hierarquia profissional da vigilância e sua articulação com a comunicação cotidiana entre os vigilantes e, por fim, os desafios e dilemas subjacentes ao ato de vigiar. A pesquisa baseia-se metodologicamente em dados obtidos a partir de entrevistas semidiretivas a vigilantes e observação direta dos seus espaços de trabalho. De acordo com os resultados, a atividade dos vigilantes nos centros comerciais revela uma relação de serviço singular com clientes, dada a natureza específica do espaço organizacional, das tarefas que realizam e dos clientes que vigiam e com quem interagem. Ela evidencia uma relação de poder derivada da classificação social dos clientes pelos vigilantes, sintonizada com a panóplia de regras construídas pela administração do centro comercial, que encara a segurança privada como um meio imprescindível para a concretização das suas lógicas comerciais.

Palavras-chave: Vigilância; Atividade de trabalho; Produção de segurança; Centros comerciais.

ABSTRACT

This article scrutinizes in sociological terms the professional activity of security guards in trade centres, looking to analyze the kind of professional skills and qualifications demanded, how the hierarchy within their profession is configured and how this connects to the everyday communication between the security guards and, finally, the challenges and dilemmas informing their work. Methodologically the research is based on data from semi-directed interviews with guards and direct observation of their work spaces. The findings show that the activity of security guards in trade centres involves a unique service relationship with clients, determined by the specific nature of the organizational space, the tasks that they perform and the clients that they protect and with whom they interact. The study reveals a power relation derived from the social classification of clients by the guards, in tune with the array of rules developed by the administration of the trade centre, which sees private security as an indispensable means of implementing its commercial logic in concrete terms.

Keywords: Security guards; Work activity; Producing security; Trade centres.

A vigilância é um fenômeno que adquire diferentes contornos sociais, políticos e culturais. Autores como David Lyon consideram-na um processo ambíguo e presente em espaços como check-ins de aeroportos, caixas de saída de supermercados, centros comerciais, entre outros. Não sendo novas, certo é que as práticas de vigilância têm-se intensificado em virtude de pressões comerciais e inovações tecnológicas. Das organizações que recorrem a técnicas para este tipo de controle, são muitas as que visam contribuir para uma ordenação social e nesse sentido classificar pessoas e objetos de modo a introduzir um tratamento diferenciado (cf. Lyon, 2004). Ora, este aspecto é particularmente importante dado que uma das grandes novidades das sociedades contemporâneas, marcadas por tendências de terceirização da economia e urbanização, é a expansão de espaços organizacionais privados acessíveis ao público, propriedades privadas de massa (cf. Shearinge Stenning, 2006), dos quais os centros comerciais são paradigmáticos.

Os centros de comércio apresentam um conjunto específico de características organizacionais (cf. Gabriel, 2003). Entre elas, está a condução de ações estratégicas para a consecução de objetivos comerciais, para os quais, por sua vez, contribuem os vários estabelecimentos que o integram. Essas lojas são caracterizadas por estruturas organizacionais e modos de funcionamento particulares. Muitas operam em regime de franchising, acordos por meio dos quais a empresa franqueadora cede à franqueada o direito de comercialização de certos produtos e serviços, em espaço geográfico determinado e sob certas condições, em troca de compensação econômica direta ou indireta.

No interior dos centros comerciais atuam os vigilantes, grupo profissional cuja importância está em garantir a rotina de funcionamento desses espaços. No limite, ao fazerem-no, esses profissionais salvaguardam o ambiente necessário às dinâmicas comerciais das quais dependem os grupos econômicos que gerem tais centros. O trabalho dos vigilantes nesses locais é interpretado neste artigo como sendo atravessado por uma relação de serviço singular, em função da natureza específica do espaço organizacional onde atuam, das tarefas que realizam e dos clientes que vigiam e com quem interagem. A literatura sociológica sobre a relação de serviço com clientes é bastante heterogênea, havendo autores que salientam mais a componente relacional (cf. Borzeix, 2000; Jeantet, 2003) e outros que chamam a atenção para a relevância da sua dimensão material (cf. Pettinger, 2006). Os achados e pistas desses autores deixam reflexões importantes, mas por vezes redutoras, ao tratarem somente de partes da realidade (ora apenas relacional, ora material). Em nosso entender, a realidade da atividade profissional na vigilância demanda esforço interpretativo que conceitue a natureza mais alargada e complexa da referida relação de serviço e os contextos onde a mesma se configura. Assim sendo, este artigo visa escrutinar em termos sociológicos a atividade dos vigilantes nos centros comerciais, buscando analisar o tipo de competências profissionais exigidas, a configuração da hierarquia profissional da vigilância e sua conexão com o fenômeno da comunicação verbal e não verbal entre os vigilantes e, por fim, os desafios e dilemas subjacentes ao ato de vigiar.

Nota metodológica

O trabalho empírico que fundamenta esta análise consiste em observações diretas e entrevistas semidiretivas com dez vigilantes que trabalham em dois centros comerciais localizados na cidade do Porto, em Portugal. Foram realizadas no âmbito de um projeto mais amplo com objetivo de escrutinar os grupos profissionais que trabalham nos centros comerciais1 1 . O projeto intitula-se "Grupos profissionais nos serviços: categorizações sociais, mercados de trabalho, actividades e trajetórias profissionais" (SFRH/BPD/43345/2008) e está sediado na Universidade do Porto (Portugal) e na Universidade de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines (França). .

A técnica da observação direta revelou-se particularmente útil na pesquisa, na medida em que adotamos duas estratégias de observação. Na primeira, perambulávamos pelos corredores dos centros comerciais com a preocupação de registrar as movimentações dos vigilantes, em diferentes momentos do dia, da semana e do ano. Na segunda, privilegiamos as portas de entrada e saída dos clientes, nos horários de abertura e fechamento do centro, respectivamente, às 10 e às 23 horas. Nesses momentos, os vigilantes postam-se nesses espaços e lá permanecem. A combinação de ambas as estratégias contribuiu para a caraterização da hierarquia profissional da vigilância, tal como analisada neste artigo.

A estratégia para encontrar os entrevistados foi a de bola de neve, ou seja, cada vigilante contatado forneceu os contatos de colegas ou conhecidos potencialmente dispostos a conceder entrevistas. Procuramos, sempre que possível, diversificar ao máximo o perfil sociodemográfico dos entrevistados, o que implicou, por vezes, rejeitar algumas das indicações e procurar outras possibilidades que fossem ao encontro da representatividade social desejada. Com efeito, a preocupação não foi de obter um conjunto estatisticamente representativo, mas de indivíduos "socialmente significativos" (Guerra, 2006, p. 20). Os entrevistados não foram considerados apenas como indivíduos singulares, mas também parte integrante de um coletivo social com caraterísticas em comum (cf. Rapley, 2007).

O centro comercial como campo organizacional e asparticularidades da segurança privada

O conceito de campo organizacional (cf. Dimaggio e Powell, 1983) remete a uma realidade constituída por vários atores que buscam normas de referência e instituem regras que configuram sua atuação. Nesse sentido, a realidade dos centros comerciais é conceituada pela composição heterogênea que evidencia (cf. Carvalho, 2006; Cruz, 2010; Padilha, 2006). Envolve, para além de promotores e lojistas, os clientes, elemento fundamental para sua viabilidade comercial e financeira. Essa heterogeneidade implica que o papel central da administração do centro comercial seja o de gerar equilíbrio entre suas diversas partes, zelando escrupulosamente pelo cumprimento dos deveres e pela garantia dos direitos de cada um. Tal missão não é isenta de tensões e conflitos, daí que os responsáveis por ela se munam de regras e procedimentos que uniformizem a atuação de todos. Desse modo, esses atores também contribuem para a produção de uma ordem pública de aspecto comercial própria desses espaços privados aos quais afluem diversos clientes (cf. Ocqueteau, 1996).

As análises sobre as particularidades da segurança privada, da segurança pública e do papel do Estado na relação entre ambas são diversificadas (cf. Robert, 2002). Autores como Ocqueteau (1992) consideram que a entidade estatal possui dois papéis na estruturação do mercado da segurança privada: o de árbitro e o de ator. Na primeira condição, decide sobre interesses divergentes, assumindo medidas para regular o estatuto particular dos vigilantes e conflitos relacionados com o transporte de mercadorias. Na segunda condição, torna-se parte direta ou indireta no jogo da livre concorrência, contratando, delegando e privatizando. Outros autores, como Gandaho (2010), não se detêm sobre as diferenças entre a segurança privada e a pública, em relação a suas histórias, modalidades de organização, métodos de abordagem e legitimidade; preocupam-se, antes, em apontar a propriedade que as aproxima, ou seja, a atividade de segurança. Segundo essa perspectiva, esta orienta-se para a proteção de pessoas e bens, contribuindo para a economia geral da regulação social.

No que se refere à realidade portuguesa, o Estado é central na estruturação da segurança privada. A Lei Orgânica do Ministério da Administração Interna, aprovada pelo Decreto-Lei 203/2006, de 27 de outubro, integrou à Polícia de Segurança Pública as atribuições da Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna em matéria de segurança privada. A Polícia de Segurança Pública regula as atividades do setor, competindo-lhe, de acordo com a Lei 53/2007, de 31 de agosto, seu controle, licenciamento e fiscalização. A atividade de segurança privada é complementar e subsidiária às competências das forças e serviços de segurança públicos e cumpre papel relevante, quer na proteção de pessoas e bens, quer na prevenção e dissuasão da prática de atos ilícitos. O Decreto-Lei 35/2004, de 21 de fevereiro, regula o exercício da segurança privada e define o âmbito e as condições em que pode ser desenvolvida, a saber: a vigilância de bens; o controle de entrada, presença e saída de pessoas; a prevenção da entrada de armas, substâncias e artigos de uso e porte proibidos ou suscetíveis de provocar atos de violência no interior de edifícios ou locais de acesso vedado ou condicionado ao público, tais como estabelecimentos, certames, espetáculos e convenções; a proteção pessoal, sem prejuízo das competências exclusivas atribuídas às forças de segurança pública; a exploração e a gestão de centrais de recepção e monitorização de alarmes e, por fim, o transporte, a guarda, o tratamento e a distribuição de valores. Esta delimitação acaba por definir também as funções exercidas pelos profissionais da área, que dizem respeito, assim, ao controle, vigilância e proteção de bens e pessoas naquelas condições. Os vigilantes obrigatoriamente vestem uniforme, no qual devem colocar o cartão profissional de identificação. Em Portugal e no Brasil (mas não na França e em outros países europeus), é permitido a estes profissionais o porte de arma em serviço, desde que autorizado por escrito e anualmente pela entidade patronal, podendo a autorização ser revogada a qualquer momento.

A segurança privada no contexto do centro comercial revela um enquadramento particular das características organizacionais previamente analisadas. Visa fundamentalmente à proteção de bens, sendo cada lojista responsável pela segurança de seu estabelecimento e o administrador do centro, pela segurança das áreas comuns internas, estacionamentos, pátios, áreas de carga e descarga, áreas comuns de armazéns e arrecadações, vãos de escadas, zonas de acesso aos telhados, cercas, passagens e travessas. No centro comercial os vigilantes não possuem poderes de polícia, assim os objetivos da sua atuação não visam propriamente ao cumprimento do código civil ou de leis. Antes, dedicam-se à proteção do centro comercial, dos seus bens e das pessoas. Podem impor restrições ao comportamento dos seus frequentadores, como por exemplo a proibição de fumar, de tirar fotografias ou de andar de patins, em concordância com o regulamento interno do centro comercial.

A vigilância como objeto de análise sociológica

A atividade profissional de vigilância em centros comerciais é relevante em termos sociológicos pela complexidade que evidencia. O centro comercial é um espaço privado aberto ao público, atravessado por racionalidades comerciais e securitárias entre as quais sobressai uma mais geral. Nela, a segurança é apenas um objetivo intermédio, redefinido em função do objetivo primeiro dos centros comerciais, que é a venda (cf. Ocqueteau e Pottier, 1995a). A produção da segurança no âmbito da atividade de vigilância implica refletir sobre as racionalidades práticas subjacentes à política de segurança do centro comercial e aos esquemas de interpretação e ação produzidos pelos vigilantes que nele trabalham.

A questão da produção e manutenção da ordem no centro comercial não implica apenas gestão de recursos tecnológicos (videovigilância, entre outros), mas também de recursos humanos, como os próprios vigilantes, que fazem a mediação com eventuais protagonistas de perturbações ou desordens que nele tem lugar. Esta ideia foi desenvolvida no estudo empírico de François Bonnet (2012) sobre a prevenção situacional e a videovigilância nas estações ferroviárias e centros comerciais franceses e italianos. O princípio da prevenção situacional, como política de segurança, consiste em configurar o espaço de forma a reduzir a probabilidade de ocorrência do ato desviante, atuando sobre a organização espacial, a gestão de entradas/saídas e fluxos de pessoas e introduzindo dispositivos de videovigilância. Ora, o autor analisa os limites desse princípio introduzindo um ponto fundamental: a gestão das populações, que implica relações de poder irredutíveis aos dispositivos tecnológicos. Embora Bonnet sinalize a dimensão do poder, acaba por não explorá-la em sua reflexão analítica. No entanto, essa dimensão é particularmente profícua para escrutinar os esquemas de interpretação e ação produzidos pelos vigilantes que trabalham nos centros comerciais. Neste âmbito, vale a pena destacar o contributo de Erhard Friedberg (1993) sobre as articulações irredutíveis entre poder e (inter)dependência, entre poder e cooperação, entre poder e troca no interior de relações. Tais articulações se fundam em posições sociais mobilizadoras de capitais econômicos, sociais, escolares, profissionais e simbólicos desiguais em situações concretas, configuradas pelo maior ou menor grau de previsibilidade dos comportamentos das partes nelas envolvidas. Se retivermos, a título ilustrativo e mais à frente explorado, o caso dos vigilantes localizados nas portas de entrada e saída dos centros comerciais e incumbidos de gerir tanto os fluxos de potenciais desviantes quanto as probabilidades de desordens que derivam destes mesmos fluxos, percebemos que as referidas articulações, sugeridas pelo autor, estão presentes no trabalho cotidiano desses profissionais da segurança.

A matéria da segurança está associada à da representação do desvio, pois ambas cruzam-se com os objetivos e desafios da produção de segurança comercial. Como analisaremos no tópico seguinte, o caráter relativo do desvio é imputável ao processo de etiquetagem levado a cabo pelos profissionais da vigilância. A este propósito, Gérard Mauger (2009), inspirado pelas análises de Émile Durkheim e Howard Becker, considera que os atos definidos como desviantes revelam mais sobre o sistema de valores e normas da sociedade onde se inserem do que sobre aqueles que os cometem.

Na construção de sua política securitária, o centro comercial é frequentemente coadjuvado por empresas de segurança privada subcontratadas e, adicionalmente, pela polícia pública. Porém, cabe-lhe sempre uma margem de autonomia na definição dessa política, já que o propósito último de sua missão é de natureza comercial e não securitária. A dimensão mais tangível desta política relaciona-se com a instalação de dispositivos de videovigilância e a contratação de vigilantes. Os primeiros visam contribuir para a detecção de atos ilegais e prevenção de comportamentos desviantes (cf. Ocqueteau e Pottier, 1995b). Tais meios permitem, aos vigilantes localizados na central de segurança existente nesses espaços comerciais, observar sem serem observados, o que significa que os observados não dispõem da liberdade de observarem a si mesmos. Esta situação reforça a importância da reflexão empreendida anteriomente sobre a dimensão do poder e de sua configuração desigual no seio das relações entre vigilantes e clientes.

O centro comercial constrói um sistema de controle, largamente dependente da tecnologia, com o intuito de assegurar um controle difuso e integrado (cf. Shearing e Stenning, 1987). Sua análise pode se dar na senda do caráter múltiplo e diverso de utilização do sistema panótico proposto por Michel Foucault (1975), em particular por se tratar de um espaço de dimensão física relativamente circunscrita, onde é necessário manter sob vigilância um conjunto de pessoas. No entanto, a abordagem foucaultiana não permite analisar a complexidade dos usos que se fazem dos meios de vigilância eletrônica, uma vez que estes tendem a ultrapassar sua função securitária, sendo frequentemente utilizados como instrumento de suporte à tomada de soluções para conflitos com clientes, como discutiremos mais adiante.

A natureza da atividade profissional de vigilância

A atividade profissional de vigilância envolve a prestação de um serviço que escapa à configuração clássica das relações entre contratados e clientes, uma vez que seu público-alvo é diferenciado e imprevisível. Sua especificidade impõe a necessidade de deslocamento do ângulo analítico em relação às preocupações habituais da sociologia do trabalho, qual seja: identificar e definir as tarefas, o repertório de meios materiais e humanos investidos e analisar o modo de organização do trabalho e as relações sociais que daí decorrem (cf. Boussard et al., 2004). Esta abordagem não é viável para a compreensão da atividade profissional dos vigilantes, na qual o acontecimento singular e imprevisível muitas vezes desenha os contornos da prestação do serviço. Os vigilantes constroem o sentido dos acontecimentos (cf. Weick, 1995), de acordo com as racionalidades subjacentes às dinâmicas comerciais. Esta construção guarda uma natureza social e intersubjetiva, pois o processo de atribuição de sentido dá-se no seio das interações sociais entre vigilantes e clientes. Ocorrem, assim, mútuas determinações entre as perspetivas destes atores e os contextos nos quais trabalham.

A atividade de vigilância evidencia a existência de uma relação de poder pelo fato de o vigilante assumir a função de analista social que classifica comportamentos e espaços, recorrendo a um processo de etiquetagem, como salientado anteriormente. Essa classificação tende a sintonizar-se com a panóplia de regras construídas pela política da administração do centro comercial, que, por seu turno, encara a segurança privada como dispositivo imprescindível para a concretização de suas lógicas comerciais. Para além do contributo analítico de Erhard Friedberg (1993) sobre o poder, introduzido no tópico anterior, é pertinente mencionar também a abordagem de Eric Wolf (1990). A tipologia desenvolvida por este autor é de grande valor heurístico para a assimilação da complexidade das interações subjacentes ao trabalho dos vigilantes. Mais ainda no que se refere ao ato de vigiar clientes, uma vez que permite captar as dimensões micro e macro desta relação. No que se refere à primeira, é possível apreender interações in loco. No caso da segunda, tem-se o enquadramento estrutural delas, o que delineia o campo de possíveis para determinados comportamentos, submetidos que estão à lógica comercial e securitária do centro comercial.

Essa atividade de vigilância revela tensões várias (cf. Ocqueteau e Pottier, 1995b), particularmente visíveis em três níveis. Destaca-se, em primeiro lugar, a necessidade de os vigilantes operacionalizarem uma espécie de segurança diplomática dos clientes, o que se traduz pela prevenção de qualquer sensação de mal-estar e pela prevalência do princípio de cooperação em detrimento do de coerção. Esse cuidado implica o treino e o domínio de práticas relativas à gestão de acidentes corporais e de problemas materiais desencadeadores de situações de pânico, como incêndios, inundações, explosões, entre outros. Em segundo lugar, o imperativo de colocarem a segurança ativa em prática em situações de alerta de ameaças de bomba, agressões ou tentativa de agressões a clientes e de evitar que as detenções motivadas por furto degenerem em atos de rebelião e violência. Por fim, a necessidade de operacionalizarem uma segurança mista por conta de duas categorias de risco, os acidentes e as desordens, que demandam níveis de atuação diferenciados.

As competências profissionais dos vigilantes

O debate teórico e empírico sobre as qualificações e competências profissionais tem sido introduzido em várias investigações sociológicas nacionais e internacionais. Ultrapassando as controvérsias que o atravessam, interessa destacar neste artigo que as competências profissionais dos vigilantes remetem a um conjunto de savoir-faire sociais constituídos por dimensões técnicas, organizacionais e relacionais. À semelhança de contextos profissionais já analisados, concernentes ao trabalho em lojas de vestuário e restauração de centros comerciais (cf. Cruz, 2010), também no âmbito da atividade de vigilância o peso das competências de natureza relacional parece ser evidente.

Quando questionados sobre o tipo de requisitos elegíveis para a sua contratação, os vigilantes listam atributos relacionados com capacidade de observação, comunicação, controle, integridade e compleição física. O testemunho do seguinte entrevistado é esclarecedor:

Na altura, os requisitos obrigatórios eram os mesmos que ainda são agora, penso eu. Pelo menos, quando eu entrei há um ano, ainda eram. Escolaridade obrigatória, nono ano. Depende da idade, se tiver trinta e muitos ou quarenta já só pedem o sexto. Não sei muito bem como é que está isso das idades. Para uma pessoa da minha idade, será o nono ano, a escolaridade obrigatória, não ter antecedentes criminais... depois também ser atento, observador, saber controlar-se, ter físico... Mais nada.

Constata-se que a escolaridade obrigatória é suficiente e não é exigida experiência profissional anterior na área da vigilância. No entanto, um aspecto que diferencia esse contexto profissional dos já mencionados diz respeito à importância da formação ministrada pela empresa de segurança para assumir as funções e obter o cartão profissional de vigilante. No total, os candidatos cumprem um programa de formação básica e específica de 106 horas (Carvalho, 2006, p. 310).

O fato de os vigilantes reunirem um conjunto de conhecimentos técnicos relacionados com a dinâmica organizacional do próprio centro comercial permite sublinhar que, para além da natureza relacional dos savoir-faire sociais já mencionada, lhes é requerido também esse saber técnico e organizacional (cf. Veltz, 2000). A necessidade de saberem distinguir, por exemplo, a responsabilidade civil da criminal é de crucial importância para o trabalho cotidiano da vigilância no centro comercial. Os vigilantes têm, assim, que colocar em prática esses conhecimentos técnicos e relacionais que se concretizam mediante um conjunto de estratégias de negociação operacionalizadas com o cliente, na condição de vítima ou infrator, e com as autoridades policiais, tal como escrutinado no tópico seguinte.

Em suma, as modalidades de organização do trabalho de vigilância, ao implicarem a existência de uma divisão de tarefas acompanhada de suportes tecnológicos de comunicação e informação, pressupõem que cada vigilante saiba o que cumprir em seu cotidiano profissional, mobilizando as devidas competências e monitorando as mais diversas situações oriundas do caráter imprevisível dos comportamentos dos vários clientes.

A hierarquia profissional na vigilância e a configuração da comunicação

A atividade de vigilância de centros comerciais mobiliza diversos profissionais que realizam o trabalho por turnos durante o dia e a noite, 24 horas, ao longo de sete dias na semana. Os turnos da manhã iniciam-se às 8 horas e pressupõem uma passagem do serviço noturno, mediante ata diária em que se registra, de modo pormenorizado, tudo o que ocorreu durante o período. O responsável pela tarefa é o centralista, cuja localização física é a central de segurança. Seu papel implica o monitoramento das várias unidades de controle dos sistemas de vigilância eletrônica, a elaboração de registros de entrada e saída de pessoas durante o período da atividade comercial, o controle das chaves (em sintonia com as informações prestadas pelos vigilantes localizados nas portas de acesso e saída dos clientes) e o conhecimento das tarefas de todos os vigilantes em serviço, de modo que lhes possa transmitir ordens ou enviar mensagens de alerta por meio dos sistemas de comunicação existentes. Além dos centralistas, há quatro outros postos e funções específicos. Os que trabalham junto das portas de entrada e saída de clientes são responsáveis por suas abertura e fechamento e circulação de pessoas e materiais, dando cumprimento às regras de acesso e utilização do espaço emanadas do regulamento interno do centro comercial. Os profissionais localizados nos átrios e escadas rolantes devem atentar às movimentações de pessoas e materiais, impedindo qualquer tipo de venda ambulante no espaço comercial, exceto se devidamente autorizada. O terceiro grupo assume a responsabilidade pelos cais de cargas e descargas e parques de estacionamento. Devem monitorar a abertura e o fechamento dos portões de acesso aos pátios, além de acompanhar operações de carga e descarga aí realizadas. O quarto grupo, formado pelos rondistas, dedica-se a rondas pelos corredores e zonas menos vigiadas, como instalações sanitárias, por exemplo. Centralistas e vigilantes interagem constantemente com o supervisor responsável pela segurança e este, por sua vez, com a coordenação da unidade de operações do centro comercial. Esta interação ocorre de diversas formas e implica sempre comunicação verbal e não verbal, realizada mediante o recurso a códigos. Atente-se nas seguintes palavras de um entrevistado:

Estamos sempre em sintonia. Tem que haver sintonia entre o chefe, o centralista e, neste caso, o braço direito do chefe. Que é o... Lá nós, é por códigos. É o Vítor zero, o Vítor um e o Vítor dois [risos]. É tudo por causa do... Só em códigos. A informação tem que ser passada a qualquer um, a qualquer um. Qualquer anomalia que eu verifique no meu turno, tenho que reportar ao chefe. O meu chefe tem que ter conhecimento. Sempre. Se o chefe não puder, tem que ser ao centralista. Há sempre passagem de informação, tem que haver sempre. Não pode falhar.

Os códigos "Vítor zero", "Vítor um", "Vítor dois" traduzem a hierarquia profissional (supervisor da central de segurança, centralista, vigilante), que vincula os vigilantes a círculos de pertença e referência (cf. Simmel, 1986). Toda atividade desenvolvida pelos vigilantes implica uma pertença ao círculo da sua área funcional - que compreende superiores e inferiores hierárquicos - mas também ao círculo de referência constituído dentro dessa área funcional pelos que partilham a mesma categoria. Estes círculos são importantes por servirem de referência para configuração dos esquemas de ação e interpretação desses profissionais no seu cotidiano de trabalho.

Os referidos códigos integram o "alfabeto fonético" construído pelas empresas de segurança privada, cuja função é orientar a atividade diária da vigilância sem que os demais atores que se encontram no campo organizacional do centro comercial (cf. DiMaggio e Powell, 1983), nomeadamente as equipes da administração, manutenção, limpeza e os próprios clientes, percebam o que ali ocorre. Esses códigos integram um conjunto de disposições mais vastas, que correspondem ao habitus bourdiesiano (cf. Bourdieu, 1980) e são adquiridas pelos vigilantes no decurso do seu processo de socialização profissional e não só, já que integram as atitudes, os sentimentos, e os saberes relativos às suas condições objetivas de existência, funcionando como princípios inconscientes norteadores da ação, perceção e reflexão. Estas disposições apresentam dupla composição: o ethos e a hexis. O primeiro compõe-se de princípios e valores em estado prático e de modalidades interiorizadas e não conscientes de moral que orientam a conduta cotidiana. A segunda compreende as posturas, as disposições do corpo e as relações com ele, interiorizadas de modo inconsciente pelos indivíduos no desenrolar dos seus percursos. Desse modo, o habitus remete a uma "cumplicidade ontológica" (Bourdieu e Wacquant, 1992, p. 20) entre indivíduos e espaços que os circundam e são por eles apropriados.

Se o ethos profissional não for cabalmente interiorizado, o cotidiano da vigilância pode ser alvo de disfunções. No limite, até mesmo a condição humana do vigilante pode ser posta à prova. Trata-se da ameaça à dignidade do trabalhador (cf. Hodson, 2001) em episódios de investidas excessivas de superiores hierárquicos sobre seus subordinados. São situações que evidenciam a assimetria de poder no interior da organização hierárquica desses profissionais atuantes na vigilância dos centros comerciais.

A hexis corporal é relevante no âmbito da diversidade dos contextos profissionais de vigilância já descritos. Com efeito, importa atentar para as formas particulares do corpo (cf. Breton, 1992), as diversas posturas corporais e os uniformes dos vigilantes, aspectos que estabelecem comunicação não verbal com os clientes, transmitindo a ideia de autoridade deambulante e incitadora de posturas e comportamentos socialmente conformes e facilitadores de dinâmicas comerciais. Também o cartão profissional exibido no uniforme simboliza a referida autoridade formal. É de mencionar, a título ilustrativo, que a performance corporal do próprio vigilante, por exemplo, no local de entrada e saída do centro comercial, revela-se particularmente simbolizadora de uma autoridade que vigia e controla os fluxos de clientes, com o intuito de moderar o comportamento destes nesses locais. Esse desempenho engloba um conjunto de técnicas corporais correspondentes a gestos codificados que adquirem eficácia prática e simbólica (cf. Breton, 1992), traduzindo-se em modalidades de ação, sequências de movimentos e sincronias musculares. Os vigilantes desenvolvem um conjunto de categorias cognitivas fundadas num princípio único: é necessário confrontar a "astúcia da pessoa desviante" com a "astúcia do vigilante", que se traduz pela capacidade de prevenir a ocorrência de problemas, mediante o recurso à negociação em detrimento da coerção. Os centros comerciais pugnam precisamente por estas lógicas negociadoras que tendem a facilitar e salvaguardar a tranquilidade propícia às suas dinâmicas comerciais.

A tarefa de vigiar: desafios e dilemas

Um dos conteúdos fundamentais da atividade profissional dos vigilantes no centro comercial é observar os comportamentos de seus clientes, no sentido de impedir ou inibir a ocorrência de atos que se desviem das regras inerentes à boa utilização deste espaço e à sua política de negócios (cf. Bonnet, 2008). A necessidade de espreitar e controlar os visitantes é fonte de tensão particular no cotidiano de trabalho desses profissionais, pois nunca conseguem antecipar totalmente o tipo de cliente que o centro irá receber. Como referimos anteriormente, diante de duas categorias de risco possíveis - acidentes e desordens - , os vigilantes têm que operacionalizar uma segurança mista. Isto exige a produção constante de diagnósticos acerca de quem entra no espaço comercial, de forma a detectar, gerir e intervir nas designadas situações problema. Além do conhecimento formal, esses profissionais aprendem a desenvolver um sentido prático específico, um código semântico concreto, com indicações sutis que lhes permitem identificar, na multidão de clientes, os autores potenciais de furtos, roubos ou incidentes. Toda a arte da vigilância está nesta capacidade cultivada para "sentir" a natureza das situações. Atente-se às palavras deste vigilante entrevistado: "Controlar os clientes de forma, por exemplo, a tentar perceber, tentar conhecer os clientes de forma a saber se são possíveis furtadores ou não. Funciona, funciona um bocadinho basicamente à volta disto".

O estabelecimento da incumbência de identificação de possíveis "furtadores" impõe um sentimento generalizado de desconfiança dos clientes, facilitador da tarefa de perceber riscos e comportamentos ameaçadores (cf. Ocqueteau e Pottier, 1995b), mais ou menos graves conforme a localização geográfica e dimensão dos centros comerciais (cf. Bonnet, 2008). A desconfiança dos vigilantes em relação aos clientes é também experimentada pelos segundos em relação aos primeiros. Essa reciprocidade incidiu desfavoravelmente sobre a relação de serviço estabelecida entre eles. Daí que, como nos referimos anteriormente, trate-se de um contexto relacional que escapa à análise clássica das relações objeto da sociologia do trabalho, pois é dominado por um público-alvo diferenciado e imprevisível (cf. Hatchuel, 2000) e vivido subjetivamente pelos atores nele envolvidos.

A gestão do furto

O testemunho do último entrevistado alude à distinção entre "furto" e "roubo", diferença aprendida no contexto da formação básica em direito penal. O primeiro - furto - remete a uma figura jurídica presente no artigo 203 do Código Penal Português e consiste na subtração de coisa alheia móvel, para si ou para outrem, de modo definitivo. O segundo - roubo - compreende idêntica natureza, mas implica o recurso à violência contra terceiros ou grave ameaça. Ora, essa matéria é particularmente relevante, uma vez que a manutenção da ordem do centro comercial é uma das missões centrais dos vigilantes. A atuação desses profissionais sobre evidências de situações anômalas ou problemáticas tende a exercer-se de duas formas (cf. Ocqueteau, 1996): na total opacidade e desconhecimento por parte das autoridades ou dos lojistas, o que pode constituir fonte de fragilidades para o centro comercial, pois ninguém domina as possíveis práticas de corrupção, extorsão e chantagem; numa grande transparência que envolve as entidades públicas, muito em particular as forças policiais, e que contribui para a construção de um clima de confiança geral, proporcionando segurança a pessoas e bens. Estas duas formas não são mutuamente exclusivas, pois no cotidiano de trabalho os vigilantes acabam por operacionalizar ambas, minimizando a fonte de fragilidades sinalizada na primeira, através da partilha permanente de situações anômalas com os colegas de trabalho.

Outra questão analiticamente relevante tem a ver com o exercício de autoridade na articulação entre o trabalho dos vigilantes e o dos agentes da polícia. São frequentes os relatos acerca da margem de ação diminuta no âmbito da antecipação das já mencionadas situações problemáticas e na intervenção. Temos, a este propósito, as palavras do seguinte entrevistado:

[...] por exemplo nós temos clientes que já conhecemos que vão para lá furtar, nós já sabemos que eles vão provocar desacatos, deveríamos poder dizer que aquela pessoa não entra... só não pode entrar se se apresentar queixa na polícia contra a pessoa, sem isso ela pode continuar a entrar sempre no espaço público e você não pode impedir, mas sabe que ela vai furtar... enquanto não a apanhar e chamar a polícia para apresentar queixa, a pessoa continua a ir lá à loja... é chamada a pessoa não grata na empresa, vai lá para fazer distúrbios, para furtar ou para fazer aquilo e aquilo...

O testemunho do entrevistado coloca a questão do exercício da vigilância e da sua articulação com a atuação dos policiais nas situações problemáticas. Ela é decisiva em termos analíticos, pois esses dois universos profissionais obrigatoriamente cooperam em determinados momentos do cotidiano do centro comercial. Do ponto de vista simbólico, os vigilantes revelam-se frequentemente informantes privilegiados e auxiliares legítimos da polícia em suas missões judiciais (cf. Ocqueteau e Pottier, 1995b). Porém, a configuração da cooperação nem sempre é apreciada positivamente pelos vigilantes, pois consideram que dispõem de autonomia reduzida para atuar em casos mais difíceis que aparecem em sua atividade profissional. Afirmam que mesmo quando já detectaram o perfil problemático de clientes que entram no centro comercial, não podem interditar sua entrada sem ter sido previamente apresentada uma queixa formal à polícia sobre eles. Esta situação causa descontentamento, pois sentem não ter qualquer margem de ação para exercer autoridade legítima. Mencionam até mesmo experimentarem uma sensação de injustiça quando detectam situações de furto e são obrigados a aguardar pela intervenção dos agentes policiais.

É, assim, pertinente destacar que os vigilantes vigiam, mas não dispõem de um conjunto concreto de meios de constrangimento indutores de obediência, o que gera incapacidade de defender uma identidade de ação (cf. Ocqueteau, 2010) própria e legítima capaz de os diferenciar da autoridade policial. A inexistência desta identidade de ação obstaculiza a construção de uma identidade profissional coesa, encontrando-se, os vigilantes, numa encruzilhada entre as empresas subcontratadas, que os contratam, e os centros comerciais, seus locais de trabalho. Muito embora as empresas de segurança privada subcontratadas e os centros comerciais acionem estratégias combinadas, como já referimos, certo é que no cotidiano profissional os vigilantes encontram-se submetidos às singularidades comerciais e securitárias destes últimos, ressentindo-se de um jogo atravessado por lógicas de mercado que favorecem a construção de um campo profissional subalterno e frágil. Este é, muitas vezes, permeado por condições de trabalho precárias, às quais, por exemplo, trabalhadores sem qualificações e imigrantes clandestinos não podem escapar para obter vistos de residência (cf. Péroumal, 2008).

A utilização de dispositivos de vigilância engendra outra questão digna de consideração analítica no que se refere à tarefa de vigiar (cf. Helten e Fischer, 2004; Gill et al., 2005). Importa recordar que os centralistas, entre outras funções, monitoram as várias unidades de controle dos sistemas de vigilância eletrônica. A partir dos testemunhos dos entrevistados, registramos que estes dispositivos ultrapassam sua função securitária, sendo utilizados com várias finalidades, nomeadamente como meio de suporte à tomada de soluções para conflitos com clientes. Sobressai, assim, uma lógica de utilização reativa aos acontecimentos, e não tanto proativa (cf. Helten e Fischer, 2004). No alinhamento desta lógica reativa, os registros da videovigilância servem para as seguintes funções: indicador de prova, pelo fato de serem meio de demonstração da realidade material da infração cometida; prova da regularidade do procedimento de interpelação e retenção, durante o processo de apresentação de queixa ou enquanto se aguarda a chegada da polícia, em caso de contestação da pessoa interpelada; eliminação de eventuais acusações de violências e pressões psicológicas por parte dos infratores (cf. Ocqueteau e Pottier, 1995b).

Apesar da importância de seu papel e dos riscos que correm para assumir sua missão, os vigilantes possuem visibilidade profissional reduzida. O fato de trabalharem individualmente e de terem poucas oportunidades para se reunirem não favorece a ação coletiva e a construção de identidades profissionais robustas. Longe de profissionais repletos de privilégios e prestígios, descritos pela sociologia anglosaxônica das profissões, os vigilantes formam um grupo profissional precário com fronteiras incertas (cf. Demaziere e Gadea, 2009; Bercot et al., 2012) e destituído de coesão interna.

Considerações finais

O objeto de análise deste artigo é a atividade profissional da vigilância no contexto dos centros comerciais, encarados como estruturas organizacionais com dinâmicas de funcionamento singulares. Esta atividade profissional foi conceituada como implicando uma relação com os clientes que escapa à configuração clássica das relações de serviço contempladas pela sociologia do trabalho. Com efeito, os clientes revelam-se diferenciados e imprevisíveis, o que condiciona amplamente a natureza da atividade de trabalho dos vigilantes, pois seu modus operandi pode variar em função das especificidades dos acontecimentos com que se confrontam diariamente. Seu cotidiano é definido pela tarefa de vigiar pessoas e bens, no espaço do centro comercial, mobilizando para tanto um conjunto de savoir-faire social de naturezas relacional, técnica e organizacional. A discussão aqui desenvolvida sublinhou que a vigilância nos espaços comerciais tem função prescritiva acerca de comportamentos a seguir, regras a observar, itinerários a percorrer e é atravessada por uma relação de poder concretizada no processo de classificação social dos clientes que se deslocam a estes locais.

A questão da produção da segurança revelou-se analiticamente pertinente não só pelo fato de ela poder ser interpretada à luz dos processos em que os vigilantes atribuem estereótipos a comportamentos e situações que escapam à normalidade, como também pelo fato de fazer sobressair um conceito de segurança singular aos centros comerciais. Neles, os problemas de segurança derivam dos fluxos de clientes, compreensão que orienta ações segundo lógicas probabilísticas e situacionais de ocorrência de desordens. Nessa medida, os referidos problemas acabam por derivar não dos indivíduos ou da estrutura normativa, mas da qualidade da gestão organizacional dos espaços. Esta questão não foi aprofundada neste artigo, podendo ser apontada como uma das suas limitações. De fato, no âmbito da pesquisa que o sustenta, interpretamos apenas as racionalidades dos vigilantes e não demos conta das perceções subjetivas dos diretores dos centros comerciais a esse propósito. Porém, essa questão revela-se decisiva para interpretar as múltiplas gramáticas que se constroem sobre a matéria da segurança.

A atividade de vigiar envolve o manuseio de dispositivos tecnológicos de comunicação e de informação, cenário de interação constante e mais intensa entre a designada vigilância humana e a tecnológica, em comparação com outro tipo de espaço organizacional. Tal pode ser inferido justamente a partir da natureza singular da organização dos centros comerciais, o que reforça, em nosso entender, a pertinência e o caráter inovador do contexto empírico selecionado para a pesquisa: o estudo da atividade profissional dos vigilantes.

No âmbito do escrutínio sobre a vigilância, foi dada visibilidade analítica à gestão de furtos, uma vez que esta permite analisar a relação entre os vigilantes e os agentes da polícia. Trata-se de relação complexa, em que os vigilantes consideram dispor de margem de atuação reduzida pelo fato de não lhes ser proporcionada capacidade legal de punir em situações consideradas problemáticas, ou seja, quando ocorrem comportamentos que escapam às normas e regras vigentes no centro comercial.

Este artigo é um esforço interpretativo para dar conta da configuração da atividade profissional da vigilância, particularmente relevante no contexto das sociedades atuais, onde a ameaça de riscos com naturezas diversificadas induz o acréscimo de dispositivos de vigilância. Atendendo à configuração organizacional singular do centro comercial, a pesquisa em que baseamo-nos permite não apenas refletir sobre a natureza da atividade de trabalho dos vigilantes, como também abrir portas para questionamentos sobre os efeitos mais invisíveis da proliferação de práticas de vigilância para a população em geral, em particular o fato de se assistir paulatinamente a uma passagem, muitas vezes impercetível, entre informação e segurança, segurança e intervenção e intervenção e coerção.

Texto enviado em 12/6/2012

Aprovado em 24/1/2013

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  • 1
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      12 Jun 2012
    • Aceito
      24 Jan 2013
    Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: temposoc@edu.usp.br