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Construir a cidadania: uma visão desde baixo

Constructing citizenship: a view from bellow

Resumos

Como se aprende a ser cidadão/cidadã, especialmente quando se é pobre e latino-americano? Argumenta-se que esta questão só pode ser respondida mediante um modelo analítico que considere simultaneamente o aprendizado dos modos de agir adequados à cidadania e a construção de quadros institucionais democráticos.


How does one learn to be a citizen, especially when one is poor and Latin-American ? It is argued that this question can be answered only through an analytical model which considers at the same time the learning of the ways of acting properto citizenship and the construction of democratic institutions.


CIDADANIA

Construir a cidadania: uma visão desde baixo* * "Como construir ciudadanía? Una vision desde abajo." European Review of Latin American and Caribbean Studies 5, dezembro de 1993. Tradução de Gabriel Cohn.

Constructing citizenship: a view from bellow

Elizabeth Jelin

Socióloga e membro da Carrera del Investigador Científico do CONICET (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas), Argentina

RESUMO

Como se aprende a ser cidadão/cidadã, especialmente quando se é pobre e latino-americano? Argumenta-se que esta questão só pode ser respondida mediante um modelo analítico que considere simultaneamente o aprendizado dos modos de agir adequados à cidadania e a construção de quadros institucionais democráticos.

ABSTRACT

How does one learn to be a citizen, especially when one is poor and Latin-American ? It is argued that this question can be answered only through an analytical model which considers at the same time the learning of the ways of acting properto citizenship and the construction of democratic institutions.

A década dos oitenta foi um período de grandes mudanças na América Latina: do ponto de vista econômico, foi uma "década perdida" para a maioria dos países, enquanto no campo político significou a colocação em funcionamento do marco institucional básico da democracia. Tanto a política da democratização quanto a economia política do ajuste e da liberalização, assim como a relação entre ambas, converteram-se em temas centrais de investigação e debate. No âmbito da sociedade, as transformações são mais opacas, menos nítidas, mais contraditórias. E sobretudo, menos conhecidas ou estudadas. Qual é o significado da democratização no nível social? O que ocorre com as pessoas no processo de transição? Este trabalho traz algumas questões que requerem atenção e debate nos níveis sociais, culturais e interpessoais. Baseia-se na experiência direta da década dos oitenta e início dos noventa na Argentina, ainda que os temas apresentados sejam mais gerais e aplicáveis ao processo de democratização de outros países da América Latina e de outras partes do mundo.

Até os anos oitenta a atenção dos observadores na América Latina concentrou-se freqüentemente no processo de expansão dos direitos sociais. O processo histórico de desenvolvimento desses direitos sociais foi o ponto de convergência da expansão das políticas públicas durante os regimes populistas e pós-populistas por um lado, e de desenvolvimento dos movimentos sociais e demandas populares (de camponeses e trabalhadores primeiro; de mulheres, bairros e juventudes depois) pelo outro. Nesse processo as lutas sociais e as negociações tiveram aspectos contraditórios: modalidades clientelísticas de apadrinhamento político auto-reprodutor, coexistindo com demandas sociais de redistribuição do poder e de ampliação e democratização da participação, geralmente induzidas pelo desenvolvimento de atores sociais novos e mais autônomos.

Essa ênfase na expansão dos direitos sociais foi o eixo das perspectivas analíticas dominantes na região. Privilegiá-los implicou, de fato, prestar menos atenção à expansão dos direitos individuais básicos, e mesmo descartá-los como expressão de direitos "puramente" formais burgueses ou liberais. Significou também deixar de lado os direitos coletivos de etnias e grupos indígenas, com o argumento da prioridade para a busca da igualdade. A magnitude e dureza das violações dos direitos humanos nos regimes ditatoriais da região durante a década dos setenta, que produziram a emergência de um importante movimento de direitos humanos, assim como a revalorização da democracia "formal" gerada nas lutas contra a ditadura, implicaram uma mudança da atenção para um novo foco, o dos direitos humanos e dos direitos quivis.1 1 Por volta do final dos anos oitenta, além disso, a atenção internacional também começou a centrar-se no reconhecimento dos direitos coletivos dos povos, baseando a argumentação nas "violações estruturais" e no reconhecimento das nacionalidades como eixo de articulação de rei\ indicações de autonomia. Essa tendência foi levada a suas conseqüências mais extremas nos desenvolvimentos recentes na Europa central e oriental, com a desarticulação da União Soviética e a guerra na ex-Iugoslávia.

Isso revela-se tanto na agenda das demandas sociais como nas perspectivas analíticas sobre o processo de transição nos anos oitenta. Se antes nos havíamos habituado a fazer a distinção entre os direitos civis, políticos e sociais, e a um enfoque da cidadania que punha ênfase nos direitos sociais, nos anos oitenta não se podiam desprezar ou dar por supostos os direitos humanos básicos e os direitos civis: estes converteram-se no eixo do ativismo político e da preocupação intelectual. As demandas da sociedade frente ao Estado, reclamando que garantisse e protegesse os direitos individuais e que os funcionários públicos fossem feitos responsáveis pelas suas ações, foram parte do processo de reconstrução das instituições democráticas.

Esses desenvolvimentos recentes, especialmente no Cone Sul, podem ser melhor compreendidos quando se tem em conta que as violações dos direitos humanos não afetaram somente as classes populares; as médias e altas também foram diretamente prejudicadas. Poder-se-ia dizer que as classes populares sempre foram vítimas da violência a partir de cima, que este sempre foi um fenômeno habitual, um dado da vida cotidiana, poucas vezes questionado. Por outro lado as classes médias e altas não estavam acostumadas a procurar o Estado demandando direitos de cidadania — pois temiam maiores dificuldades com seus direitos políticos civis ou sociais. Entretanto o fato de que as violações atravessaram toda a estrutura social (ainda que com intensidades diferentes segundo a classe social e segundo outras dimensões significativas) implicou a construção de uma base social mais ampla para a preocupação, para a demanda e para a solidariedade.

E relativamente mais fácil falar das violações dos direitos de cidadania em ditaduras. E na democracia? É claro que existe uma grande distância entre a formalidade da lei e a sua aplicação, e uma boa parte das lutas sociais visam encurtar esse hiato. Há também uma grande distância entre a formalidade da lei por um lado e a consciência e a prática dos direitos dos presumidos sujeitos do direito pelo outro. É sobre essa brecha que se inscreve o interesse por indagar a construção da cidadania "a partir de baixo" ou seja a partir das maneiras como aqueles/aquelas que formalmente são definidos/as como cidadãos/cidadãs2 2 A intenção —já que falamos de cidadania e de igualdade frente a lei — era encontrar uma linguagem não sexista para escrever este texto, sem tomar o masculino gramatical como "genérico". Como o castelhano (e o português — N. Trad.) é um idioma muito pouco adequado para esse exercício, tornando a leitura muito mais pesada, o resultado é pouco satisfatório. De vez em quando recordaremos que os "genéricos" têm gênero. levam avante as práticas correspondentes a essa condição: em que espaços e âmbitos?, em quais relações sociais?, frente a que instituições?, em relação a que demandas?, com que conteúdos? Ou, em outros termos, como se vê a democracia "a partir de baixo"?; como se manifesta a democratização nas práticas da vida cotidiana?; quais são os processos de aprendizado?

Frente ao desafio colocado pela modalidade da transição à democracia e os desenvolvimentos econômicos e sociais na América Latina na década dos oitenta, torna-se imperiosa a necessidade de rever os vínculos entre o sistema político e as preocupações dos cidadãos em sua vida cotidiana.3 3 Essa necessidade é convergente com o renovado esforço por reconceitualizar a sociedade civil nas ciências sociais, nos últimos anos (Keane, 1988; Keane, ed, 1988; Alexander, 1990; Melucci, 1990;Touraine, 1991).

Conceitualmente, os temas propostos pelo processo de democratização no nível social podem ser estudados a partir de pelos menos três perspectivas: primeiro, em termos das questões ligadas à equidade e às desigualdades sociais; segundo, considerando a luta social pela definição dos conteúdos da democracia; terceiro, observando-se o processo de formação dos agentes sociais e dos atores coletivos ou, em outras palavras, observando-se o processo de emergência e consolidação da cidadania.

O primeiro refere-se à vinculação entre a desigualdade social e a equidade no processo democrático. Por um lado, o tema gira em torno da questão dos efeitos redistributivos das políticas de ajuste econômico. As análises existentes põem a ênfase nos altos custos sociais do ajuste e no aumento da desigualdade social, reconhecendo os limites das políticas sociais como mecanismos para compensar os efeitos diferenciais das mudanças econômicas. O peso que a crise impõe às classes populares, especialmente sobre as mulheres, os velhos e os jovens; o incremento da polarização social — a "precarização" do trabalho e das condições de vida num extremo e a concentração da renda no outro — são algumas das questões centrais discutidas.

Um enfoque alternativo da relação entre equidade e democracia implica formular a pergunta sobre os efeitos da pobreza, da marginalização e de violência sobre a vigência dos direitos humanos. A violação dos direitos humanos não cessa no momento da transição para a democracia: os regimes formalmente democráticos são frágeis quando amplos setores da população estão em situação de pobreza e marginalização. Como assinalam Pinheiro, Popovic e Kahn (1993), depois de rever dados quantitativos e qualitativos em escala mundial, "a democracia política é frágil enquanto não se possam garantir os direitos econômicos básicos".

O segundo tema, dos conteúdos da democracia, leva a enfatizar o contraste entre as expectativas e as esperanças que foram depositadas no processo de transição para a democracia e a realidade concreta e prática de colocar em funcionamento um sistema institucional, com as dificuldades inerentes ao processo democrático e aquelas que derivam do contexto internacional no qual os processos de transição ocorrem. Nas condições atuais, a relação entre o sistema econômico e o político, entre o Estado e o mercado, retorna à cena. Ainda que, analisando-se a evidência internacional, se constate que a democracia política só se dá em sociedades capitalistas (e isso aparece como eixo dos processos de democratização na Europa Central e Oriental) trata-se de uma relação com tensões muito fundas. Sem dúvida essas tensões deveriam ser resolvidas no âmbito do desenho dos mecanismos institucionais de funcionamento da democracia política — tarefa nada fácil, especialmente quando trata da perspectiva da equidade e da participação social.

Dadas as esperanças e as expectativas que se haviam depositado no vínculo entre a democratização política e a democratização social, a experiência recente do Cone Sul revela que não há uma relação linear automática entre o funcionamento formal das instituições democráticas e a democratização da sociedade, seja esta definida em termos da crescente equidade da participação e do controle pela cidadania ou a ampliação de direitos. Para além disso, um sistema democrático não assegura atores e práticas democráticas, ou a prevalência de ideologias democráticas. As

relações e as seqüências temporais são contingentes e às vezes erráticas; os processos são lentos e não necessariamente unidirecionais. Os resultados não implicam a operação de mecanismos automáticos, mas são sempre provisórios e incertos, na medida em que são o resultado de lutas sociais contínuas, em torno da distribuição do poder e de outros recursos sociais valorizados, e do desenho das instituições que canalizam o conflito social. O terceiro enfoque está centrado nas bases (ou componentes) culturais e sociais de uma sociedade democrática. Para chegar a ser cidadãos/cidadãs ativos/ativas e responsáveis, faz-se necessário contar com as oportunidades e espaços que permitam (e promovam) aprender e desenvolver habilidades e idéias muito especiais. Para explorar quais são essas habilidades e idéias e quais são as condições de sua emergência, é preciso considerar teoricamente a noção de cidadania e examinar os processos e mecanismos sociais que a promovem.

O CONCEITO DE CIDADANIA

Na teoria democrática a noção de cidadania está ancorada na definição legal dos direitos e obrigações que a constituem. Há dois eixos centrais do debate ideológico teórico e político: a natureza dos "sujeitos" e o conteúdo dos "direitos". O primeiro eixo refere-se à visão liberal-individualista, com propostas significativas, que apontam para a revisão da relação entre o sujeito individual e os direitos coletivos. O segundo refere-se à existência de direitos "universais" e a relação entre direitos humanos, civis, políticos, econômico-sociais e coletivos.

Essas questões gerais foram e continuam sendo o eixo dos debates e lutas sociais concretas quanto à definição (formal) do cidadão (ou seja, o estabelecimento dos limites sociais entre os incluído e os excluídos, ou "estrangeiros") e quanto aos conteúdos ao alcance dos incluídos (ou seja, quais são seus direitos).

A ampliação da base social da cidadania (por exemplo a extensão do voto a mulheres e analfabetos), a inclusão dos grupos sociais minoritários, discriminados ou sem posses como membros da cidadania e a reivindicação de "igualdade perante a lei" têm sido os temas permanentes na história contemporânea: a luta contra a "solução final" do nazismo, o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos nos anos sessenta, a luta contra o Apartheid na África do Sul contemporânea, as reivindicações do feminismo no sentido de acabar com todas as formas de discriminação das mulheres, as exigências de cidadania de grupos étnicos minoritários são as manifestações internacionalmente mais visíveis e conhecidas dessas lutas sociais pela inclusão, a eliminação de privilégios e a igualdade. Os casos específicos concretos são inúmeros.

Por outro lado, temos o debate sobre o conteúdo dessa "igualdade frente à lei", ou seja, daquilo que o Estado (e crescentemente a comunidade internacional) deve garantir. De fato, a ampliação da variedade e tipos de direitos constitui o eixo da história sócio-política dos últimos dois séculos, primeiro no Ocidente e depois no resto do mundo. Quebrada a linearidade histórica analisada por Marshall, a realidade desse fim de século apresenta um mosaico aparentemente caótico: depois dos períodos ditatoriais, em que os direitos humanos básicos e os direitos políticos ficam suspensos, a transição para a democracia restabelece direitos políticos, enquanto estão em crise os direitos sociais e muito em questão os direitos civis. Ao mesmo tempo, a preocupação global com o meio ambiente, a busca de um pluralismo jurídico e o reconhecimento de direitos coletivos constituem o eixo de um debate que está pondo em xeque os próprios fundamentos da noção de soberania nacional.4 4 Ainda que na realidade histórica não se possa estabelecer linearidade, no âmbito dos organismos internacionais esses diferentes níveis aparecem como "gerações" de direitos: os direitos humanos, civis e políticos são a"primeira geração"; os sociais e econômicos, a "segunda"; os direitos coletivos, a "terceira"; os direitos dos povos, a "quarta geração".

Essas proposições, por sua vez, levam a uma nova aproximação dos temas do relativismo cultural, da tolerância e do respeito à diferença. As posições cobrem todo o espectro, desde o relativismo cultural radical (onde "tudo vale") até a busca de raízes biológicas do comportamento humano, passando por novas formas de etnocentrismo, num debate que tem facetas importantes e fecundas (Geertz, 1984; Rorty 1986). Ao mesmo tempo, a partir de outra tradição intelectual, atualiza-se o tema weberiano da racionalidade e da ética da responsabilidade, que sempre deixa aberta a questão da justificação dos fins e dos valores (Brubaker, 1984). Reconhecer que não existem critérios racionais para a eleição entre valores alternativos traz como conseqüência uma busca muito especial. Faz-se necessário encontrar um espaço em que, reconhecendo a contingência das próprias crenças e valores, se possa também reconhecer a urgência de um compromisso ético-político conforme às questões centrais dos tempos em que nos cabe viver. Evitar o sofrimento, ampliar as bases da solidariedade, expandir os campos da ação pública e responsável, ao mesmo que tempo em que se promove a tolerância, o respeito à autonomia e à diferença, a voz aos excluídos, podem não ter uma justificação transcendente última, podem, nesse sentido, ser contingentes. Nem por isso são menos necessários (Downing e Kushner, 1988, esp. Schrimer; Bauman 1990; Rorty, 1991; Heller 1990; Levinas,1982).

A noção de cidadania é um bom lugar para começar a analisar e desenvolver esse tema, sempre e quando se evite o perigo de reificar o conceito, identificando os "direitos de cidadania" com um conjunto de práticas concretas — seja votar em eleições ou gozar da liberdade de expressão, receber benefícios públicos de algum tipo, ou qualquer outra. De uma perspectiva analítica mais ampla o conceito de cidadania refere-se a uma prática conflituosa vinculada ao poder, que reflete as lutas sobre quem poderá dizer o que, ao definir quais são os problemas comuns e como serão tratados (van Gunsteren, 1978). Tanto a cidadania como os direitos estão sempre em processo de construção e de mudança. Mais que uma lista de direitos específica, que é mutável e historicamente específica, essa perspectiva implica que o direito básico é o "direito a ter direitos" (Arendt, 1973; Lefort, 1987). Também implica conceber a ação cidadã em termos de suas qualidades de auto-manutenção e expansão: "as ações próprias dos cidadãos são só aquelas que tendem a manter, e se possível incrementar, o exercício futuro da cidadania" (van Gunsteren, 1978; também Lechner, 1986).

Além da referência à variedade e amplitude dos direitos, a cidadania inclui as responsabilidades e os deveres dos cidadãos e das cidadãs, tema menos estudado pelos teóricos da cidadania (embora Marshall mencione, mas logo esqueça, os duties). O dever e a obrigação têm um imperativo coercitivo; as responsabilidades, como se verá mais abaixo, podem ser mais amplas, mais além do dever. Como assinala Arendt, esta dimensão da cidadania está ancorada na participação na esfera pública: "A privação fundamental dos direitos humanos manifesta-se sobretudo na privação de um lugar no mundo, [um espaço político] que torna significativas as opções e efetivas as ações... Tomamos consciência do direito a ter direitos... e do direito a pertencer a algum tipo de comunidade organizada somente quando apareceram milhões de pessoas que haviam perdido esses direitos e que não podiam reconquistá-los devido à nova situação global... O homem, segundo parece, pode perder todos os assim chamados Direitos do Homem sem perder sua qualidade humana essencial, sua dignidade humana. Só a perda da comunidade política o expulsa da humanidade" (Arendt, 1949, citada por Young-Bruhel, 1982).

Isso inclui o compromisso cívico, centrado na participação ativa no processo público (as responsabilidades da cidadania) e os aspectos simbólicos e éticos, ancorados em inclinações subjetivas que conferem um sentido de identidade e de pertença a uma coletividade, um sentido de comunidade. Ou seja, aquilo que promove a consciência de ser um sujeito, com direito a ter direitos. Essa dimensão cívica da cidadania está ancorada nos sentimentos que unem ou ligam a uma coletividade (contrastando com os elementos aparentemente mais racionais dos direitos e da cidadania civil e social) (Kelly, 1979; Reis, 1990).6 6 Na polis clássica a responsabilidade cívica manifestava-se num compromisso intenso e direto do indivíduo com os assuntos sociais e políticos da coletividade (Kelly, 1979). Os movimentos nacionalistas modernos tentaram construir o compromisso cívico mediante a identificação com o Estado-nação moderno. O resultado histórico nem sempre foi bem sucedido: o nacionalismo intolerante, a rigidez e o racismo foram alguns dos desenvolvimentos nesse âmbito (Kelly, 1979; Reis, 1990). O desafio atual consiste em como ancorar o sentido da comunidade e pertença em princípios éticos de equidade, associados à preocupação humana pelos outros e à preocupação pelos direitos e pelo reconhecimento recíproco.

É claro que as duas faces da cidadania apresentam tensões e ambigüidades intrínsecas, com desenvolvimentos sócio-políticos diversos. Um tema significativo é o grau em que o desenvolvimento dos direitos de cidadania social, através do Estado de bem-estar, tende a substituir o ideal do cidadão responsável pela realidade do "cliente" (Habermas, 1975; Reis 1990) convertendo-se de fato em uma forma de boicote ao próprio desenvolvimento de um sentido pleno de cidadão/cidadã como sujeito de direito. Nesse sentido, a reprodução de formas políticas de relação clientelística e de populismo na América Latina são elementos de uma cultura política que dificulta o desenvolvimento de uma cultura da cidadania.

Por sua vez, a cidadania em seu duplo sentido (os direitos e as responsabilidades) entra em conflito com o processo de emergência de sujeitos autônomos, manifestando-se então a intrínseca impossibilidade de conciliar os ideais de criação de sujeitos autônomos e de uma comunidade mais justa (Rorty, 1991). Essa ambigüidade é resumida por Reis: "O ideal do cidadão inclui, por um lado, um elemento igualitário e consensual..., elemento ao qual correspondem as virtudes solidárias e cívicas e os deveres e responsabilidades do cidadão. Também inclui irremediavelmente um elemento da asserção autônoma de cada membro individual da coletividade — algo potencialmente mais conflitivo do que solidário e convergente" (Reis, 1990).

Nas transições para a democracia que se vive atualmente no mundo, junto com o processo secular de criação de sujeitos individuais e coletivos, aparecem ambas as caras do processo de cidadania: a manifestação aberta das exigências de respeito (e ampliação) aos direitos de cidadania — contidos e acumulados durante a ditadura — e a demanda simbólica de um sentido de pertença, ancorada nas identidades coletivas.7 7 A interação entre essas demandas de cidadania e os requisitos da construção de uma nova ordem é analisada por Lechner (1990), ao assinalar que a "demanda de comunidade" envolvida na busca de uma nova identidade coletiva é um elemento significativo do desafio que a sociedade chilena propõe ao novo Estado democrático. Da perspectiva da ordem democrática em constituição, a articulação entre os requisitos da governabilidade e da representação, por um lado, e da participação e do controle pelos cidadãos da gestão governamental, pelo outro, são com freqüência propostos como incompatíveis no curto prazo, envolvendo uma difícil opção. Na realidade, a construção democrática requer ambos os processos. As "democracias delegativas" deixam rapidamente de ser democracias se não se preocupam de partida com institucionalizar formas de participação e de controle pela cidadania.

IMAGENS SOCIAIS DA (IN)JUSTIÇA

Partamos de uma afirmação esquemática e simplificadora da realidade historicamente constituída na América latina: mesmo quando existem direitos formalmente definidos e aceitos, na vida cotidiana habitual as pessoas poucas vezes os exercem, os exigem ou apropriam-se deles. Em geral, os setores sociais subalternos vivem sua subordinação como "normalidade", predominando uma visão naturalizadora das hierarquias sociais.

Isso não significa que não haja na região uma história rica e complexa de lutas populares que impulsionaram a expansão da cidadania e dos direitos. As lutas camponesas, os protestos operários, os movimentos populares antigos e recentes, as mobilizações políticas excepcionais (como o 17 de outubro na Argentina ou a mobilização popular no Brasil promovendo o impeachment de Collor), as próprias revoluções, não podem ser deixadas de lado. Essa história de lutas populares manifesta a riqueza das experiências de resistência e de oposição à dominação, recortado sobre um fundo histórico-cultural de aceitação e naturalização da dominação, que se estende até o presente e se revela muito difícil de abandonar.

Essas lutas trouxeram mudanças na realidade das classes dominadas. Resultaram também na transformação parcial da legalidade, com uma ampliação dos direitos da cidadania. Qual foi o impacto de toda essa história nas representações culturais da dominação-subordinação? Há uma transformação na relação entre cidadania e Estado? Continua o Estado sendo visto como uma instituição de dominação "naturalizada"? Num registro paternalista? Ou começa a ser visualizado como juiz e garante legítimo para a solução (e não somente para a repressão) dos conflitos sociais — e como uma instituição que deve prestar contas à cidadania?

Apesar de todas as lutas populares, a cultura da dominação-subordinação mostra uma continuidade histórica significativa, muito profunda e resistente, que reaparece repetidas vezes, mesmo em meio a processos de mudança e transformação. Não existe neste ponto suficiente pesquisa histórico-comparativa, que permita contar com um quadro interpretativo sistemático sobre as tensões entre as lutas e movimentos sociais e as matrizes tradicionais, tarefa que deveria ser incluída nas investigações contemporâneas sobre cultura democrática. Dada essa ausência, tomaremos alguns casos que ilustram esse tipo de situações: uma referente à "naturalização" das relações de subordinação ao Estado; a outra referente a um movimento de quebra dessa forma de relação. A apresentação desses casos visa mostrar os processos sociais que fomentam o desenvolvimento de uma consciência cidadã, e ao mesmo os mecanismos pelos quais se avança nesse caminho. Mais do que observar os processos legislativos de criação de direitos, fixaremos a atenção no exercício da cidadania como prática que se aprende na participação em experiências concretas.

Buenos Aires nos anos 80 - Nos setores populares de Buenos Aires a chave de interpretação do cotidiano é predominantemente fatalista: reconhece-se a desigualdade social, que é mesmo denominada "injustiça", mas dificilmente ela é percebida como produto de ações e conflitos sociais. Na realidade, é mais uma idéia de desgraça do que de injustiça: "A injustiça social...ou a desgraça de ser pobre"; "isto é a desgraça de ser pobre"; "é uma desgraça ser pobre"; "Jesus também era pobre. Mas bem-aventurado"; "não filosofemos!" (Jelin e Vila 1987a).8 8 Essa citação, assim como as seguintes, é retirada de trabalho de campo em bairros populares de Buenos Aires, realizada nos anos de 1984 e 1990, relativamente a projetos de pesquisa sobre a família, a vida cotidiana e a participação social. As referências bibliográficas são aos relatórios onde esse material é apresentado.

Essas imagens, ancoradas na "desgraça" ou na "sorte" mais do que na "injustiça", não reconhecem um opositor social culpável ou responsável pela situação em que se vive. Nessa visão os ricos não têm culpa de que haja pobreza: "Os Anchorena não têm culpa de que eu seja pobre..." (Rubinich, 1991). "Que injustiça!. Nós aqui morrendo de frio e lá as pessoas andam em mangas curtas dentro do apartamento... Claro, graças a Deus que possam, aqui não nos alcança o aquecedor e temos que gastar o querosene para nos aquecermos um pouco" (Jelin, 1991).

A ênfase recai sobre uma ordem natural injusta. Seguramente essa maneira de conceber a realidade social não é nova, produto da crise atual, mas tem fundas raízes históricas. De fato, é uma visão coerente com as ideologias organicistas, predominantes na Igreja Católica e no peronismo. Nesse contexto, a crise atual é objeto de lamentos centrados na perda do bem-estar, mas não tanto na perda de direitos.

Há direitos perdidos? A relação estabelecida nos anos quarenta entre Perón e as classes populares foi complexa: a expansão do bem-estar foi vivida como uma mescla entre a dádiva do poderoso benfeitor e os benefícios conquistados na luta por direitos de cidadania social. Nessa linha de indagação os depoimentos que aludem às conquistas sociais ligadas ao peronismo de pós-guerra, que aparecem especialmente em pessoas de mais idade, são significativos: "Bem feitas as contas essas são coisas que nos cabem, mas até a chegada de Perón não se sabia"; "Aí aprendeu-se a pedir!" (Rubinich, 1991).

Para os que viveram como jovens ou como adultos o primeiro peronismo, a presença dos direitos trabalhistas na sua vida cotidiana é intensa. O "direito ao trabalho" e as imagens de dignidade associadas ao trabalho (especialmente assalariado) são muito fortes. "Quando veio Perón as coisas mudaram no trabalho. Tinha-se proteção"; "Antes não havia nada disso. Que médico que nada! Nem férias, nem aposentadorias, nem nada. Essas coisas começaram aí. Antes os patrões faziam o que queriam com você" (Rubinich, 1991).

Se no mundo do trabalho as pessoas tinham direitos, e reconhecem as perdas como afrontas à dignidade humana, em outras áreas (especialmente a das políticas sociais) a representação é mais ambígua: "aprendeu-se a pedir", mas como pedinte ao pai poderoso mais do que como sujeito de direito. Ou receberam-se dádivas do governo sem sequer tê-las pedido: "O governo que fez pelo povo já não vai haver mais, Não sei. Eu de política entendo muito pouco, mas percebo. Porque nós no ano 50... tínhamos o governo Perón. Havia muitos para quem ele caiu bem, muitos para quem ele caiu mal, mas é um governo que ajudou o povo, ajudou o trabalhador... Chegava o Natal e o Ano Novo e tínhamos um pão doce e uma cidra que o governo mandava. Se havia crianças, tínhamos um brinquedo. Nas escolas não faltava nada, calçado nunca... Esse governo não se esquecia da gente do campo. Governo como esse vai ser muito difícil. Presidente como Perón não existe mais". Daí o lamento: "O partido peronista era quando existia Perón, Perón morreu e acabou-se o partido. Os outros são todos a mesma coisa" (Jelin 1991). Ou seja, quando não existe mais o líder acabam-se os benefícios que dependiam dele e não há direito a reivindicar, exceto no tocante ao mundo do trabalho, mundo que foi incorporado como espaço de direitos na prática cotidiana.9 9 Na atualidade, na vida cotidiana dos bairros populares, o contato mais direto com o sistema judicial está personificado na figura do advogado trabalhista; os outros campos do direito são alheios, distantes, estranhos como a própria política e os aparatos institucionais. Assim, no caso do engenheiro Budge, analisado por Gingold (1991), a primeira reação dos familiares frente à dificuldade de recuperar os corpos das vítimas, foi buscar um advogado. O que conheciam e estava no bairro era, obviamente, um advogado trabalhista, que os remeteu aos advogados criminalistas que assumiram o caso. E, na medida em que o Estado está identificado com o líder, ao desaparecer Perón o Estado deixa de ser o referente dos temas de direitos e justiça. E essas noções passam a ser referidas ao âmbito das relações sociais cotidianas.

Para as pessoas mais jovens, ou para os que não tiveram experiência pessoal em relações trabalhistas formais, devido à crise da indústria e do trabalho assalariado nas últimas décadas, a imagem dos direitos vinculados ao mundo do trabalho é diferente: o que "cabe" a cada qual é mais freqüentemente ter trabalho e ter uma renda suficiente para manter-se do que os benefícios trabalhistas: "Não é um sonho, eu creio que é um direito que a economia alcance a todos, não? Um pouco o conceito de justiça, dar a cada um o que lhe cabe"; "Porque ninguém está pedindo que te dêem muito, mas que te dêem para viver... Ninguém está pedindo, não sei, comprar um carro, mas pelo menos poder respirar. Chega o dia 15 e não tens um peso. Não é justo" (Jelin, 1991). Também se expressam idéias de injustiça e de falta de dignidade em relação a situações trabalhistas específicas: "Meu velho, por tudo que trabalhou na sua vida... por tudo que fez, teria que ter muito mais e trabalhar menos, pela idade que tem. Coisas mais justas mas que não acontecem"; "É um trabalho muito injusto, eu digo porque sei, porque vivi... Há muita injustiça, a empregada doméstica sofre muita injustiça"; "Porque é injusto o que está acontecendo comigo. Eu não sou um delinqüente, sou um homem honrado (engraxate, detido pela Polícia duas vezes em pouco tempo) (Jelin, 1991).

Há outros campos nos quais as idéias de justiça e de direitos aparecem no discurso popular. Por um lado, nas relações no interior da família, às vezes reforçando a imagem da autoridade patriarcal: "E um pai tem o direito de reclamar, não lhe parece?, de um filho que não vai bem" (Jelin, 1991). Outras, como no seguinte diálogo, mostrando como os direitos são conseguidos na luta cotidiana: "Agora estou tão cansada, tão angustiada. Apesar de que a minha vida agora é diferente. Trabalho, se quero ir ao teatro vou... antes não podia fazer isso, não podia ir até a esquina, tinha que ser submissa. Agora não... porque me tornei independente, me liberei"; (Há muitas mulheres que vivem assim, submissas); "Sim, e me amarga vê-las agora, porque tem que ver. Aqui no quarteirão há uma moçatão submissa. O cara não trabalha, ela tem seis filhos...É o que me desgosta, toda essa injustiça..."; (E você, como conseguiu?); "É fácil, parece que não, mas é fácil. Porque quanto mais te submetes mais ele te usa, o machismo vem à tona. E isso não! Olho vivo! Trabalhamos igual, temos os mesmos direitos... Por que ele tem que usar o machismo para nos submeter, por que? Isso era nos tempos de antes, agora não..." (Jelin, 1991).

Nesses temas a noção de justiça se refere a relações entre pessoas e grupos sociais: patrões e trabalhadores, homens e mulheres, pais e filhos, sem referência explícita ao papel do Estado. Como se coloca a relação entre a sociedade e o Estado nesse tema? Qual é o papel do Estado? Que responsabilidade cabe ao Estado nas "injustiças"?

Desde baixo e na perspectiva do cotidiano a imagem predominante da relação dos sujeitos sociais com as instituições estatais é uma queixa generalizada, na qual se combina o fatalismo da desigualdade social com a atribuição de culpa aos políticos e ao Estado. Esta imagem contrasta um ideal de Estado como garante dos direitos de cidadania social com uma realidade de corrupção, de violência, e de falta de garantias: "Eu creio que tem que haver um pouco mais de igualdade de direito. Não falemos de algo utópico, uma revolução, uma reforma agrária. Mas pelo menos uma igualdade de direitos: boa educação, boa saúde, e que os salários sejam mais ou menos, isso pelo menos". (Jelin, 1991).

Na realidade, existem diversos registros para interpretar as imagens sociais do Estado: o Estado como garante dos direitos de cidadania, definidos de maneira mais ou menos ampla; o Estado paternalista, que é procurado com pedidos, cujas respostas podem variar segundo o grau de responsabilidade social, moralidade, honestidade e eficiência dos políticos; o Estado como opressor e repressor das demandas sociais. Na realidade, essas imagens sociais do papel do Estado aparecem mescladas e confusas, regulando a percepção dos direitos e a noção de cidadania, assim como as imagens sociais da lei e o respeito pelos procedimentos institucionais.

Nesse contexto, a democracia e a institucionalidade política assumem um sentido muito especial. As classes populares de Buenos Aires visualizam uma distância grande entre "aqui" e "em cima", entre as necessidades sentidas e vividas concretamente e a política, ancorada principalmente nos partidos e secundariamente no aparato do Estado (Jelin e Vila, 1987b). Os partidos e a política são vistos como intrinsecamente maus, distantes das práticas cotidianas dos setores populares, que dividem em lugar de unir, que não dizem a verdade e que se orientam pelos interesses (amiúde pessoais, ainda que corruptos) dessa categoria social nada prestigiada na população: os políticos. Essa visão arrasta com seu estigma todo o sistema político e com este também a democracia, identificada como a "democracia dos políticos", não como "minha/nossa" democracia. Política, parlamento e democracia são conjunta ou separadamente questionadas no sentido comum dos setores populares urbanos. Como o exprime um depoimento: "Lembro-me de uma cartaz que dizia: 'Nós estamos com a democracia'. E ela, está conosco?" (Jelin e Vila, 1987a).

Nesse contexto também entra a institucionalidade judicial, percebida como estranha e alheia. Dos casos legais se lê nos jornais, vê-se algo na televisão, sem entender demasiado de juizes, fiscais, recursos, impugnações e todos os outros mecanismos legais e termos técnicos. Há, no entanto, uma imagem básica: quem comete um crime deve ser castigado. Parece ser mais forte a relação crime-castigo do que a forma e os procedimentos para efetivar o castigo. Daí surge o debate social sobre o "castigo pelas próprias mãos", o debate sobre os "apertos" e os constrangimentos a detentos para a confissão dos suspeitos, o modo ambivalente como se visualiza a violência policial (Gingold, 1991).

Há outro sentido em que a institucionalidade judicial está distante. Enquanto parte da estrutura de poder, está sujeita às mesmas modalidades de funcionamento que o resto da estrutura governamental: as "relações" e "conveniências" contam, a decisão judicial pode ser comprada, a trapaça e a corrupção são a regra. Só em raras ocasiões surge alguma figura "limpa", incorruptível, que logo se vê envolvida em ameaças ou em rumores de corrupção ou malversação, para não desestabilizar o funcionamento habitual do sistema. O julgamento dos comandantes das juntas militares, em 1985, teve algum efeito no sentido de aproximar as formalidades e a veracidade da justiça da realidade cotidiana. Outros casos judiciais — quase "cruzadas", como Budge ou Maria Soledad — servem, por outro lado, para indicar a magnitude do esforço necessário para superar o status quo. Isso, por sua vez, indica a tensão entre a visão de que a Justiça é corrupta, que não busca nem a verdade nem o castigo dos culpados, e a possibilidade vivida e sentida de lutar por sua transformação.

Villa El Salvador, Lima - O caso mais conhecido das transformações democratizadoras no plano da política local é a Villa El Salvador, nos arredores de Lima. Nos começos da década dos setenta, uma invasão urbana de 3.000 famílias desembocou em negociações com o governo. O resultado foi a outorga de terras (diferentes das invadidas) nos arredores de Lima e o reconhecimento da organização comunitária criada. Até finais dos anos oitenta Villa El Salvador converteu-se num modelo de auto-gestão urbana. A comunidade tem mais de 300.000 habitantes, com uma complexa estrutura organizativa descentralizada, que maneja de maneira autônoma os serviços de infra-estrutura urbana, os serviços de saúde e educação, o transporte, as comunicações e algumas organizações econômicas (desde cooperativas de produção agrícola até restaurantes populares), além da atividade religiosa e recreativa (Steif, 1988; Zapata, 1989; Blondet, 1991).

Qual é a lógica dessa experiência de mobilização? Quando se concretizou a invasão, se fez como reivindicação de direitos? Cometer um ato coletivo "ilegal", elaborar uma estratégia de defesa frente à repressão policial, fazem parte da consciência cidadã? Em todo o processo de invasão e estabelecimento da comunidade manifestou-se uma prática coletiva que visava resolver uma necessidade básica — a habitação. No ato de afirmação da necessidade esperava-se a benevolência do Estado. Mas também, indiretamente, estava-se pondo à prova os limites do sistema, o que implicava uma afirmação de direitos. Poderia dizer-se que no processo há uma tensão não resolvida entre recorrer ao Estado (disposto a dar e controlar) e reclamar sua presença e, simultaneamente, desenvolver uma proposta de cidade popular autogestionária, que deveria crescer pelo esforço dos povoadores e não ao amparo das autoridades, tudo isso com um discurso comunitarista.

Até o momento da invasão a demanda de habitação não se punha em termos de direitos de cidadania frente ao Estado. Mas cometer um ato coletivo ilegal e confrontar o Estado implicou entrar em relação direta com ele. E é isto, um aprendizado coletivo e comunitário, que se manifestou nos primeiros anos, como criação de uma oposição ao Estado. Por sua vez, a tendência à autogestão debilitou a capacidade de negociação com outras instituições da sociedade e com o próprio Estado. Sem um contexto institucional que facilitasse a autonomia e a expressão de identidades e interesses próprios, os novos atores ou grupos que começavam a reclamar um espaço próprio se foram desarticulando. Por um lado, não tinham a capacidade de resistir ao "sistema personalista e prebendário, que, longe de vincular-se com a sociedade, atenta contra toda tentativa de democratização social". Por outro lado, são vítimas da crise generalizada, que "corrói os poucos mecanismos de vida institucional existentes" (Blondet 1991). Na busca da sobrevivência, a atitude necessariamente dependente, instrumental e interessada frente ao espaço público tende a amesquinhar os espaços de cidadania, seja como reivindicação de direitos ou na responsabilidade em face da coisa pública.

Esse processo pode ser visto com mais minúcia no plano micro-social das mulheres (Blondet, 1991). No princípio as mulheres participam porque "não podiam sozinhas". Ao fazê-lo, passam do plano individual a experiências compartidas na busca de soluções a carências coletivas. Isso não significa anular as identidades individuais: há uma luta para "destacar-se" frente às outras, mesmo no tratamento de assuntos coletivos. E um processo de aprendizado: "aprendem a lógica e os mecanismos de articulação de interesses no corpo de uma instituição, ao mesmo tempo que redefinem o sentido e a identidade do individual" (Blondet, 1991). A participação tem limites, tanto do lado das próprias mulheres quanto do contexto. Há forte oposição familiar, por causa da desatenção às funções domésticas; queixas pela dificuldade para falar em público. Isso se pode transformar, aprendendo-se estratégias coletivas, aumentando-se a auto-estima. Mas, ao mesmo tempo, a auto-exclusão do cenário político (baseada em parte na definição do papel doméstico como não político) reforça a dependência de instituições promotoras, dificultando a autonomia do movimento feminino-popular.

A menos que o contexto político-estatal fomente as práticas de responsabilidade coletiva cidadã e garanta os mecanismos de expressão das demandas de direitos, todo o aprendizado social carece de espaços públicos para sua expressão. E, se tudo der certo, não se reverte nessas condições ao individualismo familiar, mas a alguma modalidade de comunitarismo auto-gestionário, para reemergir quando as condições o permitam.

COMO CONSTRUIR A CIDADANIA?

Como se aprende a ser cidadão/cidadã? O que ocorre no sistema de relações sociais e institucionais nesse processo? Estas são algumas questões suscitadas pelos desafios da transição nos anos oitenta e noventa, que deveriam contribuir para pensar um modelo analítico que considere duas áreas de fenômenos: o processo de aprendizado de direitos e responsabilidades e a criação de um quadro institucional democrático.

Da perspectiva da formação de sujeitos, o tema é o aprendizado das expectativas recíprocas nos vínculos com as/os outras/outros: que direitos tenho?; quais são as minhas responsabilidades? Esse processo implica um duplo jogo, no qual simultaneamente reconheço quais são as responsabilidades do outro em relação a mim (meus direitos) e aprendo quais são as minhas responsabilidades em relação ao outro. Processo que não só implica este aprendizado de expectativas e condutas responsáveis como também a definição da amplitude do espaço da responsabilidade de cada sujeito.

Esses processos não se dão no vazio, mas em quadros institucionais concretos, quadros que devem ser (re)construídos na transição democrática. Ainda que toda a rede institucional se veja fortemente afetada pelo tipode regime político, há variações importantes: a família como instituição de socialização direta é relativamente menos permeável à (re)pressão da ditadura que a escola, e esta possivelmente menos que as redes sociais dos jovens na rua e na esquina. A interconexão dos âmbitos institucionais é sumamente complexa: há mecanismos de contágio e inter-penetração, ao mesmo tempo que processos e esferas de diferenciação institucional. Os regimes políticos ditatoriais e o terrorismo de Estado tiveram uma forte penetração social, invadindo âmbitos e espaços cotidianos e privados que no imaginário social não correspondem à política (as cadernetas de telefones, por exemplo). Também geraram espaços de resistência e solidariedade, ocultos e clandestinos, que tampouco se auto-definiram como públicos ou políticos, mas atuaram como espaços alternativos de socialização e de aprendizado de padrões de conduta que depois puderam ser retomados nos espaços públicos.

A transição para a democracia envolve a reconstrução das instituições do Estado e a transformação das instituições da sociedade civil. Implica o desmantelamento de formas anti-democráticas de exercício do poder (autoritárias, corporativas e/ou baseadas na pura força). E também uma mudança nas regras que governam a distribuição do poder, o reconhecimento e vigência dos direito e da legitimidade dos atores sociais. Por sua vez, as pessoas têm que adotar comportamentos e crenças adequadas ou coerentes relativamente à noção de democracia, aprendendo a atuar dentro do renovado sistema institucional. E os líderes políticos e as classes dominantes têm que aprender a reconhecer e levar em conta os direitos e as identidades de atores sociais diversos, renunciando à arbitrariedade e à impunidade.10 10 Obviamente, nem todos têm que aprender algo inteiramente novo: há quem tenha memórias de práticas democráticas no passado e esteja pronto para voltar a exercê-las. Entretanto, as ditaduras duraram muito, de modo que os grupos geracionais mais jovens não tiveram oportunidade de exercer práticas políticas democráticas (votar ou funcionar em governos eleitos) nem experiências de afirmação da cidadania no cotidiano. Além disso, mesmo em países onde a democracia política funcionou anteriormente, a ética e a cultura da democracia não foram tão fortes e prevalecentes. Décadas ou mesmo séculos de governantes arbitrários e um padrão cultural de submissão em relações interpessoais hierárquicas deixaram um legado que não é fácil de mudar com rapidez. O desafio da transição atual reside na capacidade de combinar as mudanças institucionais formais com a criação e expansão de práticas democráticas e de uma cultura da cidadania. Daí a relevância prática das preocupações que aqui propomos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • *
    "Como construir ciudadanía? Una vision desde abajo."
    European Review of Latin American and Caribbean Studies 5, dezembro de 1993. Tradução de Gabriel Cohn.
  • 1
    Por volta do final dos anos oitenta, além disso, a atenção internacional também começou a centrar-se no reconhecimento dos direitos coletivos dos povos, baseando a argumentação nas "violações estruturais" e no reconhecimento das nacionalidades como eixo de articulação de rei\ indicações de autonomia. Essa tendência foi levada a suas conseqüências mais extremas nos desenvolvimentos recentes na Europa central e oriental, com a desarticulação da União Soviética e a guerra na ex-Iugoslávia.
  • 2
    A intenção —já que falamos de cidadania e de igualdade frente a lei — era encontrar uma linguagem não sexista para escrever este texto, sem tomar o masculino gramatical como "genérico". Como o castelhano (e o português — N. Trad.) é um idioma muito pouco adequado para esse exercício, tornando a leitura muito mais pesada, o resultado é pouco satisfatório. De vez em quando recordaremos que os "genéricos" têm gênero.
  • 3
    Essa necessidade é convergente com o renovado esforço por reconceitualizar a sociedade civil nas ciências sociais, nos últimos anos (Keane, 1988; Keane, ed, 1988; Alexander, 1990; Melucci, 1990;Touraine, 1991).
  • 4
    Ainda que na realidade histórica não se possa estabelecer linearidade, no âmbito dos organismos internacionais esses diferentes níveis aparecem como "gerações" de direitos: os direitos humanos, civis e políticos são a"primeira geração"; os sociais e econômicos, a "segunda"; os direitos coletivos, a "terceira"; os direitos dos povos, a "quarta geração".
  • caráter público

    5 Em seu texto sobre a revolução, Arendt assinala o da noção de liberdade na revolução francesa, e a "felicidade pública" (o direito do cidadão a chegar à esfera pública, a participar do poder público) da revolução americana. No curso da história posterior "podemos considerar esse desaparecimento do 'gosto pela liberdade política' como a retirada do indivíduo a uma 'esfera íntima de consciência', onde encontra a única'região apropriada para a liberdade humana'; essa região, como uma fortaleza ruída, será a base a partir da qual,
    o indivíduo tendo prevalecido sobre o cidadão, se defenderá então contra uma sociedade que, por sua vez/prevalece sobre a individualidade
    1 1 Por volta do final dos anos oitenta, além disso, a atenção internacional também começou a centrar-se no reconhecimento dos direitos coletivos dos povos, baseando a argumentação nas "violações estruturais" e no reconhecimento das nacionalidades como eixo de articulação de rei\ indicações de autonomia. Essa tendência foi levada a suas conseqüências mais extremas nos desenvolvimentos recentes na Europa central e oriental, com a desarticulação da União Soviética e a guerra na ex-Iugoslávia. " (Arendt, 1965).
  • 6
    Na polis clássica a responsabilidade cívica manifestava-se num compromisso intenso e direto do indivíduo com os assuntos sociais e políticos da coletividade (Kelly, 1979). Os movimentos nacionalistas modernos tentaram construir o compromisso cívico mediante a identificação com o Estado-nação moderno. O resultado histórico nem sempre foi bem sucedido: o nacionalismo intolerante, a rigidez e o racismo foram alguns dos desenvolvimentos nesse âmbito (Kelly, 1979; Reis, 1990). O desafio atual consiste em como ancorar o sentido da comunidade e pertença em princípios éticos de equidade, associados à preocupação humana pelos outros e à preocupação pelos direitos e pelo reconhecimento recíproco.
  • 7
    A interação entre essas demandas de cidadania e os requisitos da construção de uma nova ordem é analisada por Lechner (1990), ao assinalar que a "demanda de comunidade" envolvida na busca de uma nova identidade coletiva é um elemento significativo do desafio que a sociedade chilena propõe ao novo Estado democrático.
  • 8
    Essa citação, assim como as seguintes, é retirada de trabalho de campo em bairros populares de Buenos Aires, realizada nos anos de 1984 e 1990, relativamente a projetos de pesquisa sobre a família, a vida cotidiana e a participação social. As referências bibliográficas são aos relatórios onde esse material é apresentado.
  • 9
    Na atualidade, na vida cotidiana dos bairros populares, o contato mais direto com o sistema judicial está personificado na figura do advogado trabalhista; os outros campos do direito são alheios, distantes, estranhos como a própria política e os aparatos institucionais. Assim, no caso do engenheiro Budge, analisado por Gingold (1991), a primeira reação dos familiares frente à dificuldade de recuperar os corpos das vítimas, foi buscar um advogado. O que conheciam e estava no bairro era, obviamente, um advogado trabalhista, que os remeteu aos advogados criminalistas que assumiram o caso.
  • 10
    Obviamente, nem todos têm que aprender algo inteiramente novo: há quem tenha memórias de práticas democráticas no passado e esteja pronto para voltar a exercê-las. Entretanto, as ditaduras duraram muito, de modo que os grupos geracionais mais jovens não tiveram oportunidade de exercer práticas políticas democráticas (votar ou funcionar em governos eleitos) nem experiências de afirmação da cidadania no cotidiano. Além disso, mesmo em países onde a democracia política funcionou anteriormente, a ética e a cultura da democracia não foram tão fortes e prevalecentes. Décadas ou mesmo séculos de governantes arbitrários e um padrão cultural de submissão em relações interpessoais hierárquicas deixaram um legado que não é fácil de mudar com rapidez.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 1994
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