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Asmáticos brasileiros: o tratamento desejado

EDITORIAL

Asmáticos brasileiros: o tratamento desejado

Há muito se sabe que o tratamento que se vem aplicando aos asmáticos brasileiros de baixa renda não condiz com o que preconizam os consensos nacionais e internacionais.

Os participantes de encontros sobre asma levantaram e ainda levantam com freqüência essa questão: o que fazer quando, ao atender pacientes para tratamento de asma nos postos de saúde pública, não se puder aplicar o mínimo dos pontos básicos recomendados pela maioria dos consensos para o manejo adequado da asma, como, por exemplo, o uso de corticosteróides e beta-agonistas inalatórios?(1-4)

A maioria das respostas dadas não era bem definida e, por isso, percebeu-se que se fazia necessário abordar essa questão de modo mais realístico e direto.

Para tanto, desde 1993, quando se realizou o I Encontro Brasileiro sobre Asma, em Fortaleza, iniciou-se uma discussão sobre essa questão sob o título de "Asma em População de Baixa Renda"(5). Primeiramente, isso foi feito sob a forma de conferência, seguida de debate, que se repetiu nos anos de 1995 e 1997, em Fortaleza e Natal, no IV Encontro Norte e Nordeste sobre Asma e I Congresso Brasileiro de Asma, respectivamente(6,7). Finalmente, esse tema ocupou um amplo espaço, sob a forma de simpósios, com amplo debate, no II Congresso Brasileiro de Asma, em 1999, em Brasília(8).

O objetivo era: conhecer como estão sendo tratados os asmáticos brasileiros pelos serviços públicos de saúde; conhecer experiências nacionais e internacionais com os programas de controle da asma e sensibilizar, com base em evidências, os responsáveis pelos serviços de saúde pública que assistem a asmáticos do Brasil para, a partir daí, em um segundo momento, desenhar-se um programa capaz de atender a contento os brasileiros de baixa renda que sejam portadores de asma.

A fim de identificar alguns pontos referentes ao manejo da asma no País e de apresentá-los no congresso acima referido, aplicou-se, em janeiro de 1999, um questionário sobre Atendimento a Asmáticos nas Capitais do Brasil a 20 presidentes das sociedades regionais filiadas da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT). Anexou-se, a esse primeiro, um segundo questionário versando sobre Programas de Atenção a Asmáticos no Brasil. Esse último foi também encaminhado a seis membros do Comitê de Asma da SBPT.

Responderam ao primeiro questionário dez presidentes de sociedades regionais filiadas da SBPT, correspondendo a dez capitais de Estados da União. Ao segundo, responderam os mesmos dez e mais os seis membros do Comitê de Asma da SBPT, perfazendo, esse último, um total de dezesseis questionários respondidos.

Com relação ao questionário que tratou do Atendimento a Asmáticos nas Capitais do Brasil, os dez participantes (100%) disseram que: 1) Os postos de saúde pública de seus Estados não dispunham de antileucotrienos, cromoglicato dissódico ou nedocromil, aminofilina de ação prolongada, anticolinérgicos, beta-agonistas de ação curta e prolongada ou corticosteróides, esses dois últimos inalatórios; 2) Os medicamentos usados para o tratamento de asma eram: aminofilina, beta-agonistas e corticosteróides, todos na apresentação oral; 3) A demanda de pacientes asmáticos era maior do que os medicamentos disponíveis; 4) Não dispunham de ambulatórios especializados em asma nos postos de saúde que abrangessem a demanda. Entretanto as respostas abertas destacavam que, de modo especial, havia ambulatórios de asma, quase sempre em universidades e destinados predominantemente à pesquisa. Em situações, também especiais, dispunham de alguns medicamentos como os beta-agonistas e corticosteróides inalatórios e até teofilina de ação prolongada, geralmente oriundos de doações da indústria farmacêutica. Todos reivindicaram insumos, principalmente para aquisição de medicamentos e melhoria da funcionalidade do sistema público de saúde.

Com relação às respostas aos questionários sobre os Programas de Atenção a Asmáticos no Brasil, verificou-se que, de um total de 16 questionários respondidos, 14 (87,5%) disseram que possuíam programas de atenção a asmáticos em suas cidades. Havia cidades com muitos programas em andamento. São Paulo é um exemplo delas.

A maioria, 10 (62,5%), teve seu início na década de 90. Todos os programas, 14 (100%), beneficiavam o componente assistencial, 12 (85%) deles desenvolviam também o componente educativo e 6 (42,9%) atendiam predominantemente a população adulta, embora 5 (35,7%), beneficiassem adultos e crianças. Somente 3 (21,4%) eram dirigidos especificamente às crianças.

As respostas às questões abertas referiram como entraves ao desenvolvimento dos programas: a falta de insumos para formação de pessoal habilitado no manejo de asmáticos, aquisição de medicamentos e dificuldades no funcionamento dos serviços públicos de saúde.

Os resultados desse breve levantamento relativo ao atendimento a asmáticos nas capitais do Brasil apontaram para um ponto crucial no manejo adequado da asma dos brasileiros de baixa renda: o tratamento medicamentoso para todas as apresentações da asma, especialmente aquelas persistentes, moderadas e graves, não está sendo feito com os beta-agonistas nem com os corticosteróides inalatórios. Esse fato vai frontalmente contra as recomendações dos consensos brasileiros ou internacionais, que os indicam como medicação de primeira linha da asma. As evidências já provaram que os corticosteróides inalatórios são indispensáveis à reversão ou estabilização do processo inflamatório da asma a longo prazo e os beta-agonistas ao alívio do brocoespasmo(1,3).

O mesmo problema parece afetar outros países em desenvolvimento. Pelo menos naqueles da América Latina e do Sudeste Asiático, a situação é idêntica à brasileira. Lá, como aqui, não se usam os corticosteróides nem os beta-agonistas inalatórios como rotina no tratamento da asma.

A maior razão para o não uso desses medicamentos inalatórios foi o custo elevado dessas apresentações(9,10).

Entretanto, Perera et al. encontraram que, mesmo usando corticosteróides inalatórios, a preços considerados elevados, ao invés de fazer uso dos mesmos medicamentos por via oral, em 82 pacientes com asma persistente, o custo mensal do tratamento se reduziu em mais de 60%(11). Enquanto isso, na Argélia e na China, a solução encontrada para o uso rotineiro desses medicamentos foi o de fabricá-los no próprio país, passando a custar quase 50% menos do que os importados(10).

Deduz-se também, desses dados coletados, que, com a falta de ambulatórios especializados, juntamente com a maior demanda de pacientes do que a disponibilidade dos medicamentos, tornar-se-á muito difícil observar alguns dos pontos básicos, inter-relacionados e fundamentais para o sucesso do controle da asma, principalmente das formas graves, porque haveria solução de continuidade dos tratamentos. Desse modo, conseqüentemente, não se poderia elaborar e aplicar aos pacientes um plano de tratamento personalizado e monitorizado, a longo prazo(11).

Os resultados encontrados com relação ao estado atual do atendimento de asmáticos nas capitais do Brasil pareceram, à primeira vista, desanimadores: faltam medicamentos apropriados, insumos para adquiri-los e a funcionalidade do serviço público deixa muito a desejar. Entretanto, os dados relativos a programas isolados para atendimento de asmáticos nas capitais neutralizam o desânimo e despertam um grande alento àqueles que se preocupam com essa questão, pois, apesar das dificuldades citadas como entraves, mais de 80% dos entrevistados informam como existentes em suas cidades. Tal é o interesse de algumas pessoas em conduzir os asmáticos de modo correto que mais de um programa em andamento pode ser constatado em algumas cidades. Além do mais, os programas surgiram na década de 90, numa prova de temporalidade com os encontros e consensos sobre asma, quando provavelmente começou a desenvolver-se uma consciência crítica da necessidade de atitudes capazes de enfrentar essa realidade (conferências, relatórios, simpósios e programas) sobre asma em população de baixa renda. Grande tem sido o interesse de muitos em mudar a atual realidade sobre o tratamento de asmáticos de baixa renda. A prova está no surgimento de programas para controle da asma que, mesmo sem dispor de medicação inalatória, valorizam sobremaneira o componente educativo. Esses programas foram capazes de promover impactos relativos às hospitalizações por asma e suas complicações. Um exemplo que pode ser citado é o do Programa de Atenção Integral à Criança Asmática de Fortaleza (PROAICA) ¾ Centro de Atendimento à Criança (CROA): de 1.133 crianças admitidas no programa entre 1996 e 1999 e usando apenas a medicação disponível (beta-agonista, aminofilina e corticosteróides por via oral), 507 (44,7%) hospitalizavam-se pelo menos uma vez ao ano antes de serem admitidas e somente 72 (6,4%) permaneceram hospitalizando-se após um ano de matriculadas no PROAICA(12). Um outro programa de extensa abrangência e grande impacto é o já bem conhecido Projeto de Belo Horizonte, que nos anos de 1997 e 1998 economizou, em gastos com internações hospitalares de crianças por asma e pneumonia, quase um milhão de reais(13).

Além do mais, esse projeto está sendo capaz de atender a população infantil da capital mineira. Programa semelhante a esse desenvolve-se também no Rio Grande do Sul(14).

Um outro fato importante é que entre nós já se pode provar, com base em evidências, que educação para o controle da asma reduz as idas à emergência, às hospitalizações e melhora a qualidade de vida de adultos asmáticos, como mostra a experiência de Oliveira et al. e Fernandes et al.(15,16).

Essa breve reflexão sobre o cuidado com os asmáticos no Brasil e seus programas de controle permite dizer que: a sociedade civil (SBPT, SBAI e SBP) tem demonstrado algum esforço em aplicar seus conhecimentos no processo que visa cuidar bem dos asmáticos brasileiros, especialmente daqueles de baixa renda, e a prova está nos eventos e consensos já realizados; no desenrolar desse processo, formou-se uma massa crítica capaz de criar e desenvolver programas de controle de asma e um exemplo disso é o Projeto de Belo Horizonte; promoveu também a conscientização de instituições governamentais, que já se movimentam em direção à criação de um Programa Nacional de Controle da Asma. Para tanto já formou um grupo de trabalho para a elaboração desse plano(17).

Apesar disso, continua-se atendendo os asmáticos brasileiros de modo inadequado, como mostrou o levantamento aqui apresentado, sendo necessário, ainda, um grande empenho dos que fazem parte desse processo para que todos os brasileiros recebam, um dia, o tratamento desejado.

MÁRCIA ALCÂNTARA HOLANDA

Pneumologista e Mestre em Epidemiologia Universidade Federal do Paraná

E-mail: pulmocenter@secrel.com.br

REFERÊNCIAS

1. Sociedade Brasileira de Alergia e Imunopatologia, Sociedade Brasileira de Pediatria e Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. I Consenso Brasileiro no Manejo da Asma. Ed. BG Cultura, 1994.

2. Sociedade Brasileira de Alergia e Imunopatologia, Sociedade Brasileira de Pediatria e Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. I Consenso Brasileiro de Educação em Asma. J Pneumol 1996;Supl 1.

3. Sociedade Brasileira de Alergia e Imunopatologia, Sociedade Brasileira de Pediatria e Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. II Consenso Brasileiro no Manejo da Asma. J Pneumol 1998;24(4).

4. National Institute of Health. Global Initiative for Asthma ¾ Global Strategy for Asthma Management and Prevention NHLI/WHO Workshop Report ¾ January 1995.

5. I Encontro Brasileiro sobre Asma ¾ 2 a 6 de agosto de 1993, Fortaleza, CE.

6. IV Encontro Norte e Nordeste sobre Asma ¾ 3 a 7 de agosto de 1995, Fortaleza, CE.

7. I Congresso Brasileiro de Asma ¾ 15 a 17 de setembro de 1997, Natal, RN.

8. II Congresso Brasileiro de Asma ¾ de 24 a 27 de junho de 1999, Brasília, DF.

9. Young Chaiyad P. Asthma: Asia perspective. Med Dig 1994;April: 35-36.

10. Zhong NS. Management of Asthma in Developing Countries. In: Barnes PJ, Grunstein MM, Leff AR, Woolcock AJ, eds. Asthma. Philadelphia: Lippincott-Raven, 1997;1869-1879.

11. Perera, BJC. Efficacy and cost-effectiveness of inhaled steroids in asthma in developing country. Arch Dis Child 1995;72:312-316.

12. Castro PMEB, Amaral J, Holanda MA. Programa de Assistência Integrada à Criança Asmática de Fortaleza ¾ PROAICA-2000; Comunicação pessoal.

13. Camargos PAM. Reorganização da Assistência Pública à Criança Asmática ¾ O Projeto de Belo Horizonte ¾ Comunicação pessoal, fevereiro de 2000.

14. Fischer GB. Programa de Atendimento à Criança Asmática de Porto Alegre ¾- Comunicação pessoal, março de 2000.

15. Oliveira MA, Faresin SM, Bruno VF, de Bittencourt AR, Fernandes ALG. Evaluation of an educational program for socially deprived asthmatic patients. Eur Resp J 1999;14:1-7.

16. Fernandes ALG, Oliveira MA. Avaliação de qualidade de vida na asma. J Pneumol 1997;23:148-152.

17. Coordenação de Pneumologia Sanitária ¾ Ministério da Saúde. Plano Nacional de Controle da Asma, janeiro de 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Set 2003
  • Data do Fascículo
    Jun 2000
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