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Pemongon Patá: território Macuxi, rotas de conflito

RESENHAS

Peter Schröder

Professor do PPGA/UFPE

Santilli, Paulo.Pemongon Patá: território Macuxi, rotas de conflito, São Paulo, Editora UNESP, 2001, 225 pp.

Já faz alguns anos que Roraima ganhou a fama indecorosa de ser o mais antiindígena de todos os estados da federação e parece que são dispensados esforços consideráveis para manter o primeiro lugar neste ranking desonroso. Um dos maiores pomos de discórdia nas disputas pelo reconhecimento oficial dos territórios indígenas no estado é a Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, habitada majoritariamente pelos Macuxi. A morosidade e os transtornos de sua regularização completa representam de forma cristalizada as vicissitudes e incertezas da política indigenista das últimas décadas com relação à ocupação da Amazônia e ao reordenamento dos espaços colonizados.

Este livro trata dos conflitos pelas terras dos Macuxi, com ênfase no período da década de 1970 aos anos 1990, e seu objetivo é mostrar como foi construída uma concepção de um território Macuxi contínuo, e não fragmentado, no decorrer do processo de disputa pela terra. Ao mesmo tempo, o autor quer demonstrar o papel do surgimento de organizações indígenas verticalizadas neste processo chamado de ''territorialização'' por Oliveira Filho (1998). A questão central que permeia o livro inteiro é, por isso, o que é o território para os Macuxi e quais são seus limites?

O autor, que é professor da Universidade Estadual Paulista, aborda essa questão por analisar as fronteiras étnicas na região, a organização social Macuxi, a morfologia de suas aldeias e principalmente três estudos de casos de conflitos de terra. Os fundamentos empíricos do trabalho são diversas experiências de campo e pesquisas abrangentes em arquivos, além da participação ativa nos procedimentos administrativos na definição de terras indígenas; as principais referências teóricas encontradas no texto são João Pacheco de Oliveira, Max Gluckman e Victor Turner, embora as teorias destes autores, além de algum vocabulário ''joãopachequiano'', sejam apenas secundárias para a argumentação do autor, que se mantém muito fiel a um estilo próprio. A leitura deixa claro que a preocupação de Santilli não era fazer uma contribuição à teorização antropológica, mas, sim, uma análise crítica e bem fundamentada empiricamente de como se constrói territórios – e não só terras – indígenas no Brasil, o que não prejudica de maneira nenhuma a qualidade do livro.

Na primeira parte, temos inicialmente uma exposição e análise histórica e etnográfica da situação complexa dos etnônimos e fronteiras étnicas na região circum-Roraima (em torno do monte Roraima), seguida por análises da organização social, política e ritual dos Macuxi, explicada e exemplificada pela morfologia das aldeias, e finalmente um esboço resumido do surgimento de novas organizações políticas indígenas na região a partir dos anos 1970.

Na segunda parte, o autor relata e analisa detalhadamente dois casos paradigmáticos de fragmentação do território Macuxi: as áreas indígenas Ouro e Xununuetamu. O insulamento da primeira no vale do rio Uraricoera é explicado por vários fatores externos, sendo decisiva a falta de uma organização política indígena com orientação supralocal entre os anos 1970 e 1980, enquanto a tentativa fracassada de isolar a segunda área, no vale do rio Maú ou Ireng, é interpretada em termos de formação de uma unidade supra-aldeã em torno de uma causa comum, alcançada num momento de consolidação do Conselho Indígena de Roraima.

Finalmente, na terceira parte, o leitor é introduzido à história e constelação do talvez mais destacado conflito por uma terra indígena no Brasil contemporâneo: a construção da área indígena Raposa-Serra do Sol. Para a discussão do autor, este caso possui um valor essencial e paradigmático, porque nele se revelam nitidamente os impasses entre o direito formal, as práticas da política indigenista e os interesses econômicos e políticos locais e regionais, e porque a construção de uma unidade territorial correspondeu àquela de uma unidade política indígena, ambas se alimentando reciprocamente. O caso Raposa-Serra do Sol é instrutivo, como o processo demorado de regularização ultrapassa em muitos aspectos o cenário regional. A análise excelente mostra a ''cara verdadeira'' do processo de reconhecimento de uma terra indígena como tecnicamente neutro apenas na superfície, mas na verdade sendo principalmente o resultado de organização, negociações e conflitos políticos em diversos níveis e instâncias. É uma história escandalosa de ''pequenos ajustes'' na definição dos limites em favor de interesses locais e regionais e de procedimentos muito contraditórios entre a imagem oficialmente zelada pelo Governo Federal e sua procura por apoio político no Congresso Nacional justamente entre os representantes políticos roraimenses. É por isso que o ''tempo de democracia'' ainda está por vir para os Macuxi.

Santilli chega à conclusão de que a construção de limites territoriais era ''a materialização arrogante de um código jurídico estranho, indiferente aos Macuxi'' (p. 131), sendo uma reação política necessária aos assédios territoriais numa situação endocolonial. Os conceitos territoriais Macuxi, que não incluem nenhuma noção de propriedade territorial do grupo, não se encaixam nas categorizações genéricas de um código jurídico que se baseia na idéia de propriedade. Igualmente, a noção Macuxi de comunidade escapa de uma conceituação estrutural-funcionalista, característica de outras sociedades guianenses, de propriedade coletiva exercida sobre um território. Segundo o autor, a noção Macuxi do espaço é aberta e ilimitada, sendo o espaço estruturado por relações individuais recíprocas. É por isso que ele interpreta o processo de ''territorialização'' como ''efeito perverso'' (p. 134), uma contrapartida política do reconhecimento oficial.

O texto é completado por diversos anexos com planos de aldeias, diagramas de composição de grupos domésticos, documentos jurídicos e um excelente ensaio fotográfico.

A linguagem do autor é clara e majoritariamente analítica, ganhando caráter descritivo e narrativo apenas no capítulo sobre a área Raposa-Serra do Sol, no qual a mudança do estilo enriquece o texto. Apesar do rigor científico na análise, não escapa ao leitor que o livro foi escrito com engajamento e solidariedade com a população estudada, o que permitiu ao autor chegar a suas conclusões desiludidas.

Os aspectos gráficos do livro também merecem elogios, em particular o material cartográfico, que normalmente deixa a desejar em publicações antropológicas, embora os mapas da publicação presente pudessem ser ainda melhores, se fosse seguido com mais rigor o bom princípio da National Geographic de representar todas as localidades citadas no texto.

Este livro é uma lição muito instrutiva sobre territorialidade indígena, práticas tutelares defasadas da política indigenista e novas atuações políticas indígenas na Amazônia numa perspectiva histórica, mostrando sem disfarces os mecanismos de poder que operam na sociedade brasileira no reconhecimento de direitos fundamentais de minorias étnicas. É uma leitura muito proveitosa para todos que querem aprofundar seus conhecimentos sobre as complexidades das sociedades indígenas no Brasil.

Referência bibliográfica

OLIVEIRA FILHO, J. P. de (org.) 1998 Indigenismo e territorialização: poderes, rotinas e saberes coloniais no Brasil contemporâneo, Rio de Janeiro, Contra Capa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2003
  • Data do Fascículo
    2003
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