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QUALIDADE DE VIDA E AUTOPERCEPÇÃO DE SAÚDE DE CRIANÇAS COM MAU DESEMPENHO ESCOLAR

RESUMO

Objetivo:

Verificar a associação entre qualidade de vida e autopercepção de saúde em crianças com mau desempenho escolar, considerando fatores sociodemográficos.

Métodos:

Estudo observacional analítico transversal com 99 crianças de 7 a 12 anos, participantes dos Atendimentos Educacionais Especializados. Os responsáveis responderam a questões sobre aspectos sociodemográficos. Para a avaliar a qualidade de vida e os domínios propostos (autonomia, funções, lazer e família) as crianças responderam ao Autoquestionnarie Qualité de Vie Enfant Imagé (AUQEI) e a uma questão referente à autopercepção de saúde. A análise de dados foi realizada por meio da regressão linear múltipla, considerando nível de significância de 5%.

Resultados:

Das crianças avaliadas, 69 (69,7%) eram do sexo masculino, com média de idade de 8,7±1,5. Do total, 27% delas autoavaliaram a saúde como ruim/muito ruim e 36,4% referiram ter qualidade de vida prejudicada. Quanto aos domínios avaliados pelo AUQEI, houve significância estatística dos domínios família e idade, autonomia e classificação econômica, lazer e funções em relação à autopercepção de saúde.

Conclusões:

A qualidade de vida de crianças com mau desempenho escolar está associada à autopercepção de saúde e a características sociodemográficas.

Palavras-chave:
Qualidade de vida; Baixo rendimento escolar; Autoimagem; Criança; Fonoaudiologia

ABSTRACT

Objective:

To examine the association between quality of life and health self-perception of children with poor school performance, considering sociodemographic factors.

Methods:

An analytical, observational, cross-sectional study was conducted with 99 children aged 7 to 12 years receiving specialized educational assistance. Parents and legal guardians answered questions concerning the sociodemographic profile. For an assessment of the quality of life and proposed domains (autonomy, functioning, leisure, and family), the children completed the Autoquestionnarie Qualité de Vie Enfant Imagé (AUQEI) and answered a question concerning their self-perceived health. Data were analyzed using multiple linear regression, considering a 5% significance level.

Results:

Among the evaluated children, 69 (69.7%) male participants with mean age of 8.7±1.5, 27% self-assessed their health status as poor/very poor, and 36.4% of the children reported having impaired quality of life. As for the domains assessed by AUQEI, there was statistical significance in the associations between family with age, autonomy with economic classification, and leisure and functioning with self-perceived health.

Conclusions:

The quality of life of children with academic underachievement is associated with their health self-perception and sociodemographic characteristics.

Keywords:
Quality of life; Underachievement; Self-concept; Child; Speech-language pathology

INTRODUÇÃO

O mau desempenho escolar pode ser entendido como rendimento escolar abaixo do esperado para idade cronológica, habilidades cognitivas e nível educacional de uma criança,11. Siqueira CM, Gurgel-Giannetti J. [Poor school performance: an updated review]. Rev Assoc Med Bras. 2001;57:78-87. podendo ser uma das manifestações de algum transtorno ou dificuldade de aprendizagem.22. Sisto FF. Avaliação de dificuldade de aprendizagem: Uma questão em aberto. In: Sisto FF, Dobránszky EA, Monteiro A, editors. Cotidiano escolar: Questões de leitura, matemática e aprendizagem. Petrópolis: Vozes; 2002. p.121-41.

Insucesso escolar dá origem a limitações que podem resultar em baixa autoestima e problemas de aceitação pelos colegas. Menos competência aumenta o sentimento de incapacidade e, assim, contribui para o insucesso contínuo.33. Ferreira AA, Conte KM, Marturano EM. [Boys with complaints about school: self-perception, achievement, and behavior]. Estud Psicol. 2011;28:443-51. O desempenho escolar ruim relacionado a deficiência de linguagem pode contribuir para o risco de exclusão social.44. Cross M [homepage on the Internet]. Language and Social Exclusion. I CAN Talk series - Issue 4. London: I CAN; 2007. [cited 2014 Mar 14]. Available from: http://www.ican.org.uk
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Dessa forma, crianças com mau desempenho escolar estão expostas a uma série de fatores que podem afetar sua qualidade de vida.

O termo “qualidade de vida” (QV) é subjetivo e envolve conceitos pessoais de valores, competências, satisfação e bem-estar. Essa construção inclui uma variedade de condições que podem afetar a percepção, os sentimentos e comportamentos dos indivíduos, todos eles relacionados ao funcionamento da vida diária, inclusive, mas não se limitando ao estado de saúde. As principais características ligadas a esse conceito são subjetividade e multidimensionalidade.55. Dantas RA, Sawada NO, Malerbo MB. [Research on quality of life: review on the scientific production of public universities in São Paulo State]. Rev Latino-Am Enferm. 2013;11:532-8.,66. Seidl EM, Zannon CM. [Quality of life and health: conceptual and methodological issues]. Cad Saúde Pública. 2004;20:580-8.

Estudos que abordam a QV das crianças têm sido mais comuns nos últimos anos, incluindo distúrbios marcados por deficiências funcionais.77. Akin Sari B, Demirogullari B, Ozen O, Iseri E, Kale N, Basaklar C. Quality of life and anxiety in Turkish patients with anorectal malformation. J Paediatr Child Health. 2014;50:107-11.,88. Sundaram SS, Alonso EM, Haber B, Magee JC, Fredericks E, Kamath B, et al. Health related quality of life in patients with biliary atresia surviving with their native liver. J Pediatr. 2013;163:1052-7.,99. Skjerning H, Mahony RO, Husby S, DunnGalvin A. Health-related quality of life in children and adolescents with celiac disease: patient-driven data from focus group interviews. Qual Life Res. 2014;23:1883-94. Esse interesse em se investigar a QV das crianças com diagnóstico de transtorno de aprendizagem tem sido observado também em outros países, como Áustria, Índia e Grécia.1010. Felder-Puig R, Baumgartner M, Topf R, Gadner H, Formann AK. Health-related quality of life in Austrian elementary school children. Med Care. 2008;46:432-9.,1111. Karande S, Bhosrekar K, Kulkarni M, Thakker A. Heath-related quality of life of children with newly diagnosed specific learning disability. J Trop Pediatr. 2009;55:160-9.,1212. Karande S, Venkataraman R. Self-perceived health-related quality of life of Indian children with specific learning disability. J Postgrad Med. 2012;58:246-54.,1313. Rotsika V, Coccossis M, Vlassopoulos M, Papaeleftheriou E, Sakellariou K, Anagnostopoulos DC, et al. Does the subjective quality of life of children with specific learning disabilities (SpLD) agree with their parents' proxy reports? Qual Life Res. 2011;20:1271-8. No Brasil, no entanto, ainda é escasso o conhecimento sobre a QV das crianças com mau desempenho escolar.

Desde 1947, a definição de saúde de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) expandiu-se de apenas ausência de doença para um conceito amplo que pode mudar em consonância com perspectivas de vida e estar relacionado ao senso de bem-estar dos indivíduos.1414. Segre M, Ferraz FC. [The health's concept]. Rev Saúde Pública. 1997;31:538-42. A autopercepção é considerada um índice global de saúde e abrange dimensões físicas, cognitivas e emocionais. Além disso, ela depende do conhecimento sobre saúde e doença, que muda de acordo com a experiência de vida e as normas sociais e culturais.1515. Mendonça G, Farias Júnior JC. [Self-perceived health and associated factors in adolescents]. Rev Bras Ativ Fis Saúde. 2012;17:174-80.,1616. Chen X, Zappulla C, Lo Coco A, Schneider B, Kaspar V, Oliveira AM, et al. Self-perceptions of competence in Brazilian, Canadian, Chinese and Italian children: Relations with social and school adjustment. Int J Behav Dev. 2004;28:129-38. A facilidade de obtenção desta informação (geralmente a partir de uma única pergunta) e sua relevância, faz com que a avaliação da autopercepção de saúde receba cada vez mais atenção em estudos científicos. Diante do exposto, o objetivo do presente estudo foi investigar a associação entre QV e autopercepção de saúde de crianças de 7 a 12 anos com mau desempenho escolar, considerando fatores sociodemográficos.

MÉTODO

Este estudo analítico, observacional e transversal investigou uma amostra probabilística (método de amostragem aleatória simples) com crianças de 7 a 12 anos apresentando baixo desempenho escolar. Todas as crianças participavam do atendimento educacional especializado em uma cidade do interior do Estado de Minas Gerais, Sudeste do Brasil.1717. Brasil. Ministério da Educação [homepage on the Internet]. Resolução CNE/n°4, de 2 de outubro de 2009, que institui Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial [cited 2014 Apr 06]. Available from: http://portal.mec.gov.br/index.php?catid=323:orgaos-vinculados&id=13684:resolucoes-ceb-009&option=com_content&view=article
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Tal atendimento educacional especializado foi estabelecido pelo Ministério da Educação para complementar as habilidades dos alunos de acordo com suas necessidades específicas.1717. Brasil. Ministério da Educação [homepage on the Internet]. Resolução CNE/n°4, de 2 de outubro de 2009, que institui Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial [cited 2014 Apr 06]. Available from: http://portal.mec.gov.br/index.php?catid=323:orgaos-vinculados&id=13684:resolucoes-ceb-009&option=com_content&view=article
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Os estudantes e seus pais ou responsáveis foram convidados a participar do estudo; aqueles que concordaram, assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido. Foram excluídos da amostra aqueles que não completaram a avaliação ou mostravam evidências ou antecedentes de alterações neurológicas, cognitivas e/ou psiquiátricas.

Estimativas de porcentagens esperadas do impacto na QV, seja em geral ou específica a algum domínio, não foram encontradas para cálculo do tamanho da amostra. Em vista disso, assumiu-se a porcentagem de 50% - o que maximiza o tamanho da amostra. Foram considerados 9% de erro de amostragem e intervalo de confiança de 95%. Estimou-se amostra final de 90 crianças, considerando o universo de amostragem de 617 alunos atendidos pelo serviço educacional especializado em 2013.

Este projeto foi revisado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG, nº CAAE 18683013.6.0000.5149.

Os pais ou responsáveis legais foram entrevistados e responderam a questões sociodemográficas, incluindo o perfil socioeconômico de acordo com os Critérios de Classificação Econômica Brasileira (CCEB).1818. Associação Brasileira de Empresas de pesquisa [homepage on the Internet]. Critério de Classificação Econômica Brasil [cited 2013 May 26]. Available from: http://www.abep.org/novo/Content.aspx?SectionID=84
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Esta classificação considera a posse de bens e o nível de educação do chefe de família. As classes vão de A1 a E, sendo A a classe com o maior poder aquisitivo e E, com o mais baixo.

Para avaliar a qualidade de vida, as crianças completaram o Autoquestionnarie Qualité de Vie Enfant Imagé (AUQEI), desenvolvido por Manificat e Dozart em 19971919. Manificat S, Dazord A. Évaluation de la qualité de vie de l'enfant: validation d'un questionnaire, premiers résultats. Neuropsychiatr Enfance Adolesc. 1997;45:106-14. e validado para a língua portuguesa por Assumpção Jr. et al. em 2000.2020. Assumpção FB, Kuczynski E, Sprovieri MH, Aranha EM. [Quality of life evaluation scale (AUQEI): validity and reliability of a quality of life scale for children from 4 to 12 years-old]. Arq Neuropsiquiatr. 2000;58:119-27. Esta ferramenta foi escolhida porque, além de ter sido validada para crianças brasileiras, tem a opção de resposta visual, uma vez que a amostra tinha crianças com baixo desempenho escolar e possível comprometimento de leitura e habilidades de compreensão.

O AUQEI avalia o bem-estar subjetivo partindo da premissa de que os indivíduos em desenvolvimento são capazes de se expressar a respeito de sua subjetividade. O questionário baseia-se na perspectiva da satisfação da criança refletida em imagens (expressões faciais que representam diferentes estados emocionais) associada a vários domínios de vida, compreendendo 26 questões sobre relações familiares, relações sociais, atividades escolares e status de saúde.2020. Assumpção FB, Kuczynski E, Sprovieri MH, Aranha EM. [Quality of life evaluation scale (AUQEI): validity and reliability of a quality of life scale for children from 4 to 12 years-old]. Arq Neuropsiquiatr. 2000;58:119-27. No estudo de validação para a língua portuguesa,2020. Assumpção FB, Kuczynski E, Sprovieri MH, Aranha EM. [Quality of life evaluation scale (AUQEI): validity and reliability of a quality of life scale for children from 4 to 12 years-old]. Arq Neuropsiquiatr. 2000;58:119-27. crianças leram as frases com o apoio de imagens. Em nossa pesquisa, houve uma adaptação; o investigador leu as frases e pediu a cada criança que indicasse a expressão facial que estivesse mais de acordo com o sentimento que cada situação apresentada lhes causava. Antes disso, a criança foi convidada a falar de uma de suas experiências de vida relacionadas a cada resposta escolhida.

As questões foram categorizadas em quatro domínios:

  1. Funções - questões relacionadas a atividades na escola, durante as refeições, hora de dormir e ir ao médico (perguntas 1, 2, 4, 5 e 8). Exemplo: “(5) Diga-me como se sente na sala de aula”;

  2. Família - questões abordando o conceito da criança a respeito de seus pais e de si mesmo (perguntas 3, 10, 13, 16 e 18). Exemplo: “(10) Diga-me como se sente quando pensa em seu pai”;

  3. Lazer - questões relacionadas a períodos de férias, aniversário e relacionamento com avós (perguntas 11, 21 e 25). Exemplo: “(21) Conte-me como se sente durante as férias”;

  4. Autonomia - questões relativas à independência da criança, relacionamento com colegas e desempenho escolar (perguntas 15, 19, 23 e 24). Exemplo: “(15) Diga-me como se sente quando brinca sozinho”.

As perguntas 6, 7, 9, 12, 14, 17, 20, 22 e 26 não foram incluídas entre os quatro domínios; elas têm relevância individual, pois representam áreas separadas. Tal divisão de domínios baseou-se no estudo original para o desenvolvimento do questionário.1919. Manificat S, Dazord A. Évaluation de la qualité de vie de l'enfant: validation d'un questionnaire, premiers résultats. Neuropsychiatr Enfance Adolesc. 1997;45:106-14. A pontuação foi estabelecida da seguinte forma: muito infeliz = 0; infeliz = 1; feliz = 2 e muito feliz = 3, com pontuação máxima de 78. Quanto maior a pontuação, melhor a percepção da criança sobre sua QV. O instrumento sugere nota de corte de 48, o que significa que as crianças com pontuação total inferior a 48 tinham QV impactada.2020. Assumpção FB, Kuczynski E, Sprovieri MH, Aranha EM. [Quality of life evaluation scale (AUQEI): validity and reliability of a quality of life scale for children from 4 to 12 years-old]. Arq Neuropsiquiatr. 2000;58:119-27.

Após a conclusão do questionário, a saúde geral das crianças foi avaliada com a seguinte pergunta: “Em geral, você diria que sua saúde é: muito boa, boa, regular, ruim ou muito ruim?”.

Para analisar os dados, as respostas obtidas foram organizadas, inseridas em um banco de dados e novamente verificadas. Primeiro, realizou-se uma análise descritiva da distribuição de frequência das variáveis categóricas e medidas de tendência central e de dispersão para as variáveis contínuas. Foram realizadas análises de regressão linear univaridada e múltipla para determinar a associação entre o escore total de QV e os domínios avaliados pelo questionário (autonomia, lazer, funções e família) com a autopercepção de saúde, ajustada por idade, sexo e classe econômica. Estabeleceu-se significância estatística de 5%. Todas as análises foram feitas no software STATA (Stata Corporation, College Station, Texas), versão 13.0.

RESULTADOS

No total, 99 crianças participaram do estudo, sendo 69 (69,7%) do sexo masculino e com idade média de 8,7 ± 1,5. A maioria dos participantes foi classificada como classe econômica C (64,6%) e 27% fez uma autoavaliação de estado de saúde como ruim/muito ruim (Tabela 1). A pontuação total média do AUQEI foi 50,4 pontos, sendo que 36,4% das crianças relataram ter qualidade de vida prejudicada.

Tabela 1:
Análise descritiva das características sociodemográficas de crianças com mau desempenho escolar.

Ao analisar o instrumento por domínios verificou-se escores médios mais altos para lazer, família e funcionamento (7,7±1,2; 11,1±2,1; 9,6±2,3, respectivamente). Considerando que quanto maior a média, melhor a avaliação da QV, os domínios lazer e família foram os que tiveram avaliações mais positivas, enquanto autonomia teve a mais negativa (Tabela 2).

Tabela 2:
Distribuição da pontuação geral e por domínio de acordo com o AUQEI.

A Tabela 3 mostra o modelo de regressão linear univariada, com associação estatisticamente significativa (p≤0,05) entre autopercepção de saúde e as seguintes áreas: lazer, funções e família. Além disso, houve associação significativa entre idade e família, entre classificação econômica, autonomia e escore total do instrumento sobre qualidade de vida.

Tabela 3:
Modelo de regressão linear univariada dos domínios do AUQEI versus características sociodemográficas de crianças com mau desempenho escolar.

Os resultados do modelo de regressão linear múltipla estão na Tabela 4 e revelam associações estatisticamente significativas dos domínios lazer e funções com autopercepção de saúde, de família com idade, e de autonomia com classificação econômica.

Tabela 4:
Modelo de regressão linear múltipla dos domínios do AUQEI versus características sociodemográficas de crianças com mau desempenho escolar.

DISCUSSÃO

Este estudo mostrou que o mau desempenho escolar tem impacto negativo na qualidade de vida e na percepção de saúde pelas crianças. Estudos com crianças que tiveram diagnóstico recente de dificuldades de aprendizagem mostraram resultados semelhantes, mas usando outras ferramentas para avaliar a qualidade de vida.1111. Karande S, Bhosrekar K, Kulkarni M, Thakker A. Heath-related quality of life of children with newly diagnosed specific learning disability. J Trop Pediatr. 2009;55:160-9.,1212. Karande S, Venkataraman R. Self-perceived health-related quality of life of Indian children with specific learning disability. J Postgrad Med. 2012;58:246-54. Não foram encontrados na literatura estudos sobre qualidade de vida de crianças com baixo desempenho escolar usando o AUQEI. No entanto, este questionário foi utilizado para avaliar crianças com leucemia2121. Sommerfeld CE, Calmon CM, Sperandio F, Machado A, Beltrame T. Qualidade de vida de crianças em tratamento clínico de leucemia. Brasília Med. 2011;48:129-37. e fibrose cística,2222. Pfeifer LI, Silva MA. Avaliação da qualidade de vida em crianças com fibrose cística. Rev Nufen: Phenom Interd. 2009;2:118-30. e as prevalências de problemas de qualidade de vida foram 15% e 25%. Pode-se assumir que as crianças que passaram ou experimentaram doenças graves valorizam situações e áreas investigadas pelo AUQEI que justificam uma melhor avaliação do conceito de “qualidade de vida”.

A análise do instrumento AUQEI por domínios mostrou que as crianças sentiam maior satisfação com tarefas relacionadas a lazer e relações familiares, enquanto as situações que exigiam autonomia eram as menos satisfatórias. Conforme citado anteriormente, não foram encontrados estudos na literatura que utilizassem o AUQEI para investigar a QV de crianças com desempenho acadêmico fraco. No entanto, o questionário já foi utilizado para avaliar crianças com neoplasias2323. Araújo PC. Percepção de estigma e qualidade de vida em crianças com neoplasia [master's thesis]. Natal (RN): UFRN; 2012. e ostomizadas2424. Barreire SG, Oliveira AO, Kazamal W, Kimura M, Santos VL. [Quality of life of children with stomas: the children and mothers' point of view]. J Pediatr (Rio J). 2003;79:55-62. e mostrou que o domínio autonomia foi avaliado de forma mais negativa pelas crianças, enquanto a família fez uma avaliação mais favorável, o que corrobora os achados do presente estudo.

A análise de regressão linear múltipla mostrou significância estatística na associação entre domínio família e idade. À medida que a idade aumenta, os meios para a percepção de uma criança sobre as relações familiares diminuem, indicando deterioração da QV nesse domínio. A literatura indica que a família é uma instituição social muito relevante, com potencial de influenciar o bem-estar subjetivo das crianças2525. Elias AV, Assumpção FB. [Quality of life and autism]. Arq Neuropsiquiatr. 2006;64:295-99.. No entanto, um estudo realizado na Índia avaliou 150 crianças com idade média de 12,2 anos com baixo desempenho escolar e não reportou tal associação.1111. Karande S, Bhosrekar K, Kulkarni M, Thakker A. Heath-related quality of life of children with newly diagnosed specific learning disability. J Trop Pediatr. 2009;55:160-9. Os resultados do nosso estudo respaldam a hipótese de que as crianças mais velhas podem caracterizar melhor seu contexto social e familiar, o que também corrobora os resultados de um estudo brasileiro em que crianças mais velhas com desempenho escolar ruim tiveram médias mais baixas na Escala Multidimensional de Satisfação de Vida.2626. Siqueira AC, Dell'Aglio DD. Crianças e adolescentes institucionalizados: desempenho escolar, satisfação de vida e rede de apoio social. Psic: Teor e Pesq. 2010;26:407-15.

A variável sexo não esteve associada de forma estatisticamente significativa com os domínios investigados. A literatura corrobora esse achado1111. Karande S, Bhosrekar K, Kulkarni M, Thakker A. Heath-related quality of life of children with newly diagnosed specific learning disability. J Trop Pediatr. 2009;55:160-9., embora um estudo tenha constatado que as meninas tinham pontuações piores para “exclusão social” e “saúde geral”.1212. Karande S, Venkataraman R. Self-perceived health-related quality of life of Indian children with specific learning disability. J Postgrad Med. 2012;58:246-54.

O domínio autonomia esteve significativamente associado à classificação econômica, já que as crianças da classe econômica D tiveram menor escore em comparação com as classes A a C. O coeficiente de correlação mostrou tendência para médias mais baixas no domínio autonomia com menor classificação na CCEB. Sabe-se que o status socioeconômico afeta a percepção de um indivíduo sobre o cenário social, e um estudo de revisão mostrou que os pais de classes socioeconômicas mais baixas priorizam os valores de conformidade. Como resultado, eles tendem a aplicar práticas mais coercivas de educação aos seus filhos, incluindo o uso da força e da afirmação do poder, enquanto os pais de classes socioeconômicas mais altas valorizam a autonomia e o autocontrole e costumam usar métodos de disciplina indutiva, que encorajam as crianças a refletirem sobre as situações. No entanto, é necessário ter cautela ao analisar esse ponto, uma vez que não só as famílias de estratos econômicos mais baixos adotam práticas coercivas.2727. Bem LA, Wagner A. [Reflexions on parenthood and educative strategies in families with low socioeconomic status]. Psicol Estud. 2006;11:63-71. Além disso, esses fatores não foram medidos neste estudo e não podem ser comparados.

Um estudo que utilizou o questionário PedsQL reportou que crianças de famílias com baixo status socioeconômico apresentavam QV mais baixa, incluindo a escala de saúde psicossocial e as dimensões do funcionamento emocional, social e acadêmico.1010. Felder-Puig R, Baumgartner M, Topf R, Gadner H, Formann AK. Health-related quality of life in Austrian elementary school children. Med Care. 2008;46:432-9. Outro estudo mostrou que a autonomia, avaliada pelo instrumento DISABKIDS, também se associou a status econômico baixo.1212. Karande S, Venkataraman R. Self-perceived health-related quality of life of Indian children with specific learning disability. J Postgrad Med. 2012;58:246-54. Importante notar que ambos os estudos foram conduzidos com crianças com mau desempenho escolar, e isso sugere que a independência dessas crianças pode refletir na percepção da QV delas. Crianças de famílias de menor poder aquisitivo provavelmente enfrentam menos situações que exigem autonomia e podem, portanto, ter pouco poder de decisão. Além disso, elas costumam passar mais tempo sozinhas. Assim, seria lógico ter resultados melhores. No entanto, o efeito pode ser contrário uma vez que crianças nessa situação podem se sentir pressionadas, o que justificaria resultados ruins.

Os domínios lazer e funções - que se relacionam com atividades que promovem o bem-estar das crianças e o grau de satisfação sobre sua capacidade funcional, respectivamente - foram significativamente associados à autopercepção da saúde. Quando a autopercepção foi avaliada no intervalo “muito boa” a “muito ruim” no modelo de regressão linear múltipla, foram encontradas reduções médias de 0,9 a 2,7 para os domínios lazer e funções, respectivamente. Isso mostra uma tendência maior de baixa satisfação com atividades da vida diária (funções). A prevalência de autopercepção de saúde negativa foi semelhante à observada em um estudo realizado no Sul do Brasil: 25,7% dos 1.134 alunos entre 14 e 19 anos fizeram autoavaliações de saúde negativa.2828. Cureau FV, Duarte PM, Santos DL, Reichert FF. [Self-rated health in adolescents: prevalence and association with cardiovascular risk factors]. Rev Bras Ativ Fis Saude. 2013;18:750-60. Os autores de um estudo que incluiu 1.534 escolares com idade média de 12 anos do Brasil, Canadá, China e Itália, investigaram autopercepção de competências usando o Self-Perception Profile for Children. Foram identificadas diferenças significativas em todos os países nos domínios social e acadêmico, ou seja, as percepções negativas de competências podem estar associadas ao baixo desempenho escolar.1616. Chen X, Zappulla C, Lo Coco A, Schneider B, Kaspar V, Oliveira AM, et al. Self-perceptions of competence in Brazilian, Canadian, Chinese and Italian children: Relations with social and school adjustment. Int J Behav Dev. 2004;28:129-38.

A experiência escolar tem papel crítico na construção da autopercepção das crianças. Não foi encontrado nenhum estudo na literatura que tenha investigado a associação entre autopercepção e QV de crianças. Sabe-se que aquelas com baixa performance têm grande chance de desenvolver um autoconceito negativo.2929. Elbaum B, Vaughn S. School-based interventions to enhance the self-concept of students with learning disabilities: a meta-analysis. The Elementary School Journal. 2001;10:303-29. Um estudo brasileiro avaliou a autopercepção de 1.070 escolares em áreas de desenvolvimento ligadas ao desempenho escolar. Os resultados foram estatisticamente significativos para as correlações entre repetência e nível escolar dos pais.3030. Godoy JA, Abrahão RC, Halpern R. [Self-perception of learning difficulties in students of elementary and high school in a city in Rio Grande do Sul]. Aletheia. 2013;41:121-33.

O coeficiente de determinação foi mais alto no modelo de regressão linear múltipla para o domínio funções: aproximadamente 14% do prejuízo nas funções podem ser explicados pela pior autopercepção de saúde. O presente estudo demonstrou que a saúde autopercebida pelas crianças está relacionada à QV, e esses conceitos são provavelmente formulados nos contextos socioeconômicos e culturais em que elas estão inseridas. Assim, os profissionais de saúde e educação devem avaliar crianças de maneira mais ampla, e não apenas suas dificuldades escolares.

Ressalta-se que é necessário ter cautela ao analisar os resultados deste estudo, uma vez que os questionários de qualidade de vida das crianças com mau desempenho escolar disponíveis na literatura são diferentes dos administrados em nossa análise, o que tornou difíceis as comparações. Além disso, a percepção dos pais sobre a QV de seus filhos deve ser abordada futuramente. Por se tratar de um estudo de desenho transversal, não é possível estabelecer uma relação causal entre os domínios do AUQEI e os aspectos investigados.

Em conclusão, os escores de domínios ligados à QV para crianças com baixo desempenho na escola estão associados a pior autopercepção de saúde e às características sociodemográficas. A saúde das crianças, tal como é percebida por elas mesmas, pode ser um indicador importante de seus contextos socioculturais e sistemas de valores em relação a seus objetivos, expectativas e interesses.

REFERÊNCIAS

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  • Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2016
  • Aceito
    26 Jan 2017
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