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Guerras, mulheres e memórias: entrevista com a escritora Paulina Chiziane

Wars, Women and Memories: Interview with the Writer Paulina Chiziane

Em entrevista concedida ao jornalista José dos Remédios e publicada em julho de 2016REMÉDIOS, José Maria. Paulina Chiziane: “Não volto a escrever. Basta!”, “Patrimônio Cultural”, GELEDÉS - Instituto da Mulher negra, 11/07/2016. Disponível em: https://www.geledes.org.br/paulina-chiziane-nao-volto-escrever-basta/.
https://www.geledes.org.br/paulina-chizi...
pelo jornal moçambicano O País, Paulina Chiziane anunciou que encerraria sua carreira de escritora, mesmo que ainda pudesse eventualmente publicar algum texto. Apesar do anúncio, a escritora publicou, em 2017, o livro de poemas intitulado Canto dos Escravos, seu último livro. Ao conversar com Paulina durante uma hora, em 18 de novembro de 2014, na Sede da Associação dos Escritores Moçambicanos, em Maputo, percebi as dificuldades enfrentadas por ela para conseguir se posicionar socialmente como escritora, tanto pelo fato de ser mulher, quanto por abordar temas considerados subversivos por grande parte dos moçambicanos.

Paulina demonstra como a literatura produzida em Moçambique dialoga com os fatos recentes da história do país, marcados pela guerra de libertação, uma vez que a independência ocorreu somente em 1975, e pela guerra civil que massacrou o país de 1976 até 1992. Como minha pesquisa de Doutorado enfocou o testemunho ficcional que ela produz em suas obras a partir do estudo entre testemunho, memória e gênero inerente à participação das mulheres nas guerras moçambicanas, senti a necessidade de ouvir o que a própria escritora poderia revelar sobre o tema das guerras.1 1 O português que Pauline aprendeu não é o brasileiro. Dessa forma, optamos por manter a construção dos períodos conforme a fala da escritora.

Tiago (T): Qual é a origem do seu sobrenome “Chiziane”?

Paulina (P): Vem dos meus antepassados mesmo. Não sei o que significa, mas é um nome que tem alguns descendentes na África do Sul, aqui em Moçambique - na região de Gaza, Inhambane, em vários locais... Não sei o que significa, mas é um nome muito tradicional, muito africano.

T: Ele veio particularmente da sua mãe ou do seu pai?

P: É do pai. Nós somos patriarcais aqui. A região Sul de Moçambique é patriarcal, a lei do governo também é patriarcal, então os nomes dos moçambicanos, maioritariamente, são do pai. Com algumas exceções, às vezes aparece um filho com o nome da mãe. Na região matriarcal, que é o Norte, a tradição é matriarcal e, de vez em quando, aparecem pessoas com o nome materno, mas, normalmente, é com o nome do pai.

T: Eu gostaria de saber como era a sua relação com a Língua Portuguesa na infância...

P: Foi muito conflituosa, porque eu venho de uma família que não queria saber da Língua Portuguesa, portanto eu nunca falei Português em casa dos meus pais. Comecei a falar Português na escola e, então, foi muito difícil a adaptação na escola para uma criança que não sabia nada da Língua Portuguesa...

T: E que não entendia também o significado daquilo...

P: Levou tempo, levou tempo, e acho que três anos depois já falava um pouco melhor etc. E fui evoluindo, crescendo e aprendendo na Língua Portuguesa, mas a língua materna ficou bem no fundo.

T: O chope, não é?

P: Sim, o chope.

T: Você fala o ronga também?

P: Falo, não tão bem. O changane, não tão bem, mas o chope falo perfeitamente.

T: Sobre a questão das guerras, que são muito recentes em Moçambique, eu gostaria que você falasse a respeito do sentimento dos moçambicanos em relação aos traumas das duas guerras: primeiro, da guerra de libertação, e, depois, da guerra civil. Como você acha que os moçambicanos lidam com esse trauma hoje?

P: Como é que nós lidamos com esse trauma... É muito complicado. Os traumas da primeira guerra [a guerra de libertação] foram facilmente resolvidos porque se tratava de um inimigo, que era invasor. Era o colonialismo português, então fora o colonialismo português e ponto final! Então, esses traumas, embora prevaleçam - porque houve vários -, não sei... Eu acho que foram mais fáceis de gerir. Os traumas da nova guerra civil são muito complicados porque... Sinceramente, eu ainda não entendi esta guerra. Existe uma justificação política para a guerra, mas existe outra justificação tradicional para a guerra, isto é, quando nós tivemos a nossa independência, o poder foi tomado pelas pessoas do sul, que são os changanes, os rongas, incluindo os chopes. E parece ter havido uma tendência de colonização do país inteiro por este grupo étnico forte. E, por tradição, existe uma contradição muito grande entre os ndau e os changane, portanto, o poder no sul era dominado por changanes e o centro era dominado por ndaus, aliás, é, predominantemente, ndau. Tem outros grupos étnicos e, então, um ndau, por tradição, não pode ser governado por um changane. E começaram os conflitos políticos externos, claro, o apartheid não estava muito interessado nisto, mas também havia uma grande componente étnica, porque, na verdade, os changanes, até certo ponto, não olhavam para o país como um todo, olhavam assim como os novos tempos, e os ndaus se insurgiram e a guerra foi sangrenta, de tal forma que, no sul,... As pessoas do sul têm grandes traumas, porque houve grandes massacres. Quando as tropas lideradas pelos ndaus, que eram da Renamo, chegavam ao Sul, matavam tudo, e, como consequência, as tropas lideradas pela Frelimo, quando chegavam ao centro e ao norte, não perdoavam nada. Então, se for ver, agora, no panorama político atual, existe uma polarização, que é: os do sul - os votos são todos para a Frelimo e contra a Renamo por causa dos massacres que houve, que foram verdadeiros. Se vais, por exemplo, ao centro do país, há regiões, como Zambézia, como Nampula, como Sofala, onde as pessoas não votam na Frelimo por causa dos massacres durante a guerra. Então, isso são observações de alguém que não faz parte do mundo político, como eu - eu estou simplesmente na sociedade. E, então, esta guerra é muito difícil para mim, porque, ao mesmo tempo, ndaus, changanes, macuas e outros estamos todos a misturar. E, para mim, é penoso viajar pelo país, sobretudo em altura de campanhas eleitorais. Quando a gente chega ao norte ou ao centro, parece que Moçambique é um outro país, com outro governo, com uma outra maneira de estar. Tudo o que são reivindicações não têm nada a ver, quer dizer, não têm nada a ver não é bem assim, são muito diferentes daquilo que é ao sul. Quando a gente está ao sul, ficamos com a impressão de que o norte não existe. E, então, não sei, é complicado... Mas, das duas guerras, esta última foi sangrenta, foi a pior das guerras, foi um genocídio mesmo.

T: Entre irmãos, não é?

P: Sim, é muito grave. Agora, a guerra colonial também não foi boa, mas o povo facilmente compreende. Meu pai morreu porque tínhamos que nos libertar do colonialismo. A gente aceita. Agora, esta outra guerra é muito difícil.

T: Você acha que a guerra civil contribuiu para intensificar alguns conflitos já existentes no seu país? Refiro-me àquelas diferenças existentes entre os povos, diferenças de tradições...

P: Sim e não. Sim, porque, por exemplo, quando nós tivemos a independência nacional, o discurso político era a unidade nacional, somos todos iguais... Éramos todos iguais na aparência, é claro, não é? Eu viajava por todo o meu país, tranquila, e falávamos quase a mesma língua, pensávamos quase da mesma maneira, embora houvesse clivagens, por sermos de diferentes grupos étnicos. Mas, com a guerra civil, as coisas pioraram. Se eu chego, por exemplo, a uma certa região da Zambézia, as pessoas olham para mim e dizem: “esta é do sul!”. Começam logo os problemas, porque as tropas do sul são aquelas que vieram fazer massacres, aqui, na nossa comunidade. E eu trabalhei vários anos na Zambézia, que é o centro do país. Foi quando eu senti que, na verdade, esta guerra civil veio aumentar os conflitos entre as etnias. Se for a ver alguns discursos dos políticos, agora, na campanha eleitoral, eram [são] discursos tribais, porque as pessoas do sul, que nos roubam tudo, que tiram tudo, porque os recursos naturais... A Zambézia é mais rica, Nampula é mais rico, mas vêm governar as pessoas do sul, tiram tudo o que é nosso para consumir no sul. É por isso que os do sul são mais gordos, são mais ricos e, entretanto, os recursos são nossos, o que não é mentira também. A distribuição da riqueza é outro problema. E, então, os políticos dos diferentes partidos políticos, na campanha eleitoral, exageraram muito no discurso étnico e isso atiçou os conflitos. Embora eu reconheça que existem questões da governação que precisam ser resolvidas, vou dar um exemplo: o maior produtor de cereais é a Zambézia, o maior produtor de mariscos, o maior produtor de madeiras, de tudo, quase tudo, é a Zambézia, mas a pobreza daquele povo... não posso aceitar. E é verdade que as pessoas do sul também não são ricas, mas o sul não tem os recursos que o norte tem. Mas isso é também uma herança colonial, que fazia a exploração no norte, exportava para onde queria, deixou mais infraestrutura no sul e um pouco de educação às pessoas do sul e deixou o norte assim, abandonado. Então, a governação, logo depois da independência, não prestou muita atenção a esses aspectos e as pessoas do norte se levantam e se zangam. Vou dar um exemplo muito simples: eu falei da Zambézia, que é um dos grandes produtores de quase tudo que se exporta. Lá tem hospitais - o hospital central da Zambézia, não sei... não tenho capacidade para dar números, mas é um cantinho tão pequeno... Para se conseguir uma consulta para nós mulheres, uma consulta de ginecologia no hospital da Zambézia, era preciso esperar, naquela altura, há uns cinco anos, era preciso esperar uns dois meses - na segunda província mais populosa do país. Não há médicos. A primeira universidade da Zambézia foi criada, não sei muito bem, mas, talvez, no ano de 2005 - entre 2000 e 2005 - e foi uma “universidadezinha” privada que hoje já cresceu e agora há universidades públicas. Então a segunda maior província do país não tinha ensino superior e não tinha sequer, por exemplo, quando eu falo de um hospital pequeno, eu lembro-me do caso de um colega meu que teve um acidente muito sério e precisava fazer um raio X. O hospital não tinha... Na segunda maior província, mais populosa, que é um dos maiores produtores. Portanto, esse tipo de questão que havia e que, com esses conflitos, há tendência para resolver. Falo da Zambézia, por ser lá onde eu trabalhei, mas...

T: Lá você trabalhou com o quê?

P: Estava a trabalhar num projeto das Nações Unidas para a promoção da mulher. Então, eu tive a oportunidade de ver isso tudo, era mesmo doloroso... O índice de mortalidade naquela terra é qualquer coisa assustadora. Sim, mas com isso não estou a dizer que é o inferno ou o fim do mundo. Estou a falar das diferenças que estes grupos políticos levantaram e começaram a mostrar que alguma coisa estava errada na governação, o que deu, logicamente, em conflitos armados, deu em partidos políticos distintos... E mesmo o panorama político dos moçambicanos é muito interessante porque os partidos são como se fossem clubes étnicos, tanto que o partido da Renamo é constituído maioritariamente por ndaus e outros. O partido do MDM [Movimento Democrático de Moçambique] também é liderado por um ndau e cada grupo étnico foi criando o seu partido. Então, é mais ou menos este o panorama. Agora, quando eu digo “Não”, não contribuiu muito para os problemas étnicos, é o seguinte: a guerra civil foi tão violenta que dispersava gente de todo lado para todo lado e as pessoas aqui do sul foram espalhadas por todo o país, porque eles capturavam guerreiros, usavam e largavam em qualquer lugar. Foram capturadas pessoas do norte para o centro, do centro para o sul, para tudo o que era lado... Era um movimento de guerreiros, tanto de um, como de outro lado. Isso fez com que os diferentes grupos entrassem em comunicação.

T: Então, a guerra contribuiu também para unir as pessoas...

P: Sim, a guerra contribuiu para juntar as pessoas. Portanto, se não tivesse havido guerra, as pessoas não teriam necessidade de imigrar. Por exemplo, um indivíduo que foi capturado, que depois marchou pelas matas e foi até qualquer outro lugar, a guerra terminou e ele já conhece o seu país e diz: “Olha, eu gostaria de viver neste ou naquele lugar!”. E, então, há migrações tanto do norte para o sul, no fim da guerra, para estudar, para trabalhar, para qualquer coisa, e há migrações do sul para o norte e as pessoas se misturam. Isso, para mim, é formidável.

T: Você acredita que a Literatura é capaz de testemunhar aquilo que foi vivido nas guerras?

P: É! A literatura é testemunhal. Só que, no caso de Moçambique, eu acho que os escritores, são seres humanos, lógico, mas os escritores são uma espécie de testemunha e que, de certa maneira, colocam no papel, como se diz, o sentimento deles e das pessoas com quem convivem. Porque os políticos depois vão produzir os livros de histórias, com datas e aquelas regras todas fixas, porque o exército de fulano venceu fulano, porque isto e aquilo e ponto final, mas o escritor tem essa vantagem, de trazer o outro lado humano sobre essas guerras. Eu escrevi sobre a guerra, sim, mas eu estou a lembrar-me agora da cronista Lina Magaia, que foi uma pessoa que fez uma denúncia terrível sobre aquilo que se estava a passar aqui, a nível do sul do país, entre as tropas da Renamo e as tropas da Frelimo: os massacres, as coisas mais tenebrosas. Ela era jornalista e fez uma série de crônicas que chamaram a atenção do mundo para o genocídio que estava a acontecer em Moçambique. E acho que esse foi, para mim, o caso mais forte, porque os outros escritores escreviam, claro, romanceavam e não apontavam o dedo na ferida. Então, nesse aspecto, a literatura moçambicana contribuiu, sim, para chamar a atenção sobre o sofrimento do negro. Os embaixadores, pessoas comuns despertaram para a realidade e começaram a questionar, por meio da literatura. Isso aconteceu.

T: Há algo de alguma guerra, seja da guerra civil ou da guerra de libertação, que você não teve coragem de expor - não é bem “coragem” a palavra, mas eu me refiro àqueles não ditos, àqueles silêncios que ficam intrincados, sobre os quais você não fala, mesmo que ficcionalmente...

P: Há muita coisa! (risos).

T: Há muita coisa?

P: (Suspiro). Ai, meu Deus! Há muita coisa, sim! Uma vez eu estava na Zambézia, porque eu trabalhei na Cruz Vermelha e viajava muito a essa altura. Uma vez eu estava no distrito de Gilé, que é na Zambézia, no norte mesmo da província. Aconteceu algo muito interessante: numa dessas noites, as tropas governamentais foram fazer o seu trabalho. Os militares é que sabem o que fazem... chegaram, abriram fogo, mataram pessoas, enforcaram pessoas. E nós estávamos escondidos, tivemos que nos esconder porque não sabíamos exatamente o que se passava. E todos nós sabíamos que eram tropas governamentais. No dia seguinte, de manhã, ouvi a informação, oficial, através da rádio, que as tropas rebeldes fizeram um massacre e, então, as tropas governamentais foram em socorro das populações. Mas quem estava a massacrar, realmente, eram tropas formais e eu disse: “Bem, eu não quero ser heroína nessa história”. Jamais irei falar disto. E houve vários casos desses que eu presenciei, quer dizer, presenciar não, que tive conhecimento, com provas e tudo. E eu disse: “Não, não fui eu que fez esta guerra, tenho filhos para criar, não vou te falar nada disto”. E coisas muito piores ainda, do estilo: quem trabalha na Cruz Vermelha passa pelas zonas de fogo, muitas vezes, e, algumas vezes, nas zonas críticas de fogo, que eram zonas dos rebeldes. De repente, estão lá os chefes do exército oficial do estado. Estão bem, então, a gente se pergunta: mas como é que esse indivíduo passou por aqui, se não era suposto que ele estivesse desse lado, mas, sim, do outro? Então, era este o jogo de negócios que se fazia e, para ser mais clara, houve um episódio em que eu, por imperativo de trabalho, acabei entrando na base da Renamo e na base da Renamo, portanto, nós fomos de haver [estar]. Duas horas antes aterrou um avião, exatamente com as mesmas características do avião em que nós íamos aterrar. E dizem que esse avião levava muitas caixas, que disseram ser medicamentos. Fez a descarga e, passado algum tempo, a população da zona fez uma nova carga de outras caixas. São caixas que entraram e saíram. Duas horas depois estamos a aterrar o avião com as mesmas características. Estavam quase a abrir fogo, a pensar ter uma invasão, mas era o avião da Cruz Vermelha. Mas como, teve algum problema, teve que voltar, o que se passa? Estranhamos, porque o avião da Cruz Vermelha, normalmente, traz brancos, só que desta vez o avião da Cruz Vermelha estava cheio de pretos (risos). Mas agora, sim, esses brancos parecem ser da Cruz Vermelha! Então, o que se passa? Não nos autorizaram a sair do avião, eu era a única preta, ficamos. Foram inspecionar os produtos que estavam no avião e confirmaram que, realmente, nós éramos da Cruz Vermelha. Então, começa um ponto de interrogação com relação aos outros. O avião da Cruz Vermelha, normalmente, quando chega, descarrega, mas nunca carrega. Mas o outro carregou, por que carregou? Ok, pronto, foi um episódio que se passou e acabamos o que tínhamos a fazer. Isso foi na província de Inhambane. Então, regressamos para a base da cidade da Beira. Outra confusão, porque na cidade da Beira, duas horas antes da nossa chegada, aterrou um avião com as características do nosso, estava cheio de peles, cornos de rinoceronte, marfim e disseram que era da Cruz Vermelha. Nós estamos a estranhar e vocês, que estão a aterrar, dizem que são da Cruz Vermelha. Mas o que se passa? Olha, só sei dizer que fomos parar na cadeia, na segurança, durante um dia inteiro, que era para averiguar o que se passava, mas já averiguavam nós, que nada sabíamos. O que se passou, efetivamente, foi o seguinte: quando o avião da Cruz Vermelha - em altura de guerra quem cuida disso é uma norma internacional - tem que partir para ir fazer uma missão destas, há uma informação ao Ministério da Defesa local, depois há uma informação internacional para a Cruz Vermelha Internacional e para outras entidades, para que haja proteção por causa do trabalho humanitário. E, nesse período de circulação, todas as características do avião aparecem, incluindo a hora em que o avião vai aterrar. E alguém decidiu fazer um plano e disse: “Bem, vou usar este para poder entrar e sair”. Só que ele entra na base da Renamo, portanto, leva produtos que não sabemos ainda o que eram, ninguém sabe, depois vai aterrar no território do fundamental. Muitos anos depois, viemos a saber que existem líderes que fazem este tipo de jogo. Vim a saber o nome de um deles, mas já morreu. Que Deus lhe guarde! Então, foi quando eu comecei a perceber que a guerra é um negócio muito sujo. E a contar isso, como escritora, para quê? Há coisas muito sujas e eu fiquei calada durante muitos anos. Escrevi tudo, menos isso. Não vou contar, para quê?

T: Eu gostaria que você falasse acerca da ambiguidade que a mulher mestiça traz. Na verdade, eu lhe faço essa pergunta por causa da questão da mestiçagem que aparece em seu romance O Alegre Canto da Perdiz, ou seja, por causa do desejo da personagem Delfina de ter uma filha de um homem branco.

P: Para mim, a questão da Delfina é uma questão econômica e de sobrevivência. Portanto, ter um filho mulato naquele sistema criava uma série de favores às mulheres que tinham filhas mulatas. E as filhas mulatas não iam para o trabalho forçado, aliás, as filhas e os filhos. Não iam para o trabalho forçado...

T: Isso realmente acontecia?

P: Sim, sim! E, então, as mulheres se esforçavam por ter um filho assim. De que vale ter um filho preto para ser morto, para ser levado para nunca mais voltar? É melhor fazer um filho com branco e pronto! Portanto, há esse lado. Agora, o lado do corpo, não sei o que posso responder, porque, também, o desejo sexual, por aquilo que eu pude ver, há sempre curiosidade à volta da negra mais escura possível. Parece que alguns homens brancos têm uma paranoia! Não sei por quê... Não sei o que posso responder sobre isso e nem sei se entendi a pergunta. Mas, por ter vivido na Zambézia, que é uma zona onde houve muita miscigenação e por querer entender um pouco mais, entrei um pouco no dilema do ser mestiço. Se o Brasil é assim, aqui também é a mesma coisa! O mestiço está entre dois, entre o preto e o branco, para onde se dirigir e em que circunstâncias...

T: Parece-me que há uma falta de endereço, ele é sem lugar...

P: Exato, é isso mesmo. E isso cria conflitos próprios. Eles fazem um grupo deles, tentam criar a sua própria identidade, com as suas extravagâncias, tem coisas boas e más e eu acho que a literatura, por causa dos anseios políticos, não explorou muito o sentimento do mulato, que é bem diferente do sentimento do negro ou do branco. Por exemplo, para um mulato, não faz diferença nenhuma lutar pela independência, por quê? Enquanto os negros se levantam e fazem a guerra para se libertarem, porque existe colonialismo no país, o mulato não precisa, ele tem o favor do pai. E depois houve luta, veio a independência, o mulato não tem que se esforçar, porque, realmente, os negros e as negras são seus progenitores também. Então, ele está numa situação sempre confortável; ao mesmo tempo, incômoda. No caso concreto de Moçambique, que é um país maioritariamente negro, os mulatos são bem aceitos, mas sempre há algum desdém, porque são sempre o produto de uma relação que a gente não sabe de que natureza foi: ou a mãe se prostituía para tirar dinheiro, ou a mãe foi violada. E raramente os mulatos são frutos de um amor verdadeiro. Então, isso cria um estigma. O próprio mulato reage a isso. E há sociedades que não toleram o mulato, então fazem seus clubes e, quando veem que não são tolerados, vão à busca da proteção do branco ou, depois, mais tarde, adquirem a sua identidade. E eu acho que a literatura deveria trabalhar muito o mundo interior do mulato.

T: Quando você fala das mulheres da Zambézia, eu gostaria de saber se há algum mito sobre aquelas mulheres - porque, historicamente, as donas dos prazos, de fato, existiram. Eu gostaria de saber se há algum mito sobre elas, alguma história que se conta e que você conhece, ou o que temos são apenas registros históricos...

P: Não me lembro de muitas histórias, mas a única coisa que eu posso lembrar, neste momento, é que conheci uma família, uma senhora mulata, era muito velha a senhora, cheia de empregados domésticos, uma para trazer o chá, outra... não, normalmente homens, um para trazer o chá, outro para tirar a louça, outro para... tinha empregados para tudo. E tinha um casarão! E diziam que ela era uma sinhá dos tempos muito, muito unidos. E era uma mulher muito temida, muito respeitada, porque fazia parte desse clã, desse grupo dos prazeiros, não dos prazeiros, das donas...

T: Das prazeiras, na verdade...

P: Exatamente! E que, maioritariamente, eram mestiças, não eram negras. São senhoras de muito poder. Foi impressionante. Foi alguma coisa que eu consegui ver, mas estava cheia de trabalho, não deu para aprofundar. E se houve alguns registros históricos sobre elas, houve algumas coisas escritas mesmo no tempo colonial, em literatura, mas não tenho muita familiaridade com a literatura escrita sobre este grupo de mulheres naquela altura, tanto que, mesmo a literatura, com o país recém-independente, ainda não teve tempo para romancear esses casos, não, ainda não. Talvez, com o tempo, vão surgindo, mas a História já trabalha com isso.

T: Eu, como pesquisador, de cultura muito distante das culturas onde se pratica o Lobolo, conheço-o somente por meio de leituras e entendo-o como uma questão muito prática, em que se oferece um pagamento. No entanto, parece-me haver aí um significado simbólico mais importante que ultrapassa a simples recompensa. Então, eu gostaria de saber acerca desse significado simbólico, mais importante que o significado material...

P: Para mim, o Lobolo tem duas componentes e a componente maior é a espiritual. Portanto, há um lado material e há um lado espiritual. O Lobolo, para se realizar, a família da mulher que vai ser lobolada se ajoelha em frente da árvore, aliás, debaixo da árvore, e leva as prendas dos mortos, que são a farinha, um pouco de bebida, uma galinha, panos e outras coisas, alguns pequenos dinheiros, podem ser até moedas. A cerimônia do Lobolo começa com uma invocação espiritual, que é para dizer o seguinte: “Antepassados da nossa família, a vossa filha cresceu, a vossa filha vai casar, a família do homem vai chegar. Ela já cresceu, ela vai sair de nós, pedimos a vossa benção, recebei a família do homem que vem e dê muita felicidade à vossa filha, que tenha muitos filhos, blá, blá, blá, blá, blá. Amém!”. E isso é essencial. Nunca se recebe a prenda, ou o dinheiro, ou o pagamento, sem nunca fazer essa cerimônia. Então, o dinheiro e as prendas que vêm são para agradecer aos que já morreram. É para agradecer, sei lá, “n” coisas e, no meio dessa cerimônia - que é religiosa mesmo -, também o negócio entra: minha filha é bonita, então paga! (risos). Minha filha estudou, então paga! Agora, o problema de muitos livros é o seguinte: são escritos por pessoas; primeiro, pelos ocidentais, que têm uma visão ocidental do mundo; segundo, por intelectuais ocidentalizados. A cerimônia religiosa de chamar Deus, os mortos etc. é privada, ninguém vê. Portanto, é o avô, é a avó que vão fazer isso, ou o pai dela, que vão fazer isso. É privada. E depois tem o lado público, que é onde se trocam as prendas e os dinheiros e todo mundo vê. E, então, consequência: o ocidental, o ocidentalizado vê o dinheiro e não vê o lado espiritual, às vezes. É tão religiosa esta cerimônia chamada Lobolo que, quando a noiva tem um contratempo no lar, ou é estéril, ou qualquer razão, a família do noivo diz logo: “Será que o Lobolo foi bem feito? Será que os mortos, os defuntos, os espíritos da noiva receberam bem o nosso Lobolo?”. Então, aparece o curandeiro, que diz: “Tu és infértil porque, ou o Lobolo não foi recebido, ou o teu marido não fez o Lobolo”. Portanto, o Lobolo não é um preço. O preço vem, porque o negócio também é bom e a gente aproveita a ocasião para isso. Então, deixa-me dizer que temos muitos livros falando sobre esse fenômeno, que não é bom, que, realmente, o Lobolo - da forma como a tradição concede - faz da mulher um ser submisso, que tem de servir até o fim dos seus dias. Esse é o lado mau das coisas, mas Lobolo foi tão combatido, nunca morreu, pelo contrário, o Lobolo, nos dias de hoje, cresce e aumenta. Tive o caso de uma pessoa, tive não, toda a gente conhece o caso de um senhor muito importante, era um ministro, que não quis fazer o Lobolo porque era um ministro e a mulher morreu. A família disse: “Essa mulher não te pertence! Tu nunca podes enterrar uma mulher que não é tua, porque não fizeste o Lobolo!”. Faz-se o Lobolo de um morto. Teve que fazer! Mas que coisa, sim, que terrível! (risos). O homem teve que esquecer o choro para fazer o Lobolo da morta, para ser enterrada, todo mundo queria!

T: O Lobolo é uma festa de alegria, não é? Se não fosse de uma pessoa morta, seria uma festa de alegria, não é isso?

P: Sim, seria uma festa de alegria. E ele teve que cumprir! E a família da falecida esposa foi-se ajoelhar na árvore e disse: “A vossa filha partiu, não estará entre nós. Permite que o seu espírito se junte à família do seu marido, que veio lobolar com este dinheiro, com este não sei quê, não sei quê, não sei quê... Assim que o funeral aconteceu! Quantos casos destes que nós não assistimos todos os dias!? Então, não é apenas um problema de pagamento! E os estudos que se fazem devem ser melhorados! Tem que se melhorar, porque esta visão ocidental, essa visão materializada não é verdadeira, o Lobolo é muito mais poderoso que isso! E sabes que, hoje, os jovens dizem: “‘Epa’, eu vou me casar! Essa gente do Sul, pá, com as confusões do Lobolo que tem, é melhor resolver isso, pá, antes que me obriguem a pagar o Lobolo quando ela morrer!”. São eles próprios a insistir que o Lobolo se faça! Portanto, não é uma questão de pagamento, é muito mais que isso!

T: Em relação às memórias, há um pesquisador brasileiro chamado Márcio Seligmann-Silva que afirma que é preciso “lembrar de esquecer e não esquecer de lembrar”, algo um tanto quanto contraditório. A partir disso, eu gostaria de saber como você lida com as suas memórias e se, alguma vez, elas já se tornaram um peso para a sua atividade de escritora.

P: Várias, várias! Eu vou falar de racismo. Eu nasci em 55 [1955], a Independência de Moçambique se dá em 75 [1975], quando eu tinha 19 anos, a caminho dos 20. Não vivi muito racismo, mas vivi e vi! E uma das memórias mais terríveis que eu tenho na mente é dos cavaleiros portugueses - não, cavaleiros portugueses, sim, era Esquadrão de Polícia Montada - que andavam a cavalo pelos subúrbios e os sipaios, que andavam a pé, descalços, com o fardamento militar, passando pelas ruas, capturando pessoas para levar para a escravatura de São Tomé. Enfim, tinha 10 anos - 10, 11, 12 - e memórias muito amargas de mulheres a serem arrastadas pelos carros. Eu vivia no subúrbio, tinha lojas de brancos ali, porque só os brancos podiam exercer o comércio e tinha a imagem dos brancos arrastando pessoas. E eu cresci a ver isto. Cresci, fui à escola. Na escola secundária, sobretudo, encontrei os brancos e eu tinha que enfrentar o branco, o medo do contato. E tinha medo de tudo porque não sabia o que poderiam fazer comigo a qualquer momento. A Independência veio, essas memórias ficaram. Mas eu dizia para mim mesma: “Mas eles são brancos, ah, mas eu tenho que esquecer, eles são humanos, não têm nada a ver com tudo o que aconteceu”. E chegava um momento em que eu esquecia completamente, fazia o esforço de desmemorializar (risos) e fazia a minha vida normalmente. Continuava a fazer o meu trabalho, mas, por qualquer coisa de repente, aquela memória antiga vem. Fecho-me sozinha para ninguém perceber que, de repente, entrei na recordação daquilo que ontem aconteceu, sobretudo, quando surgem questões pouco agradáveis e a gente vê que as coisas estão a acontecer, porque sou escritora de raça negra, então, toda aquela memória de infância vem. Portanto, por um lado, é bom recordar o passado, porque isso me ajuda a entender com quem estou, mas também é preciso esquecer, porque a vida tem que ser dinâmica e tenho que conviver com pessoas de todos os tipos. Então, não sei se isso responde de alguma maneira...

T: Responde, sim!

P: Sim, (risos)! É um conflito terrível. Teve uns pequenos casos, pouco simpáticos, viajo bastante. Um dia meti-me num comboio, fui para Portugal. Depois, entrei-me numa daquelas zonas fora, fora, fora da cidade. Entrei num restaurante para comer, estava com fome. Pedi, olharam para mim, não me deram de comer! Estavam às voltas e não me diziam que não me queriam servir, porque não havia a certeza de que eu não era portadora de doenças. Só depois de muito tempo é que eu me lembrei: ah, eu já passei por isto! Então, a memória, às vezes, é necessária! Chamar a memória para compreender o presente.

T: Você chegou a acreditar, de fato, algum dia, no projeto da Frelimo?

P: Eu acreditei, acreditei, e foi bom ter acreditado no projeto da Frelimo. O projeto verdadeiro da Frelimo era a libertação nacional e conseguiram. Então, vinte valores ou cem, governação é outro assunto (risos), tanto que, até hoje, se chama Frente de Libertação de Moçambique - não é Frente de Governação -, tanto que o projeto da Frelimo, como libertador, foi vencido, agora, o que veio depois são outras coisas.

T: Moçambique é um país cerc(e)ado pela modernidade ocidental, branca e europeia. Digo isto porque o projeto de nação que se criou aqui fez com que a população tivesse de abdicar de muitos valores culturais. É o que aconteceu com muitos países que viveram experiências de colonização, como é o caso do Brasil e de toda a América Latina, que dizimaram as suas comunidades indígenas... Como é viver num país onde vários cultos tradicionais foram proibidos?

P: O Brasil, sempre que eu vou para lá, eu quero ver os índios... Eu acho que a situação aqui é a situação do Brasil. O negro no Brasil não é diferente, não é... A única diferença que nós temos é, exatamente, o fato de termos o nosso chão, mas é só olhar em volta. Pergunto: num país negrista, onde estão os negros a deliciar os bons manjares que a terra produz? Vai aos restaurantes todos, vai dar essa volta e vai perceber que estão na lida. Portanto, modernidade ocidental, que modernidade? Estão em decadência, por isso voltam de novo para usurpar aquilo que é nosso. Portanto, o moderno não é perfeito. Se eles fossem perfeitos, não estariam na crise em que se encontram hoje. E chamam-nos tradicionais, por quê? Sempre pusemos os pés no chão e vivemos a nossa vida, hoje! Então a nossa cultura é moderna! Qual é o conceito de moderno? Não é viver o hoje e o agora? É complicado! (risos).

T: Para encerrar, eu gostaria que você dissesse - no meu caso, eu preciso que você escreva - algum ditado ou frase em Ronga ou em Chope e traduzisse o que ele(a) significa.

Provérbio
existente nas línguas Ronga, Chope ou Changane e sua tradução para o Português (manuscrito por Paulina Chiziane).

Referência

  • 1
    O português que Pauline aprendeu não é o brasileiro. Dessa forma, optamos por manter a construção dos períodos conforme a fala da escritora.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2016
  • Aceito
    08 Jun 2017
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