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CINEMATERAPIA: Cinema com Pipoca e Psicologia Volume 2: Sexualidade e Gênero autores Dr. Eduardo J. S. Honorato & Denise Deschamps Educar em Saúde 2021 ISBN 978-65-994973-1-5 https://doi.org/10.53405/edusau-ccpp.002 Este livro está licenciado sob a Licença a de Atribuição Creative Commons. Atribuição Não-Comercial- 4.0 Internacional (CC BY-NC-ND 4.0). Volume 2: Sexualidade e Gênero CINEMATERAPIA: Cinema com Pipoca e Psicologia Autores Dr. Eduardo J. S. Honorato & Denise Dechamps Educar em Saúde 2021 Sumário Sobre os autores 05 Sobre a coletânea 06 Artigos Paris is Burning (1990: e Pose (2018) 07 Me chame pelo seu Nome (2017) 11 Moonlight – Sob a Luz do Luar (2016) 14 Dor e Glória (2019) 18 Amor Por Direito (2015) 22 Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014) 26 Uma Nova Amiga (2014) 31 A Pele que Habito (2011) 35 Minhas Mães e Meu Pai (2010) 39 Sex and the City 43 Grace e Frankie (2015, 2016) – Temporadas 1 e 2 Ninfomaníaca (2013) 46 50 Sob a Pele (2013) 55 Cisne Negro (2010) 59 Ex Machina: Instinto Artificial (2014) 62 As Vantagens de Ser Invisível (2012) 66 Deixe a Luz do Sol Entrar (2017) 70 Sobre os autores Eduardo J. S. Honorato Psicólogo, Doutor em Saúde Pública com ênfase em Sexualidade, Reprodução, Gênero e Saúde (FIOCRUZ). Pós-doutorando Medicina Tropical com ênfase em Infecções Sexualmente Transmissíveis e Hepatites virais na Fundação de Medicina Tropical - FMT/AM. Especialista em Saúde da Família (UFSC), Docência Superior (UGF), Produção e Uso de Tecnologias Educacionais (UFSCAR), Epidemiologias e Vigilância em Saúde (Unyleya) e Especialista em Saúde Mental (Unyleya). É concursado como especialista em Saúde na Secretaria Municipal de Saúde de Manaus (SEMSA). Concursado como Professor Adjunto na Escola Superior de Ciências da Saúde - ESA - na Universidade do Estado do Amazonas - UEA. https://linktr.ee/Dr.eduhonorato Denise Deschamps Possui graduação em Psicologia pela Universidade Gama Filho (1984). Completou a formação em psicanálise e socioanálise pelo IBRASI. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicanálise. Desde 1984 é psicóloga e psicoterapeuta com treino em psicanálise clínica individual e psicanálise de grupos. Atuou em ambulatório na Colônia Juliano Moreira e IBRAPSI. Publica artigos acerca de conceitos da prática psicoterápica, psicanálise e cinematerapia - filmes e psicanálise em revista de circulação nacional e sítios especializados na Internet. Participação com trabalhos aceitos em Congressos nacionais e lançamento de livro na Mostra Regional CRP/RJ(2009). de Ministra Práticas aulas e em Psicologia cursos como colaboradora convidada em faculdades brasileiras. Supervisora em clínica psicanalítica. Sobre a coletânea Ao longo de mais de 10 anos produzimos dezenas de artigos para a Revista Psique Ciência e Vida da Editora Escala. Esses artigos, sempre focados na Psicologia e Psicanálise, abordam os seriados e filmes com um olhar chamado de cinematerapia. Filmes podem ser utilizados como facilitadores de insights. Quando orientado esse uso, por profissionais qualificados, e, quando bem analisados, podem levar a construção de reflexões importantes que trazem um processo de modificação, seja para o dia a dia, seja para o processo psicoterápico. Através das produções fílmicas ou de trechos delas, podemos utilizá-los como recursos em sala de aula, promover autorreflexão ou até mesmo utilizar como recurso psicoterapêutico, no que denominamos como uma intervenção apoiada em Cinematerapia. Em 2009 publicamos nosso primeiro livro “Cinematerapia.:Entendendo Conflitos”. Agora, mais de uma década depois, a proposta dessa coletânea é distribuir as obras por temáticas, facilitando ao leitor escolher os filmes e seriados de acordo com o assunto que pretende refletir e trabalhar. Neste volume um separamos um conjunto especial de artigos que abordam a sexualidade em diversas nuances, multifacetada. É o segundo livro de uma série que pretendemos disponibilizar ao grande público. Boa pipoca, boa leitura, profunda imersão e muitos insights a todos! Eduardo e Denise cinematerapia: volume 02 Capítulo 01 Paris is Burning (1990) e Pose (2018 A cultura LGBTQI+ dos anos 80 Se você conhece a palavra “Vogue” provavelmente deve se remeter a famosa música da Madonna, lançada nos anos 90 e que dominou as pistas de dança do mundo inteiro, com seus movimentos coreografados. Copyright: Daniel Quasar Se conhece a expressão “Voguing”, deve ter assistido a uma das 10 temporadas do Reality Show RuPauls Drag Race, apresentado por Paris is Burning é um clássico obrigatório para RuPaul Charles, premiado e responsável por um quem resgate histórico da cultura drag. LGBTQI+, mesmo que o movimento não fosse quiser estudar e entender a cultura denominado assim na época. É um documentário Porém, esta expressão vai muito além de uma que choca mas mostra a realidade dos gays e simples música ou movimento e representa toda transexuais nos anos 80 de NYC. E por muitos uma cultura LGBTQI+ dos anos 80 e 90 e que considerado controverso, por reforçar alguns retorna a cena atual graças a esse reality show e a estereótipos e ocupar um lugar de fala não produções mais recentes, como o seriado POSE pertencente aos seus produtores. Polêmicas a produzido pelo Canal FX. A coluna desse mês parte, é obrigatório aos estudiosos de sexualidade pretende abordar essa nova sensação midiática e e gênero. Sua exibição dá lugar para que se também discuta o que hoje se pode problematizar, fazer um resgate ao clássico e a controverso documentário Paris is Burning, questão dos assim chamados “guetos”, lugares de lançado nos anos 90 mas que também se remete moradia a esse momento tão importante da luta contra a subjetividades que por muito tempo foi onde se homofobia, transfobia e tantas outras batalhas poderia existir, como diz um dos personagens do intermináveis que essa população vem travando filme “o único lugar onde se podia ser 100% quem desde o século passado. Para aprofundar ainda era”. Um filme também muito bom e histórico um pouco mais a questão, de uma luta que sobre isso é “Stonewall”(2015), que deixa evidente atravessou o século vinte, é também indicado como tantos jovens gays encontraram na união e um documentário do diretor suíço Stefan Haupt, mútua proteção o único caminho possível da que aqui recebeu o título de “O Círculo”(Der sobrevivência, não apenas psíquica como da Kreis/2014) que narra como nos anos 40 foi a própria existência mesmo. única organização homossexual que sobreviveu ao nazismo, o filme foca esse “círculo” nos anos 50, ele deu origem a revista homônima “Der Kreis” e narra como foi ponto de defesa dos direitos gays de 1943 a 1967. 07 e diversão, de expressão de cinematerapia: volume 02 O que mais emociona neste documentário é “Ter uma vagina não garante uma vida fabulosa”, entender a rede de proteção que se montou a diz Pepper LaBeija, que lembra que jamais foi partir dessas “Casas”(Houses) que se apresentam uma mulher e sim um homem que se veste como nos bailes, e que ganham representações tão mulher, pensa que a redesignação sexual não diversas que se orientam no sentido de cada uma garante respeito a ninguém, afinal as mulheres ter o que nomeiam de “autenticidade”, ou seja, apanham, são maltratadas, mortas, subjugadas em parecer totalmente com aquilo que querem grande escala. Nesta fala podemos pensar o que encenar, onde tem até categoria como Ninja, hoje muito se discute do quanto andam lado a Homem Hétero, Drag Machuda etc. lado a luta feminista e o ativismo gay. Ainda alerta: “Na verdade pode até piorar”. Ao pertencer a uma casa cada um assume como sobrenome sua designação, como por exemplo, a Neste aspecto fez a lembrar nossa saudosa que se diz como a mais famosa, “La Beija”. “Um Rogéria, recentemente falecida, uma das nossas baile é meticuloso”, diz uma das “mães”, Dorian primeiras drags a tomar o palco e fazer da vida Corey, a competição é acirrada e provoca muitos um baile, que insistia que nela havia sempre o embates ou mesmo brigas entre xs competidorxs. Astolfo, seu nome de nascença. São muitas as “Numa família real é a mãe quem mais trabalha, formas de expressão de identidade, não se pode e é a mais respeitada”; diz Willi mãe da casa pensar jamais em um único caminho. Hoje temos Ninja. Para ser mãe em uma das casas há que ser já importantes discussões sobre o que se tem muito poderosa, segundo ela, e cumprir com nomeado de “não binário”, sujeitos que mesclam todas os cuidados, dia de baile será sempre dia de marcadores do feminino e do masculino. um trabalho intenso ajudando a todxs a se prepararem. Dentro desse movimento O documentário retrata um período histórico encontram então um sentido de pertencimento, onde liberdades que nas décadas anteriores foram e mesmo de família e acolhimento. conquistadas a duras penas começavam a ter um espaço até lúdico, por breve período, até que a Vogue é a dança que predomina nas competições Aids surja e levante velhos preconceitos que não e teve seu nome copiado da revista por conter chegaram sequer a adormecer, muito próximos passos que são como poses fotográficas, ela se dá ainda, entre dois adversários, e é descrita como “lançar fechamento que veremos na década seguinte e a veneno”, o que nos traz uma questão que até hoje luta que até hoje se faz necessária para garantir gera muita controvérsia. Os venenos que na vida digna ou mesmo a vida propriamente dita linguagem gay muitas vezes fará pensar em uma para a população LGBTQI+. A expectativa de vida homofobia internalizada, um mal preocupante de uma pessoa trans aqui no país ainda está por que leva a altas taxas de depressão e suicídio, mas volta dos 35 anos de idade. Terrível e assustador que também, por outro lado, podemos pensar isto. que muitos desses “venenos” são como “sparing” objetivo homofóbicos também é altíssimo. Jovens para um mundo que tanto persegue e ataca os ainda são expulsos de sua família apenas por sua homoafetivos ou com identidade de gênero que identidade de gênero e/ou orientação sexual, foge ao padrão convencional. muitas vezes tendo como única saída as ruas e a É interessante notar que um padrão de identificação que como um sonho de vida, seria justamente o que mais xs oprime, o branco heteronormativo. Essa seja acrítica mais acirrada ao documentário, feita por teóricos, como Butler, por exemplo. 08 em parte, todo um O índice de agressões e assassinatos de prostituição. procuram para si relatado pelxs entrevistadxs, talvez determinando cinematerapia: volume 02 Temos hoje então o seriado POSE, uma produção Esses bailes, festas ou simplesmente locais onde atual do canal FX que tem como um dos homens produtores e encontrar e serem quem quisessem. Ou como diz reconhecido mundialmente por obras como Glee a personagem Blanca (Mj Rodriguez) , “Bailes são e Comer, Amar e Rezar. Murphy pega carona na agrupamentos de pessoas que não são benvindas onda de RuPauls Drag Race, que mostrou para em lugar nenhum. Uma celebração de vidas que o toda uma geração a arte drag, bem como tem resto ensinado muito sobre sexualidade e gênero para celebradas”. Qualquer semelhança com Paris is a geração dos milenials, que desconheciam sobre Burning não é mera coincidência, uma vez que o tema. RuPaul tem todo o mérito de resgatar o este é a referencia principal do seriado. Uma interesse de toda uma geração para uma arte que versão romanceada, ficcional, da realidade nua e antes estava esquecida ou remetida apenas aos crua descrita no documentário. Ryan Murphy, premiado gays do e mulheres mundo julga trans não podiam merecerem se ser guetos gays, com shows em pequenas boates em subúrbios ou locais escondidos em cidades. Hoje Essa mesma personagem, Blanca, nos levará na se tornou uma arte “mainstream” e suas artistas sua colhendo os frutos de todo o seu talento. Mas “casa”(house), pretendendo ajudar as pessoas e nem sempre foi assim. deixar seu legado, uma vez que foi diagnosticada jornada pessoal de construção de sua com HIV e naquela época, o prognóstico, mesmo Pose se passa em 1987, mesmo período do com o AZT, não era muito favorável. Blanca talvez documentário Paris is Burning, um ano muito seja difícil para os gays do mundo todo. Em pleno Xtravanganza. período de epidemia de HIV/AIDS, bastante Abundance restrita aos homens gays e mulheres trans, ainda homenagem a tantas outras mães de Paris is vivendo com muito medo e discriminados mais Burning. E a rivalidade entre suas casas e seus ainda pela sociedade. Uma discriminação que espetáculos é que nos presenteiam com cenas começa dentro de casa, passa pelas ruas e pela lindas sobre as vivências e dificuldades deste sociedade, os empurrando para os cantos. A saída público em meio a uma sociedade homofóbica, foi a criação dos famosos Balls em NY. O seriado transfóbica e machista. já começa mostrando passos do uma belíssima Sua homenagem principal (Dominique a rival, Jackson) Angie Elektra é uma chamado Voguing, estilo de dança típico dos bailes. Ao Em sua jornada de construir seu legado, Blanca mesmo tempo que é uma dança, é uma arte e adota vários filhos, entre eles, Damon (Ryan uma batalha, onde os movimentos sincronizados Jamaal) um jovem de 17 anos, gay e aspirante a entre oponentes não permitem que se choquem, dançarino, agredido e expulso de casa por ser gay. mas mostram toda a competitividade numa pista Este representa milhões de jovens que sofreram e de dança. sofrem ainda a homofobia dentro dos próprios lares. Temos ainda Angel Evangelista (Indya Somos lentamente apresentados aos Moore), uma mulher trans, garota de programa, personagens, especialmente o binômio Blanca- envolvida em um relacionamento que com um Elektra, duas mulheres trans que coordenam suas homem heterossexual casado. Ao que tudo indica, Casas, com integrantes que competem entre si Elektra Abundance passará pelo processo de nos Bailes (Balls). transgenitalização como uma das primeiras em um novo protocolo americano. Seu sofrimento entre a escolha do corpo que lhe pertence e o relacionamento que a mantém nos leva a lágrimas. Ser quem realmente é ou continuar a existir se 09 sentindo incompleta. Difícil escolha. cinematerapia: volume 02 Entramos nas suas jornadas e de outras tantas Para quem estuda sexualidade e gênero, para personagens da quem curte essa temática ou para quem apenas se sexualidade, nas mudanças corporais disponíveis interessa pela historia, o seriado POSE vem na época e seus sofrimentos. Mudanças essas que complementar geraram para documentário Paris is Burning, considerado até milhares de pessoas trans, deixadas a margem então, uma das poucas referencias desse período dos sistemas de saúde e que buscavam na tão importante de lutas e conquistas, mas também clandestinidade de atuais, tantos nas problemas uma descobertas de solução saúde para suas necessidades. uma sofrimento nos lacuna Estados deixada Unidos. A pelo cada episódio somos brindados com trilhas sonoras que nos jogam num túnel do tempo e sentimos o Hoje temos avançado em alguns pontos em gostinho, mesmo que pequeno, do que foram os relação não somente as questões de orientação tão famosos Balls de NYC, sem deixar de perceber sexual, a o quanto já conquistamos e o quanto ainda temos transexualidade. Jamais podemos esquecer que o que caminhar numa busca de IGUALDADE de movimento não tem apenas gays e lésbicas, mas a direitos. mas também em relação letra T tem grande importância nessas conquistas e que ainda recebe grande parte do peso dos Derrubando a falácia conservadora que prega que preconceitos hoje em dia. Temos alcançado sujeitos homoafetivos estariam querendo direitos pequenas vitórias. a mais, o que se quer é isonomia cidadã, onde ninguém deveria ter menos direitos assegurados Recentemente a Organização Mundial de Saúde por questões como orientação sexual, “raça, de deu mais um passo – mesmo que considerado cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião PEQUENO – ao retirar a transexualidade do política...”(Declaração “hall” das doenças mentais em seu Manual, Humanos). denominado CID 11. Passo pequeno porque ela recente que pode ser ainda manteve como condição relativa à “saúde discussão é o “Tangerine”(2015) que aborda bem sexual”. Posicionamento que gerou ambivalência diretamente nos movimentos, uma vez que ao mesmo tempo transgêneros que manter pode garantir alguns direitos diante Hollywood. do Caetano Veloso: “gente é pra brilhar, não pra sistema de saúde, também pode gerar estigmas. Um um nas Universal bom dos Direitos documentário também incluído nesta lista de fragmento ruas de do cotidiano Tinseltown de em Como diria nosso poeta e músico morrer de fome”, verso muito utilizado aqui pelo único parlamentar assumidamente gay que temos Em relação ao nome, sim, aquilo que te identifica agora no Congresso Nacional. e te faz perceber quem você é e carrega toda a sua subjetividade, aqui o STF, desde o início do ano já se posicionou de que a retificação do nome pode ser feita em cartórios, sem necessidade de cirurgia. Uma vitória no plano legal, mas que tem enfrentado dificuldades no plano prático, pois muitos são os relatos de pessoas trans que tem seus pedidos negados em algumas regiões do país. Torcemos para que em breve o termo “nome social” desapareça, porque entendemos que todo nome é social e ao sujeito pertence, sem necessidades de reafirmação jurídica para isso. 10 cinematerapia: volume 02 Capítulo 02 Me Chame Pelo Seu Nome (2017) Mais amor, por favor, a frase pelas redes ricocheteia anônima sociais. Uma súplica que denuncia os tempos áridos que vivemos. Amar necessita doses extras de generosidade, porque quando se ama alguém, o outro se torna o objeto para o qual os desejos, ter a capacidade de realiza-los, é a grande meta e Copyright: Elena Ringo satisfação. O diretor Luca Guadagnino parece estar sempre Ao compor um vínculo amoroso cada sujeito em suas produções às voltas com o jogo das busca mais se fazer amar do que propriamente paixões irrefreáveis, como pode ser visto em seu amar, porque a emoção já precede tudo, é mais publicamente conhecido, “Cem Escovadas soberana, o amor é como a singularidade, Antes de Dormir”(Melissa P,/2005) ou em “Um solitário, primeiro acontece enquanto algo único nascido na interioridade, só depois Sonho de Amor”( Io sono l'amore/2009), e assim é também compartilhado com alguém, chamando o fora angariando para dentro de si. Em todo amor há um tanto de faminto mas diante também do exige alimento: como críticas filme e que indicações vem para Berlim, Toronto, Rio, Sundance e um dos fortes um candidatos ao Oscar de 2018. Uma pena que um satisfaça-me, filme tão esplêndido esteja no mesmo ano alimente-me, salve-me da ilha do isolamento e concorrendo com o do diretor Guillermo Del da esterilidade da ausência de afeto. Toro, “A Forma da Água”( Shape of Water), pois os dois merecem o prêmio, dois belos filmes de E é nesta capacidade de ligar-se sem medida que amor que assinam-se com muita originalidade, este filme belamente toca, e como foi descrito apesar de ambos, todo o tempo, flertarem com por muitos espectadores, de forma devastadora. fórmulas cinematográficas já desgastadas e se Talvez porque toque em cada uma daquelas afastarem desse risco com maestria. Baseado no capacidades viscerais dos primeiros amores. Quase todos possuem um amor boas neste inúmeros prêmios. Aclamado nos festivais de busca e um bocado de espelho, ele doa sem parcimônia, veremos livro homônimo do escritor nascido no Egito e inesquecível radicado nos Estados Unidos, André Aciman, que se perdeu pelo caminho, aquele que ainda com a belíssima direção de fotografia do tailandês carrega na lembrança todo o peso da idealização, Sayombhu Mukdeeprom e roteiro de James a capacidade máxima de sair de si em uma Ivory, é uma produção de encher os olhos, entrega total. inundar o coração de paixão e excitar o corpo até aos pelos. O Brasil, para nosso orgulho, aparece nas fichas técnicas como um dos países produtores pela participação de Rodrigo Teixeira. 11 cinematerapia: volume 02 Narra a história da família Perlman, americana Com certeza esse usurpador irá tomar pra si as com os emoções principais daquelas férias, e como um Casar)de rito de passagem ao invés de ser aquele que tira a ascendência pais(Michael italiana Stuhlbarg Elio(Timothée e francesa e Chalamet) Amira , e atenção do pai, se constituirá no surgimento do estadunidense investimento para fora do seio familiar. Avista-se, encontram-se em férias em sua casa na Itália, então, pelos olhos de Elio na janela, a chegada do apesar disso um jovem acadêmico, o doutorando belo Oliver(Armie Hammer), chega à casa para ajudar jovem de 29 anos. Elio é um rapazote de 17 anos na organização de pesquisas sobre a cultura que em breve fará 18, estudante de música e greco-romana, coordenadas por Mr Perlman. compositor. Está sempre mais envolvido com essa professores pesquisadores universitários acadêmico Oliver(Armie Hammer), um tarefa do que com a diversão do grupo de jovens O que até então parecia seria mais um verão que movimenta o lugar. Reservado, mas sem como tantos outros, se revelerá o momento da qualquer dificuldade de se inserir no grupo descoberta do primeiro amor para Elio junto a quando assim deseja. Oliver, segundo sua primeira Oliver. A paixão e o erotismo preenchem todos impressão parece muito seguro de si, Mr Perlman os apresentada, faz uma brincadeira sobre sua grande altura ao capturando de forma intensa ao espectador. É que ele responde também brincando com bom excelente a escolha do diretor de transbordar a humor. Assim esse improvável par se conhece, tela com erotismo sem despotencializar isso, não quando então Elio o leva ao que é o seu quarto e trabalha com cenas repetitivas e abertamente que Oliver passará a ocupar durante sua estadia, sexuais. deslocando-o para o aposento contíguo, Elio avisa vãos da história que será que terão que dividir o banheiro que une os dois Na atualidade a grande centralidade que o sexo aposentos separados por portas autônomas. ocupa em nossa constituição tem sido apartada tanto pelo excesso de demanda e exposição(ler Início da década de 80, época onde a sexualidade Eros e Civilização de Herbert Marcuse), quanto esteve em pauta pela captura de um discurso que o normatiza em pelas décadas anteriores e jamais pensada como suas quase possível, ainda não existia a ameaça da AIDS, mecânica, onde a fantasia, parte essencial da respirava-se liberdade e permissividade, como plena sexualidade, acaba banida. veremos acontecer em todo o grupo de rapazes e vivências, tornando-a pobre e em uma libertação preparada moças. O filme começa localizando o tempo onde a história se desenvolverá, ano de 1983, fator A virgindade já não era mais um tabu, ao importante contrário, para refletir sobre seu as relações eram fluídas, não desenvolvimento e mesmo para entende-lo e necessariamente gerando compromisso, ficava-se, gostar ou não do que se verá nos minutos experimentava-se. Começava a surgir toda uma seguintes. Abre as falas Elio(Timothée Chalamet) geração para a qual a sexualidade poderia assumir avisando a sua irmã que o “usurpateur” estava variações e experimentações para se erguer sobre chegando. sua preferência. 12 cinematerapia: volume 02 Embora isso, a homoafetividade ainda era uma Talvez assim o diretor queira com isso aproximar vivência complicada e punida principalmente seu roteiro com o posicionamento do escritor pelo mundo adulto. No filme os representantes André Aciman que retorna com um conceito bem desse mundo adulto, o casal Perlman, pais de anos 80, portanto datado, de uma sexualidade Elio, não parecem preocupado em vigiar ou fluida e sem necessariamente uma orientação mesmo desses dominante, questão que hoje e até defendida pelos movimentos LGBTQI como algo incentivadores sutis, como se quisessem que o mais fixo e definido, a ser visto dessa maneira filho descobrisse algo que desconhecia sobre si como leitura sobre a sexualidade e identidade de mesmo. Interessante aí observar que Mr Perlman gênero, incluindo a bissexualidade. reprimir impulsos, se as manifestações mostram permissivos é debatida e é um estudioso da cultura greco-romana onde a homossexualidade tinha todo um status de Fica muito claro no filme, e essa talvez seja sua experiência no mundo masculino. Talvez aí maior beleza, a forte afetividade de Elio que, possamos pensar em um “mundo perdido”, uma apesar de se relacionar sexualmente com Marzia, vez que sabemos que as décadas seguintes a de 80 apaixona-se furiosamente por Oliver, em uma se um clara dominância da homoafetividade, uma aula se sobre a diferença entre prática e orientação sexual enfraquecido, vemos esse embate ainda com desmanchando assim a tese que ignora que a mais relação sexual com o sexo oposto, como prática, esforçaram para conservadorismo vigor na que recompor havia atualidade, há muito uma disputa ferrenha entre esse mundo livre não totalmente não calado e todo um retrocesso que ganhou uma orientação homossexual, porém essa não é a busca força inexplicável. e nem o lugar do afeto. Então torceremos para fica descartada mesmo diante de uma que Guadagnino repense sua disposição, em nome O diretor Luca Guadagnino declarou em algumas ao respeito bem vindo para os que enfrentaram e entrevistas que pretende fazer a continuação garantiram seu amor frente ao mundo. Se o autor dessa personagens do livro já declarava que não pretendia com a incríveis e que nessa posterior sequência já nos história "defender bandeira", ao menos agora anos 90 abordará a AIDS, a transformação do torcemos para que ambos não as derrubem. mundo com o fim da Guerra Fria e onde Temos visto e lido matérias hoje do como possivelmente Elio aos 25 anos estará casado e homens(e mulheres) cinquentões ou sessentões terá filhos com a personagem Marzia(Esther finalmente conseguem assumir sua forma de amar Garrel). O diretor perguntado sobre do porque depois coloca-lo heterossexual heterossexual, filhos, e muitas vezes até netos, e a respondeu que não vê nem Elio e nem Oliver grande alegria e serenidade que essa decisão traz. como gays necessariamente, vale lembrar que no Uma série que trata disso com muita beleza é a livro há nas informações sobre os personagens “Grace bem depois o fato de Oliver está casado e com infelicidade filhos, no filme o espectador junto com Elio fica “armário” gera para todos os envolvidos fica sabendo que ele ficou noivo. bastante evidenciada. história em com um esses dois casamento 13 de décadas And Frankie” e confusão de da que um casamento Netflix, o onde chamado a de cinematerapia: volume 02 Capítulo 03 Moonlight – Sob a Luz do Luar (2016) Filme que contrariando qualquer tendência previsão chegou ou à Cerimônia do Oscar 2017 e levou a estatueta de Melhor Filme. Filmado em 25 dias e com um custo baixo se Copyright: FROKOR confrontado com os outros concorrentes, não tendo seu orçamento total custado mais que um Sua vida acidentada não conseguirá apagar aquele anúncio durante o consagrado evento. Em menino silencioso, reservado, mas intensamente tempos onde parece que o mundo resolveu dar amoroso uma marcha ré e tanto, esse filme vem quase guardará sempre uma certa estatísticas apontam para a grande maioria da realizado e apresentado ao grande público graças população a muito do que evoluímos enquanto, ao menos, com uma ou com todas suas características. O roteiro é como um mapa de um conceito de diversidade. Sua bilheteria resistência contra forte marcadores sociais que surpreende e já ultrapassou em muito a marca acabam por determinar tantos cursos de vida. Em de 20 milhões de dólares. Ganhou o Oscar de um mundo que exige endurecimento do afeto, Melhor Roteiro Adaptado foi baseado na peça Blue”, que inocência. Passará por todas as etapas que as como um bálsamo, se pensarmos que pode ser ainda inédita e Chifron seguirá, a seu próprio modo, resistindo a “In Moonlight Black Boys Look isso, e a uma identificação com o agressor que se de Tarell Alvin McCraney que o assina constrói em torno da identidade masculina. junto com o diretor Barry Jenkins a adaptação para filme. É tremendamente desalentador ver o menino ir perdendo sua candura ao longo do caminho, mas Acompanharemos Chiron, conhecido como apesar do menino blue, do triste disso tudo, há Little ou Black pelos outros meninos em três alguma esperança no final, pode ser que o amor tempos de sua vida, infância(Alex R. Hibbert), adolescência(Ashton Sanders) e vença a batalha e faça destacar o menino que mora e vida se esconde em um corpo que terá que aderir a uma adulta(Trevante Rhodes). Um menino filho de uma mãe viciada em crack, imagem dominante e ser defendido entre músculos Paula(Naomie e metais. Harris), sem pai, pobre, negro e que deixa sinais frágil e vulnerável chamará contra ele todas as mais desde cedo sobre sua orientação homoafetiva, conhecidas antes até do que ele mesmo soubesse o que era Melhor principalmente certa forma esculpirá suas futuras escolhas de Coadjuvante) que lhe diz que ele saberia o que caminho. era no tempo certo, quando estivesse preparado Chifron se achava que ele era gay. bullying relação ao mundo e aos outros, e ao final o que de Ator para isso ao ser diretamente perguntado por de amor será também uma prova de confiança em conversa com seu novo protetor, o traficante Ali/Oscar formas operadas por seus colegas de escola e descobrir o isso. Destaque no filme para a cena onde ele Juan(Mahershala Ao longo de sua infância sua aparência 14 cinematerapia: volume 02 A única cena onde vive esse sentimento é Moonlight traz ao contrário a atualização da delicada e resume sentimentos de uma primeira questão, a coloca nos dias de hoje e por isso experiência amorosa na vida de um adolescente, mesmo a torna mais complexa e mais difícil de ser com da assimilada. A negritude blue incomoda na tela, ao homoafetividade ainda tão pouco assimilada mesmo tempo que entra como uma poesia, dura, como uma das possibilidades possíveis. mas bela de qualquer forma. O filme mantém uma narrativa lenta e intimista, As novas problemáticas que se constroem em não apela para recursos que costumeiramente torno de um racismo que resiste aos tempos, os tornam ou problemas presentes ainda herdados de um longo exacerbada, de uma forma contínua atravessa período onde a escravidão dos negros pelos dores de forma mansa e nada espetacular, e brancos talvez daí tenham se erguido as críticas mais sociais negativas, ao mesmo tempo que justo daí, reside predomina para a grande maioria dessa parte da todo o seu mérito. Ao contar a história que pode população, essa parcela que esse filme aborda de ser de muitos outros meninos mundo afora, toca maneira uma emoção real e profundamente sentida, é a diretamente a tensão entre brancos e negros, faz história de mais um, mas também poderá bem um ser a inspiração de muitos. Chifron é a síntese de poderemos chamar de “identidade negra”. O filme uma sociedade que se constrói por marcadores ganha o mérito de trazer todo seu elenco negro e que excluem mais do que possibilitam uma ter “figurantes” brancos que pouco ou nada têm a diversidade ver com a história contada, o toque a mais história de sutil por mais escolhas, se tratar romantizada empurram sem colonizadores construindo corte visceral. “normalizou” um papel Escolhendo profundo e relações social não emocionado que abordar no que correm como um mediação para caminhos pré estabelecidos pelas plano de fundo, servindo-se, por exemplo, da oportunidades desiguais que já vêm de berço, comida preparada por Kevin(André Holland) ou algumas agravadas por questões da própria comprando as drogas de Juan(Mahershala Ali). singularidade, como vemos acontecer com o Também não interessa em seu roteiro enaltecer os menino e sua orientação sexual. poucos negros que passaram pelo funil social, embora a premiação do filme aponte para isso, Este ano se esperava com certa curiosidade para principalmente no que diz respeito a Mahershala conferir Ali e o diretor da produção, Barry Jenkins. qual seria o comportamento da Academia frente às pesadas críticas que no ano Caberia a Moonligth a complementação no título anterior se ergueram referentes tanto Cerimônia com algo como “A Vida Assim Como Ela É”. de premiação, assim como como aos indicados, uma cerimônia “White”, como foi nomeada. Seria Surpreende um filme considerado de baixa simplista pensar que Moonlight foi escolhido bilheteria ganhar o Oscar de Melhor Filme, apenas por se tratar de um filme “negro”, quando embora saibamos que essa cerimônia é muito de havia outro concorrendo que atende a todos as política, não se pode dizer que entre as produções prerrogativas de prêmios, usando uma fórmula indicadas muito bem aceita pelo público e dando a estatueta. contemporização tão apreciada pela Academia, esse filme era o “Hidden Figures” que também emociona, mas não surpreende, e ainda utiliza a velha saída de adocicar a opressão. 15 Moonlight não merecesse levar a cinematerapia: volume 02 Em tempos onde a polarização americana anda Quando de vento em popa, não deixa de ser um “tapa de complicado a um jovem pobre, negro e gay luva crescer de pelica” o prêmio ao mulçumano pensamos dentro de no sua quanto por aqui comunidade, é sendo Mahershala Ali e a um roteiro que de forma obrigado a enfrentar todo tipo de violência das muito simples aborda o crescimento de um mais bárbaras, se torna impossível não concluir menino negro e gay. Dentro dos estudiosos da sobre a importância desse filme. Em um país onde forma de narrativa no cinema, aponta-se para o o “estupro corretivo” é uma prática cotidiana em diferencial que esse filme traz para o cinema muitos americano já que estaria mais identificado com noticiado um acontecimento chocante sobre um um cinema contemplativo, tipo de produção que rapaz que teve introduzido nele por seus colegas geralmente aquece mais os circuitos conhecidos de trabalho uma mangueira do Lava a Jato onde como de “arte”. trabalhava, há uma identificação instantânea com recantos, tendo sido recentemente essa realidade aparentemente circunscrita a outro Filme com apenas poucas falas mais impactantes, país. Poderíamos pensar que por aqui por nossas ele vai retirar suas emoções de interpretações bandas ainda nem temos condições de fazer muito bem conduzidas entre silêncio e música, refletir sobre tudo isso tal tem sido a obscuridade toca o pensamento que se constrói no espectador de pensamento que vemos surgir em corações e que irá se identificar em algum momento com mentes na dura atualidade que vivemos. alguma vertente do que é abordado, nem que seja com aqueles que perseguem o menino, O ator estreante Alex. R. Hibbert que interpreta provocando, assim se espera, alguma reflexão. É Chifron em sua infância, cativa com o olhar que o tipo de cinema que não vem para apenas contar prende o espectador à tela, preocupado já com bem uma história, mas que tem a ousadia de se não se deslumbrar com a fama(fenômeno que pretender conta uma ferramenta de mobilização, histórias nada belas sobre muitos atores aquela estocada certeira que só os bons filmes mirins que foram promessa), diz que doará parte conseguem dar com maestria. Uma das cenas do dinheiro recebido para construção de um entre Paula(Naomie Harris), mãe de Chifron e laboratório para pesquisa sobre o câncer. A força ele adolescente(Ashton Sanders) é um bom de sua interpretação convida no primeiro ato do exemplo dessa potência que traz em si mesmo, o filme, dividido em três atos, a que o espectador menino é como aqueles peixes que nadam contra permaneça atento naquele garoto que buscará no a forte correnteza tentando sobreviver. Essa cena par composto pelo traficante Juan(Mahershala Ali) é a única onde o diretor escolheu carregar nas e interpretações mais intensas dando assim a representação de um casal parental que o acolha e dimensão do que aprisionamento que descreve oriente. sua namorada Teresa(Janelle Monáe) uma ao longo de sua narrativa, fez lembrar a brava resistência terna de outro personagem Ver-se então a infância em suas necessidades mais inesquecível, o Michael do filme “Um Sonho básicas sendo visitada pela criança que sofre em Possível”( The Blind Side/2009) que também seus laços mais próximos, no caso apenas de sua olha a mãe como uma pessoa adoecida e que mãe que tem na droga e na dependência a precisa de cuidados, mas também de distância totalidade de sua relação com o mundo, não protetora. Chifron entenderá isso ao longo de seu restando dela crescimento, a relação fragmentada e dolorosa momentos de lucidez que visita muito de vez em com Paula o fará se afastar, sobrevivendo dentro quando. Será na casa de Juan e Teresa que Chifron do que se apresenta como sua realidade. buscará muitas vezes pela segurança que seu lar não provê a ele. 16 para ele nada mais que rápidos cinematerapia: volume 02 Mas como na vida real, sem qualquer aviso, em algum momento Juan simplesmente desaparecerá, como é o triste destino que aqui no Brasil alimenta a chocante taxa de mortalidade de jovens na periferia e comunidades mais pobres, engolidos pela violência inerente ao tráfico. A figura que representa as identificações e os impedimentos será toda assentada para ele neste casal que encontra em seu caminho, que na verdade ele busca em uma insistente presença junto a Juan que acaba por se comover, também em uma identificação cruzada, com a perspectiva de Chiron. A conversa entre Juan e Chiron sobre suas relações com as respectivas mães dá a dimensão do quanto Juan tenta se resgatar em Chifron, e o quanto Chifron precisa para seu vazio afetivo colar caquinhos em uma identificação possível, mesmo que seja da mão que alimenta o abismo onde sua mãe se lança. O círculo que alimenta uma verdadeira tribalização assim é visitado pelo contundente roteiro. Fugir dos determinantes sociais não é uma tarefa nada fácil, é árdua em alguns casos praticamente impossível, a mão do destino na verdade formulado por toda uma estrutura se faz pesada e exige sua parte inegociável. Chifron, o doce menino, encontrará um jeito de em estando, driblar os contornos internos que esses marcadores querem lhe dar, as cenas finais dão bem conta disso, quando conheceremos o adulto(Trevante Rhodes), em aparência a dureza e agressividade exigida pelo modelo, por dentro o menino que chora com a mãe e corre para (re)encontrar seu primeiro amor e quem sabe poder resolver a equação que um dia Juan lhe deixara na reflexão à beira mar: “Chega um momento em que você precisa decidir o quem você é”. 17 cinematerapia: volume 02 Capítulo 04 Dor e Glória (2019) Pedro Almodóvar retorna às telas com novo filme, segundo sua própria definição, de auto ficção Permite que o espectador penetre em uma intimidade como a que dá título ao filme, sua dor e sua glória, esta no sentido de uma capacidade de escrever peças que tocam e Copyright: Pedro J. Pacheco emocionam a quem as assiste. Conhecemos há décadas a capacidade de Almodóvar em Almodóvar com seu novo filme praticamente segue transformar o simples em algo que desvenda o que muitos estudiosos da atualidade indicam, mistérios e provoca espanto e algum riso, tem quando toma para si as rédeas de contar os pontos sido assim filme a filme, suas fortes cores onde as especulações sobre ele costumam se apoiar, contrastam sempre com a singeleza de suas não personagens, que embora tragam sempre o traço muito de sua história, já esclarecido pelo próprio Mas, se formos refletir, quem nunca se sentiu em diretor em entrevistas. Além de ter detalhes sobre suas estranhezas assim como um personagem de sua vida, traz pequenos detalhes ao conhecimento Almodóvar em algum momento de sua vida? Isto público, como as roupas que Banderas utiliza, o é quase um verso. Almodóvar é, e sempre será, apartamento, o endereço e muitas outras referencias um banquete para cinematerapia. Suas obras são a vida real do diretor. Temos a oportunidade única sempre repletas de conflitos e situações que nos de ver como é sua vida fora do cinema. Uma delícia levam a insights e devaneios, servindo como para os mais apaixonados por sua sempre intrigante uma belíssima oportunidade de reflexão. figura dos cabelos perfeitamente desalinhados. Não espere um filme denso e com plot twist Piel O diretor que costuma ser usado quase como um que sinônimo de intensidade e exagero, na verdade Habito/2013), ou uma comédia rasgada e ácida como Os Amantes pasajeros/2013), mas Passageiros(Los sim um filme com com o filme (sem spoilers). Mas a produção tem sim povoado da infância e que eles não gostam disso. Habito(La preencham claro que não acontecerá. Pelo menos de acordo mesmo, diz que ele retrata seus vizinhos do que que como uma auto-biografia do autor, mas isso ficou agora a mãe do protagonista, que no fundo é ele Pele para uma possível aposentadoria a partir desse que seria fazem pensar quem as assiste. Neste filme de A lacuna suposições desvirtuadas. Muito se especulou sobre de gente real virada do avesso, confundem e como deixa nunca exaure seu espectador, ao contrário, costuma amantes ser sóbrio no sentido de jamais tentar capturar uma linear, opinião, apenas envolve e afeta e a partir disso, cada tocante e profundo, na mesma linha que Má um que faça com o sentido o que quiser. Educação(La Mala Educación/2003). 18 cinematerapia: volume 02 Mostra sua fragilidade e sua solidão como antes Há nesse desejo também muito de tristeza, talvez de certa maneira já havia segredado em “Abraços nessa história que o diretor conta, o que mais se Partidos”( Los abrazos rotos/2009), onde sempre sobressaia seja justamente a tristeza oriunda de se suspeitou que o escritor de roteiros, Harry um isolamento auto imposto, talvez consequência Caine/Mateo Blanco(Lluís Homar), contivesse exata fortes O homoafetividade, isso fica meio colocado quando isolamento e a dificuldade em sair de sua em sua conversa com sua mãe já doente ele diz proteção solitária, repleta de dor inclusive física. que sentia muito por nunca ter sido o filho que a De seu quase bunker lança relatórios do que mãe desejaria que fosse e que quando ela se observa de humanidade em traçados assinados indagava a quem teria puxado não fazia isso com com cada orgulho. Dor de uma aceitação que fica sempre personagem, que jamais saberemos realmente marcada por uma sutil reprovação, como lhe disse quem sua mãe, ela adaptou-se a muita coisa, não aproximações originalidade. seja cada com ele Afirma pessoa mesmo. através que de pensamos ser de uma facilmente reconhecível. Obriga que seu público necessariamente se transforme em sagazes observadores de gente pleno. difícil acolheu vivência com de sua entendimento e de humanidades, essa abundante e complexa subjetivação. Dor e Glória foi o escolhido para representar a Espanha na disputa pelo Oscar Melhor Filme Segundo consta, Dor e Glória completaria o que Estrangeiro de 2020, venceu na preferência os se chamou de trilogia do desejo de Almodóvar, outros dois pré-selecionados, “Mientras Dure la sendo os dois anteriores “A Lei do Desejo”, de Guerra”. de Alejandro Amenábar, e “Buñuel no 1987 e “Má Educação” de 2004. Neste de agora o Labirinto das Tartarugas”, de Salvador Simó, diretor revela o primeiro e impossível desejo, o Almodóvar no ano de 2000 já ganhou nessa entendimento muito sua categoria com o filme “Tudo Sobre Minha Mãe”( homoafetivade desenvolvida olhar Todo sobre mi madre/1999), sem dúvida uma desconfiado e reprovador de sua mãe, com quem obra prima e inesquecível, talvez o mais marcante manteve sempre a relação mais afetivamente desse diretor. Com certeza será um competidor de ligada em termos de afeto e tensão, e tenha peso ao prêmio que pelo Brasil será disputado preferido viver distante dela, decisão sobre a qual pelo filme de Karim Aïnouz, “Avida Invisível”, ela se queixa até o fim dos seus dias de acordo inspirado no livro de Martha Batalha “A Vida com a personagem do filme agora apresentado. Invisível de Eurídice Gusmão”(Cia das Letras) que O quadro que acaba por chegar em suas mãos ao foi o nosso indicado. Almodóvar neste ano de final de 2019 já levou pra casa o Leão de Ouro pelo descoberta, um carinho, um mistério que ele não conjunto da obra no Festival de Cinema de quer desvendar, mais valem as lembranças e Veneza. da história é discreto como de sob um o presente sonhos juvenis. Dor e Glória tem um aspecto que passaremos a Há no primeiro desejo uma força que moverá o abordar, ele se insinua muito discretamente, sem sujeito por toda sua vida, fica claro isso nas cores que seja abertamente apresentado, em seu tom de Almodóvar. . melancólico, às vezes soturno, aprofunda-se na questão das perdas e envelhecimento. 19 cinematerapia: volume 02 O protagonista, em sua visita ao médico, depois Almodóvar de resistir por muito tempo a procurar ajuda, diz- Mallo(Antonio Banderas/Asier Flores) se desnuda lhe que ainda não venceu dois episódios, a morte em da mãe e a cirurgia na coluna que fez logo depois. vulnerabilidade dos laços, cena emocionante fica a Agora terá que ser examinado e operado por cargo de Asier Flores que representa Salvador na conta de uma ossificação na coluna cervical o que infância, quando frente ao desejo imenso que se lhe provoca engasgos assustadores, doença de dá conta, desmaia e tem uma febre inexplicável causa desconhecida nomeada como Síndrome de sob o olhar ainda reprovador de sua mãe, e diga-se Forrestier que pela calcificação que causou elogios mil a como Penélope Cruz representa tão próxima ao esôfago, faz com quase nada de bem esse aspecto, sem exagero e sem omissão, líquido ou alimento consiga passar por ali. Um deixa tão claro que dói ver. via fragilidade, seu em protagonista, tudo que Salvador compõe a Almodóvar engasgado com algo, mesmo sempre dizendo tanto, é algo a se refletir a respeito de Como já foi apontado por muitos estudiosos, a uma geração que ainda teve que viver uma vida homofobia e a misoginia guardam muito em meio dupla em relação ao desejo que fugisse da comum. Que ousadia uma mulher envelhecer! norma aceita socialmente. Assim pensa nossa sociedade machista e misógina, onde o homem mais velho pode namorar e casar O filme quase sempre em meio tom de luz só se com uma moça jovem, mas o contrário é visto ilumina na parte das lembranças de infância, ali como uma afronta, como recentemente foi visto são subitamente inundada de muita luz, flores e numa saia justa diplomática criada por declarações cores. Mas retornemos ao aspecto que se passa vindas discretamente e que está ligado em parte à perda temporariamente o poder no Brasil. de mandatários que exercem da mãe, em parte na consciência do próprio envelhecimento. Na clínica, quase sempre, somos O mesmo encontra-se hoje uma parcela da levados a trabalhar com uma conscientização população LGBT. Muitos dos gays que puderam mais profunda quanto ao envelhecimento e assumir sua sexualidade estão envelhecendo, e existência da morte, quando um sujeito perde cada vez mais isolados ou afastados do que antes um dos pais, mais marcantemente quando perde era considerado o centro, há pesquisas que aquele que exerceu a função de cuidados mais apontam a questão da “volta ao armário” como próximos(nem sempre a mãe). Talvez esse filme estratégia de sobrevivência na velhice em muitos seja exatamente a declaração de Almodóvar, se casos, é verdade que também há inúmeros outros tomarmos ao pé da letra que é um filme casos dos que se assumem já na meia idade. O autobiográfico, de envelhecer chega para todos e com a liberdade consciência sobre a própria finitude, talvez daí sexual, a maior aceitação e todo o processo que também elementos vivemos seu tom prepararam para a velhice, porque não é fácil melancólico é ao mesmo tempo tão sereno, mesmo fazer isso. Os corpos que antes eram diferente do tom de exagero que costuma esculpidos a base de muita dieta e academia, imprimir às histórias que resolve contar. Porque quando não são mais os mesmos, trazem um é fato que um traço que atravessa o filme é o da sentido de perda e de menos valia. Com a serenidade. mudança, vem também a solidão. se necessários quanto possa para a sua procurar entender tomada os como 20 nos últimos anos, nem todos se cinematerapia: volume 02 As baladas e saídas noturnas, os múltiplos eventos A melancolia que atravessa o filme então se e viagens ousadas, não fazem mais parte de seu aproxima por demais do aspecto de solidão que cotidiano e o antes garanhão aventureiro terá que marca Salvador Mallo, que desistiu de seu amor encontrar sociais. por Federico por entender que os dois juntos e a Obviamente estes aspectos não dizem respeito a própria Madrid eram para eles uma composição Almodóvar, mas o envelhecimento de um sujeito tóxica, ao que se entende não voltou a amar gay que não pôde desenvolver uma relação daquela maneira. Diz em seu texto na peça afetiva duradoura é presente sutilmente e amarra anônima: “O amor não é suficiente. O amor pode a narrativa. Seu grande amor abandonado no mover montanhas...Mas não é suficiente para passado , Federico(Leonardo Sbaraglia) aparece salvar a pessoa que você ama”. E finaliza assim de surpresa para visita-lo, após assistir a uma como uma declaração que Almodóvar oferta ao peça que Salvador doou para que o ator de seu seu público: “Os filmes me salvaram”, talvez como primeiro filme de sucesso, Alberto Crespo(Asier uma declaração de amor ao seu espectador. Mas Etxeandia), levasse ao palco anonimamente em também declara que foi o amor que o fez colher relação ao autor do texto. Federico se reconhece mundo afora em suas viagens com Federico no personagem descrito e procura por Salvador aquilo que diz compor suas histórias. O amor Mallo. como via de descoberta do mundo, como foi o novas formas e relações primeiro de Salvador que o fez desmaiar e como Ao que se pode especular, talvez o personagem foi Federico que o fez desbravar o mundo e a de Alberto Crespo seja Antonio Banderas na vida própria sexualidade. de Almodóvar, ator que passou vinte e dois anos sem contato com o diretor após um consagrado O corpo move e impede, de inúmeras maneiras, filme, “Ata-me”( ¡Átame/1989) e retornou sob sua sua Dor e Glória. Almodóvar é esse diretor que, direção no intrigante “A Pele que Habito”( La Piel quase inexplicavelmente, consegue alcançar um que Habito/2011). público tão diverso, atinge diferentes camadas, é adorado por diferentes grupos, basta uma busca em páginas de cinema na web que facilmente isso é constatado. Seu afeto que transborda na tela, captura! Que a dor não o consuma e que nos oferte mais muito de sua glória! 20 cinematerapia : volume 02 Capítulo 05 Amor Por Direito (2015) Dirigido por Peter Sollett, com roteiro de Ron Nyswaner. Começamos português, pela reflexão maravilhosamente do título em adaptado e traduzido. Amar é um direito? Se sim, todos temos esse direito de forma igualitária em nossa Copyright: Gage Skidmore sociedade atual? Essa película, delicadamente e emocionalmente, nos mostrará que não. Muitos Ellen esteve no Brasil gravando um documentário de nós temos o direito de amar cerceado por chamado Gaycation, mostrando o universo LGBT uma minoria que ao longo dos séculos ocupa a ao redor do mundo. Ficou mais conhecida em posição de maioria, ditando tudo o que os nossas redes sociais ao entrevistar o Deputado Jair demais podem e não podem fazer, condenando Bolsonaro sobre tema e o ter enfrentado por suas tudo aquilo que os contraria, tornando suas declarações, classificadas por ela, como machistas, agendas pessoais e religiosas doutrinárias em misóginas e homofóbicas. normas e Leis. Obs: O nome correto hoje é Elliot Page, uma vez Antes precisamos falar de Ellen Page, mulher que informou publicamente que é um homem com cara de menina ainda, com seus 30 anos trans. O artigo foi publicado muitos anos antes tem se tornado uma gigante do ativismo. Além dessa informaçao. de atriz ,é produtora e diretora e tem se envolvido relacionadas cada vez a gênero, mais nas questões especialmente A história desse filme, que é baseado em fatos reais e em bem recentes, apresenta a policial Laurel Hester questões ligadas ao feminismo. Sua carreira tem interpretada por Julianne Moore em mais uma de tudo um pouco, tendo despontado bastante magnífica interpretação, que trabalhou durante 23 em filmes de ficção, como X-men e Menina anos para a polícia, sempre se destacando por seu Má.com, com uma personagem bem sombria. duro trabalho e posicionamentos éticos, e que tem Altamente reconhecida, indicada e premiada em uma relação estável com a mecânica Stacie Andrie diversos momentos da sua carreira, teve um interpretada de forma comovente por Ellen Page, ápice ao se assumir publicamente homossexual que ao ser diagnosticada com um câncer de pulmão em 2014 em uma conferência, sendo uma das em estágio terminal começa sua luta para deixar sua artistas atuais que pretende fazer a diferença pensão para sua parceira. nesta área, mostrando exemplos de pessoas bem sucedidas e fora do armário, militando pela saúde mental de jovens LGBT. 22 cinematerapia: volume 02 Sua reivindicação se transformará, sem mesmo O único a pensar a questão sob uma ótica mais que ela deseje isso, em um marco para que se aberta, o conselheiro Bryan Kelder(Josh Charles, o pleiteie o casamento de parceiros do mesmo sexo William Gardner de Good Wife), marca pouco sua nos Estados Unidos. Conta a produção ainda com posição, representando assim toda uma sociedade excelentes Michael que por acomodação se cala frente à ferocidade da Shannon(O Abrigo) como seu parceiro na polícia homofobia e de um conservadorismo que rouba e Steve Carrel como o rabino gay ativista Steven direitos. participações como de Goldstein, que levará com estardalhaço a luta do casal para o conhecimento público. Na vida real já ganharam os noticiários inúmeros casos onde a questão da morte do parceiro deixa Delicadamente a produção traz a tona alguns totalmente descoberto seu par, dando início questionamentos importantes nos dias de hoje. muitas vezes a disputas com seus familiares que São a em grande parte até sua morte haviam segregado diferença. Começamos com uma cena que onde do seu convívio esse parente por conta de sua o chefe de polícia parabeniza e cumprimenta orientação sexual(ou ainda por identidade de apenas o parceiro de Laurel pelo bom trabalho, gênero). Ou ainda quando é preciso tomar deixando-a não decisões sobre um paciente que se encontra reconhecendo igual importância na resolução do inconsciente e o parceiro ou parceira é excluído caso. Aprendemos que Laurel, na adolescência, por não ser considerado parente. Casamentos que ao se assumir homossexual, foi trancafiada em duraram décadas frente à morte perdem todo o uma assim, direito, se tornam invisíveis, trazendo uma dor grandes dificuldades em se assumir publicamente lancinante e ressentimento para quem com isso como lésbica. Ou ainda na cena do hospital, tem que conviver. Um outro filme belíssimo que quando Stacie se apresenta como companheira e se aprofunda nos sentimentos angustiados dessa a médica informa que aguardava um familiar. invisibilidade é o “Direito de Amar”(A Single Pequenos detalhes....não tão pequenos assim. Man/2009). No caso de Laurel e Stacie é diferente pequenos detalhes em instituição que segundo fazem toda plano psiquiátrica, e tendo essa história, ambas contam com o apoio de Se pensarmos em sua história pura e familiares, a irmã de Laurel e a mãe de Stacie se simplesmente, seria apenas mais um drama, um tornam muito presentes, amparando-as. casal amoroso que se vê às voltas com a iminente morte de um dos parceiros. O que traz o Fato é que ao se negar direitos a cidadãos o que se diferencial e transforma a narrativa em um prega é uma norma social, neste caso o da roteiro de luta, ocorre por conta de toda a tolerância sob rigorosos marcadores, os colegas de estrutura preconceituosa que ainda insiste no seio Laurel significam esse aspecto, inclusive um deles social, que se recusa a reconhecer como legítima que sendo gay sente-se ainda mais impelido a a união de parceiros do mesmo sexo. negar-se a solidarizar-se por conta disso poder ser visto como um algo que o despiria de seus O que se precisa ter em mente é que a discussão disfarces, ele verbaliza isso para o parceiro de sobre crenças religiosas não pode invadir o Laurel, Dane Wells(Michael Shannon) oferecendo espaço dos direitos cidadãos, o filme focará uma solidariedade que não poderá ser revelada também aos outros sob pena dele negar tudo. neste aspecto através de um dos Conselheiros do condado, Bill Johnson(Tom McGowan), um dos que decidirão sobre o pedido de Laurel. 23 cinematerapia: volume 02 Este é um dos aspectos interessantes que o filme Cada personagem, por menor que seja sua revela como ótimo ponto de reflexão, é comum participação, que isso se apresente na vida cotidiana sem com complexo caleidoscópio que no real segrega uma isso levar a que se erga uma reflexão mais parcela considerável da população, mesmo nos amplificada do quanto é amputar de um sujeito países que se pensam como mais civilizadamente parte de si, há essa exigência entre até mesmo os avançados, veja que esse caso se passa nos Estados que se pensam como mais flexíveis, tipo: seja Unidos, país considerado como um referencial de homossexual, mas mantenha-se discreto, não democracia e direitos cidadãos. demonstra algum aspecto desse demonstre publicamente sua forma de amar e não exija direitos iguais aos heterossexuais. Julianne Moore compõe sua personagem mais Quanto conservadorismo costuma levantar um uma vez de forma convincente, há em sua casal homoafetivo que passeia de mãos dadas ou aparência todo o embate entre a exigência que demonstra afeto em público como outros casais sempre se fez de manter “no armário” sua heterossexuais qualquer privacidade e tudo aquilo que constrói sua forma questionamento. Já houve um tempo que essa de ser no mundo. Entre as roupas e cabelos que regra buscam também fazem se sem aplicava a casais inter- uma aparência até extemporânea, também conservadora, até o que a doença irá revelar, sua baseado em caso real). Lemos com frequência força e necessidade de dizer publicamente quem é nos foram de forma integral. Será a jovem parceira Stacie, violentamente eficientemente trazida à tela por Ellen Page, quem reprimidos apenas por demonstrações simples de provocará essa revolução nos modos de Laurel carinho em público. que em nome do amor enfrentará questões que raciais(veja o noticiários repreendidos filme “Loving”/2016, casos ou de casais mesmo que até então preferira manter no ocultamento. CalarLaurel insiste na sentença: igualdade. Sim, é disso se tem um alto preço, sabe-se disso, inclusive que se trata, igualdade de direitos. A palavra como agravante nos adoecimentos físicos. tolerância é um mal que temos que combater, quem tolera, tolera algo que já reconhece como Cena comovente que fecha esses questionamentos um diferente de menor valor. Por mais que a se dá no cartório onde Laurel e Stacie oficializam intenção possa parecer boa, é preciso ver que a sua união civil, primeiro pelo tom antipático da questão dos direitos legais dos homoafetivos não funcionária que realiza a união e depois quando tem nada a ver com tolerância, mas sim com na porta do estabelecimento querem comemorar isonomia. Ao que se sabe, orientação sexual não isso, mas olham para todos os lados antes de se dá direito a desconto no Imposto sobre Renda, tocarem muito discretamente. Amplie a cena para por algum outro filme com um casal heterossexual, a exemplo, então não há qualquer argumentação possível no sentido de que se teria cena que aceitar direitos a menos pela forma como se confraternizando, uma verdadeira ode ao amor. ama ou se vive a sexualidade(ou identidade de gênero). Neste sentido o filme desenha a questão, dá nome ao que precisa ser nomeado, apresenta as incoerências e forças em embate sobre a questão. 24 teria música, passantes sorridentes cinematerapia: volume 02 É justamente nesse tratamento desigual que o Por se tratar de um filme baseado em fatos reais é filme centra seu foco, muito competentemente, muito difícil conter a emoção. Chorar com a diga-se. no história de amor das duas e sua luta pela igualdade cotidiano a existência de diferentes composições é quase que um movimento natural ao filme. Que amorosas é um ato de luta, nada fácil, diga-se, a mensagem de Laurel seja mais ouvida e porque com isso expõe e magoa a quem enfrenta difundida. Fica a frase mais marcante do filme as situações. Stacie que até quase ao final só para reflexão: “Nao pedimos por tratamento enfrenta a questão por conta da insistência de especial, Laurel, entende finalmente como passar por tudo acrescentaríamos, visibilidade cidadã. aquilo Sem que dúvida que enfrentaram hoje era afirmar como pedimos por IGUALDADE” e uma declaração de amor, da existência dele entre elas. A psicanálise já lá desde Freud despatologizou a homossexualidade que passa a ser abordada Aqui no Brasil “em maio deste ano o STF em apenas sede de Recursos Extraordinários (RE 646721 e orientação da libido, segundo o cerne de onde 878694), declarou inconstitucional o artigo 1.790 parte o desbravador pesquisador e fundador da do Código Civil brasileiro. O artigo prescreve psicanálise, na verdade a heterossexualidade seria diferentes regras sucessórias para cônjuges e tão incompreensível quanto a homossexualidade, parceiros”(fonte:Justificando nov/17). No filme uma vez que constitucionalmente o ser humano ficará informado que em 2015, vejamos que seria bissexual, a passagem pelo Complexo de recente isso, nos Estados Unidos se chegava a essa Édipo muito tem a ver com a predominância da conclusão, quando então foi declarado que: “o orientação sexual(e identidade de gênero), mas direito de se casar é um direito fundamental hoje inerente à liberdade da pessoa sob as Cláusulas determinam essa predominância. do Devido Processo Legal Justo e da Proteção com o trecho inicial da conhecida carta de Freud a Igualitária da Décima Quarta Emenda, os casais uma mãe de homossexual(abril/1935) que fala da do mesmo sexo não podem ser privados desse invisibilidade da questão e de sua leitura sobre direito e dessa liberdade“. No Brasil de há bem tudo isso: como sabemos uma que das outros possibilidades fatores de também Finalizamos pouco tempo, quando então não enfrentávamos essa onda retrógrada que vimos se fortalecer Minha querida Senhora, neste ano, a nossa Justiça determinou que fosse obrigatório aos cartórios realizar o casamento Lendo a sua carta, deduzo que seu filho é entre pessoas do mesmo sexo, ampliando assim a homossexual. questão da União Civil. Embora a questão na lei atenção o fato de a senhora não mencionar este avance, vemos que na vida comum estamos ainda termo na informação que acerca dele me enviou. muito longe de alcançarmos uma igualdade de Poderia lhe perguntar por que razão? Não tenho tratamento. Frequentemente somos informados dúvidas que a homossexualidade não representa sobre se uma vantagem. No entanto, também não existem declararem gays com manifestações afetivas, até motivos para se envergonhar dela, já que isso não mesmo quando isso se dá apenas em suas redes supõe vício nem degradação alguma. casos de pessoas demitidas por sociais ou círculo íntimo, pessoas expulsas de bares, padarias, restaurantes, por esse motivo, fora o grande circuito de violência que alimenta nossas aterradoras estatísticas em relação à população LGBT. 25 Chamou fortemente a minha cinematerapia : volume 02 Capítulo 06 Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014) Depois do grande sucesso do curta metragem “Hoje Eu Não Quero Voltar Sozinho Pra Casa”, o diretor e roteirista Daniel Ribeiro se lançou a produção desse longa. Copyright: FICG.mx A troca no título já dá conta do amadurecimento A chegada de Gabriel vem a abalar a relação entre proposto pelo roteiro e houve por conta disso eles, provocando inicialmente uma vivência de grande expectativa em relação ao lançamento do ciúme e de perda de lugar por sua amiga. Leo vive a filme que não deixou a desejar, de maneira vida escolar no modelo mais completo de inclusão, envolvente e assim como no curta, gentil e tendo como diferença na sala de aula sua máquina delicadamente, manda seu recado super bem. de escrever em Braille que possibilita suas anotações. Um filme que pode lançar temas para debates sob variados aspectos, o primeiro amor, a busca Todo o filme é generoso, faz tocar no espectador a pela autonomia na juventude, a vivência de lembrança dos medos adolescentes em relação a limitações físicas na adolescência, a relação de superproteção orientação que sexual impede que o aceitação, a relação amorosa, e não adocica a ponto crescimento, desponta com de estragar a mistura, mas consegue ao mesmo a tempo permanecer na linha do romântico juvenil, sexualidade, relações de poder em grupos jovens resgata uma crença nas boas coisas que amar pode (com ou sem bullying) e tantos mais outros. Um conter. Apresenta uma harmonia que permanece caleidoscópio generoso da vida de adolescentes, como forte fio mesmo nos momentos de conflito classe média, em um grande centro do Brasil. entre os personagens. Enfim, um filme doce e generoso. Leonardo (Ghilherme Lobo), Gabriel (Fabio Audi) e Giovana (Tess Amorim) são os três Então vamos lançar a questão que gira em torno do personagens que conduzem a história. Tudo se questionamento do fato dele ter criado alguma passa entre a sala de aula, a casa e alguns passeios que nossos portador de jovens farão. deficiência Leonardo visual que desde polêmica. Inserimos então a produção em um Brasil é que anda às voltas com temas que até então preferia seu “deixar no armário”. nascimento e por tal fato muito controlado e protegido por sua família, tem em Giovana a grande amiga que facilita muito sua vida entre casa e escola. 26 cinematerapia: volume 02 É justamente nesse tratamento desigual que o Por se tratar de um filme baseado em fatos reais é filme centra seu foco, muito competentemente, muito difícil conter a emoção. Chorar com a diga-se. no história de amor das duas e sua luta pela igualdade cotidiano a existência de diferentes composições é quase que um movimento natural ao filme. Que amorosas é um ato de luta, nada fácil, diga-se, a mensagem de Laurel seja mais ouvida e porque com isso expõe e magoa a quem enfrenta difundida. Fica a frase mais marcante do filme as situações. Stacie que até quase ao final só para reflexão: “Nao pedimos por tratamento enfrenta a questão por conta da insistência de especial, Laurel, entende finalmente como passar por tudo acrescentaríamos, visibilidade cidadã. aquilo Sem que dúvida que enfrentaram hoje era afirmar como pedimos por IGUALDADE” e uma declaração de amor, da existência dele entre elas. A psicanálise já lá desde Freud despatologizou a homossexualidade que passa a ser abordada Aqui no Brasil “em maio deste ano o STF em apenas sede de Recursos Extraordinários (RE 646721 e orientação da libido, segundo o cerne de onde 878694), declarou inconstitucional o artigo 1.790 parte o desbravador pesquisador e fundador da do Código Civil brasileiro. O artigo prescreve psicanálise, na verdade a heterossexualidade seria diferentes regras sucessórias para cônjuges e tão incompreensível quanto a homossexualidade, parceiros”(fonte:Justificando nov/17). No filme uma vez que constitucionalmente o ser humano ficará informado que em 2015, vejamos que seria bissexual, a passagem pelo Complexo de recente isso, nos Estados Unidos se chegava a essa Édipo muito tem a ver com a predominância da conclusão, quando então foi declarado que: “o orientação sexual(e identidade de gênero), mas direito de se casar é um direito fundamental hoje inerente à liberdade da pessoa sob as Cláusulas determinam essa predominância. do Devido Processo Legal Justo e da Proteção com o trecho inicial da conhecida carta de Freud a Igualitária da Décima Quarta Emenda, os casais uma mãe de homossexual(abril/1935) que fala da do mesmo sexo não podem ser privados desse invisibilidade da questão e de sua leitura sobre direito e dessa liberdade“. No Brasil de há bem tudo isso: como sabemos uma que das outros possibilidades fatores de também Finalizamos pouco tempo, quando então não enfrentávamos essa onda retrógrada que vimos se fortalecer Minha querida Senhora, neste ano, a nossa Justiça determinou que fosse obrigatório aos cartórios realizar o casamento Lendo a sua carta, deduzo que seu filho é entre pessoas do mesmo sexo, ampliando assim a homossexual. questão da União Civil. Embora a questão na lei atenção o fato de a senhora não mencionar este avance, vemos que na vida comum estamos ainda termo na informação que acerca dele me enviou. muito longe de alcançarmos uma igualdade de Poderia lhe perguntar por que razão? Não tenho tratamento. Frequentemente somos informados dúvidas que a homossexualidade não representa sobre se uma vantagem. No entanto, também não existem declararem gays com manifestações afetivas, até motivos para se envergonhar dela, já que isso não mesmo quando isso se dá apenas em suas redes supõe vício nem degradação alguma. casos de pessoas demitidas por sociais ou círculo íntimo, pessoas expulsas de bares, padarias, restaurantes, por esse motivo, fora o grande circuito de violência que alimenta nossas aterradoras estatísticas em relação à população LGBT. 27 Chamou fortemente a minha cinematerapia: volume 02 O recente furor em torno do chamado de “beijo Na linha religiosa alimentando a falácia de não gay” em novelas televisivas dá o tom desse aceitar o pecado, mas acolher o pecador em seu debate, ao mesmo tempo que, vemos avançando obrigatório sofrimento. No filme todo e qualquer todo um setor conservador que grita e esperneia sofrimento não nasce em qualquer ligação com a contra as mudanças que recentemente vêm orientação sexual e sim na vivência que há em alterando progressivamente o panorama moral qualquer grande aventura que significa amar com que até então sustentava as relações socialmente desejo pela primeira vez. aceitas. Os pais de Leo, Laura(Lúcia Romano) e Dos bares ao Congresso Nacional, a sexualidade e Carlos(Eucir de Souza) formam um casal aquilo que entendemos como usual está na modelo mais tradicional que se possa erguer, pauta, discutido e revirado, levando inclusive ao zelosos e amorosos procuram cercar o filho de um desplante cuidado de um grupo de parlamentares onde a questão da diferença no pela religiosos defenderem a derrubada de uma deficiência visual pode, inclusive, ser questionada Resolução de por ele. A cena do fazer a barba com a ajuda de seu Psicologia, apoiada em orientações da OMS e pai antes da festa é uma boa exemplificação do APA a quanto a orientação sexual e da identidade de homossexualidade como patologia e oferecer as gênero fogem ao estereótipo que por muito impossíveis da tempo acompanhou o modelo de homossexual homossexualidade que já foi desacreditada até que o social quer ver como único. A questão da mesmo por um dos seus principais divulgadores, orientação homo afetiva não necessariamente Robert Spitzer. Aparentemente algo ultrapassado recai em uma identificação com o gênero oposto, e medieval mas que aparece semanalmente nos muito pelo contrário, o prefixo homo quer dizer consultórios e nos serviços de saúde: pessoas que amar e desejar um sujeito do mesmo sexo buscam (gênero). Hoje sabemos que encontraremos tanto 001/99 que do proíbe ao terapias "reversão" encaminhadas Conselho por psicólogo de da Federal tratar reversão sua pastores, com sexualidade, promessas na orientação homo como hetero variações milagrosas de que existe uma "cura" para uma complexas nas combinações de identidade, tendo doença que sequer existe. como ápice dessa exemplificação a transsexualidade que pode combinar ou não Se há algo que Leo e Gabriel nos fazem entender orientação e identidade de gênero. Alguns filmes no filme é o quanto o afeto que os aproxima é como “Normal”(2003), “Transamérica”(2005) e legítimo e “natural”, sem traumas ou abusos que “Laurence fundamentem qualquer colocação de dúvida a questão de forma exemplar. Temos ainda aqui na respeito de algo que se conduz, desliza, próprio atualidade o genial quadrinista Laerte Coutinho da linha do desejo. Talvez isso tenha sido pra esquentar ainda mais o debate do tema. Anyways”(2012), apresentam essa realmente um incômodo aos homofóbicos de plantão, que até aceitam discutir a orientação A poesia de Drummond atravessa nossa história e homo afetiva, desde que se problematize a parafraseando questão, desde que se tente dar um nascedouro Leonardo que amava Gabriel que era amado por da pulsão como algo que teria sido, de alguma Karina (Isabela Guasco) e amava Leonardo, e no maneira, “acidentado”. filme, esperançosamente, fechando um círculo e teremos Giovana que amava formando um casal apaixonado, que aventurandose nas descobertas da primeira relação amorosa, abre as portas para o mundo, para tudo aquilo que antes não era enxergado ou sequer suposto como 28 possível, como saber do eclipse ou andar de bicicleta. cinematerapia: volume 02 Amor esse refúgio que faz valer a vida dos Na verdade em uma linha afirmativa, necessária, absurdos que temos que enfrentar, que atenua a até mesmo na condução de uma psicoterapia que hostilidade que atravessa a caminhada, como os lide com a inclusão da questão do enfrentamento colegas da escola dos meninos. O primeiro do mundo pelo ser de orientação homo afetiva, assumido que precisamos de mais filmes como esse, que não se transmite aquela sensação que só quem se pretende uma obra de “luta”, mas que apenas aventurou na terra do amor pode reconhecer, apresenta a vivência simples e direta de um aquele momento único onde tem-se a sensação sujeito(na obra um adolescente), no qual uma das de ter encontrado ali um lugar, um porto características é ser gay (como o faz também a acolhedor e seguro. Um porto que antes de ser série “Looking), isso não o descreve como um uma chegada é bem mais um abastecimento para todo, não o faz identificar-se apenas por esse a partida para a vida, para a grande aventura que prisma, pelo contrário, ao afirmar sua orientação é ele descortina sua singularidade de maneira abraço experimentar entre as Leo e ações Gabriel do cotidiano compartilhado. ampla, como a olhar para um espelho que une todos os seus elementos. Um adolescente que bravamente quer conhecer o mundo do vínculo amoroso, como ele é A forma direta e simples como Giovana lida com a construído, a conversa que tem com sua avó revelação (Selma Egrei) aponta para essa busca, para a apontam possibilidade do encontro, do cuidado que cada significativa dos par empreende ao longo de sua caminhada. Leo descobertas efervescentes quer autonomia, sua avó pondera sobre sua adolescência de uma maneira bem mais direta, pressa, sem culpar ou acusar, acolhe a ansiedade menos encoberta ou obediente a muitas regras. do neto de forma muito carinhosa, como a dar Sabemos que a vivência da homossexualidade, da um juventude, bissexualidade ou ainda outras experimentações relembra sua vida, como conheceu seu marido, de identificações de gênero têm sido um forte como iniciaram a história de amor que funda os marcador em variados grupos de jovens, mais laços que levaram até a existência do neto. De marcadamente certa maneira informa o traço cauteloso de sua Sabemos do quanto a adolescência se une em filha grupos, toque Laura, da peculiaridade muito anterior da ao excesso de remete-nos para em o a fato muitos de jovens em tribos, que hoje da grandes que relatos uma lida parcela com as sexualidade na centros se que urbanos. identificam por cuidados que na atualidade invade o mundo comportamentos e gostos(onde a música é um interno de Leo. Um traçado histórico ajuda e forte muito a criar alternativas para o presente, muitas conservadora, quase sempre ligada a grupos das vezes para que possa ser composto precisará religiosos, querendo desenterrar a velha questão da ajuda de um psicoterapeuta, até porque nem do casamento virgem, obviamente heterossexual, todas as famílias podem abrir suas recordações em algo que já virou movimento denominado de de “Eu Escolhi Esperar” ao qual uma parcela diz forma tão serena, como vimos aqui recentemente abordando outros filmes. aderir. 29 marcador). Reage a isso a linha cinematerapia: volume 02 Na contramão dos avanços mais importantes de tomada do corpo, grupos como esse significam a defesa de tudo aquilo que descamba e alimenta os piores pontos de angústia e sofrimento no adolescente e que mostra seu manifesto nos preconceitos erguidos, um dos quais, a homofobia, que agride e mata uma significativa parcela da população no Brasil todos os anos. O ressentimento dos que não podem amar livremente é uma terrível ameaça aos que amam abertamente. Como veremos no filme nos personagens que formam o grupo que persegue Leo e Gabriel. O filme que parece singelo traz então dentro de si muitos méritos, com certeza faz o espectador acabar de assisti-lo com um gostoso sorriso no rosto, se jovem com mais coragem para suas buscas, se não cronologicamente mais tão jovem, fazendo-o lembrar do quanto é boa a ingenuidade da crença no grande amor. Sua mensagem mais forte será a de resgatar uma fé no capacidade de vínculo que faz com que cada um de nós prossiga sempre, porque é verdade que amamos para sobreviver às mediocridades do cotidiano. Um filme sobre primeiras experiências, das mais variadas possíveis. A coragem é filha dileta da nossa capacidade de amar o outro, se entregar plenamente, compartilhar, e Leo e Grabriel com toda certeza merecem nossos aplausos. Encerramos com a sensação do filme, com a esperança na salvadora mudança , em uma civilização menos mal estar e mais amor, como diria o velhinho sabido em carta para sua amada noiva Martha Bernays(27 de Junho, 1882 ): “Como é ousado aquele que tem a certeza de ser amado."(Sigmund Freud) Um filme sobre primeiras experiências, das mais variadas possíveis. 30 cinematerapia: volume 02 Capítulo 07 Uma Nova Amiga (2014) Do mesmo irreverente diretor de "Jovem e Bela" (Jeune & Jolie/2013), François Ozon convida para reflexões polêmicas, em mais uma potente cutucada. Copyright: Georges Biard Pensar fora dos padrões tradicionais parece ser O diretor assina o roteiro levemente inspirado no uma constante marca que o trabalho de Ozon livro homônimo de Ruth Rendell e a partir da vem amadurecendo e que provocou com o seu escritora inglesa move uma película com tensão e filme anterior(citado acima) ou com seu “Dentro reflexão com toques quase almodovarianos, faz do de o preconceito no sentido literal do termo, o caminho deliciosamente instigante “Postiche – Esposa do suspense e dos segredos compartilhados entre Troféu”(Postiche/2010) Claire(Anaïs Casa”(Dans Deneuve(a la Maison/2012), que trouxe com a diva Demoustier ) e sua nova amiga Belle de Jour) ao Brasil para o Virgínia(Romain Duris). A vivência do luto profundo deslumbre dos frequentadores do Fest Rio 2011, pela morte prematura de sua amiga de infância ou seu Laura (Isild Le Besco) e de manter a promessa feita a reconhecimento mundo afora o “8 Mulheres”(8 ela de cuidar de sua filha recém nascida e do marido Femmes/2002). George, fará com que Claire mergulhe em uma ainda com o filme que marcou profunda viagem que a levará ao questionamento de Vemos, mais uma vez, o diretor tratar de uma seus próprios enlaces amorosos. maneira delicada um tema que costuma gerar forte resistência, imprime a ele um humor O filme abre sua perspectiva pegando o espectador agradável. Em certos aspectos poderá remeter ainda naquela modorra de início e já o avisa quanto aos também ricos “Laurence Anyways”(2012) de ao inusitado com uma das cenas mais belas e mais Xavier Dolan, “Transamérica”(2005) de Duncan impensavelmente bem construídas do cinema dos Tucker, “Normal”(2003) de Jane Anderson ou últimos anos. Vemos uma jovem noiva sendo mesmo aos já clássicos “Priscila A Rainha do carinhosamente preparada com esmero e a câmera Deserto”(1994), de Guy Gross e “Para Wong Foo, vai se afastando e o que o espectador se defronta faz Obrigada por Tudo! Judie Newmar”(1995) de com que se ligue rapidamente, de supetão, ao filme Beeban Kidron. Neste que abordaremos no que se propôs a assistir. Vemos Laura(Isild Le Besco) texto, Ozon fornece ao espectador com uma que é a personagem que correrá todo o tempo como dose de ocitocina(o hormônio do amor), toque linha que costura a história que assistiremos, em seu de suspense e bom gosto uma verdadeira caixão fúnebre, e então unidos pela dor da perda de compreensão Laura, Claire, a melhor amiga e George, o viúvo, sobre a diferenciação entre orientação sexual, identidade de gênero, papel mergulharão social, sexo biológico e desempenho sexual. acomodadas nos laços acolhedores com Laura. em suas verdades que eram Desamparados buscarão em uma aliança pelo que 31 não tem caixa que caiba, desafiando-se mutuamente em suas fragilidades e potências. cinematerapia: volume 02 Dessa maneira mergulha o espectador na Virgínia é puro prazer com sua primeira saída às transformação gradual que George irá operando compras, cumplicidade que Claire permite que se em busca de realizar a forma como sempre se desenvolva entre elas, vai no caminho dessa enxergou e que confidencia a Claire que Laura possibilidade sabia antes mesmo de se casarem. O mundo ausência de Laura, mas com o aprofundamento da feminino será visitado em seus aspectos mais relação entre elas se verá algo bem maior que uma sedutores, tornados pela personagem Virgínia em mera substituição emocional. George explica para algo muito repleto de atrativos e força. De Claire quando ela o surpreende pela primeira vez crossdresser a uma inegociável identidade de que, enquanto casado com Laura, ele havia gênero o filme convida a pensar na anarquia deixado adormecido seu desejo por vestir-se pulsante que insiste no desejo, que denuncia-se como mulher e diz: “A presença, a feminilidade ainda mais fortemente quando não segue o script dela, me completavam”. Talvez esta fala resuma a de uma normalidade imposta por uma maioria. grande homenagem que esse filme acaba por ser do vazio afetivo deixado pela para tudo aquilo que toca o feminino em sua O filme encontra um momento na atualidade que reprodução de papel social, a todos os marcadores vive em extremos, por um lado há hoje em do que é visto como feminilidade para o coletivo, alguns lugares do planeta e entre segmentos a impossível invisibilidade que uma mulher sociais uma maior acomodação do que foge à assume regra heteronormativa fundada na pura biologia corporalmente o que se entende como feminino, dos órgãos genitais, e por outro lado, e até ao mesmo tempo forte presença e ao mesmo mesmo por isso, vemos erguer-se quanto ao que tempo fragilidade e desamparo. A presença de foge ao padrão aceito como normal um ataque, Laura introjetada e exteriorizada acalma aos três, via de regra, violento. Se pensarmos no noticiário George, Claire e Lucie a bebezinha órfã da mãe. recente em nosso país veremos como isso se Claire abre sua aceitação ao receber chamada encontra extremamente polarizado e teremos telefônica de George e mudar o nome de seu que constatar, infelizmente, que ainda somos um contato para Virgínia. quando traz pra si representar país extremamente conservador, um país que também apresenta um traço de misoginia Claire e Virgínia conquistam o shopping ao som marcante e que, talvez por isso mesmo, trata os de Katy Perry, entoando: “You change your mind. transgêneros e/ou Like a girl changes clothes...”. A troca de roupas desprezo. Nossos índices de violência cometida que abre uma nova perspectiva de vida, trazendo a contra os transgêneros e travetis é alarmante, feminilidade não somente para Virgínia, mas precisam com como se pode observar, também para Claire, que elementos que permitam que se possa conquistar passará a se preocupar com tonalidade de batom, alguma ventilação em ideias emboloradas mais vestidos que pouco usava, trejeitos e tudo que por crendices arraigadas que por conhecimento e marca o reconhecimento do que é se apresentar informação. Neste aspecto esse filme pode ser como mulher ao mundo. A grande aventura de uma útil ferramenta porque traz em si todas as Virgínia será ganhar um pequeno mundo, entre qualidades de entretenimento ao mesmo tempo lojas e compras a realização da identidade que que um convite a um pensar diferente e muita busca. ser com tanta pensados, agressividade questionados, empatia pelas personagens. 32 cinematerapia: volume 02 Felizes com as compras irão ao cinema, e Virgínia Virgínia toma a cena definitivamente, George não sofrerá o seu primeiro assédio a partir desse lugar retornará, feminino que ocupa, excita-se, o que deixa Claire desarrumará de vez qualquer certeza que ainda enciumada(ainda sem se dar conta disso), e carregue o espectador dentro da caixa na qual questionada homens, socialmente somos treinados a pensar o desejo responde categoricamente que não, e que a cena humano. Por mais que construamos uma cultura do cinema a havia excitado pela fato daquele baseada em identificações fixas e dadas como homem percebê-la como uma mulher, e que normas, somos obrigados a pensar que o desejo desejava tanto as mulheres que queria ser igual a não tem regras definitivas e que escapa e desliza elas. Aqui vai um esclarecimento necessário que de inúmeras maneiras. Se, por um lado, isso pode fala de que a identidade de gênero não tem ser assustador, por outro, relação direta com orientação sexual, isso põe por essa é a natureza humana e talvez aquilo que nos terra o estereótipo do gay afeminado como único faz modelo possível, é um dos, mas não o único e de inúmeras saídas para os obstáculos que se enfrenta que toda mulher transgênero deseja um homem, no ato de viver. por ela se gosta de mais e a finalização inventivos, dessa história podemos pensar que mais capazes de criar há casais homoafetivos onde umx dxs parceirxs é trans. São inúmeras as possibilidades onde o Passam-se sete anos e encontramos duas mães, afeto desliza junto ao desejo. Virgínia e Claire, que buscam Lucie na escola, Claire agora grávida. Essa família encontra um O marido de Claire, Gilles(Raphaël Personnaz), lugar no mundo, talvez não o da maioria, mas um começa a desconfiar de algum segredo, ao que lugar de afeto tão legítimo como outro qualquer. Claire se defende dizendo que George é gay, Seguem em seu caminho de mãos dadas, dando o acalmando os ciúmes de seu parceiro. Mas recado de que podemos e devemos pensar em George não se reconhece nessa orientação, ele, diversidade como algo que faz parte do percurso ainda que cada vez mais Virgínia, permanece humano, que o afeto é na verdade o que constrói o desejando o objeto feminino. Em determinado caminho onde seres desejantes encontram o que ponto identidade faz a vida valer a pena. Uma família homoparental masculina, volta ao trabalho e se afasta de Claire onde o que menos contará é o sexo biológico com que se dará então conta que sente falta de sua o qual vieram ao mundo. ele tenta retornar à sua nova amiga e chama Virgínia de volta. O encontro dos dois leva ao desejo que descobrem O filme se apresenta ao espectador como um e então se dá a cena que confundirá ainda mais o excelente obra que entretém e faz pensar e com já atônito espectador, uma vez que ao iniciarem um agradável clima, torna-o cúmplice de Virgínia seu envolvimento sexual, Claire se dá conta do pelas escolhas de Claire e inspiração de Laura, orgão genital de Virgínia e foge dizendo que ela é envolve em um tema que ainda mexe com um homem. Virgínia nega, ela é uma mulher, é certezas arraigadas, faz isso de forma precisa e dessa forma que se reconhece. Atordoada sofre eficiente sem perder a ternura, e com coragem. um acidente que revela a todos sua identidade. Em coma, não quer retornar o que só acontecerá quando Claire a veste de Virgínia. Há uma conversa entre George e Gilles, onde este diz que tinha receio de não ser amado por Claire por conta do grande envolvimento que via entre ela e Laura, denunciando assim perceber o homoerotismo dela. 33 cinematerapia: volume 02 Sabemos que a estrutura nuclear sobre a qual nos erguemos repensada, maneira, podemos ainda está longe representada mas dentro incluir de dela, o fato de poder alguma sem de ser outra perdê-la, um certo afrouxamento nos espartilhos que causam mais dor do que alívio, porque segregar traz sofrimento a todas as pontas, aos que segregam e aos que são segregados, aumenta uma tensão que poderia ser evitada por novas negociações. Ao se tornar um crítico ácido das formas conservadoras das sociedades ocidentais, principalmente da classe média francesa, Ozon colabora para que paremos pra pensar algo que andam “sussurrando em versos e prosas(...)que estão falando alto pelos botecos(...)o que não tem governo nem nunca terá.” Como Claire e Virgínia, rendendo com Ozon uma homenagem ao feminino como o que resgata a potência de desarrumar, cantemos “Une Femme Avec Toi”, sorrindo, porque é possível construir um universo particular de alguma alegria, mesmo frente ao desamparo que a posição feminina marca. 34 cinematerapia: volume 02 Capítulo 08 A Pele que Habito (2011) Essa obra é uma daquelas que dizer que é surpreendente, mesmo em se tratando desse cineasta, é algo que não contempla nem pela metade a dimensão que contém. Copyright: Petr Novák, Wikipedia Ela é apaixonante! Passeia de tal maneira pelos subterrâneos do humano que cria ao longo do Um bom exemplo e convite à reflexão é a alusão às filme esculturas de Louise Borgeois, detalhe que nos foi uma causando tensão em quase alguns uma que insuportável, necessidade de passado pelo olhar observador de uma colega descarga ao seu final e que aparece quando os psicanalista, Vânia Otero, a quem agradecemos pela créditos sobem e ouvimos discretos risos que dica. Outro detalhe interessante é o da coincidência poderão ir num crescente até chegar a um sutil de que seja a música que toca no momento da festa gargalhar. Compreensível fenômeno, já que é em que a filha sofre o episódio que alimentará toda quase impossível conseguir levantar da poltrona a trama, a mesma, Petit Fleur, que conduz a magia após vivenciar o que o diretor nos apresenta em do filme Meia Noite em Paris, e indo, em direção uma sucessão de cenas inacreditáveis e falas que oposta ao encantamento daquele, apresenta-nos à cutucam com humor nossas mais profundas crueza e perversidade que também compõe o “entranhas” emocionais. universo humano, e filmado por um Almodóvar sem pudores. Antonio Banderas está magnífico em seu personagem Robert Ledgard. O ator retorna aos Se, em como em todo e qualquer roteiro, tenhamos filmes do diretor depois de muito tempo (22 visto os personagens principais, poderíamos pensar anos depois de Ata-me). Segundo especialistas, em um filme sem coadjuvantes, porque todos os esse é uma das poucas de suas produções em que personagens imprimem à trama uma importância o cineasta baseou seu roteiro em obras de crucial, terceiros, no caso desse filme, no livro Mygale representados, por seus respectivos atores. (Tarântula), de Thierry Jonquet. De qualquer forma o que vemos na tela é a mais pura assinatura de Pedro Almodóvar, sua presença pode quase ser sentida ao nosso lado, olhando e esperando ver cada reação que temos, e são muitas e variadas. Muitos toques sutis que só vamos entender no trabalho de elaboração feito à posteriori. 35 e todos, aparecem, muito bem cinematerapia: volume 02 O roteiro narra a história de um médico que Com ele dizemos desse “eu” que somos, e com empreende do esse mesmo eu pensante, desconhecemos quem desenvolvimento de uma pele artificial para realmente somos. Vivemos e é isso que na pele repor vamos importa. Mas essa pele psiquismo é afeita a tomando conhecimento em cenas retrospectivas paixões, a investimentos que não cessam, em uma de sua história, da perda de sua esposa em um necessidade de toque que realimenta a carga acidente de carro que provocou queimaduras em afetiva que move o sujeito. E talvez seja essa uma quase que a totalidade do corpo dela. Mais das perspectivas que Almodóvar nos apresenta, até adiante, em outra sucessão de cenas, ficamos na relação quase “Síndrome de Estocolmo” que sabendo que ela havia sido salva e com a veremos desenvolver-se entre Robert e Vincent, dedicação de Robert, se recuperado, até que Robert e Vera. Magnífica a apresentação de Vera vendo sua imagem em um vidro da janela de seu feita pela atriz Elena Anaya em pesquisas vítimas de em torno queimaduras, quarto, seu terror foi tal que se suicidou pulando dela. Sua empregada, interpretada pela na verdade sempre mãe, que impagável é Marisa O filme passa a enfocar então a trágica trajetória Paredes, sem que ele, Robert, saiba deste fato, fala de sua filha (Blanca Suárez) que assistiu sua mãe pontualmente pular para a morte, enquanto ela, uma criança, convencê-lo a livrar-se de Vera, mas é tarde, a brincava e cantava sua canção predileta. Anos realização do “estranho” em Robert já o havia mais tarde, participando de uma festa, em uma tomado por inteiro, ligado pelo traço em que tentativa quase que primeira de inserção social, apenas a morte dele ou do objeto poderá marcar o essa transtornos fim da obsessão. Na mais intensa ambivalência o mentais e tendendo ao isolamento, sofre no laço se desenvolve, em uma tomada intensa em jardim da festa um suposto estupro, praticado amor e ódio, perversamente amalgamada. Dois pelo jovem Vincent (Jan Cornet) que estava sob predadores, duas presas, no balé que compõe o efeito de drogas e que pouco irá se lembrar do tecido episódio, para sua infelicidade. Confusa, ela toma “indiferenciação” que toca o sentido da temida o pai, que a encontra, como o estuprador. Toda castração, no filme efetivamente realizada, e, no trama então vai se concentrar na vingança de entanto, não mais presente como visão real, Robert e só vamos entendendo sua dimensão no embora sabida, é negada duplamente pela dupla. transcorrer dos fatos. Perversa relação. Mas ater-se a isso para entender jovem sofrendo de alguns da sobre relação a de questão, tentando perversidade, na o filme é muito pouco, reduz por demais o que Esse filme toca em seu próprio título, fala desse pode ser pensado a partir da emoção que nos eu corpo, eu pele, com o qual nos identificamos e provoca esse roteiro que mapeia os grandes vivemos nossos atos no real, esse corpo que parte conflitos que perpassam o sujeito desejante. Ou de uma identificação e muito recalcamento para alguém sabe realmente dizer o que determina sua presença no mundo material. aquilo que reconhece e assina como seu “eu”? Para alguns a mais observável consciência de si, para outros a maior vivência do lugar do estranho. 36 cinematerapia: volume 02 Onde somos? Apenas sabemos que sentimos que A cena Tigrão e Vera faz lembrar outro trabalho de somos, na pele, ou nos fechamos ao mundo, Louise Borgeois(Couple IV). O ciclo de ódio se catatônicos ou em forma de ouriço. Em qual completa e ninguém sai ileso desse visceral medida espanhol esse outro nos interessa que denuncia as cores fortes que verdadeiramente, existirá um outro que seja abrigamos, mesmo que disfarçadas, e que há no destituído Vincent passional de cada um de nós, a coloração, pesada, encerrará o filme de alguma maneira remetendo- escondida por cortinas sociais em tons pastéis. A nos a essa questão. Era o mesmo na pele estranha culpa, tão espanhola, representante de toda uma que passa a ser a sua? Esse revestimento artificial orientação que atravessa a sociedade ocidental, que resiste até ao fogo. desce com sua mão pesada onde na verdade todos do olhar que lançamos? os pecados serão acobertados pela grande mãe. Modificado em sua mais profunda identificação Paira no ar a grande pergunta irrespondível, o que ou, ainda, mais encontrado em sua oculta é o amor? Ele existirá sem seu par inseparável, o representação? O que constrói nossa identidade ódio de gênero, será ela tão fundamental para dizer dependência? despertado pelo desamparo e pela quem é esse eu? Nem Almodóvar se arrisca a responder a isso, mas corajosamente nos deixa Vemos o amor posse, domínio, controle, com a questão. Freudianamente poderíamos perfeição, jogo de projeções e idealizações. O supor que o diretor tomou o caminho certo se objeto é o mesmo, não importa a pele que habite, pensarmos como ficou a formulação final de Robert ama, não importa em quem, traz toques de Freud sobre o Édipo em que prevalência não doçura em seu terrível ato de dominação, vemos quer dizer único caminho, onde sabemos que isso nas cenas de cuidados tanto quanto a Vincent investimentos e identificações correm em seu quanto com Vera. Cenas sutis de uma beleza curso esperado nas duas direções. Onde todos escancarada em sentidos. somos iniciados pelo feminino. Uma questão de quantidade, já diria Freud, o O suspense que mostra a que veio, humaniza seus amor deseja impor-se ao objeto, toda paixão é, em algozes tanto quanto às supostas vítimas, não há certa medida, pathos, cabe ao possível dar o inocentes. Talvez seja essa a verdade mais cruel encaminhamento via escolhas que possibilitem que nos lança, rindo e fazendo rir. Um toque e um vínculo mais Eros do que Thanatos. No tanto e entra no enredo o Tigrão, parece um caminho da relação sexual onde os conteúdos elemento solto no momento do filme, tipo aquela parciais ficam nas preliminares do gozo genital, o pausa que é dada para um relaxamento em todo “perverso” sob a primazia do genital, todo amor suspense que se preze, mas a aparente pausa que passa pelas preliminares do perverso e encontra o sua entrada representa é desmentida pelos fatos caminho do vínculo, da relação de objeto. que se sucedem, e no final acaba ampliando o . clímax e narrando o não dito que atravessou todos os acontecimentos que levaram até ao comportamento atual de Robert. Agora entendemos todo o tecido, e então ele se transforma em algo ainda mais estranho, já não existe uma delimitação de bem ou mal, ético ou não ético, a moralidade voa pela janela queimada pelas verdades nuas e cruas que são lançadas pelas lentes do diretor. 37 cinematerapia: volume 02 Robert ama como alguém que não pode abandonar-se, ama como um Narciso ferido e dessa forma perecerá aniquilado sob o materno olhar desesperado. Tarântula que caça e aprisiona, mesmo sem fome, sedução sempre atuante, mais do que o crime, Almodóvar aproxima o sujeito espectador do seu feminino oculto, e cuja força se esconde no ato de possuir pela beleza. Robert é o masculino que toma, aprisiona, utiliza, detém a chave do poder. Esse menino que em sua infância passa no filme cenas muito rápidas de um ambiente igual ao das favelas do Rio de Janeiro. Alguma alusão à construção lúdica da opressão tão bem amalgamada em nossa cultura? O excesso de exposição opressão como e a mais nova desqualificação fronteira da aprisionante do feminino? Apenas conjecturas nossas... É sabido que esse diretor de um jeito ou de outro, quase sempre, está a falar do feminino tão marcante em sua vida. Fato é que esse filme além de uma obra cinematográfica de beleza sem comparação, poderá torna-se, também, um dispositivo de mobilização excelente, cutuca de forma intensa angústias inomináveis, verdades inconfessáveis 38 cinematerapia: volume 02 Capítulo 09 Minhas Mães e Meu Pai (2010) O longa com a melhor média de renda de sala nos Estados Unidos, esteve praticamente ausente na premiação do Oscar, fato contestato por diversos grupos. Copyright: www.promiflash.de A direção foi de Lisa Cholodenko, roteiro dela mesma e de Stuart Blumberg e traz no elenco Nic Obviamente, sabemos que a origem dela dada pelo (Anette Benning) e Jules (Julianne Moore), seus casamento segue a máxima de Marx que diz que ao filhos, final, Joni (Mia Wasikowska) e Laser (Josh Hutcherson) e o pai Paul (Mark Ruffalo). ou seja, “em última instância tudo é econômico”. Nasceu o casamento muito ligado sempre à defesa do patrimônio, a questão dos Para falar desse filme vamos começar pelo final, herdeiros, tudo isso passando por um lugar de como um pequeno toque de direção, compondo submissão da mulher que garantia todos esses assim a nossa rota aqui nesse texto. Iremos ao acordos. Começava ali na família, enquanto do lugar encontro da face de Paul, olhando pelo lado de fora de filha, o passe que garantia muitas vezes a da casa, por meio da janela para dentro do interior ascensão pelo casamento, ou ainda, a manutenção da sala, isso após ouvir a dura sentença de Nic: “-Se de privilégios. quer tanto uma família, construa uma pra vc”. Isto se dá quase ao final do filme e anuncia seu Mas o mundo se transforma. Inventaram a pílula, a desfecho. Deixa-nos frente a uma pergunta mais mulher tomou para si a posse do corpo, da sua atual que nunca: do que são feitos os vínculos que sexualidade, buscou sua autonomia, inseriu-se no constroem as relações familiares? O filme bem mercado de trabalho, e começou a questionar a poderia ter começado nesta cena. menos valia quanto a sua produção (objetiva e subjetiva). Mudam aos poucos as arrumações Longe, muito longe estamos de poder “naturalizar” familiares. A sexualidade passa a ser discutida com o modelo de família nuclear, até mesmo de maior profundidade, e deixa de ser assunto só de “naturalizar” da homens e abre a questão da sua função natural sexualidade humana dentro da nossa organização voltada e abençoada para a procriação. Nessa onda, social que sabemos ser completamente orientada entram também os questionamentos em torno da pelo heterocentrismo. Mas, aos poucos o mundo heterossexualidade como a única via normalizada. ocidental vem convivendo com transformações em Freud dá o golpe final ao afastar a sexualidade torno daquilo que entendemos como família e humana do instinto, substitui pelo conceito de afeto humano. pulsão algo que fica em uma fronteira entre o qualquer atividade que fale somático (físico, biológico) e o psíquico. Há na sexualidade algo que promove a vida como um todo. Sua função vai para muito além do ato sexual. 39 cinematerapia: volume 02 Para um olhar mais íntimo, recomendamos a Uma das falas finais de Jules frente à família deixa leitura de um livro que fica entre o ficcional e o clara a abordagem escolhida por esse roteiro. É histórico, baseado em relatos concedidos pela um filme que poderia ser descrito como leve, essa paciente que levou Freud a escrever seu texto é sua maior originalidade frente ao que se faz com conhecido como “Sobre a psicogênese de um o tema, na maioria das vezes, em concepções Caso de Homossexualidade Feminina”. O livro cinematográficas. Seu roteiro é direto e simples. chama-se Desejos Secretos – A História de Sidonie C., a Paciente Homossexual de Freud. Na A diretora alegou que procurou ter muito cuidado verdade Czonka- para não apresentar Paul (Mark Ruffalo), o pai Trautenegg, mas seu nome só foi conhecido biológico, como o vilão da história, e realmente depois de sua morte em 2004. pensamos que tenha conseguido seu objetivo. Paul chamava-se Margareth é um personagem que causa simpatia, sua Então, chegamos à atualidade dessa questão, em evidente desorientação apenas promove um toque muito modificada até mesmo naquilo que antes o a mais de empatia com o público, emociona em campo grande psi utilizava como compreensão da medida, consegue quebrar qualquer homossexualidade. Hoje não mais encarada com barreira ao fato de ele ter se disposto a ser um qualquer doador de sêmen. Simpático sem dúvida, mas ao noção de patologia ou desvio e contemplada a questão com uma orientação longo constante do Código de Ética do Psicólogo que identificação deixa claro que não será permitido a esse idealizado em um pai. Paul é sem dúvida um profissional, a excelente amigo. Ele entra na vida dessa família estará por meio da curiosidade do caçula, o rapaz de autorizado a oferecer qualquer procedimento quinze anos chamado Laser (Josh Hutcherson) que tenha como meta a mudança da orientação que pede a sua irmã Joni (Mia Wasikowska) que sexual, até porque, está mais do que demonstrada está prestes a ingressar na faculdade, que localize o a impossibilidade de ser esse um tratamento pai. Os dois são filhos do mesmo doador, porém possível. cada um gerado por uma das mães, Mia por Nic e estabelecer homossexualidade e como muito patologia menos do filme “desconstrói” possível com aquilo qualquer que seria Laser por Jules. O enredo do filme trará questões Nossas personagens nesse filme, Nic e Jules, que formam um homoparentais, mas famílias constituídas por casamento de muitos anos e dois filhos, esses adoção ou inseminação in vitro com uso de concebidos via inseminação de doador anônimo. doador. um casal homoafetivo em envolvem não somente famílias O início do filme apresenta ao espectador uma família de classe média nos Estados Unidos, nada Sem dúvida que, aos mais conservadores ou para a observar que seja estranho, dentro dessa aqueles que, via dogmas religiosos, ainda tentam perspectiva. Os gêneros dos componentes do par agarrar-se a qualquer resquício de compreensão ou sua orientação sexual não interferem no cerne da família a partir de uma perspectiva de do que definimos como família. Se esse mesmo naturalização da heterossexualidade, o filme será roteiro contemplasse um casal heterossexual, não uma mudaria muito o rumo do filme, e talvez esteja aí profundidade sobre a questão. Mas para todos sua principal qualidade. aqueles que já puderam se afastar, um pouco que surpresa e fará pensar com mais seja, dessa concepção tão estreita e extemporânea, esse longa se apresentará mais uma película de história de amor e conflitos familiares 40 cinematerapia: volume 02 Já temos conhecimento no Brasil de inúmeras A tese freudiana não cai por terra totalmente famílias homoparentais, sejam essas constituídas frente aos novos postulados que tentam colocar a com filhos de relações anteriores heterossexuais, orientação como fator inato, porque Freud não seja por inseminação ou adoção. Já existe, chegou nunca a desconsiderar o biológico, ele inclusive, de fato, a possibilidade da adoção a está, como já pontuamos anteriormente nesse partir da colocação de ambos constituintes do par texto, incluído no conceito de pulsão. Em qual como os novos(as) cuidadores(as), dando à criança medida algo genético ou os vínculos formados o direito ao uso dos dois sobrenomes. Embora no com o mundo em tenra infância orientam a Brasil ainda não tenhamos a possibilidade legal libido, do chamado “casamento gay”, questões que construída, porém, já está lá no velho Freud, que versam em torno da relação com os filhos, já qualquer que seja essa orientação, é uma das ganharam algumas decisões tomadas, via justiça, resoluções possíveis dentro de um critério de que garantem a possibilidade de reconhecimento normalidade, ou ainda como alguns gostam de pleno. O filme nos apresenta a uma dessas dizer, de boa resolução. disso não temos ainda uma certeza possibilidades de maneira bastante direta e íntima. O que assistimos nesse filme é uma história sobre uma crise familiar, enfrentada com muita Os filhos aparecem como personagens quase coragem e transparência. Mesmo diante dos comuns, trazem aqueles conflitos de gerações percalços que atravessa a personagem Jules, a que da questão da homoafetividade dela se torna algo da adolescência e passagem para o mundo adulto. A qual tem muita consciência. O longa pode ser curiosidade de conhecer o pai biológico, em muito interessante para abordar o tema de que nenhum momento, os faz questionar a família na práticas qual estão inseridos enquanto um lugar legítimo. correspondem à orientação sexual. Este mesmo Entre um conflito e outro, a manifestação da assunto, que estamos acostumados a ver tratado sexualidade como um forte componente, até de maneira diferente, quando falamos de sujeitos mesmo a dificuldade que Nic e Jules encontram que para enfrentar a questão frente a uma suposta longe da censura social e optam por uma vida homossexualidade heterossexual, formam laços, têm filhos e onde sempre se apresentam que Laser nessa fase poderia estar vivendo. sexuais preferem manter não sua necessariamente homossexualidade nada disso os afasta da consciência do seu desejo, esse sim claro e imperioso que alimentará, quase De forma sutil, o filme aborda uma das questões sempre, outro tipo de angústia crescente. O que é sempre apresentada pelos homofóbicos, “armário” que via de regra precisará ser aberto aquela que constrói a fantasia que filhos criados para que esse sujeito encontre paz e alegria, para por casais homossexuais trariam também uma recuperação de parte fundamental de sua auto- orientação homossexual. Dessa maneira, vemos estima. Jules, com sua vivência com Paul, não se mais uma vez, o debvate de tudo que ainda se aproximou mais dela mesma e deixa isso claro. ergue como tentativa de formação da orientação Apenas faz um desvio, perdida e sem rumo. O sexual. Segundo Freud todo indivíduo nasceria afeto será aquilo que realmente a levará de volta com uma constituição bissexual, definindo de pra casa. Por sua vez, Joni sai de casa pronta pra certa maneira na passagem pelo Complexo de vida, e como todos os filhos, precisa pedir que sua Édipo, tanto sua orientação sexual, quanto suas família a permita encarar seu crescimento. Nada matrizes mais corriqueiro. que compõem seu processo de identificação. 41 cinematerapia: volume 02 A mudança nas configurações familiares é algo que ainda remete-nos à angústia, famílias mistas, monoparentais, casais homoafetivos e até mesmo ao grande número que se concentra em alguns lugares de pessoas que simplesmente rejeitam a possibilidade monogamia de ou casar-se, de de procriarem. manter Isso a tudo, convivendo, com pólos conservadores, quer seja dentro de um mesmo recorte geográfico da civilização, quer seja em pólos opostos como ocidente e oriente. Como se o espectador tivesse sido convidado a folhear um álbum de família, tão e somente isso, esse filme ganha valor. 42 cinematerapia: volume 02 Capítulo 10 Sex and The City Sapatos com os formatos estranhos, roupas coloridas, cabelos muito bem escovados, maquilagem perfeita, independência financeira, Copyright: Keete 37 neuroses, futuro e A questão da amizade amarra tanto o seriado quanto conflitos. os filmes de uma forma esperançosa, embora deixe de apontar conflitos que marcam também, dentro Tudo isso mesclado gerou a receita que deu origem do universo feminino, a relação de intimidade, ao livro de Candace Bushnell e também manteve quase sempre também investida por uma rivalidade “Sex and the City” no ar por várias temporadas no sutil. formato de seriado. O figurino é deslumbrante e ousadamente fascinante. Uma verdadeira O que veremos nessas personagens ficará marcado propaganda de marcas que remetem ao status quo por algo muito próximo de estereótipos, mas que dentro da estrutura social que retrata e que nos por meio dessa intenção, levantará reflexões sobre o marca a todos no intricado jogo de papéis, classe e papel dessa mulher no mundo a partir de relações busca de lugar. bastante contemporâneas. Porém, diríamos que muitos dos temas expostos extrapolam a questão de Iniciamos nosso texto sobre esses filmes a partir da gênero, constatação de que seria interessante sermos uma toda se-á neles mulheres novaiorquinas, cidade que de passagem, será bem trabalho para sua inserção colaboram para todas as moradores buscam maneiras em grupo de sair da em foram mudanças econômicas e a chamada do mercado de cidade de trabalho, onde de alguma forma seus indicado que que a constitui e sobre a qual tem direito. As Parker). Nova York com suas características de é possibilidades toma conta da sexualidade, que a entende como algo contratada por Carrie Bradshaw (Sarah Jessica também de autonomia mais marcante a partir do momento que da personagem coadjuvante, a assistente pessoal isto gama Podemos pensar que a mulher passa a ter sua destacado esse aspecto no primeiro filme, através solidão, e conquistadas. uma muito solidão encontrar-se entre as velhas e antigas expectativas e recorte muito particular desse universo, abordar- característica à masculino, quanto o feminino, que buscam ainda série como os filmes feitos a partir dela, de um predominantemente remetem relação sofreu no século XX intriga tanto o mundo universo feminino. Obviamente que trata tanto a tem que que o espanto frente às modificações que essa personagens que trazem como meta abordar o que os dificuldade das relações na atualidade. Pensamos mulher e um homem escrevendo sobre roteiro e sabemos como modificações que marcam as mudanças de papéis de muitos gênero. A subordinação do feminino ao masculino, momentos ao longo da película. sofre então, importantes modificações. 43 cinematerapia: volume 02 Apesar da estereotipia há Miranda Hobbes (Cynthia Nixon) é conflito! momentos nos filmes onde algumas cutucadas Aparentemente é a que vivencia mais conflitos, importantes são dadas e que falam da relação quando na verdade é a que os mais os externaliza, entre os gêneros. O casal principal do primeiro verbaliza e representa com mais clareza. É rígida, filme, Carrie e Mr Big, leva-nos a refletir sobre o congelada, neurotizada por um predominante amor que se rende às expectativas que remontam funcionamento do superego. Não se permite bem mais à solicitações do social e construção de muitas coisas e também encena os aspectos mais imagem do que propriamente as necessidades superegoicos do grupo. dos vínculos amorosos. algum momento, das personagens, O quanto também em para que uma relação Samantha (Kim Cattrall) seria a modelo amadureça terá que perdoar ao outro por não ser idealmente analisada por Freud. Seria o gozo do àquele que se encaixa em expectativas projetadas. bom velhinho! Libido pura e sem superego ou permissiva. Samantha é puro desejo, se assume Nossas quatro personagens remetem a diferentes como tal e paga seu preço. É dominada pelo seu vínculos, diversas possibilidades de investimento funcionamento da libido e da importância dos vínculos de impulsos do Id, mas não em uma maneira amizade psicótica, e sim concretamente sexualizada. É a que as sustenta todo tempo no atravessamento de suas crises vivenciais. pulsional que remete aos expressão da libido pura, que busca a satisfação sem muita capacidade de adiamento ou Carrie Bradshaw (Sarah Jessica Parker) é o sonho sublimação, com um superego flácido, mas não de muitas adolescentes modernas. É a mulher de perverso. Faz o que deseja sempre. E como deseja! sucesso que investiu em sua carreira. Cada investimento deste trouxe também, claro, Talvez esta personagem fosse a que mais conflitos, adaptados a esta modernidade de seu proporcionaria material para análises, visto que cotidiano. Exerce a catarse na sua coluna, onde não tem nenhum pudor em realizar e verbalizar milhares de leitoras se identificam. É a líder do todas as suas fantasias. Ao mesmo tempo nos grupo, filmes. remete a possibilidade da mulher aproximar sua Aparentemente mais estável afetivamente, apesar sexualidade do ideário masculino. Ao fazer isso de suas eternas compulsões. restará sempre a pergunta se isso seria algo ou, do seriado e dos satisfatório ou apenas um rito de passagem. Ao Charlotte York (Kristin Davis) É a mais recatada término do primeiro filme, saindo da uma relação verbalmente. Seus ideais e sonhos são diferentes, de quase seis anos, ela nos brinda com algo que ainda românticos. Podemos dizer que é mais suplanta, mais uma vez, questões de gênero, mas recatada do que as demais, e tem esperanças que as evidencia fortemente por ser pronunciada quase como “pollyana”. E como sonha esta pela boca de uma mulher, diz ela: “Não é que eu personagem! Esta talvez fosse analisada por não te ame, eu amo, mas acontece que eu amo Freud, e, por manter ainda algumas questões tão mais a mim e é comigo que convivo há 49 anos”. enraizadas na neurose, seria uma boa candidata. . Precisa proteger sua vivência de perfeição, tem medo de doenças, contaminações etc, não chega a se constituir em sintoma, mas como traço de caráter fica sempre ali no limite. 44 cinematerapia : volume 02 De tudo se falou um pouco nesse seriado ou A questão da amizade amarra tanto o seriado nesses filmes. Quase todas as fantasias, manias, quanto os filmes de uma forma esperançosa, quase pavores sempre também investida por uma rivalidade e medos, questionamentos, anseios, dificuldades, posicionamentos. Muito sutil. Podemos pensar que a mulher passa a ter sua próximo da complexidade da psique feminina e autonomia mais marcante a partir do momento por isso tantos episódios e tanta resposta positiva que toma conta da sexualidade, que a entende durante anos. como algo que a constitui e sobre a qual tem direito Interessante observar o movimento que o filme trouxe das telas para as salas de cinema. Houve Esse seriado e filmes trazem uma tentativa um regaste social neste momento do que é a reconhecidamente “amizade entre mulheres”, em uma maneira demanda de público a fala da mulher atual, saudável para todas. Muitos grupos de amigas se contextualizada, deram a possibilidade de viver um momento cumprirão sua meta. Tanto para as mais adaptadas “girlie” simultaneamente no cinema e na vida ou real. questionadoras ousada então conservadoras, ou de quanto ao terem alguma para feministas, como maneira, as mais há uma possibilidade de reflexão. E conseguem comover e O que as feministas mais radicais diriam deste fazer sorrir. filme? Camile Paglia, feminista atual, declarou algumas vezes ser favorável a alguns episódios ou personagens, e reconheceu a importância desse seriado-filmes. Nem tudo são Flores no reino de Carrie. Até porque, independente da visão estereotipada e fragmentada do universo da mulher, ousou ao tentar falar e compreender algo que poucos diretores se aventuram, somente os mais conhecidos como cults puderam cometer tal ousadia em clássicos como “La Belle de Jour”, as complexas personagens de Almodóvar, o consagrado Bergman com “Gritos e Sussurros” e alguns outros tantos. 45 cinematerapia: volume 02 Capítulo 11 Grace e Frankie (2015, 2016) – Temporadas 1 e 2 A Rede Netflix tem se firmado como uma grande produtora de seriados, e não apenas um serviço de streaming, como a proposta inicial. Copyright:Ted Eytan A cada ano lança novos seriados e filmes, com Gracie – Jane Fonda volta às telas dos seriados produções reconhecidas pela crítica e adoradas americanos, mostrando o porquê faz sucesso há 60 pelo público. Entregues para o espectador de forma anos. Hoje com quase 80 anos, interpreta Grace, completa, traz mais esse atrativo que é poder uma esposa de advogado, metida a socialite e sócia acompanha-la por inteiro no ritmo que desejar e de uma empresa de cosméticos. Extremamente puder. vaidosa e fria emocionalmente, passou a vida toda focada em sua família e carreira, onde a imagem Grace e Frankie surgiu de mansinho em 2015, sem vale mais do que tudo. Tem um pequeno problema atrair muita atenção dos internautas, mas logo se com consumo de álcool, e todo seu castelo de areia é tornou um símbolo de comédia atual, com um destruído quando seu marido Robert assume seu resgate de atores e atrizes com uma temática pra lá romance com Sol. Encontrar um novo lugar nessa de atual. Fazendo rir leva a que se mergulhe em dinâmica será uma tarefa extremamente difícil e temas que costumeiramente são tratados com certa onde Frankie será de uma ajuda imprescindível. evasiva e até um pudor socialmente construído e alimentado. Frankie - Somente de olhar para Lilly Tomlin o espectador dará risadas. Não tem como não se A sinopse é muito simples. Dois advogados, sócios recordar das inúmeras comédias que ela fez nos de um escritório há décadas, resolvem reunir suas século passado, tão repetidas nas tardes de férias duas esposas e lançam a bomba: vão se divorciar de escolares. suas esposas e assumirem seu caso amoroso que lidar com essa uma focada em princípios e valores orientais, africanos, encontraram suas maneiras e formas mais ou de interpreta por do sol. Era casada com Sol e leva uma vida bomba em ambos os núcleos familiares, que patológicas ela hippie/maluca/artesã/batedora de palmas para o mantinham entre si há de mais de 20 anos. Uma menos Aqui antigos, clássicos e/ou tudo que você pode encontrar nova de excêntrico. É o oposto da moeda de Grace e as realidade. duas sempre se "suportaram" até então, apenas por seus maridos serem sócios. Agora, com a união dos Nossas análises se baseiam tanto na primeira dois, se veem forçadas a dividir muito mais do que quanto na segunda temporada, sem, entretanto, apenas levantar muitos spoilers. os títulos de primeiras-damas. Como herdaram dos seus casamentos, uma casa de praia em comum, refugiadas ali de suas lembranças, terão que conviver dividindo o espaço. Tarefa que renderá grande parte das boas risadas que a série provoca. 46 cinematerapia: volume 02 Sol(Sam Waterston) – É um advogado bem As filhas de Grace e Robert são, entre si, sucedido, sócio de Robert no escritório, bastante absolutamente diferentes em personalidades. Uma focado quando trata de assuntos jurídicos, mas mãe e dona de casa, amorosa e dócil e a outra que se revela em sua vida pessoal como alguém combativa, agressiva e focada em sua carreira, ainda mais “bicho grilo” que sua ex mulher principalmente depois de ficar à frente do negócio Frankie. Sua relação com Robert é marcada por que pertenceu a sua mãe. doçura e momentos de um carinho cativante. escondido o avesso desses aspectos, como se Sem dúvida que forma com Robert um dos casais tivessem que caber unicamente em uma fôrma. Cada uma mantém mais doces das séries mais recentes. Como casal homoafetivo compete em doce simpatia com o A série foca ao longo de suas duas temporadas par Sisters”, interessantes discussões principalmente em torno Kevin(Matthew Rhys) e Scotty(Luke MacFarlane). do que chamamos de “saída do armário”, ou seja, o do seriado “Brother and momento da comunicação da homoafetividade ao Robert(Martin Sheen) – É um advogado do tipo círculo social, o envelhecimento com sua dose de incisivo e até agressivo, acostumado a se impor desejo que não cessa de existir, a dor das através da defesa/ataque via as construções separações principalmente em relações de muitos jurídicas. Ex marido distante e frio de Grace, que anos, a amizade como esteio das transformações, mantinha a família enquadrada no estilo família a possibilidade de revolucionar a si mesmo em tradicional, e ao longo da série, sua ex mulher qualquer etapa da vida. Chega a abordar de forma contará passagens que remetem a esse homem direta a questão do direito ao suicídio em doenças emocionalmente distante, capaz de manter em terminais, e o faz com leveza e humor sem perder casa escondido no armário, um arsenal de o fio de ironia que conduz seus roteiros. Jane presentes a serem dados a ela em ocasiões Fonda com sua Grace nos faz lembrar um pouco necessárias. Mas, ao assumir sua relação com Sol, de sua outra personagem, Jeanne, abordando o se revelará um romântico e apaixonado parceiro. tema desejo e envelhecimento, no filme “E Se Sonha e constrói a possibilidade de um grande Vivêssemos Todos Juntos?”( Et si on vivait tous casamento para assim poder expressar todo o ensemble?/2012), de Stéphane Robelin. Os quatro amor que ficara até a revelação, circunscrito por filhos dos dois ex casais, Briana(June Diane décadas apenas à sua intimidade com Sol, como Raphael), ele mesmo diz, precisa para sentir-se em paz Embry) e Mallory(Brooklyn Decker); mantém consigo mesmo gritar ao mundo o seu amor, sem entre si discussões bem da juventude atual e em mais dissimulações e silêncio. um certo clima que faz lembrar até o inesquecível Bud(Baron Vaughn), Coyote(Ethan seriado que marcou gerações, “Friends”. Transitam em torno do casal, também, os seus filhos, surpreendidos pelas revelações e que logo No episódio sete da segunda temporada, Frankie e encontrarão, cada um à sua própria maneira, Robert terão uma conversa muito especial, a todos de forma muito diferente, uma forma de questão lidar tanto com a separação dos pais, quanto com humana suas relações com o novo casal. carinhosamente Sol e Frankie da mágoa, que essa tanto velha arruína abordada, companheira relações, desmancha-se é em têm dois filhos adotivos que trarão questões bem considerações interessantes ao logo da série, como por exemplo, construído. As relações amorosas são sempre parte no que toca na necessidade do contato com mãe fundamental da vida de cada um, onde, como biológica. dizia o velho Freud, mais estamos desprotegidos, em um diálogo muito onde somos mais felizes e/ou mais infelizes. 47 bem cinematerapia: volume 02 Há na possibilidade de manter uma relação uma Através dessa relação de amor e ódio as duas escolha que precisa ser feita a cada novo conquistam o telespectador e as questões de solavanco que a vida sempre traz. É preciso sexualidade e gênero acabam passando como se aprender a ver o outro se aproximar e se afastar, estivessem em um segundo plano, pois são estar e não estar, ser cúmplice do amor ou apresentadas com naturalidade e tranquilidade e alguém que irá se situar no que se perde pelo assim, pensamos, podem ser mais assimiladas por caminho. quem acompanha a série, ainda mais se pensarmos em um público de idade já mais Há um componente narcísico em todo amor, isso avançada não é algo necessariamente negativo, mas algo personagens principais, embora a série seja ótima que constrói o sujeito via o caminho das para qualquer faixa etária adulta. que irá se identificar com os afinidades. Ao se romper os laços amorosos, cada um daquele par, deverá resgatar para si o que No episódio três da segunda temporada, Frankie desenvolveu na relação e seguir compondo então incentiva Grace em busca de uma antiga e novas alianças a partir do construído em si até abandonada paixão dizendo a ela que “nunca é então. Se há nesse seriado algo a ser muito bem tarde para o amor, minha amiga”. Ela mesma após contemplado e refletido isso se dará em torno a vivência de sua grande dor pela perda da desse tema. A forma como o casamento de Sol e cumplicidade amorosa com Sol, iniciando então Robert é enfim realizado logo no primeiro uma episódio da segunda temporada, é um tremendo Hudson). indicador disso. “despedida” com o Sol e um mergulhar em sua nova O relação que afetiva só foi com possível Jacob(Ernie após uma dor chamando o desapego de pontos de referência No decorrer da série somos presenteados com até então fundamentais para ela. Intensa em tudo muitas risadas que antecedem muitos momentos que faz não se esquiva de dizer para Jacob sobre de informação, tensão e reflexão. De uma forma seu medo e receio de mergulhar em uma nova mais possibilidade leve e simplista, alguns assuntos são de vínculo, que traz sempre, abordados, como lubrificação vaginal na terceira inevitavelmente, idade Masturbação, fragilidade na entrega. Honesta e plena sabe feminilidade e envelhecimento são abordados de comunicar aquilo que mais faz com que muitos maneira acabem se fechando à possibilidade de amar, ou e relações “Frankie” sexuais. promovendo risos e informação de uma forma bastante pontual. uma grande dosagem de seja, a dificuldade em confiar em uma lealdade do outro, não no sentido da fidelidade ou eternidade, Ao longo dos episódios vemos as duas mas no sentido da sinceridade e respeito ao que o protagonistas passarem por diversas fases: da outro constrói afetivamente e junto. negação à elaboração dos seus lutos. Antes apenas dividiam os mesmos espaços quando É interessante ver uma série assim que não perde estritamente necessários. Agora, se tornam uma nem um pouco do seu brilho, criatividade e essencial na vida da outra, apesar de brigarem a capacidade de cativar em sua segunda temporada. cada nova situação do dia-a-dia. Os temas permanecem pulsantes e repletos de novas variáveis muito interessantes. 48 cinematerapia: volume 02 Em tempos onde uma onda conservadora toma impulso bélico em frentes políticas nos diversos países, incluindo Estados Unidos e Brasil, uma série como essa vem em bom momento, oxigena pensamentos e desmancha conceitos mofados que necessitam serem pensados com alegria e humor. Grace, Frankie, Sol e Robert nos apresentam a uma verdadeira revolução que o mundo operou e que toca muito de perto as relações mais íntimas e fundamentais na vida do sujeito. A possibilidade de viver abertamente modos de amar antes tão estigmatizados é sem dúvida um diferencial na construção de um outro mundo mais em paz, aqui neste aspecto lembramos do filme excelente para pensar nisso que é o “Beleza Sul-Africana”( Hermanus, Skoonheid/2011), onde em uma de Oliver interessante representação, uma cena memorável em uma lanchonete o protagonista mostra um olhar ao antes impossível para ele, ao ver um casal de rapazes se tocarem em uma mesa vizinha. Fica a recomendação, assim como também o de um documentário também disponível na Netflix com o título “The Circle(Der Kreis/2014), o longa é dirigido por Stefan Haupt, trata-se de uma excelente produção que mistura entrevistas documentais, fotos de época e uma dramatização dos fatos narrados em uma excelente representação dos atores Matthias Hungerbühler e Sven Schelker. Dessa maneira vemos o quanto tivemos que caminhar em termos de laços civilizatórios até ao encantamento e as boas risadas com Sol e Robert, Grace e Frankie. 49 cinematerapia: volume 02 Capítulo 12 Ninfomaníaca (2013) Não é de hoje que produções abordam sem meias palavras a sexualidade humana naquilo que ela tem de mais peculiar. Recentemente tivemos algumas produções interessantes sobre o tema, algumas mais densas e Copyright: Georges Biard angustiantes como Shame, mais tocantes como o “As Sessões”, mais divertidos como “Um Divã Para Há um recente documentário, como o título “Sex Dois”, Alguém and the Cinema”(2009), do diretor Jeffrey Schwarz, Apaixonado” e tantos outras variações e filmes. que traça um bom histórico da questão, focando Desde tempos de produções como o polêmico principalmente o cinema americano, mas não “Calígula”, “Império dos Sentidos”, “Império da deixando de citar todo o cinema europeu que ousou Paixão”, entre tantos outros, o tema da sexualidade mais, e bem antes, que o comportado e mediado ganhou contornos do nu e cru, literal, de diretores cinema de Hollywood que foi obrigado a enfrentar mais holywoodianos aos mais cults a curiosidade por um longo período restrições a exibição de cenas sobre o impulso sexual propriamente dito tem propriamente sexuais. Hoje, sabemos que, quase ganhado leituras das mais diversificadas. Podemos todos os diretores aquecem seus espectadores com lembrar cenas explícitas ou que remetem de forma muito mais aqui complexos dos mais como antigos “Um que também marcaram como “Lua de Fel”, “La Luna”, “Seis clara Semanas e Meia”, “Gigolô Americano”, “Perdas e produções compreenderam o forte apelo que há em Danos”, do emblemático “Belle de Jour” e tantos cenas sexualizadas. Neste documentário é falado outros. A sexualidade, principalmente a feminina, sobre todos os itens que constam normalmente foi tema de curiosidade explorado por muitos desses contratos, que delimitam o campo onde o diretores e diretoras, alguns com o teor de diretor se movimentará, partes do corpo que serão denúncia como, por exemplo, “A Flor do Deserto”. filmadas, uso de dublês ou não, nível das carícias etc, Muitos que imprimiram o desvio da repressão, via dando aos atores uma relação de maior confiança o chiste, o hilário, como o recente “Hysteria” ou que supostamente permitirá a entrega nas cenas ainda explorando de forma humorada os supostos filmadas. Uma ilustração disso quase pitoresca é desvios, como no “A Secretária”. Quase impossível relatada nesta produção a respeito das filmagens do compor quente “Lolita”(1962) de Stanley Kubrick. uma lista justa de tantos “Gritos e ao ato sexual entre os personagens, as Sussurros”. Veremos que há filmes já na década de 20, considerados por muitos como os primeiros eróticos, como “Erotikon”(1929) do diretor Gustav Machatý, trazendo a bela Ita Rina como protagonista, um filme que para os padrões de hoje, poderíamos classificar como “água com açúcar”. 50 cinematerapia: volume 02 Teremos ainda antes da década de 20, a atriz É como se ele tivesse resgatado Grace(Nicole Theda Bara que dá vida ao termo “vamp”, e que Kidman) de Dogville(2003) ou Grace(Bryce Dallas alcançou enorme sucesso com "A Fool There Was" Howard) (Escravo de uma paixão/1915). As câmeras dos invasão de privacidade abrindo-lhes a intimidade diretores voltam-se aos belos corpos de suas de atrizes, diga-se que quase sempre como a tentar Joe(Charlotte entender o que move o desejo feminino, quase Assovic/ como uma tentativa de responder à ironia literalmente uma abordagem “rasgada” de sua vida lançada por Freud ao perguntar o que afinal sexual, desejaria uma mulher. O cinema ao abordar “Melancholia”(2011) investindo em um lançar ao praticamente deixa explícito o fato de que externo a agressividade que alimenta a depressão. supomos saber o que pretende o de seus “Manderlay”(2004) impulsos, vemos e feito então Gainsbourg/Stacey Ronja talvez surgir Martin/Maja Rissmann/Anaya tentando uma fugir Berg), de sua desejo masculino, e de o feminino se constituir como No início da segunda parte de seu filme talvez um enigma. Os nus masculinos até hoje são deixe logo de saída, bem claro, que quer tratar muito mais raros, principalmente o frontal, e daquilo que entende como “forças da natureza” parece que a primeira cena dessa maneira agindo sobre o sujeito humano, do quanto a filmada por Hollywood seria com Richard Gere delicada relação entre cultura e pulsões impõe em “Gigolô Americano”(American Gigolo/1980). uma Já Trier no Ninfomaníaca apresenta isso de forma renúncia, felicidade ou sofrimento, como na absolutamente escancarada. divisão das igrejas citadas por Seligman(Stellan difícil harmonização entre satisfação e Skarsgård). A mulher ou o feminino como força Mas embora essa seja sem dúvida uma propulsora discussão muito interessante, pensamos que o sociedade(civilização) e satisfação, passando pela filme ou os filmes sobre o qual aqui estamos discussão do conceito proposto por Freud de um falando, pretenderam dissecar muito mais que a “masoquismo atividade ou o desejo sexual propriamente dito. movimento, o sadismo. de toda primário” a disputa e seu entre segundo Parece que o diretor Lars Von Trier muda a roupagem de seus roteiros, mas está sempre às Do quanto se disfarça com verniz frágil impulsos voltas com uma mesma questão que diz respeito de aos “politicamente correto” talvez ainda para amargar impulsos humanos, mais embora “naturais” ele mostre aos sujeitos uma agressão e exclusão, volta sua ira ao clara suas desavenças no Festival de Cannes quando tendência a fazer crer que somos compostos por provocou rebuliço e sua expulsão ao manifestar forças destrutivas em primeira instância, não simpatia por Adolf Hitler, uma lástima para bravos costuma fechar a questão em nenhuma de suas companheiros do cinema alemão como Herzog, obras, sendo essa mais uma que lança, disseca, Wim Wenders ou mesmo Fassbinder, que com mas não responde como poderemos ver em suas um cinema muito consistente, não cairiam nessa obras mais conhecidas do grande público. cilada revisionista ou em sua explicação quase didática, como vemos na Parte 1 sobre a diferença entre anti-sionismo e anti-semitismo. 51 cinematerapia : volume 02 Ou ainda, nessa discussão estéril que é ainda O cineasta das provocações já inicia esse ano de contrapor o processo civilizatório como única 2014 e seu costumeiro arsenal, comparecendo ao barreira à satisfação humana, Freud já havia dado Festival de Berlim com uma camiseta com o muito maior complexidade a essa discussão lá símbolo de Cannes, escrito nela, “persona non pela década de 20 do século XX, e parece que grata”, em seu afã de defender o “politicamente Triers estacionou, como alguns teóricos pós incorreto”, freudianos, e ironicamente, chamar de avesso daquilo que ele Doença Nervosa Moderna”. Uma pitada de tanto ironiza, e sabemos que o outro lado é apenas Herbert Marcuse e o entendimento do quanto a outra faceta do mesmo objeto. Porém, também atividade sexual em seu excesso também foi poderemos pensar em seu antigo desejo de capturada pelo “modo de produção”, talvez ajude resgatar um cinema mais criativo, longe das um pouco neste debate. fórmulas em “Moral Sexual Civilizada veremos comerciais o que poderemos, hollywoodianas, resta a dúvida do que move toda sua pantomima. Podemos lançar uma pergunta literal, talvez até banal: afinal que dívida Joe cobrava(Parte 2)? E A bela imagem da árvore no cimo da montanha nesta discussão que Joe encontra e que faz pensar ser a que a bastante rasa que o filme pode acabar por aludir. representa, como um dia seu pai(Christian Slater) Será que haverá quem diga que o filme coloca o a apresentou a que o representava, faz pensar em resgate de uma dívida em relação à sexualidade uma tentativa absurda de encontrar uma ligação, a feminina? Se assim for, cabe a pergunta se a árvore pende como um corpo feminino em sexualidade feminina teria que sofrer os mesmos posição de uma relação sexual, e desobedecendo desvios da masculina para se impor e se seria ela todas as expectativas tentando unir-se a outra sempre o montanha ou ao sol, como a tentativa que talvez falocentrismo defender? Sexualidade feminina e seja da personagem em estabelecer ligação com maternidade necessariamente se excluem? Parece seu próprio corpo e com o corpo do outro, ou que o diretor resgata a cena do menininho na como canta a música da banda alemã Rammstein’s janela do seu outro o “Anticristo” para estocar que aquece o filme, “Führe mich”- Leve-me . Ou culpas. Esse aspecto da mulher mãe excluída da ainda ao corpo materno, corpo do vínculo, da sexualidade não seria aquilo que Freud se refere matriz do amor, sempre a dar as costas, como o de como um certo tipo de “impotência masculina” sua mãe(Connie Nielsen). evidência mesmo fica inscrita masoquista uma como quer em seus textos “Contribuições à Psicologia do Amor”? O que oculta mais do que revela o diretor O autor Joel Birman em uma passagem de seu com suas estiletadas? livro “Mal Estar na Atualidade” tem uma passagem que pensamos ser um bom gatilho aqui para Mas é fato que produz em sua Parte 1 uma ajudar-nos a pensar nessa metáfora, diz ele: das sequências mais lancinantes já vistas no cinema do quanto uma mãe, no filme “Evidentemente, o sujeito do inconsciente oscila representada por Uma Thurman(Sra H.), pode permanentemente entre este dois pólos, isto é, o utilizar seus filhos em uma vingança sórdida narcísico contra o abandono de “seu homem”, do quanto oscilação estrutural, o desejo apenas é possível se o pode ensinar aos filhos o caminho do vínculo sujeito pende para o pólo alteritário. A condição estéril, fora do desejo, em algo que se aproxima de possibilidade do desejo é que o outro se dos estudos e casos de alienação parental, que apresente como algo sedutor e atraente o bastante, sabemos provocar consequências nefastas ao capaz de despertar a possibilidade de satisfação sujeito que a sofre e em todo tecido social. desejante do sujeito. 52 e o alteritário. Entretanto, nessa cinematerapia: volume 02 Caso contrário, o desejo se apresenta como da Toda mulher faz com que outra cuide de sua ordem do impossível, e ao sujeito resta tão- “garra”, e sabemos bem o quanto o feminino pode somente a utilização voraz do corpo do outro ser, exatamente, aquele ponto da cultura que mais para ergue regras morais para o impedimento do afirmar de maneira predatória seu autocentramento. Nesse contexto, o outro é desejo, usado inesquecível e manipulado enquanto corpo para e aqui temos filme que de lembrar-nos Giuseppe do Tornatore, apaziguar a inquietação pulsional do sujeito, que “Malèna”(2000), que ilustra perfeitamente essa o nossa permissão para uma certa divagação fora da devora como um canibal. Com isso, a experiência da diferença se revela impossível, já que seja, supostamente, a proposta pelo diretor. que o sujeito se sustenta apenas por meio de suas miragens, mergulhado na mais profunda Eros e Thanatos em seu balé descrito por Freud e mediocridade existencial." a cena do pai morto, a surpresa de Joe com sua excitação, uma fala de Seligman que mais do que Joe busca o ingrediente do qual se falou em seu qualquer outra desnuda a hipocrisia que somos primeiro clube onde a atividade sexual sem freios chamados a construir sobre a leitura do próprio era como uma bandeira, grande desapontamento corpo e suas reações “naturais”. Fica com a que sofrera em relação a sua primeira instrutora abordagem a reflexão do quanto todo processo de B.( Sophie Kennedy Clark) sobre o romper toda e perda de vida tem muito de humilhação, como a qualquer regra em relação as limitações das sequência do hospital deixa vista de forma atividades sexuais, que, era evidente que Joe não também cruelmente crua. retirava delas nenhum prazer. A cena de sua primeira relação é absolutamente dentro daquilo Leremos defesas apaixonadas sobre esse filme e que vemos como algo que atravessa bem mais o ataques tão apaixonados quanto, o fato é que, mais início da vida sexual dos meninos, uma coisa uma direta, uma inauguração sem outra finalidade que conclusões, Lars Von Trier balança o cenário e “perder a virgindade”. E, será justamente esse provoca confusão, faz pensar, cria dúvida e com primeiro modelo de homem sexual, que se isso uma desconstrução necessária. Pensamos que tornará, bem mais adiante, o dono de seu afeto, qualquer vínculo que a leva até o desfecho e à casa de traçado teórico resultará em um grande vazio, o Seligman. mesmo, talvez, que Joe nos faz enfrentar em suas vez, concordando tentativa de ou não capturá-lo com em suas algum mais de cinco horas de filme. E então por onde cada sujeito começa a cortar suas unhas, seguindo a tese conversada com a A sexualidade há muito já foi capturada, hoje protagonista na Parte 2? Pelo dever ou pelo estéril em sua grande maioria, lança o sujeito bem prazer? Mais uma vez a tese a qual Triers dedica mais ao seu vazio do que ao seu preenchimento. suas Pelo obras, faz aqui, marcadamente, uma excesso, como tudo que irrompe no pontuação. Mas, queremos propor uma ousadia e contemporâneo, esvazia mais do que completa, pensar que, via de regra, as mulheres não angustia mais do que nutre. costumam cortar suas unhas, entregando o polimento delas para uma terceira pessoa. Indo na direção do que propõe o diretor poderíamos pensar em muitas variações para seus questionamentos. 53 cinematerapia: volume 02 Mas, de outro ponto de vista, temos também que ver que houve sim um avanço no sentido de menos repressão, embora como poderemos pensar via a trajetória de Joe com seu filho, a repressão talvez nunca tenha se dado efetivamente sobre a atividade sexual, mas sim em seus vazamentos extra conjugais, ao colocar em xeque um aparelhamento da civilização ocidental que finca suas bases em uma relação de propriedade amarrada por um casal. E a obra finaliza em sua tese, com o toque da repressão como mãe da violência, ficamos convidados a pensar sobre tudo isso! É irônico que seus dois objetos de amor se encontrem e a excluam da relação, despertem nela a fúria da posse, e finalmente dando-lhe o desprezo e a surra que inauguram o relato. Afinal, o que deseja uma mulher? Talvez a sequência que trata de um paralelismo com a polifonia apresentando os três tipos de homens, responda um pouco a esta indagação, indo na direção de uma estrofe da letra do grupo alemão da música tema do filme “Führe mich”, em “um só corpo”. E, não seria justamente isso, o paraíso do desejo de todo sujeito em sua posição de amor, essencialmente feminina, desamparada e entregue ao furor do caos pulsional? 54 cinematerapia: volume 02 Capítulo 13 Sob a Pele (2013) “Sentir...Campo...Preencher... Preenchido...Feltros...Pílula... Pílulas..." Um filme do diretor Jonathan Glazer, baseado no livro homônimo de Michael Faber e roteiro de Walter Campbell, trazendo no papel principal a já cultuada atriz Scarlett Johansson que declarou que não aparecerá mais nua em nenhuma outra produção. Não foi um sucesso de público(15.439 no Brasil segundo o site adorocinema) e dividiu a crítica, vaiado na sessão de imprensa do Festival de Veneza/2013, mas merece uma espiada e algumas Copyright: JCS elucubrações. Sempre bom lembrar que aqui não necessariamente construímos crítica sobre a A atriz que vimos crescendo dentro das telonas, da produção em seus aspectos mais técnicos, mas a qual ainda guardamos a imagem o corpo juvenil e olhamos sob a perspectiva do interesse para feições ingênuas de outros tempos, como, por debates do campo psi, vemos a produção, tão exemplo, somente, como cinéfilos psis. Americana”(An American Rhapsody/2001), agora no emocionante “Uma Rapsódia em sua maturidade em forma e expressão, alguns Este não é um filme que utilize um formato criticaram sua forma física por não representar a que atraia o grande público, vai em um ritmo vista como mais bela, magra. Conduzido por belas muito denso, e aqui emprestando a esse termo o imagens o espectador vai sendo seduzido pela nossa que comumente se associa quando se fala assim de protagonista, algumas dessas imagens de uma beleza uma obra cinematográfica, ou seja, sua cadência é que em determinado momento, como a das árvores lenta, atraindo a atenção de forma gradual, mas no bosque, podem até remeter a um quê de bastante envolvente. Uma das críticas feitas a ele Alexandr Sokurov(seria exagero a comparação?) ou diz: “Uma grande afirmação do que quer dizer ser de Terrence Malick. humano”(Blankprojector), e é exatamente nesta perspectiva que ele nos interessa. Um Cult meio Curiosidade boa o fato de que ator Paul Branningan, trash, talvez possa ser visto dessa maneira. que atuou tão maravilhosamente no recente e recomendado de Ken Loach, “A Parte dos Anjos”( Seguindo na linha de voltar uma perspectiva The Angels' Share/2012), seja a presa que vai revelar analítica do como a sexualidade vem construindo ao espectador o que acontece com as vítimas que temas no cinema da atualidade, essa produção Laura atrai. oferece um tempero a mais. Nossa extraterrestre representada pela agora madura e bela Johansson atrai suas presas pela sedução, pelo apelo sexual. Interessante a importância do batom para que se sinta pronta para a caçada. 55 cinematerapia: volume 02 Hipnotizados pela atração que ela exerce não se O que a desconcerta é a capacidade de relação que dão conta da imersão em um pântano virtual no observa, em sua forma mais amorosa ou em sua qual são capturados, sendo em seguida, sugados forma mais destrutiva. O afeto esse elemento de em todas as suas entranhas, restando apenas o ligação que estranhamente desenvolvemos em invólucro, a pele. A epiderme das sensações, direção ao outro, componente básico daquilo que daquilo que leva ao prazer, a experiência, ao forma a empatia, a solidariedade, como vemos na contato. cena da tentativa do mergulhador(Kryštof Hádek) de salvamento na praia. O choro do bebê Freud defendeu durante toda sua elaboração abandonado teórica a questão da libido enquanto força motriz qualquer ação de proteção ou amparo, como faria do sempre, com a grande maioria dos seres humanos, ali inquestionavelmente, como energia sexual. Ao colocados para eles como algo próximo a uma longo da construção de sua escola teve vários outra espécie ou coisa, no sentido mais amplo da embates pela defesa dessa tese. Ao abordarmos coisificação. sujeito e esta sendo encarada, não faz nascer nos “visitantes” aqui o filme “Um Método Perigoso”(Dangerous Method/2011) sublinhamos essa questão em sua Ela busca os solitários, aqueles que ninguém parceria com Carl Gustav Jung. E não podemos sentirá falta, os esquecidos, e poupa, não se sabe esquecer que ela, a energia sexual, anda sempre bem o porquê, aquele que por sua deformação amalgamada com a agressividade, um dos pontos física(Adam Pearson), encontra-se ainda mais mais fecundos da elaboração freudiana que, sem afastado de qualquer possibilidade de laço afetivo. propor um julgamento sobre o sujeito, revela-o. Ao lançar a isca para ele convidando-o a tocá-la, pode ter aberto em seu ser o estranhamento que Laura(Scarlett Johansson) chega à Terra e usará dará lugar a sua angústia e busca. Talvez naquele do seu forte magnetismo sexual para atrair suas espelho cruel tenha ela vislumbrado a dúvida que presas, daí em diante nos veremos às voltas com instaura a necessidade do outro. Perdida, vaga até tudo aquilo que questiona o que forma o sujeito encontrar o cuidado do estranho do ônibus que a em sua relação com o outro e consigo mesmo e inclui em um subjetivo encontro. que afeto é esse que surge ali no limite do desejo sexual propriamente dito e dos vínculos que Vinda de não se sabe onde, resultado das cenas formam a relação amorosa em sua inserção no iniciais do filme onde duas formas se fundem em amplo e complexo tecido social. Laura é tocada uma obscuridade que dá margem a muitas pelo humano, por aquilo que cuida, acolhe, cria o possibilidades afeto, um feminina, roubando a forma de uma mulher que, emaranhado de um legítimo desejo de sentir, de veremos no final do filme, ainda existe, fundida a ser tocada. É sobre aquilo que nos faz sujeito em ela, neste aspecto remete ao “A Hospedeira”(The relação, que a atrai, não necessariamente a Host/2013). A pele, a mente, o corpo, quem está necessidade de prazer sensorial das coisas, a cena ali? O que se constitui enquanto o ser que da torta de chocolate na lanchonete é exemplar pensamos existir? e intrigada, vê-se perdida em para descaracterizar qualquer alusão a uma busca dos prazeres básicos, então aproxima e afasta de argumentos como o consagrado pelo público “A Cidade dos Anjos”(City of Angels/1997). 56 de interpretações. Ela surge, cinematerapia: volume 02 Laura se comporta como a mais exemplar O filme vai se mostrando com algumas belas histérica, seduz com intensidade, mas frente ao imagens de um local de paisagem linda, mas espanto diante da investida sexual, aterrorizada, gélida, na Escócia. Boa parte dele é composta por foge, não fica claro o que teria acontecido ao seu imagens escuras, o que dá a quem assiste a anfitrião, mais uma vez o filme deixa margem a sensação de imersão, como em um sonho de todo tipo de interpretação e conclusão. Perdida angústia ou um estado febril. É bem eficiente em na floresta como o mais pueril conto infantil, envolver dessa maneira a quem assiste. Suas bem acaba encontrada pela maldade perversa, do encaminhadas imagens, apresentadas em uma lobo, aquela mesma que antes era parte do seu lentidão que convida à sensação, fazem com que ser, a que anula o outro enquanto desejo, dono de todos os lapsos de explicação pareçam não seu próprio destino e escolhas. Ao que conduz ao importar tanto, como elementos associativos que pântano do desaparecimento da condução da precisariam de, em um “à posteriori”, serem própria decodificados. vida. Assustada corre, da dura constatação que algumas vezes o contato é também uma cruel agressão, que se longe do Não deixa o espectador naquele clima de tudo prazer, do consentido, pode ser aterrorizante. pode ser, mas também não exagera no sentido de entregar Sem dúvida não é um filme para ser a conclusão pronta, mais do que entender o que se passa, convida o espectador a compreendido, mas sim que parece pretender retornar para questões complexas a respeito do acordar Como estar no mundo e de certa maneira até mesmo do dissemos antes, não é de fácil assimilação, mas sentido da vida, já que aparentemente as pessoas isto não o torna nem um pouco menos atraente que ela observa, passeiam à esmo, sem grandes para os que buscam um despertar de emoções no direcionamentos, apenas vivem o cotidiano em contato com uma obra cinematográfica. Ali no seu absurdo e em sua alegria. Enquanto caça, limite do suspense, da ficção, devolve ao realismo Laura se vê observando esses seres estranhos, até de questionamentos que carregamos ao longo da então, nossa processadas, como salsichas. Vestida na pele algum existência. espanto Sem e reflexão. apelar para soluções apenas vistos como presas a serem sobrenaturais, instaura a questão do que afinal é humana ser humano. Laura passeia pelas ruas cheias de curiosidade que a leva a olhar a estranheza do gente, das mais diferentes, seu olhar busca homem e seu meio. A angústia do meio do características que tornam sua presa mais fácil, caminho onde se coloca, meio fera, meio mulher. começa a sentir uma crescente mais desprotegida quanto a sua abordagem. Estuda cada um, inquiri, conhece um pouco do A nudez feminina, a sedução que conduz ao presente daquele sujeito no mundo. As cenas aniquilimento, a sexualidade não realizada, que filmadas com câmera escondida, inclusive a da apenas boate, e pessoas escolhidas aleatoriamente nas transformada em necessidade de contato e separa ruas imprimem ao filme seu toque muito mais singular. sexualidade propriamente dita. Assustada com a intenta uma vez, a captura banindo perversa, então a vê-se própria tentativa de penetração, ela se olha para ver o que Sendo ela uma figura feminina as defesas do masculino parecem serem mais tênues, era buscado naquele corpo, seu susto é digno de a um chiste sobre “a diferença anatômica entre os confiança é alcançada com maior rapidez, as sexos”. defesas de proteção são afrouxadas pelo ímpeto da libido, da tensão sexual que ela estimula, captura. 57 cinematerapia: volume 02 As cenas de violência são conduzidas com um toque de “coisa comum”, de “banalidade”, vistas pelo olhar de seres que não enxergam o ser humano como nenhuma espécie que mereça um olhar com mais compaixão . Como atirar em alvos que os caçadores tanto apreciam, raposas ou outros bichos que acabam como o casaco de pele que ela veste. O que será que tocou àquela criatura a ponto de fragilizá-la ao extremo? O filme não se preocupa sequer em deixar pistas para qualquer conclusão, parece querer é introduzir essa pergunta que acompanha ao espectador ávido por respostas. Com toda certeza ela entenderá que aquilo que nos faz mais compassivos é também aquilo que nos torna monstros, uma delicada equação que a humanidade propõe se equilibrando sempre puxada pelos seus opostos. Quase que em uma exposição do pânico masculino vivido pela fantasia da “vagina dentada”, que faz com que a tensão na relação entre os gêneros torne-se, em sua grande maioria, uma relação de ataque e defesa, o filme graceja com o fantasmático que ainda segrega e mata. A concepção, representação, a o palavra, espelho, não, a a pele, a experiência...subjetivação. 58 cinematerapia: volume 02 Capítulo 14 Cisne Negro (Black Swan, 2010) E lá vem ela, a sociedade espetáculo despida em Nina, vestida de Cisne Negro, e destituída, pacificada, pela ausência de sua ambivalência A platéia delira, esquece que para chegar à beleza desta cena, o tombo foi inevitável, é preciso Copyright: Niko Tavernise conhecer o chão, talvez em seus aspectos de | profundeza. Doce menina, sweet Nina do espelho quebrado, de forma bem diferente de Alice em suas maravilhosas aventuras. Destino Não somos críticos de cinema e sequer especialistas feminino, em comentar todas as nuances técnicas da sétima perfeição do gesto, pele que incomoda, quase a arte, escolhemos filmes onde reconhecemos uma pedir para ser despida. potência considerável em mobilizar emoções, não necessariamente serão os filmes onde a análise de Intenso, denso, confuso, angustiante....de tirar o um crítico de cinema verá as melhores atuações. fôlego. E estréia no Brasil o comentadíssimo filme Não privilegiamos circuitos, mas sim uma forma de “Cisne Negro”, levando com grande expectativa linguagem cinematográfica que toque um maior milhares de espectadores às salas de cinema. número de espectadores em suas emoções mais Tratamos aqui nesta coluna de lançar um olhar profundas e necessárias. Pode ser um filme dos sobre variados filmes a partir de leituras orientadas chamados de grande bilheteria ou alguns que pelas construções da psicanálise, sem dúvida que esta é, e sempre o correm será, uma tarefa instigante, paralelos nos chamados circuitos alternativos ou cults. complexa e que resultará incompleta. É exatamente neste ponto que lançamos um desafio. Pensamos E vem aí um dos prêmios mais comentados pelos que ao fazermos isso erguemos “provocações” para amantes do cinema, concordando ou não com as que outras leituras possam ser construídas por indicações e premiações se torna impossível não afinidade ou discordância. Mas, o que em verdade prestar a atenção à entrega do Oscar. Que filmes tentamos trazer a partir daqui, será a proposta de utilizarmos um ferramenta de filme como mobilização e uma terão atraído mais os olhares deste circuito da crítica possível facilitação que de avalia privilegiando trabalhos do campo psi, e isso abrange mais do que concorrentes a clínica como já tivemos oportunidade de pontuar a partir os de técnicos? aqueles inúmeros aspectos, Serão estes filmes mesmos que mais promoveram polêmica e aceitação por parte do em outros textos. público? Sabemos que nem sempre se dá uma sintonia entre prêmios e grande público, embora a procura por parte do público, aquilo que chamamos de bilheteria, seja um dos aspectos que conta muito. 59 cinematerapia: volume 02 Natalie Portman que veste a pele da personagem “A única pessoa em seu caminho é você mesma” Nina em “Cisne Negro” é/era uma forte candidata diz Thomas Leroy ao dúvida versão inovadora que pretende para o Lago dos merecerá/ia levar pela beleza e intensidade que Cisnes. Quer ver em Nina o aparecimento do imprimiu a sua personagem. A presença de Nina Cisne Negro, e Nina tomada pela idéia de garante as mais intensas emoções, chegando a perfeição, tocar o corporal do espectador. A respiração mesma, encontrando no caminho a complicada e aumenta em ambivalente mãe(Barbara Hershey), dominadora determinado momento no filme, o diafragma e repleta de intensas projeções aliada a uma contrai-se pela tensão crescente, acompanhamos inconsciente disputa com sua filha. A cena da em angústia a personagem. comemoração com o bolo, evidencia isto de prêmio de e melhor diminui e atriz. assim Sem como (Vincent Cassel), diretor da travará uma dura batalha contra si maneira ao mesmo tempo sutil e cruel. No clímax A utilização da técnica das seqüências de cenas do filme a mãe desesperada perguntará: “- Onde em velocidade acelerada pela direção de Darren está Aronofsky, aumenta a entrada na atmosfera responderá em um novo tom de voz, agressivo e tensa do filme, coloca também desta forma uma intenso: “- Ela se foi!”. Chegará até a ela a força lupa na beleza das cenas. O olhar entre frágil e bruta, destrutiva. Em uma leitura meio nonsense feroz de Nina nos toca. Uma dança que pulsa de com a força que tem a música de Tchaikovsky, representado em uma bela mulher, une femme bela síntese da história do homem frente suas fatale. Mas voltemos à Nina. minha Freud, doce menina?”. Thanatos bem Ao que que poderia Nina ser demandas pulsionais. Sem dúvida esse filme traça todo uma trajetória teórica naquilo que de mais Uma pessoa dominada pelo controle, perfeição, indomável habita-nos, a força da sexualidade e da tanto no interior quanto no exterior. Sua rigidez agressividade. vai até na disposição de seus objetos, passando pelos cabelos e impecáveis movimentos, treinados Não há como fugir da concepção freudiana ao até uma exaustão impossível de se acompanhar nos deixarmos invadir por esse filme. A morte visualmente. toca, compor a ambivalência presente nos vínculos Ouvimos diagnósticos muitas para tentativas nossa de conflituada objetais, e deixará impressões profundas pelas personagem, embora esse seja um exercício quase cenas muito bem encaminhadas, se tomarmos impossível, fica configurada, como alerta dado esse sentido. Vemo-nos, envoltos em uma pela sua figura espelho, a personagem Lilly (Mila ambientação muito próxima a um sonho de Kunis), perguntando-lhe se não estava surtada angústia, o coração acelera frente a algumas com o posto de primeira bailarina. Tantos teóricos tomadas, mais uma vez contração e respiração apontam para o borderline como o diagnóstico que oscila entre hiperventilação e suspensão. Há que fala de clínica contemporânea, talvez Nina em muitas cenas uma perceptível excitação, o represente a todos nós o potencial dessa acepção. . corpo do espectador de alguma maneira é tocado Uma investigação mais detalhada nos apontaria a por esse filme, assim como uma brisa que passa comorbidade com um transtorno alimentar, além desavisadamente pelos cabelos provocando um dos sintomas psicóticos e de auto-mutilação leve arrepio. apresentados na trama. Cenas tão intensas e vivenciadas em primeira pessoa, que dão a sensação de incompreensão e confusão naqueles que assistem. Vivenciamos o corte da realidade junto com a personagem. 60 cinematerapia: volume 02 Nina passeia em risco entre a visão da realidade Seria a partir deste lugar que, “colocado nessa interna e externa, acaba perdendo-se em seus posição limite, entre a vida e a morte, o sujeito emaranhados. pode negociação Para egóica nascer, frente no a corte sua da constituir efetivas possibilidades de relação sublimação e de criação, pela construção de uma ambivalente com o objeto materno, para dar forma singular de existência e de um estilo vazão ao seu Cisne Negro, Nina ataca seu Cisne próprio para habitar seu ser”. Nina toca fundo Branco, ataca-o como se fosse ele o Cisne Negro, nesta ferida. projetando-o em Lilly, mas ao final, totalmente em identificação projetiva, é seu corpo o que Não é um filme fácil de ser assistido, podemos sangra e o que salta para a morte. Sorri atingindo encontrar nele traços de direções que foram a ansiada perfeição, o que vale é a exposição. consagradas pelos seus toques do “estranho”, mas Palmas e ovação vindas da platéia. Há um toque como falamos aqui no início deste texto, são sereno no sorriso final de Nina. Apaziguadas as exatamente esses filmes, os que tiram o fôlego, fortes oposições no teatro do corpo. que mexem de alguma maneira com o imaginário do espectador, que mais nos interessam em nosso A personagem quase invisível de Winona Ryder, a projeto. Talvez um pouco no caminho de um destituída primeira bailarina Beth MacIntyre resgate do velho Freud do início, aquele que tinha remete Nina a sua construção da inveja como potência plena, sem o receio do inusitado, o caminho de sua identidade, talvez aí tomando o velhinho estóico que descreve Peter Gay, aquele caminho inverso da sua relação materna. Nascida que no final da vida, ele mesmo resgata, como seu de uma bailarina frustrada que despeja sua próprio Cisne Negro, lançando para a posteridade expectativa em relação à filha, sweet menina, os seu Moisés e o Monoteísmo. seus anseios de realização, e que ao mesmo tempo, pela veia da inveja, tenta impedir o Saindo do cinema acompanhados de Nina e do crescimento e a transformação dessa menina em Cisne Negro de cada um de nós, o corpo tocado mulher, é preciso o Cisne Negro da agressividade indelevelmente, e sexualidade para construir um caminho de caminho poderá ser aberto, talvez quem sabe em libertação para Nina, que aprende o gozo, toma um mais belo pas de deux com a vida. Há tanta posse do corpo, em uma clara representação de intensidade no Cisne Negro de Nina, que ele nos sua ambivalência, cuidado e ataque. choca, leva ao êxtase, ou como disseram alguns: algo se transforma, algum intoxica, mas talvez com o mais puro oxigênio. As cenas são um tanto chocantes, podem levar a uma certa repulsa e clara angústia. Seria o Como filme, talvez deixe a desejar, como disseram caminho do os mais críticos, mas como um potencial de feminino em sua potência? Dependendo da linha emoção, tira o fôlego. Ou ainda, no caminho que tomemos essa será uma pergunta de muitas sublinhado com um resto de esperança, possamos respostas possíveis. Nosso corpo conhece “a dor e dizer como Birman: a alegria de ser o que é”. Vamos entender aqui pode traçar na carne o seu destino singular, pela feminino como algo que suplanta a questão de construção de um estilo de existência”. Dançar é gênero, como propõe Joel Birman em seu livro preciso, talvez com um pouco mais de Eros. do masoquismo a construção Mal Estar na Atualidade, nos diz o autor que todos nós, homens e mulheres, tememos esse feminino, visto nele a castração, como o lugar da morte e da ausência. 61 “Somente assim o sujeito cinematerapia: volume 02 Capítulo 15 Ex Machina: Instinto Artificial (2014) Filme britânico dirigido e roteirizado pelo estreiante diretor, Alex Garland, já lança com seu título aqui no Brasil uma questão no mínimo dúbia ao unir a questão do instinto ao artificial, criando assim no título, um paradoxo. O filme usa e abusa da tensão sexual não explícita, Lembrando que em psicanálise não falamos do levando não somente ao ingênuo e confuso Caleb a sujeito a não ser a partir da visão pulsional, a pulsão interrogações acerca do lugar do desejo. Em tempos está para além do instinto e traz inscrita nela de discussão mais aprofundadas sobre sexo virtual, variáveis múltiplas. O filme surpreendeu e ficou relações amorosas via rede, solidão compartilhada e com o Oscar para Melhor em Efeitos Visuais. novos artefatos excitantes para atividade sexual, ele cai como uma eficácia inquietante para vivências já Levado por um suspense que vai se apresentando corriqueiras. Foi noticiado recentemente deixando aos poucos, o espectador se vê diante de questões uma grande parcela muitos intrigados, a confecção que animam as discussões atuais e pequisas sobre de um futuro ficcional que se constrói com as nos faz pensar nas fronteiras da subjetivação. Onde humano? Nesta construção próprio que do ser aspectos não com cuja Ava, Nathan a Mozart na ciência da Ava aproveitando-se de uma queda de energia, quando então não podem ser observados, que ele não é seu amigo e que também não é confiável. A exista sem a dimensão sexual?(...) A consciência rotina dos dois, Nathan e Caleb, entre conversas e o pode existir sem interação?" desenvolvimento da pesquisa vai em uma tensão crescente acompanhando e dando o ritmo de Conheceremos então a sedutora personagem, Ava, suspense ao filme. representada pela recentemente oscarizada atriz trazendo pessoa computação. Aos poucos verá, como logo o adverte "Pode me dar um exemplo de consciência... que Vikander, uma um grande fã com seu ídolo, compara conversando poderão deixar de serem observados? Alicia a A relação de Caleb com Nathan é inicialmente a de estará a precisa linha que marca a construção de psíquico iguais que se busca com o desejo? tempo remete de maneira muito pontual ao que aparelhamento muito finalidade é tão somente para atividades sexuais. O descobertas científicas contemporâneas. Ao mesmo um bonecxs ainda nos papéis principais o ator Domhnall Gleeson( como Caleb Smith) que também foi muito elogiado por sua particiapção no já consagrado “The Revenant”, e Oscar Isaac(como Nathan). 62 cinematerapia: volume 02 Interessante que em uma conversa dos dois sobre Numa sequência como essa é que um cinéfilo o comportamento de Ava, Caleb diz que ficou suspira pelo prazer que há em se deparar com intrigado com o fato dela ter feito uma piada, e filmes autorais, daqueles que são engendrados a que isso foi até aquele momento o sinal mais partir das próprias reflexões e fantasias de seu evidente pra ele de ter ali uma IA(inteligência realizador. Pretensioso ou não, diz o que quer artificial), segundo sua interpretação porque “ela dizer, ousa e se coloca em risco. só poderia fazer isso consciente da própria mente e também da minha”. É interessante então “O desafio é encontrar uma ação que não seja lembrar do quanto Freud destacou o complexo automática”. trabalho psíquico envolvido em um chiste, dos mais elaborados, a ponto de dizer que: “Na Partem essa discussão em torno da pintura que há brincadeira se pode dizer tudo, até a verdade”. E na casa de Nathande Jackson Pollock , artista será exatamente isso que Ava faz com sua norte-americano nascido no início do século brincadeira de devolver a Caleb sua própria fala passado(nascido em 1912), que parte suas obras de sobre querer ver a escolha que faria. De maneira um pingo de tinta, não usa nem cavalete e nem muita intensa a partir desse momento ela ganha a pincéis, com a tela no chão e pisando nela, sua cumplicidade do seu interlocutor. execução partiria de um sentido supostamente aleatório, sem intenção. Sua arte ficou conhecida Ava é uma aula de sedução, não poupando nada como “pintura de gotejamento”. Em pleno início no de século onde se descortinava a questão do uso de tudo aquilo que se contrói culturalmente como o que faz de uma mulher Inconsciente uma sedutora em potencial. A primeira vez que impulsos, é interessante observar a relação que o ela se veste se parecendo então completamente roteiro estabelece com o determinismo que ainda com e hoje buscamos e o deconhecimento que persiste significados, embora longe dos artefatos de quanto ao que nos move, nossa “programação”. O mulher fatal, sua aparência frágil e meio recatada que há de insondável, o que há de aleatório, o que provoca, há de fortes impulsos em tudo aquilo que uma humana, como ela é cheia mesma de sinais observa, uma exaltação dos sentidos sexuais em Caleb. como determinante dos nossos realizamos sem saber? Nathan de certa forma é a expressão de Pollock já que este também sofre de O diálogo entre Caleb e Nathan sobre a questão alcoolismo , depressão e ataques de fúria, como o de gênero e sexualidade presentes em Ava, pintor em questão. O Inconsciente é sempre intelectualmente é um dos pontos altos do filme, infantil, já nos lembrou de certa forma isso, entre a importância da sexualidade para o também, o diretor Paolo Sorrentino em seu processo de busca de interação até ao fato de que magnífico “La Grande Belezza”(2013) que levou o não sabemos o que compõe o“programa” da Oscar de Melhor Filme Estrangeiro(2014), na cena nossa orientação sexual, jogadas como em um onde a menina joga tintas em uma tela, meio tipo ping-pong entre dois grandes mestres que faz Pollock, tomada pela angústia de ser levada a se com que nossos olhos não acompanhem o trajeto exibir pelos seus pais para uma plateia futil e da bola, conquistam o já atordoado espectador adestrada. que só poderá elaborar em um à posteriori bastante amplificado pelas impressões do que se verá logo a seguir, guiado pelo roteiro intrigante que Garland compôs. 63 cinematerapia: volume 02 Dia 5, Ava diz que vai testar Caleb. Pela sua Havia até então em Kyoko uma subserviência que capacidade de decodificar as micro expressões intrigava e incomodova, não somente a Caleb, mas faciais ela é, como lhe diz Caleb, um detector de acreditamos que também a quem assiste ao filme. mentiras ambulante. E lança a pergunta: o que Ao puxar sua pele artificial e mostrar a Caleb sua acontecerá comigo caso eu falhe no teste? Coisa estrutura de máquina ela revela sua obediência e que Caleb realmente não sabe responder e ela ao mesmo tempo que há inquietação, e de certa questiona se existe alguém que o desligue caso maneira deixa clara a visão de dominação que falhe e por que seria justo fazer isso com ela. A Nathan em seu isolamento tem como visão da essa altura vê-se que nosso jovem protagonista já mulher, talvez de todos, podemos pensar isso até se pela pela escolha da forma em como colocar Caleb enigmática Ava, totalmente seduzido por aquele naquela experiência, um falso concurso onde na ser que parece tão real, e que luta por sua verdade a escolha foi feita pelo histórico de buscas "sobrevivência". Ela lhe deixa com a difícil de Caleb e sua inocência. encontra totalmente capturado pergunta: você quer ficar comigo? A pergunta que Nathan coloca fecha a indagação “Os bons atos anteriores de um homem o que o filme quer levantar, ou seja, se a capacidade defendem”, diz Nathan após citar Oppenheimer, de simular emoção para alcançar o objetivo seria em meio a uma bebedeira, talvez refletindo sobre então o que se poderia pensar que se alcançou seus próprios atos e pesquisas. Ele um homem então um novo ser com inteligência artificial, que riquíssimo que alcançou a fortuna por ter segundo ele fará um dia que os humanos sejam desenvolvido e vistos como olhamos para os fósseis de animais armazenamento de dados chamado de "Livro pré históricos. Ela sente ou simula como meio de Azul", que se torna a base de sua pesquisa secreta alcançar resultados? um programa de buscas sobre IA. Ele acredita que esse tipo de programa não é uma questão de "se", mas sim de "quando". Ava a Eva da criação da IA faz morder a maça Então por que não realizar tal artefato? embebida da ilusão fantasiosa de amor, Caleb se entrega à serpente da sedução e promove meios Caleb descobre que já antes de Ava, Nathan havia para que ela possa fugir de seu paraíso artificial, produzido outras IAs, chocado com a descoberta mantendo-o agora prisioneiro dele, abandonado e de que até mesmo a auxiliar Kyoko(Sonaya ferido em sua própria vaidade. A metáfora está Mizuno) também é uma das suas fabricações, ela colocada, o cruzamento, a escolha, a face humana serve de todas as maneiras a seu inventor, que nos faz todo tempo ter no sentir aquilo que inclusive sexualmente como em cenas anteriores promove a vida. Não há resposta do porque em já havia sido demonstrado. alguma fase de nossa evolução as emoções passaram a fazer uma parte importante do estar no mundo e muito menos de como seria se tudo que nos restasse fosse uma inteligência capaz de juntar dados de forma ilimitada e dirigir as opções a partir disso. 64 cinematerapia: volume 02 Ao iniciarmos esse texto abordamos a questão A pulsional como aquilo que move impulsos, Wittgenstein, filósofo cujas reflexões unidas a desejos que nos levam às realizações. Na conversa proposta desse filme talvez tragam alguns debates que Caleb e Nathan estabelecem a respeito do interessantes. que movia Ava fica a grande dúvida a respeito do provocação quase escondida que o diretor lança que também nos programa, um misto de algo com a cena sutil? dama da pintura Quem foi sabe irmã de tenha Ludwig sido essa original, genético e somado a isso o ambiente emocional no qual nos desenvolvemos. Se não Se tomarmos como certo o fato que nosso estamos nós desenvolvimento individual repete a evolução da mesmos, seríamos capazes de criar máquinas que nossa espécie poderemos nos perguntar em que não se voltassem contra seu criador? Em outro medida a aquisição da linguagem e capacidade de ponto do filme Ava pergunta a Nathan por que comunicar uma emoção se torna exatamente a ele criara algo que o odiava tanto? Obviamente se linha referindo a ela em seu cárcere privado. Sua semelhantes? Ao mesmo tempo, Ava nos revela capacidade de imaginar estava na exata medida que essa capacidade de comunicar é também a de sua necessidade de escapar do cativeiro e chave para possamos interferir no desejo do outro dominação. pra ligação ou manipulação. “Eu quero ver como prontos pra responder sobre que promove a ligação com nossos você escolhe” é a frase que se torna o chiste via Ao conseguir encontrar os outros protótipos, Ava Ava, talvez nossa própria comédia e drama diante se faz enfim toda humana, veste a pele artificial da vida e das relações que estabelecemos. cobrindo todo o corpo, ganha a forma feminina que é reconhecida no mundo. A nudez quase púbere de Alicia Vikander dá um tom de entrada no mundo bastante pontual. Interessante nessas cenas observar que sutilmente a pintura muda de Pollock para um Klimt(Margaret StonboroughWittgenstein) em sua forma de caraterizar a mulher, também ele usando algumas vezes o pontilhado com folhas de ouro, como no caso da bela pintura “O Retrato de Adele” que também ficou conhecida como “A Dama Dourada” cuja a história do roubo do quadro pelos nazistas, posse do quadro pela Austria pós guerra e a disputa pela sua propriedade, foi recentemente filmada. A presença do quadro na cena é sutil, e confrontado com as explicações sobre a arte de Pollock antes podemos pensar na forma que se desenha e revela-se agora em um contorno preciso de Ava, a dama de branco que ganhará o mundo, sainda da caixa cinza, como disse Caleb e adquirindo o sentimento do colorido do mundo, talvez humana, ou quase... 65 cinematerapia: volume 02 Capítulo 16 As Vantagens de Ser Invisível (2012) “Eu me sinto infinito.”(Charlie) Em entrevista publicada por uma revista de circulação nacional o autor do livro, roteirista e diretor desse filme, Stephen Chbosky, disse algo que encerra o filme, e com o qual iniciaremos este texto: “...nós adultos nos lembramos dessa fase com certa distância. Nos lembramos do primeiro amor, da Copyright: Artonico primeira vez que nosso coração foi partido e na fase adulta colocamos todas as experiências em um contexto. Sabemos que tudo vai passar, que vamos viver outras coisas, e que aquelas não serão mais tão importantes. Sabemos que o coração partido pela primeira vez se tornará uma lembrança boba, pois você ainda vai conhecer outras pessoas e depois vai conhecer sua esposa, ou marido, e aquele primeiro amor será passado. Com esse olhar universal, não damos atenção ao adolescente, não respeitamos sentimentos que já vivemos.” felicidade que atravessam nossas mais exigentes cobranças. Quando um adolescente aparentemente parece se enquadrar nestes requisitos o mundo adulto sorri aliviado, em qualquer lugar do mundo como em filme, segundo o que ele mesmo afirmou, “precisava de distância entre as duas obras”. Primeiramente chamado para o roteiro, acabou sendo indicado pelos produtores para também conduzir a direção. Fato é que o filme consegue construir mesmo uma linguagem própria e afastarse daquele risco de vermos imagens congeladas emocionalmente é densa e que cutuca questões forma que construímos os valores de sucesso e conhecidos livro seu autor inicia a aventura de transformá-lo tentando alcançar a leitura de uma obra que Tendemos a olhar para o mundo juvenil da mesma serão Mais de 12 anos após o lançamento e sucesso do os vencedores, os populares, a grande promessa de futuro. Mas, e quando isso não acontece? E quando temos um adolescente que se diferencia destes modelos, o que o mundo adulto vê? Será que vislumbra alguma outra coisa que não seja o fracasso, o estranho, o algo a ser domado, castigado ou tratado? Neste filme, guiados por nossos personagens veremos um bocado de tudo isso, um grito que rompe o silêncio asfixiante, enlouquecedor, como o de Charlie. Abrimos a porta do quarto do filho, do que fomos e dos que hoje são. 66 fortemente emocionais. Não é deixado nada de fora dentro de temas difíceis que, quase sempre, são tratados com reserva, e quando não, apenas contemplados com um olhar complacente, com uma compaixão que aniquila ainda mais o que precisa de gritos e golpes, não de sussurros, que exige indignação e não de piedade. Da fobia social ao bullying; da orientação sexual a homofobia; dos cuidados e idealizações à pedofilia (feminina, a que quase nunca é abordada); dos maus tratos como caminho da repetição, e mais uma gama de padrões de sofrimento, esta obra abordará, sem estardalhaço, mas também sem meias medidas. As alegrias e conquistas frente ao mundo interno e externo são igualmente descortinadas de maneira delicada e envolvente. cinematerapia: volume 02 Nossos jovens atores encaminharam cada um seu Nosso personagem principal levantam questões personagem de forma tão ampla e convincente, tão atuais sobre a adolescência que percebemos que viraram gente, como se saídos da tela e que estes conflitos são quase que universais e sentados contando suas vidas ao espectador atemporais. atento. Mais uma vez o ator Ezra Miller (do idiomas mas as formas de se relacionarem e “Precisamos Falar Sobre Kevin), interpretando o estabeleceram personagem Patrick, emociona e se entrega de adolescentes, permanecem as mesmas. Mudam-se as vínculos cidades, saudáveis, tempos, entre corpo e alma ao papel. Charlie interpretado por Logan Lerman(de Percy Jackson) se faz conhecer Ficam para trás o Charlie ou a Sam, Patrick, Mary em uma medida tão perfeita entre a contenção Elizabeth(Mae Whitman), de cada um de nós. E de gestos e a explosão de sentimentos que chegam os filhos que crescem e voltam a cutucar conduz de forma completamente pontual o fio sentimentos esquecidos, algumas vezes os pais do que é o que corre profundamente em suas apenas respondem com seus códigos morais do falas, a cada gesto deixa anunciado: mundo adulto ou silenciam em uma cumplicidade ainda não me revelei; e quando o faz, se humaniza de tal em maneira que perceberemos na obra seus traços adolescência um caminho doce e outro muito autobiográficos (ditos existentes pelo autor). amargo, nem sempre é tão fácil assim idealizar torno do “não dito” sagrado. Há na esse período do desenvolvimento do sujeito. Em De que emaranhados tentam emergir os algum lugar de cada um, o pedido de adolescentes, vindos de sua infância e de suas sobrevivência em grupo repete a filogênese, as tramas tribos familiares? Nossos personagens são fundamentais para alguma generosamente farão confidências sem pudores experimentação de bem estar, e podem ser ou hipocrisia. Trazem em comum o sentimento também, de inadequação e um componente de vínculo caminhos e lembranças para os anos vindouros. que “No grupo, o indivíduo adolescente encontra um podemos chamar de generosidade, a a grande armadilha que marcará aproximação de Sam (Emma Watson, de “Harry reforço Porter) em direção a Charlie deixa isso evidente. mutáveis do ego que se produzem neste período da As questões que paralisam Charlie e a revelação muito necessário para vida”(Aberastury/Knobel – os aspectos “Adolescência Normal”) que aos poucos vai se desvendando ao longo do filme, remetem a muito do que sabemos a “Ainda respeito de uma timidez patológica e sua relação incertezas, as motivações não são assim tão com abusos sofridos na primeira infância. A diferentes, muda a forma, mas os conteúdos estão emoção ao mesmo tempo contida e efusiva dele lá, próprios dessa fase tão importante da vida, ao encontrar acolhimento, novos amigos, leva ao onde quase todas as nossas matrizes recebem o espectador em acabamento que teremos que lidar até que uma sentimentos e épocas remotas de sua vida, boa análise possa quebrar padrões de repetições, períodos que a maturidade geralmente soterra descortinando uma nova possibilidade de olhar por debaixo de toda a parafernália psíquica, a que para o mundo, em última instância, para o se investe em papel social, dinâmico e o econômico dos nossos afetos. Neste um profundo mergulho que aprende a somos os mesmos”, as dúvidas, as representar e a formular suas experiências. sentido Experiências dele tão intensas que nos remetem mensagens que recebeu ao longo desses anos as alguns sobre como seu livro ajudou a muitos jovens a não momentos talvez não saibamos se o que nos se sentirem tão desamparados, ao que parece o emociona é a trama do filme ou reminiscências filme nossas próprias histórias. Em de nossos próprios enredos que também, um dia, soterramos. 67 vemos irá o autor/diretor contemplar também que essa fala de questão, supomos que não só dos jovens, mas para seus pais se constituindo em um importante lembrete. cinematerapia: volume 02 A passagem de Charlie com Sam é bem pontual A forma como Charlie escolhe entrar, no que aqui também para os estudos que apontam para que, no Brasil corresponderia ao Ensino Médio, é as vivências de abuso infantil, são significadas no peculiar, olhando para seu final e vendo os dias “à da que faltam até a ele, nos fornece indicadores de genitalidade, no desejo que resgata também a que nem para todos, talvez nem para maioria, essa possibilidade de perceber no corpo a importância fase será constituída apenas por festas e alegria, há da imposição de limites. Vemos a passagem do tumulto filme que se dá apenas em tomadas de cenas, enfrentamentos e fuga, e de qualquer forma que onde o não dito grita sem precisar de nenhuma se palavra, entendemos a profundidade da dor ali apresentada como aquele comportamento contra- encenada, fóbico posteriori”, o no autor amadurecimento leva ao filme amplas dê, e angústia, muita que tensão, vemos incertezas até em e medos, mesmo uma quando juventude representações. Ao significar a dor, ela pode ser enlouquecidamente desafiadora, que se coloca em libertada, a insuportável, a que se equilibrava risco sem muito discernimento. Os jovens se com grande dispêndio de energia. Através dessa colocam em perigo com muito mais facilidade, há libertação Charlie encontrará o sintoma em sua uma ilusão de imortalidade que atravessa a faixa crueza, e como todo sintoma ele não é o mal em da adolescência, em sua luta pela autonomia, o si, porque também carrega a corajosa tentativa de desafiar limites passa muitas vezes por perigos encontrar novos caminhos, outras elaborações, a impensados e por uma certa dose de imprudência. saída da repetição, a “talking cure”. Os sintomas Sobrevivem os adultos de sua adolescência. não de uma maneira geral devem ser compreendidos apenas uma "fase" dentro desta perspectiva, e na adolescência ainda costumam mencionar, mas como um importante mais, como um indicador da dinâmica que pedaço da vida do sujeito, fundamental na precisa ser vencida, o luto pela infância, como constituição do seu psiquismo. ou "passagem" como muitos defende Aberastury e Knobel no livro citado. Sexualidade e agressividade, duas correntes de As primeiras aventuras, o primeiro beijo, dito por um mesmo fio, Charlie é a própria representação Sam que deve ser recebido com amor, as de primeiras experiências de romper barreiras, a tudo isso transformado em culpa e paralisação. música como um forte marcador desta fase da vida, o mundo do adolescente vai sendo Patrick(Ezra Miller) dá o toque da sexualidade apresentado de uma maneira muito bonita e que foge a expectativa heteronormativa, como se comovente. E sabemos como o jovem em seu já não bastasse o conflito e angústia desta fase, o afastamento do mundo adulto precisa ver-se romper com códigos do mundo adulto(velho), a retratado, compreendido e acolhido como sujeito descoberta de um amor que desobedece a lógica desejante, e esta película faz isso de forma muito convencional rica. Como não observar a silenciosa tentativa de e que torna a bissexualidade naturalmente vivenciada na infância um algo a Charlie ser descartado, agora mal visto pelos códigos da pequenos gestos de desistência quanto a isso? Um vida adulta. A homofobia que se inscreve no toque necessário para que se possa olhar o externo ou ainda no próprio ser, como nos é aparente isolamento como uma dificuldade de mostrado (Johnny dizer que precisa ainda de algum resto dos pais da Simmons), castigado pela violência de seu pai, infância. A mãe (Kate Walsh, a Addison de Private grande em Practice e Grey's Anatomy) ainda guardando um personagem esse pai, uma lei sem face, mas traço ao chamá-lo de “Carinho” resgata um olhar implacável. possível, ainda há uma mãe que cuida ali, nem via toque o personagem de não se Brad constituir em tentar confidenciar todos os jovens têm a mesma sorte. 68 ao pai, os cinematerapia: volume 02 Quando Sam questiona Charlie sobre relacionamentos e amor, este diz : "recebemos o amor que acreditamos que merecemos". Quantos reagiram a essa frase com o clássico, "nossa, que profundo para um adolescente!" Tanto para se entender e analisar a partir dessa frase! O fato de ser adolescente não o desvaloriza enquanto sujeito do inconsciente, tão observador e tão intenso, com constantes mergulhos no seu mundo, nem tanto assim paralelo. Mundo esse que ele mantém contato constante através das cartas. Cartas que somem quando se sente seguro o suficiente e já pertencente ao novo mundo. Não que o mundo tenha mudado, mas agora ele o percebe, integra e faz parte, e assim, pode abandonar esse seu quase objeto transicional que recebia parte de sua angústia. O objeto perdido pode ser ultrapassado, o luto se completa, e isto, no caso de Charlie, supõe uma perspectiva bastante ampla. Um filme que abre tantas reflexões, e que mais do que isso, chama para vivência de emoções fortes, atualiza conteúdos e dá nome ao que nem sempre identificamos. Uma juventude inserida e não capturada, a potência da forças novas, diversas e diferentes, não será justamente isso que no momento vivemos de maneira tão intensa? E dentro dela mesma, desta potente juventude, a velha luta de forças, entre o silenciar e conservar ou gritar seus sintomas e expandir-se em novas representações. 69 cinematerapia: volume 02 Capítulo 17 Deixe a Luz do Sol Entrar(2017) “Eu não me ocupo com o resto. Tento encontrar um belo sol interior. É tudo que te peço. Entende?”(Denis, le voyant) Belos títulos, tanto o original em francês, algo próximo a “um belo sol interior”, que talvez remeta melhor a uma elucidação da protagonista, assim como o nome dado em português onde se coloca a forma dúbia e a complexidade do dilema vivido pela personagem, está literal numa frase que é Copyright: Martin Kraft falada quase ao final do filme pelo vidente interpretado por Gérard Depardieu. O filme é dirigido pela francesa Claire Danes(Bastardos/2013) Às vezes pedinte e outras vezes, cruel ou impositiva, que exemplifica muito bem o dilema vivido por uma também assina o roteiro junto com a consagrada escritora Christine Angot. Claire Danes grande parcela é reconhecida por sua capacidade em questionar independentes, sexualmente ativas, em busca de não com profundidade a complexidade das relações ter que se colocar na enganosa escolha entre ser livre amorosas na atualidade. socialmente ou amorosamente. de mulheres financeiramente satisfatoriamente resolvida Uma boa série inglesa para Juliete Binoche inunda a tela, mais uma vez de complementar a discussão que o filme levanta é forma magnética, captura e seduz o espectador, “Apple Tree Yard”. preenche a imagem com sua presença madura e sua feminilidade marcante bem caracterizada em Acompanharemos Isabelle por um curto período de sua personagem Isabelle, uma feminilidade nada tempo a deslizar de um parceiro a outro, diferentes frágil, nem angelical. Angustiante, sensualmente em todos os aspectos, menos em um, nenhum deles provocativo, incômodo, faz refletir sobre a solidão está totalmente disponível para um envolvimento muito presente na atualidade e o desencontro nas do jeito que ela anseia e busca. Por inúmeros relações amorosas contemporâneas. Ser livre e motivos, desde homens casados até uma marcante manter uma relação afetiva ligada, suficientemente diferença de classe social, Isabelle tem que se boa, será que é possível? A protagonista oscila entre contentar com relações que não se dispõem a um uma atuação carente, dependente e vulnerável até “depois” a um fazer juntos, a meta é o sexo e uma uma presença mais agressiva e ativa em busca de vez realizada esgota o encontro, gerando nela, cada um parceiro no amor. vez mais, uma insatisfação crescente. É verdade que ainda mantém também algum contato com seu ex marido(Xavier Beauvois), eles se encontram para sexo, ele a deseja, e fica claro que foi ela que encerrou o casamento por se sentir insatisfeita dentro dele. 70 cinematerapia : volume 02 Deste casamento ela tem sua única filha, uma Essa relação será apresentada ao espectador logo menina de dez anos que está passando uns dias ao início do filme, o lugar que Isabelle ocupa nesse com seu pai que mesmo assim ele toda hora imaginário encontra um motivo para entrar na casa de modernidade que não sabe ainda muito o que Isabelle, em uma discussão, alega que por ser fazer com essa nova posição feminina que surgiu também casa de sua filha e patrimonialmente ele no tecido social. é bem característico de uma ter direito a metade dela, teria livre acesso a ela, talvez esse sutil problemática, ponto condense o foco da ao não saber Se pensarmos bem todas as marcantes mudanças diferenciar ocorridas em relação aos papéis da mulher frente propriedade de residência traça a sutileza do que à o roteiro aborda. É preciso residir com graça nas completar cem anos. A vertigem do rodopio ainda relações para que elas efetivamente existam é muito presente, e na atualidade ela marca uma como referência, ganhem a chave que abre o angústia que toma os dois gêneros que não sabem afeto. o sociedade, que fazer configurações maioria para ainda está encaixar-se que se longe de nas novas aceleram nas Artista plástica bem sucedida, Isabelle se defronta transformações. Podemos até supor que hoje o com um grande vazio afetivo, a solidão marca caos retrógrado que quer se instalar é herdeiro seus dias, não porque não tenha boas relações desse estado confusional que o sujeito se encontra. sociais e uma agenda cheia, mas sim pela superficialidade que tudo isso toma em seu Um bom texto freudiano para juntar a esse filme a contorno emocional, tudo se transforma em quem for buscar fazer algum debate é um dos que “encontros” como costuma ser de uma maneira consta em sua obra intitulada de “Contribuições à geral na agitada vida dos grandes centros, como é Psicologia do Amor”, principalmente o primeiro o caso de Paris onde ela mora. Sua vida está bem da série que leva o título de “Um Tipo Especial de longe Escolha de Objeto Feita Pelos Homens”. de ser monótona ou entediante, ao Dos contrário, o que marca o sentimento de vazio tempos onde Freud decidiu ouvir o que tinham existencial que a angustia é justamente uma falta para falar as mulheres vistas como desajustadas, de sentido nas relações que vai estabelecendo até a atualidade, tanto da posição do feminino(e pelo caminho, inúmeras e intensas. do masculino) se modificou que pouco ou nada a princípio Nas alusões todo o tempo trazido por outros deveríamos encontrar de questões similares, mas como dizem, “só que não”(sqn). personagens, a questão do ser comida, é como se todos se transformassem em deliciosos petiscos De certa forma as mulheres continuam enfrentar que não chegam a saciar, ela mesma a peça dilemas semelhantes, seu corpo até foi de certa “devorada” sem critério pelo desejo alheio. Sua forma livre do espartilho, mas continua a não lhe relação com o banqueiro mostra bem o quanto pertencer totalmente, o uso que faz dele, como se ela se deixa deslizar por alguma busca de uma articula nas movimentações dos estratos sociais adesão a um lugar de domínio, aquele lugar podem naquela relação a fascina, chega a dizer que o que adoecimento. a faz ter orgasmo é justamente o fato de pensar que ele é desprezível, segundo suas palavras, um babaca, ele é grosseiro, direto em seu apetite sexual, a coloca de forma clara no lugar de objeto sexual. 71 ser fonte de grande angústia e cinematerapia: volume 02 Isabelle é neste sentido a mulher ideal para Mas problematizemos isso e entendamos que isso pensamos nessas questões, afinal é uma mulher é a fala de um homem sobre a posição feminina independente si frente sua própria sexualidade, o que nos leva a mesma, culta, pertencente a uma elite social e uma questão importante, embora sem resposta intelectual, simples possível(ainda): por que ao exercer a sexualidade sobrevivência, tendo tempo para pensar em si de maneira plena e livre a mulher teria sua mesma e sua inserção em seu próprio desejo. Ela posição levada a uma “depreciação de objeto”(ler deseja amar e ser amada, magicamente. Ao invés os textos freudianos indicados anteriormente)? de mergulhar na busca do entender seus padrões Por que ao buscar parceria sendo dona do próprio de repetição, apelará para a saída mágica e é corpo e exercendo sua liberdade sexual a mulher então, ao final do filme, que encontrará o vidente estaria afastando justamente aquilo que busca, o interpretado encontro, financeiramente, não precisa pelo lutar sempre dona pela genial de Gérard Depardieu. a cúmplice parceria? Será que socialmente os marcadores apenas se fantasiaram de diferentes permanecendo em essência a A ironia que é trazida de forma rápida e sutil, faz mesma entender que na verdade ambos estavam lidando machismo? Isabelle e sua busca constrói a síntese com questões semelhantes, e que a desilusão dele dessa questão. velha misoginia, o mesmo mofado era talvez equivalente a dela, o que aponta para o fato que independente do grande poder que O momento atual faz pensar na letra dos versos da ainda detém a parcela masculina, a angústia do canção, “a dor e a delícia de ser o que é”, cada vazio amoroso tem sido presente de igual sujeito hoje busca no mundo estabelecer algo nada maneira. fácil, embora seja “vendido”(faz movimentar fortunas), o amor romântico, a busca do par, a Uma cena tocante de sua fragilidade afetiva se dá relação que segundo o próprio Freud, pode quando Isabelle contracena com Alex Descas que apontar para a mais intensa realização ou a mais interpreta Marc um homem poderoso no meio dolorosa frustração. Músicas, livros, filmes, versos das artes e muito mais velho, ali ela está quase fazem pensar que “ninguém é feliz sozinho”, e pedinte, a mão que busca com algum desespero talvez esse seja mesmo um forte impulso que um parceiro para caminhar lado a lado, ela investido socialmente como foi, não torna possível praticamente implora que ele esteja com ela, ao sem grandes esforços, escolher, há quem faça isso, que ele responde que funciona mal quando se mas será preciso aceitar estar em alguma categoria sente enclausurado em alguma demanda, precisa colocada como “diferente”, o igual é o par em uma viajar e quem sabe em outro momento os dois sociedade que preza a família nuclear como base poderiam se encontrar sem compromisso quanto de sustentação(incluindo aqui as homoafetivas). a isso. Na consulta que fará com Denis, le voyant, ele a alerta, pedindo desculpas pela grosseria das Em determinado momento do filme, retornando palavras, para que não se contente em ser apenas sozinha de metrô para sua casa, Isabelle pensa na uma boa refeição para alguém, assegura-lhe que frase que sua amiga falou para ela contando de sua ela pode, tem o direito e terá algo maior que isso. relação, se detém na expressão, “nos damos bem em todos os sentidos”, repete incrédula, “em todos os sentidos” sem entender exatamente o que a expressão poderia englobar. Seria possível tal coisa? 72 cinematerapia: volume 02 Pensar que sim a faz olhar para si mesma ainda com mais desvalorização, como se não fosse capaz de alcançar algo assim tão simplório. Mas fica a questão, existir dentro de uma relação, mantendo-a estimulante e agradável será assim mesmo um lugar tão comum, tarefa de fácil execução? No meio desse caos de solidão compartilhada, surge nas novas gerações algo que se quer colocar como “orientação sexual” que aponta por uma parcela de indivíduos que seriam pertencentes ao que se nomeia como “assexualidade”, podendo ou não se envolver romanticamente com outra pessoa, dentro da orientação ainda existiriam variações como os demissexuais(interesse sexual condicionado ao envolvimento), greyssexuais(interesse em momentos específicos) entre outras. Estimasse que 7,7% das mulheres brasileiras e 2,5 dos homens estariam nessa classificação(dados ProSex-IPq/USP). Questão que coloca uma “saia justa” já que se defende o respeito à diversidade, mas, ao mesmo tempo, como conceber que exista um sujeito capaz de sublimar toda energia sexual que move o aparelhamento psíquico? Questão controversa psicanaliticamente falando, fica o desafio. Isabelle é um passeio nada sutil por questões que ferem a vida de muitas corajosas mulheres que estão no mundo em busca de compartilhar afeto sem abrir mão de sua autonomia. Afinal, se levarmos adiante a questão que lá atrás o fundador da psicanálise colocou sobre as mulheres(o que desejam?), talvez possamos ir no caminho aberto por Marie Langer, famosa psicanalista francesa, e pensar que o maior desejo seja o de autonomia, autodeterminação, sem que isso signifique, como uma peste, ter que aprender a ser só. 73