CINEMATERAPIA: Cinema
com Pipoca e Psicologia
Volume 2: Sexualidade e
Gênero
autores
Dr. Eduardo J. S. Honorato
&
Denise Deschamps
Educar em Saúde
2021
ISBN 978-65-994973-1-5
https://doi.org/10.53405/edusau-ccpp.002
Este livro está licenciado sob a Licença a de Atribuição Creative Commons.
Atribuição Não-Comercial- 4.0 Internacional (CC BY-NC-ND 4.0).
Volume 2: Sexualidade e
Gênero
CINEMATERAPIA:
Cinema com Pipoca e
Psicologia
Autores
Dr. Eduardo J. S. Honorato
&
Denise Dechamps
Educar em Saúde
2021
Sumário
Sobre os autores
05
Sobre a coletânea
06
Artigos
Paris is Burning (1990: e Pose (2018)
07
Me chame pelo seu Nome (2017)
11
Moonlight – Sob a Luz do Luar (2016)
14
Dor e Glória (2019)
18
Amor Por Direito (2015)
22
Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014)
26
Uma Nova Amiga (2014)
31
A Pele que Habito (2011)
35
Minhas Mães e Meu Pai (2010)
39
Sex and the City
43
Grace e Frankie (2015, 2016) – Temporadas 1 e 2
Ninfomaníaca (2013)
46
50
Sob a Pele (2013)
55
Cisne Negro (2010)
59
Ex Machina: Instinto Artificial (2014)
62
As Vantagens de Ser Invisível (2012)
66
Deixe a Luz do Sol Entrar (2017)
70
Sobre os autores
Eduardo J. S. Honorato
Psicólogo, Doutor em Saúde Pública com ênfase em
Sexualidade, Reprodução, Gênero e Saúde (FIOCRUZ).
Pós-doutorando Medicina Tropical com ênfase em
Infecções Sexualmente Transmissíveis e Hepatites virais
na
Fundação
de
Medicina
Tropical
-
FMT/AM.
Especialista em Saúde da Família (UFSC), Docência
Superior
(UGF),
Produção
e
Uso
de
Tecnologias
Educacionais (UFSCAR), Epidemiologias e Vigilância em
Saúde (Unyleya) e Especialista em Saúde Mental
(Unyleya). É concursado como especialista em Saúde na
Secretaria Municipal de Saúde de Manaus (SEMSA).
Concursado como Professor Adjunto na Escola Superior
de Ciências da Saúde - ESA - na Universidade do Estado
do Amazonas - UEA.
https://linktr.ee/Dr.eduhonorato
Denise Deschamps
Possui graduação em Psicologia pela Universidade
Gama Filho (1984). Completou a formação em psicanálise
e socioanálise pelo IBRASI. Tem experiência na área de
Psicologia, com ênfase em Psicanálise. Desde 1984 é
psicóloga e psicoterapeuta com treino em psicanálise
clínica individual e psicanálise de grupos. Atuou em
ambulatório na Colônia Juliano Moreira e IBRAPSI.
Publica
artigos
acerca
de
conceitos
da
prática
psicoterápica, psicanálise e cinematerapia - filmes e
psicanálise em revista de circulação nacional e sítios
especializados na Internet. Participação com trabalhos
aceitos em Congressos nacionais e lançamento de livro
na
Mostra
Regional
CRP/RJ(2009).
de
Ministra
Práticas
aulas
e
em
Psicologia
cursos
como
colaboradora convidada em faculdades brasileiras.
Supervisora em clínica psicanalítica.
Sobre a coletânea
Ao longo de mais de 10 anos produzimos dezenas de
artigos para a Revista Psique Ciência e Vida da Editora
Escala. Esses artigos, sempre focados na Psicologia e
Psicanálise, abordam os seriados e filmes com um olhar
chamado de cinematerapia.
Filmes podem ser utilizados como facilitadores de
insights. Quando orientado esse uso, por profissionais
qualificados, e, quando bem analisados, podem levar a
construção de reflexões importantes que trazem um
processo de modificação, seja para o dia a dia, seja para
o processo psicoterápico.
Através das produções fílmicas ou de trechos delas,
podemos utilizá-los como recursos em sala de aula,
promover autorreflexão ou até mesmo utilizar como
recurso psicoterapêutico, no que denominamos como
uma intervenção apoiada em Cinematerapia.
Em
2009
publicamos
nosso
primeiro
livro
“Cinematerapia.:Entendendo Conflitos”. Agora, mais de
uma década depois, a proposta dessa coletânea é
distribuir as obras por temáticas, facilitando ao leitor
escolher os filmes e seriados de acordo com o assunto
que pretende refletir e trabalhar.
Neste volume um separamos um conjunto especial de
artigos que abordam a sexualidade em diversas
nuances, multifacetada. É o segundo livro de uma série
que pretendemos disponibilizar ao grande público.
Boa pipoca, boa leitura, profunda imersão e muitos
insights a todos!
Eduardo e Denise
cinematerapia: volume 02
Capítulo 01
Paris is Burning (1990) e Pose (2018
A cultura LGBTQI+ dos anos
80
Se
você
conhece
a
palavra
“Vogue”
provavelmente deve se remeter a famosa música
da Madonna, lançada nos anos 90 e que
dominou as pistas de dança do mundo inteiro,
com seus movimentos coreografados.
Copyright: Daniel Quasar
Se conhece a expressão “Voguing”, deve ter
assistido a uma das 10 temporadas do Reality
Show RuPauls Drag Race, apresentado por
Paris is Burning é um clássico obrigatório para
RuPaul Charles, premiado e responsável por um
quem
resgate histórico da cultura drag.
LGBTQI+, mesmo que o movimento não fosse
quiser
estudar
e
entender
a
cultura
denominado assim na época. É um documentário
Porém, esta expressão vai muito além de uma
que choca mas mostra a realidade dos gays e
simples música ou movimento e representa toda
transexuais nos anos 80 de NYC. E por muitos
uma cultura LGBTQI+ dos anos 80 e 90 e que
considerado controverso, por reforçar alguns
retorna a cena atual graças a esse reality show e a
estereótipos e ocupar um lugar de fala não
produções mais recentes, como o seriado POSE
pertencente aos seus produtores. Polêmicas a
produzido pelo Canal FX. A coluna desse mês
parte, é obrigatório aos estudiosos de sexualidade
pretende abordar essa nova sensação midiática e
e gênero. Sua exibição dá lugar para que se
também
discuta o que hoje se pode problematizar,
fazer
um
resgate
ao
clássico
e
a
controverso documentário Paris is Burning,
questão dos assim chamados “guetos”, lugares de
lançado nos anos 90 mas que também se remete
moradia
a esse momento tão importante da luta contra a
subjetividades que por muito tempo foi onde se
homofobia, transfobia e tantas outras batalhas
poderia existir, como diz um dos personagens do
intermináveis que essa população vem travando
filme “o único lugar onde se podia ser 100% quem
desde o século passado. Para aprofundar ainda
era”. Um filme também muito bom e histórico
um pouco mais a questão, de uma luta que
sobre isso é “Stonewall”(2015), que deixa evidente
atravessou o século vinte, é também indicado
como tantos jovens gays encontraram na união e
um documentário do diretor suíço Stefan Haupt,
mútua proteção o único caminho possível da
que aqui recebeu o título de “O Círculo”(Der
sobrevivência, não apenas psíquica como da
Kreis/2014) que narra como nos anos 40 foi a
própria existência mesmo.
única organização homossexual que sobreviveu
ao nazismo, o filme foca esse “círculo” nos anos
50, ele deu origem a revista homônima “Der
Kreis” e narra como foi ponto de defesa dos
direitos gays de 1943 a 1967.
07
e
diversão,
de
expressão
de
cinematerapia: volume 02
O que mais emociona neste documentário é
“Ter uma vagina não garante uma vida fabulosa”,
entender a rede de proteção que se montou a
diz Pepper LaBeija, que lembra que jamais foi
partir dessas “Casas”(Houses) que se apresentam
uma mulher e sim um homem que se veste como
nos bailes, e que ganham representações tão
mulher, pensa que a redesignação sexual não
diversas que se orientam no sentido de cada uma
garante respeito a ninguém, afinal as mulheres
ter o que nomeiam de “autenticidade”, ou seja,
apanham, são maltratadas, mortas, subjugadas em
parecer totalmente com aquilo que querem
grande escala. Nesta fala podemos pensar o que
encenar, onde tem até categoria como Ninja,
hoje muito se discute do quanto andam lado a
Homem Hétero, Drag Machuda etc.
lado a luta feminista e o ativismo gay.
Ainda
alerta: “Na verdade pode até piorar”.
Ao pertencer a uma casa cada um assume como
sobrenome sua designação, como por exemplo, a
Neste aspecto fez a lembrar nossa saudosa
que se diz como a mais famosa, “La Beija”. “Um
Rogéria, recentemente falecida, uma das nossas
baile é meticuloso”, diz uma das “mães”, Dorian
primeiras drags a tomar o palco e fazer da vida
Corey, a competição é acirrada e provoca muitos
um baile, que insistia que nela havia sempre o
embates ou mesmo brigas entre xs competidorxs.
Astolfo, seu nome de nascença. São muitas as
“Numa família real é a mãe quem mais trabalha,
formas de expressão de identidade, não se pode
e é a mais respeitada”; diz Willi mãe da casa
pensar jamais em um único caminho. Hoje temos
Ninja. Para ser mãe em uma das casas há que ser
já importantes discussões sobre o que se tem
muito poderosa, segundo ela, e cumprir com
nomeado de “não binário”, sujeitos que mesclam
todas os cuidados, dia de baile será sempre dia de
marcadores do feminino e do masculino.
um trabalho intenso ajudando a todxs a se
prepararem.
Dentro
desse
movimento
O documentário retrata um período histórico
encontram então um sentido de pertencimento,
onde liberdades que nas décadas anteriores foram
e mesmo de família e acolhimento.
conquistadas a duras penas começavam a ter um
espaço até lúdico, por breve período, até que a
Vogue é a dança que predomina nas competições
Aids surja e levante velhos preconceitos que não
e teve seu nome copiado da revista por conter
chegaram sequer a adormecer, muito próximos
passos que são como poses fotográficas, ela se dá
ainda,
entre dois adversários, e é descrita como “lançar
fechamento que veremos na década seguinte e a
veneno”, o que nos traz uma questão que até hoje
luta que até hoje se faz necessária para garantir
gera muita controvérsia.
Os venenos que na
vida digna ou mesmo a vida propriamente dita
linguagem gay muitas vezes fará pensar em uma
para a população LGBTQI+. A expectativa de vida
homofobia internalizada, um mal preocupante
de uma pessoa trans aqui no país ainda está por
que leva a altas taxas de depressão e suicídio, mas
volta dos 35 anos de idade. Terrível e assustador
que também, por outro lado, podemos pensar
isto.
que muitos desses “venenos” são como “sparing”
objetivo homofóbicos também é altíssimo. Jovens
para um mundo que tanto persegue e ataca os
ainda são expulsos de sua família apenas por sua
homoafetivos ou com identidade de gênero que
identidade de gênero e/ou orientação sexual,
foge ao padrão convencional.
muitas vezes tendo como única saída as ruas e a
É interessante
notar que um padrão de identificação que
como um sonho de vida, seria justamente o que
mais xs oprime, o branco heteronormativo. Essa
seja
acrítica
mais
acirrada
ao
documentário, feita por teóricos, como Butler,
por exemplo.
08
em
parte,
todo
um
O índice de agressões e assassinatos de
prostituição.
procuram para si relatado pelxs entrevistadxs,
talvez
determinando
cinematerapia: volume 02
Temos hoje então o seriado POSE, uma produção
Esses bailes, festas ou simplesmente locais onde
atual do canal FX que tem como um dos
homens
produtores
e
encontrar e serem quem quisessem. Ou como diz
reconhecido mundialmente por obras como Glee
a personagem Blanca (Mj Rodriguez) , “Bailes são
e Comer, Amar e Rezar. Murphy pega carona na
agrupamentos de pessoas que não são benvindas
onda de RuPauls Drag Race, que mostrou para
em lugar nenhum. Uma celebração de vidas que o
toda uma geração a arte drag, bem como tem
resto
ensinado muito sobre sexualidade e gênero para
celebradas”. Qualquer semelhança com Paris is
a geração dos milenials, que desconheciam sobre
Burning não é mera coincidência, uma vez que
o tema. RuPaul tem todo o mérito de resgatar o
este é a referencia principal do seriado. Uma
interesse de toda uma geração para uma arte que
versão romanceada, ficcional, da realidade nua e
antes estava esquecida ou remetida apenas aos
crua descrita no documentário.
Ryan
Murphy,
premiado
gays
do
e
mulheres
mundo
julga
trans
não
podiam
merecerem
se
ser
guetos gays, com shows em pequenas boates em
subúrbios ou locais escondidos em cidades. Hoje
Essa mesma personagem, Blanca, nos levará na
se tornou uma arte “mainstream” e suas artistas
sua
colhendo os frutos de todo o seu talento. Mas
“casa”(house), pretendendo ajudar as pessoas e
nem sempre foi assim.
deixar seu legado, uma vez que foi diagnosticada
jornada
pessoal
de
construção
de
sua
com HIV e naquela época, o prognóstico, mesmo
Pose se passa em 1987, mesmo período do
com o AZT, não era muito favorável. Blanca talvez
documentário Paris is Burning, um ano muito
seja
difícil para os gays do mundo todo. Em pleno
Xtravanganza.
período de epidemia de HIV/AIDS, bastante
Abundance
restrita aos homens gays e mulheres trans, ainda
homenagem a tantas outras mães de Paris is
vivendo com muito medo e discriminados mais
Burning. E a rivalidade entre suas casas e seus
ainda pela sociedade. Uma discriminação que
espetáculos é que nos presenteiam com cenas
começa dentro de casa, passa pelas ruas e pela
lindas sobre as vivências e dificuldades deste
sociedade, os empurrando para os cantos. A saída
público em meio a uma sociedade homofóbica,
foi a criação dos famosos Balls em NY. O seriado
transfóbica e machista.
já
começa
mostrando
passos
do
uma
belíssima
Sua
homenagem
principal
(Dominique
a
rival,
Jackson)
Angie
Elektra
é
uma
chamado
Voguing, estilo de dança típico dos bailes. Ao
Em sua jornada de construir seu legado, Blanca
mesmo tempo que é uma dança, é uma arte e
adota vários filhos, entre eles, Damon (Ryan
uma batalha, onde os movimentos sincronizados
Jamaal) um jovem de 17 anos, gay e aspirante a
entre oponentes não permitem que se choquem,
dançarino, agredido e expulso de casa por ser gay.
mas mostram toda a competitividade numa pista
Este representa milhões de jovens que sofreram e
de dança.
sofrem ainda a homofobia dentro dos próprios
lares. Temos ainda Angel Evangelista (Indya
Somos
lentamente
apresentados
aos
Moore), uma mulher trans, garota de programa,
personagens, especialmente o binômio Blanca-
envolvida em um relacionamento que com um
Elektra, duas mulheres trans que coordenam suas
homem heterossexual casado. Ao que tudo indica,
Casas, com integrantes que competem entre si
Elektra Abundance passará pelo processo de
nos Bailes (Balls).
transgenitalização como uma das primeiras em
um novo protocolo americano. Seu sofrimento
entre a escolha do corpo que lhe pertence e o
relacionamento que a mantém nos leva a lágrimas.
Ser quem realmente é ou continuar a existir se
09
sentindo incompleta. Difícil escolha.
cinematerapia: volume 02
Entramos nas suas jornadas e de outras tantas
Para quem estuda sexualidade e gênero, para
personagens
da
quem curte essa temática ou para quem apenas se
sexualidade, nas mudanças corporais disponíveis
interessa pela historia, o seriado POSE vem
na época e seus sofrimentos. Mudanças essas que
complementar
geraram
para
documentário Paris is Burning, considerado até
milhares de pessoas trans, deixadas a margem
então, uma das poucas referencias desse período
dos sistemas de saúde e que buscavam na
tão importante de lutas e conquistas, mas também
clandestinidade
de
atuais,
tantos
nas
problemas
uma
descobertas
de
solução
saúde
para
suas
necessidades.
uma
sofrimento
nos
lacuna
Estados
deixada
Unidos.
A
pelo
cada
episódio somos brindados com trilhas sonoras que
nos jogam num túnel do tempo e sentimos o
Hoje temos avançado em alguns pontos em
gostinho, mesmo que pequeno, do que foram os
relação não somente as questões de orientação
tão famosos Balls de NYC, sem deixar de perceber
sexual,
a
o quanto já conquistamos e o quanto ainda temos
transexualidade. Jamais podemos esquecer que o
que caminhar numa busca de IGUALDADE de
movimento não tem apenas gays e lésbicas, mas a
direitos.
mas
também
em
relação
letra T tem grande importância nessas conquistas
e que ainda recebe grande parte do peso dos
Derrubando a falácia conservadora que prega que
preconceitos hoje em dia. Temos alcançado
sujeitos homoafetivos estariam querendo direitos
pequenas vitórias.
a mais, o que se quer é isonomia cidadã, onde
ninguém deveria ter menos direitos assegurados
Recentemente a Organização Mundial de Saúde
por questões como orientação sexual, “raça, de
deu mais um passo – mesmo que considerado
cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião
PEQUENO – ao retirar a transexualidade do
política...”(Declaração
“hall” das doenças mentais em seu Manual,
Humanos).
denominado CID 11. Passo pequeno porque ela
recente que pode ser
ainda manteve como condição relativa à “saúde
discussão é o “Tangerine”(2015) que aborda bem
sexual”. Posicionamento que gerou ambivalência
diretamente
nos movimentos, uma vez que ao mesmo tempo
transgêneros
que manter pode garantir alguns direitos diante
Hollywood.
do
Caetano Veloso: “gente é pra brilhar, não pra
sistema
de
saúde,
também
pode
gerar
estigmas.
Um
um
nas
Universal
bom
dos
Direitos
documentário
também
incluído nesta lista de
fragmento
ruas
de
do
cotidiano
Tinseltown
de
em
Como diria nosso poeta e músico
morrer de fome”, verso muito utilizado aqui pelo
único parlamentar assumidamente gay que temos
Em relação ao nome, sim, aquilo que te identifica
agora no Congresso Nacional.
e te faz perceber quem você é e carrega toda a sua
subjetividade, aqui o STF, desde o início do ano
já se posicionou de que a retificação do nome
pode ser feita em cartórios, sem necessidade de
cirurgia. Uma vitória no plano legal, mas que tem
enfrentado dificuldades no plano prático, pois
muitos são os relatos de pessoas trans que tem
seus pedidos negados em algumas regiões do
país.
Torcemos para que em breve o termo
“nome social” desapareça, porque entendemos
que todo nome é social e ao sujeito pertence, sem
necessidades de reafirmação jurídica para isso.
10
cinematerapia: volume 02
Capítulo 02
Me Chame Pelo Seu Nome (2017)
Mais
amor,
por
favor,
a
frase
pelas
redes
ricocheteia
anônima
sociais.
Uma súplica que denuncia os tempos áridos que
vivemos.
Amar
necessita
doses
extras
de
generosidade, porque quando se ama alguém, o
outro se torna o objeto para o qual os desejos,
ter a capacidade de realiza-los, é a grande meta e
Copyright: Elena Ringo
satisfação.
O diretor Luca Guadagnino parece estar sempre
Ao compor um vínculo amoroso cada sujeito
em suas produções às voltas com o jogo das
busca mais se fazer amar do que propriamente
paixões irrefreáveis, como pode ser visto em seu
amar, porque a emoção já precede tudo, é
mais publicamente conhecido, “Cem Escovadas
soberana, o amor é como a singularidade,
Antes de Dormir”(Melissa P,/2005) ou em “Um
solitário, primeiro acontece enquanto algo único
nascido
na
interioridade,
só
depois
Sonho de Amor”( Io sono l'amore/2009), e assim
é
também
compartilhado com alguém, chamando o fora
angariando
para dentro de si. Em todo amor há um tanto de
faminto
mas
diante
também
do
exige
alimento:
como
críticas
filme
e
que
indicações
vem
para
Berlim, Toronto, Rio, Sundance e um dos fortes
um
candidatos ao Oscar de 2018. Uma pena que um
satisfaça-me,
filme tão esplêndido esteja no mesmo ano
alimente-me, salve-me da ilha do isolamento e
concorrendo com o do diretor Guillermo Del
da esterilidade da ausência de afeto.
Toro, “A Forma da Água”( Shape of Water), pois os
dois merecem o prêmio, dois belos filmes de
E é nesta capacidade de ligar-se sem medida que
amor que assinam-se com muita originalidade,
este filme belamente toca, e como foi descrito
apesar de ambos, todo o tempo, flertarem com
por muitos espectadores, de forma devastadora.
fórmulas cinematográficas já desgastadas e se
Talvez porque toque em cada uma daquelas
afastarem desse risco com maestria. Baseado no
capacidades viscerais dos primeiros amores.
Quase todos possuem um amor
boas
neste
inúmeros prêmios. Aclamado nos festivais de
busca e um bocado de espelho, ele doa sem
parcimônia,
veremos
livro homônimo do escritor nascido no Egito e
inesquecível
radicado nos Estados Unidos, André Aciman,
que se perdeu pelo caminho, aquele que ainda
com a belíssima direção de fotografia do tailandês
carrega na lembrança todo o peso da idealização,
Sayombhu Mukdeeprom e roteiro de James
a capacidade máxima de sair de si em uma
Ivory, é uma produção de encher os olhos,
entrega total.
inundar o coração de paixão e excitar o corpo até
aos pelos. O Brasil, para nosso orgulho, aparece
nas
fichas
técnicas
como
um
dos
países
produtores pela participação de Rodrigo Teixeira.
11
cinematerapia: volume 02
Narra a história da família Perlman, americana
Com certeza esse usurpador irá tomar pra si as
com
os
emoções principais daquelas férias, e como um
Casar)de
rito de passagem ao invés de ser aquele que tira a
ascendência
pais(Michael
italiana
Stuhlbarg
Elio(Timothée
e
francesa
e
Chalamet)
Amira
,
e
atenção do pai, se constituirá no surgimento do
estadunidense
investimento para fora do seio familiar. Avista-se,
encontram-se em férias em sua casa na Itália,
então, pelos olhos de Elio na janela, a chegada do
apesar disso um jovem acadêmico, o doutorando
belo
Oliver(Armie Hammer), chega à casa para ajudar
jovem de 29 anos. Elio é um rapazote de 17 anos
na organização de pesquisas sobre a cultura
que em breve fará 18, estudante de música e
greco-romana, coordenadas por Mr Perlman.
compositor. Está sempre mais envolvido com essa
professores
pesquisadores
universitários
acadêmico
Oliver(Armie
Hammer),
um
tarefa do que com a diversão do grupo de jovens
O que até então parecia seria mais um verão
que movimenta o lugar. Reservado, mas sem
como tantos outros, se revelerá o momento da
qualquer dificuldade de se inserir no grupo
descoberta do primeiro amor para Elio junto a
quando assim deseja. Oliver, segundo sua primeira
Oliver. A paixão e o erotismo preenchem todos
impressão parece muito seguro de si, Mr Perlman
os
apresentada,
faz uma brincadeira sobre sua grande altura ao
capturando de forma intensa ao espectador. É
que ele responde também brincando com bom
excelente a escolha do diretor de transbordar a
humor. Assim esse improvável par se conhece,
tela com erotismo sem despotencializar isso, não
quando então Elio o leva ao que é o seu quarto e
trabalha com cenas repetitivas e abertamente
que Oliver passará a ocupar durante sua estadia,
sexuais.
deslocando-o para o aposento contíguo, Elio avisa
vãos
da
história
que
será
que terão que dividir o banheiro que une os dois
Na atualidade a grande centralidade que o sexo
aposentos separados por portas autônomas.
ocupa em nossa constituição tem sido apartada
tanto pelo excesso de demanda e exposição(ler
Início da década de 80, época onde a sexualidade
Eros e Civilização de Herbert Marcuse), quanto
esteve em pauta
pela captura de um discurso que o normatiza em
pelas décadas anteriores e jamais pensada como
suas
quase
possível, ainda não existia a ameaça da AIDS,
mecânica, onde a fantasia, parte essencial da
respirava-se liberdade e permissividade, como
plena sexualidade, acaba banida.
veremos acontecer em todo o grupo de rapazes e
vivências,
tornando-a
pobre
e
em uma libertação preparada
moças.
O filme começa localizando o tempo onde a
história se desenvolverá, ano de 1983, fator
A virgindade já não era mais um tabu, ao
importante
contrário,
para
refletir
sobre
seu
as
relações
eram
fluídas,
não
desenvolvimento e mesmo para entende-lo e
necessariamente gerando compromisso, ficava-se,
gostar ou não do que se verá nos minutos
experimentava-se. Começava a surgir toda uma
seguintes. Abre as falas Elio(Timothée Chalamet)
geração para a qual a sexualidade poderia assumir
avisando a sua irmã que o “usurpateur” estava
variações e experimentações para se erguer sobre
chegando.
sua preferência.
12
cinematerapia: volume 02
Embora isso, a homoafetividade ainda era uma
Talvez assim o diretor queira com isso aproximar
vivência complicada e punida principalmente
seu roteiro com o posicionamento do escritor
pelo mundo adulto. No filme os representantes
André Aciman que retorna com um conceito bem
desse mundo adulto, o casal Perlman, pais de
anos 80, portanto datado, de uma sexualidade
Elio, não parecem preocupado em vigiar ou
fluida e sem necessariamente uma orientação
mesmo
desses
dominante, questão que hoje
e
até
defendida pelos movimentos LGBTQI como algo
incentivadores sutis, como se quisessem que o
mais fixo e definido, a ser visto dessa maneira
filho descobrisse algo que desconhecia sobre si
como leitura sobre a sexualidade e identidade de
mesmo. Interessante aí observar que Mr Perlman
gênero, incluindo a bissexualidade.
reprimir
impulsos,
se
as
manifestações
mostram
permissivos
é debatida e
é um estudioso da cultura greco-romana onde a
homossexualidade tinha todo um status de
Fica muito claro no filme, e essa talvez seja sua
experiência no mundo masculino.
Talvez aí
maior beleza, a forte afetividade de Elio que,
possamos pensar em um “mundo perdido”, uma
apesar de se relacionar sexualmente com Marzia,
vez que sabemos que as décadas seguintes a de 80
apaixona-se furiosamente por Oliver, em uma
se
um
clara dominância da homoafetividade, uma aula
se
sobre a diferença entre prática e orientação sexual
enfraquecido, vemos esse embate ainda com
desmanchando assim a tese que ignora que a
mais
relação sexual com o sexo oposto, como prática,
esforçaram
para
conservadorismo
vigor
na
que
recompor
havia
atualidade,
há
muito
uma
disputa
ferrenha entre esse mundo livre não totalmente
não
calado e todo um retrocesso que ganhou uma
orientação homossexual, porém essa não é a busca
força inexplicável.
e nem o lugar do afeto. Então torceremos para
fica
descartada
mesmo
diante
de
uma
que Guadagnino repense sua disposição, em nome
O diretor Luca Guadagnino declarou em algumas
ao respeito bem vindo para os que enfrentaram e
entrevistas que pretende fazer a continuação
garantiram seu amor frente ao mundo. Se o autor
dessa
personagens
do livro já declarava que não pretendia com a
incríveis e que nessa posterior sequência já nos
história "defender bandeira", ao menos agora
anos 90 abordará a AIDS, a transformação do
torcemos para que ambos não as derrubem.
mundo com o fim da Guerra Fria e onde
Temos visto e lido matérias hoje do como
possivelmente Elio aos 25 anos estará casado e
homens(e mulheres) cinquentões ou sessentões
terá filhos com a personagem Marzia(Esther
finalmente conseguem assumir sua forma de amar
Garrel). O diretor perguntado sobre do porque
depois
coloca-lo
heterossexual
heterossexual, filhos, e muitas vezes até netos, e a
respondeu que não vê nem Elio e nem Oliver
grande alegria e serenidade que essa decisão traz.
como gays necessariamente, vale lembrar que no
Uma série que trata disso com muita beleza é a
livro há nas informações sobre os personagens
“Grace
bem depois o fato de Oliver está casado e com
infelicidade
filhos, no filme o espectador junto com Elio fica
“armário” gera para todos os envolvidos fica
sabendo que ele ficou noivo.
bastante evidenciada.
história
em
com
um
esses
dois
casamento
13
de
décadas
And
Frankie”
e
confusão
de
da
que
um
casamento
Netflix,
o
onde
chamado
a
de
cinematerapia: volume 02
Capítulo 03
Moonlight – Sob a Luz do Luar (2016)
Filme
que
contrariando
qualquer
tendência
previsão
chegou
ou
à
Cerimônia do Oscar 2017 e
levou
a
estatueta
de
Melhor Filme.
Filmado em 25 dias e com um custo baixo se
Copyright: FROKOR
confrontado com os outros concorrentes, não
tendo seu orçamento total custado mais que um
Sua vida acidentada não conseguirá apagar aquele
anúncio durante o consagrado evento. Em
menino silencioso, reservado, mas intensamente
tempos onde parece que o mundo resolveu dar
amoroso
uma marcha ré e tanto, esse filme vem quase
guardará
sempre
uma
certa
estatísticas apontam para a grande maioria da
realizado e apresentado ao grande público graças
população
a muito do que evoluímos enquanto, ao menos,
com
uma
ou
com
todas
suas
características. O roteiro é como um mapa de
um conceito de diversidade. Sua bilheteria
resistência contra forte marcadores sociais que
surpreende e já ultrapassou em muito a marca
acabam por determinar tantos cursos de vida. Em
de 20 milhões de dólares. Ganhou o Oscar de
um mundo que exige endurecimento do afeto,
Melhor Roteiro Adaptado foi baseado na peça
Blue”,
que
inocência. Passará por todas as etapas que as
como um bálsamo, se pensarmos que pode ser
ainda inédita
e
Chifron seguirá, a seu próprio modo, resistindo a
“In Moonlight Black Boys Look
isso, e a uma identificação com o agressor que se
de Tarell Alvin McCraney que o assina
constrói em torno da identidade masculina.
junto com o diretor Barry Jenkins a adaptação
para filme.
É tremendamente desalentador ver o menino ir
perdendo sua candura ao longo do caminho, mas
Acompanharemos Chiron, conhecido como
apesar do menino blue, do triste disso tudo, há
Little ou Black pelos outros meninos em três
alguma esperança no final, pode ser que o amor
tempos de sua vida, infância(Alex R. Hibbert),
adolescência(Ashton
Sanders)
e
vença a batalha e faça destacar o menino que mora e
vida
se esconde em um corpo que terá que aderir a uma
adulta(Trevante Rhodes). Um menino filho de
uma
mãe
viciada
em
crack,
imagem dominante e ser defendido entre músculos
Paula(Naomie
e metais.
Harris), sem pai, pobre, negro e que deixa sinais
frágil e vulnerável chamará contra ele todas as mais
desde cedo sobre sua orientação homoafetiva,
conhecidas
antes até do que ele mesmo soubesse o que era
Melhor
principalmente
certa forma esculpirá suas futuras escolhas de
Coadjuvante) que lhe diz que ele saberia o que
caminho.
era no tempo certo, quando estivesse preparado
Chifron se achava que ele era gay.
bullying
relação ao mundo e aos outros, e ao final o que de
Ator
para isso ao ser diretamente perguntado por
de
amor será também uma prova de confiança em
conversa com seu novo protetor, o traficante
Ali/Oscar
formas
operadas por seus colegas de escola e descobrir o
isso. Destaque no filme para a cena onde ele
Juan(Mahershala
Ao longo de sua infância sua aparência
14
cinematerapia: volume 02
A única cena onde vive esse sentimento é
Moonlight traz ao contrário a atualização da
delicada e resume sentimentos de uma primeira
questão, a coloca nos dias de hoje e por isso
experiência amorosa na vida de um adolescente,
mesmo a torna mais complexa e mais difícil de ser
com
da
assimilada. A negritude blue incomoda na tela, ao
homoafetividade ainda tão pouco assimilada
mesmo tempo que entra como uma poesia, dura,
como uma das possibilidades possíveis.
mas bela de qualquer forma.
O filme mantém uma narrativa lenta e intimista,
As novas problemáticas que se constroem em
não apela para recursos que costumeiramente
torno de um racismo que resiste aos tempos, os
tornam
ou
problemas presentes ainda herdados de um longo
exacerbada, de uma forma contínua atravessa
período onde a escravidão dos negros pelos
dores de forma mansa e nada espetacular, e
brancos
talvez daí tenham se erguido as críticas mais
sociais
negativas, ao mesmo tempo que justo daí, reside
predomina para a grande maioria dessa parte da
todo o seu mérito. Ao contar a história que pode
população, essa parcela que esse filme aborda de
ser de muitos outros meninos mundo afora, toca
maneira
uma emoção real e profundamente sentida, é a
diretamente a tensão entre brancos e negros, faz
história de mais um, mas também poderá bem
um
ser a inspiração de muitos. Chifron é a síntese de
poderemos chamar de “identidade negra”. O filme
uma sociedade que se constrói por marcadores
ganha o mérito de trazer todo seu elenco negro e
que excluem mais do que possibilitam uma
ter “figurantes” brancos que pouco ou nada têm a
diversidade
ver com a história contada,
o
toque
a
mais
história
de
sutil
por
mais
escolhas,
se
tratar
romantizada
empurram
sem
colonizadores
construindo
corte
visceral.
“normalizou”
um
papel
Escolhendo
profundo
e
relações
social
não
emocionado
que
abordar
no
que
correm como um
mediação para caminhos pré estabelecidos pelas
plano de fundo, servindo-se, por exemplo, da
oportunidades desiguais que já vêm de berço,
comida preparada por Kevin(André Holland) ou
algumas agravadas por questões da própria
comprando as drogas de Juan(Mahershala Ali).
singularidade, como vemos acontecer com o
Também não interessa em seu roteiro enaltecer os
menino e sua orientação sexual.
poucos negros que passaram pelo funil social,
embora a premiação do filme aponte para isso,
Este ano se esperava com certa curiosidade para
principalmente no que diz respeito a Mahershala
conferir
Ali e o diretor da produção, Barry Jenkins.
qual
seria
o
comportamento
da
Academia frente às pesadas críticas que no ano
Caberia a Moonligth a complementação no título
anterior se ergueram referentes tanto Cerimônia
com algo como “A Vida Assim Como Ela É”.
de premiação, assim como como aos indicados,
uma cerimônia “White”, como foi nomeada. Seria
Surpreende um filme considerado de baixa
simplista pensar que Moonlight foi escolhido
bilheteria ganhar o Oscar de Melhor Filme,
apenas por se tratar de um filme “negro”, quando
embora saibamos que essa cerimônia é muito de
havia outro concorrendo que atende a todos as
política, não se pode dizer que entre as produções
prerrogativas de prêmios, usando uma fórmula
indicadas
muito bem aceita pelo público e dando a
estatueta.
contemporização tão apreciada pela Academia,
esse filme era o “Hidden Figures” que também
emociona, mas não surpreende, e ainda utiliza a
velha saída de adocicar a opressão.
15
Moonlight
não
merecesse
levar
a
cinematerapia: volume 02
Em tempos onde a polarização americana anda
Quando
de vento em popa, não deixa de ser um “tapa de
complicado a um jovem pobre, negro e gay
luva
crescer
de
pelica”
o
prêmio
ao
mulçumano
pensamos
dentro
de
no
sua
quanto
por
aqui
comunidade,
é
sendo
Mahershala Ali e a um roteiro que de forma
obrigado a enfrentar todo tipo de violência das
muito simples aborda o crescimento de um
mais bárbaras, se torna impossível não concluir
menino negro e gay. Dentro dos estudiosos da
sobre a importância desse filme. Em um país onde
forma de narrativa no cinema, aponta-se para o
o “estupro corretivo” é uma prática cotidiana em
diferencial que esse filme traz para o cinema
muitos
americano já que estaria mais identificado com
noticiado um acontecimento chocante sobre um
um cinema contemplativo, tipo de produção que
rapaz que teve introduzido nele por seus colegas
geralmente aquece mais os circuitos conhecidos
de trabalho uma mangueira do Lava a Jato onde
como de “arte”.
trabalhava, há uma identificação instantânea com
recantos,
tendo
sido
recentemente
essa realidade aparentemente circunscrita a outro
Filme com apenas poucas falas mais impactantes,
país. Poderíamos pensar que por aqui por nossas
ele vai retirar suas emoções de interpretações
bandas ainda nem temos condições de fazer
muito bem conduzidas entre silêncio e música,
refletir sobre tudo isso tal tem sido a obscuridade
toca o pensamento que se constrói no espectador
de pensamento que vemos surgir em corações e
que irá se identificar em algum momento com
mentes na dura atualidade que vivemos.
alguma vertente do que é abordado, nem que seja
com
aqueles
que
perseguem
o
menino,
O ator estreante Alex. R. Hibbert que interpreta
provocando, assim se espera, alguma reflexão. É
Chifron em sua infância, cativa com o olhar que
o tipo de cinema que não vem para apenas contar
prende o espectador à tela, preocupado já com
bem uma história, mas que tem a ousadia de se
não se deslumbrar com a fama(fenômeno que
pretender
conta
uma
ferramenta
de
mobilização,
histórias nada belas sobre muitos atores
aquela estocada certeira que só os bons filmes
mirins que foram promessa), diz que doará parte
conseguem dar com maestria. Uma das cenas
do dinheiro recebido para construção de um
entre
Paula(Naomie Harris), mãe de Chifron e
laboratório para pesquisa sobre o câncer. A força
ele adolescente(Ashton Sanders) é um bom
de sua interpretação convida no primeiro ato do
exemplo dessa potência que traz em si mesmo, o
filme, dividido em três atos, a que o espectador
menino é como aqueles peixes que nadam contra
permaneça atento naquele garoto que buscará no
a forte correnteza tentando sobreviver. Essa cena
par composto pelo traficante Juan(Mahershala Ali)
é a única onde o diretor escolheu carregar nas
e
interpretações mais intensas dando assim a
representação de um casal parental que o acolha e
dimensão do que aprisionamento que descreve
oriente.
sua
namorada Teresa(Janelle
Monáe)
uma
ao longo de sua narrativa, fez lembrar a brava
resistência
terna
de
outro
personagem
Ver-se então a infância em suas necessidades mais
inesquecível, o Michael do filme “Um Sonho
básicas sendo visitada pela criança que sofre em
Possível”( The Blind Side/2009) que também
seus laços mais próximos, no caso apenas de sua
olha a mãe como uma pessoa adoecida e que
mãe que tem na droga e na dependência a
precisa de cuidados, mas também de distância
totalidade de sua relação com o mundo, não
protetora. Chifron entenderá isso ao longo de seu
restando dela
crescimento, a relação fragmentada e dolorosa
momentos de lucidez que visita muito de vez em
com Paula o fará se afastar, sobrevivendo dentro
quando. Será na casa de Juan e Teresa que Chifron
do que se apresenta como sua realidade.
buscará muitas vezes pela segurança que seu lar
não provê a ele.
16
para ele nada mais que rápidos
cinematerapia: volume 02
Mas como na vida real, sem qualquer aviso, em
algum
momento
Juan
simplesmente
desaparecerá, como é o triste destino que aqui no
Brasil alimenta a chocante taxa de mortalidade
de jovens na periferia e comunidades mais
pobres, engolidos pela violência inerente ao
tráfico. A figura que representa as identificações e
os impedimentos será toda assentada para ele
neste casal que encontra em seu caminho, que na
verdade ele busca em uma insistente presença
junto a Juan que acaba por se comover, também
em uma identificação cruzada, com a perspectiva
de Chiron.
A conversa entre Juan e Chiron sobre suas
relações com as respectivas mães dá a dimensão
do quanto Juan tenta se resgatar em Chifron, e o
quanto Chifron precisa para seu vazio afetivo
colar caquinhos em uma identificação possível,
mesmo que seja da mão que alimenta o abismo
onde sua mãe se lança. O círculo que alimenta
uma verdadeira tribalização assim é visitado pelo
contundente roteiro.
Fugir dos determinantes sociais não é uma tarefa
nada fácil, é árdua em alguns casos praticamente
impossível,
a
mão
do
destino
na
verdade
formulado por toda uma estrutura se faz pesada e
exige sua parte inegociável. Chifron, o doce
menino, encontrará um jeito de em estando,
driblar
os
contornos
internos
que
esses
marcadores querem lhe dar, as cenas finais dão
bem
conta
disso,
quando
conheceremos
o
adulto(Trevante Rhodes), em aparência a dureza
e agressividade exigida pelo modelo, por dentro
o menino que chora com a mãe e corre para
(re)encontrar seu primeiro amor e quem sabe
poder resolver a equação que um dia Juan lhe
deixara na reflexão à beira mar: “Chega um
momento em que você precisa decidir o quem
você é”.
17
cinematerapia: volume 02
Capítulo 04
Dor e Glória (2019)
Pedro Almodóvar retorna
às telas com novo filme,
segundo
sua
própria
definição, de auto ficção
Permite que o espectador penetre em uma
intimidade como a que dá título ao filme, sua
dor e sua glória, esta no sentido de uma
capacidade de escrever peças que tocam e
Copyright: Pedro J. Pacheco
emocionam a quem as assiste. Conhecemos há
décadas
a
capacidade
de
Almodóvar
em
Almodóvar com seu novo filme praticamente segue
transformar o simples em algo que desvenda
o que muitos estudiosos da atualidade indicam,
mistérios e provoca espanto e algum riso, tem
quando toma para si as rédeas de contar os pontos
sido assim filme a filme, suas fortes cores
onde as especulações sobre ele costumam se apoiar,
contrastam sempre com a singeleza de suas
não
personagens, que embora tragam sempre o traço
muito de sua história, já esclarecido pelo próprio
Mas, se formos refletir, quem nunca se sentiu em
diretor em entrevistas. Além de ter detalhes sobre
suas estranhezas assim como um personagem de
sua vida, traz pequenos detalhes ao conhecimento
Almodóvar em algum momento de sua vida? Isto
público, como as roupas que Banderas utiliza, o
é quase um verso. Almodóvar é, e sempre será,
apartamento, o endereço e muitas outras referencias
um banquete para cinematerapia. Suas obras são
a vida real do diretor. Temos a oportunidade única
sempre repletas de conflitos e situações que nos
de ver como é sua vida fora do cinema. Uma delícia
levam a insights e devaneios, servindo como
para os mais apaixonados por sua sempre intrigante
uma belíssima oportunidade de reflexão.
figura dos cabelos perfeitamente desalinhados.
Não espere um filme denso e com plot twist
Piel
O diretor que costuma ser usado quase como um
que
sinônimo de intensidade e exagero, na verdade
Habito/2013), ou uma comédia rasgada e ácida
como
Os
Amantes
pasajeros/2013),
mas
Passageiros(Los
sim
um
filme
com
com o filme (sem spoilers). Mas a produção tem sim
povoado da infância e que eles não gostam disso.
Habito(La
preencham
claro que não acontecerá. Pelo menos de acordo
mesmo, diz que ele retrata seus vizinhos do
que
que
como uma auto-biografia do autor, mas isso ficou
agora a mãe do protagonista, que no fundo é ele
Pele
para
uma possível aposentadoria a partir desse que seria
fazem pensar quem as assiste. Neste filme de
A
lacuna
suposições desvirtuadas. Muito se especulou sobre
de gente real virada do avesso, confundem e
como
deixa
nunca exaure seu espectador, ao contrário, costuma
amantes
ser sóbrio no sentido de jamais tentar capturar uma
linear,
opinião, apenas envolve e afeta e a partir disso, cada
tocante e profundo, na mesma linha que Má
um que faça com o sentido o que quiser.
Educação(La Mala Educación/2003).
18
cinematerapia: volume 02
Mostra sua fragilidade e sua solidão como antes
Há nesse desejo também muito de tristeza, talvez
de certa maneira já havia segredado em “Abraços
nessa história que o diretor conta, o que mais se
Partidos”( Los abrazos rotos/2009), onde sempre
sobressaia seja justamente a tristeza oriunda de
se suspeitou que o escritor de roteiros, Harry
um isolamento auto imposto, talvez consequência
Caine/Mateo Blanco(Lluís Homar), contivesse
exata
fortes
O
homoafetividade, isso fica meio colocado quando
isolamento e a dificuldade em sair de sua
em sua conversa com sua mãe já doente ele diz
proteção solitária, repleta de dor inclusive física.
que sentia muito por nunca ter sido o filho que a
De seu quase bunker lança relatórios do que
mãe desejaria que fosse e que quando ela se
observa de humanidade em traçados assinados
indagava a quem teria puxado não fazia isso com
com
cada
orgulho. Dor de uma aceitação que fica sempre
personagem, que jamais saberemos realmente
marcada por uma sutil reprovação, como lhe disse
quem
sua mãe, ela adaptou-se a muita coisa, não
aproximações
originalidade.
seja
cada
com
ele
Afirma
pessoa
mesmo.
através
que
de
pensamos
ser
de
uma
facilmente reconhecível. Obriga que seu público
necessariamente
se transforme em sagazes observadores de gente
pleno.
difícil
acolheu
vivência
com
de
sua
entendimento
e de humanidades, essa abundante e complexa
subjetivação.
Dor e Glória foi o escolhido para representar a
Espanha na disputa pelo Oscar Melhor Filme
Segundo consta, Dor e Glória completaria o que
Estrangeiro de 2020, venceu na preferência os
se chamou de trilogia do desejo de Almodóvar,
outros dois pré-selecionados, “Mientras Dure la
sendo os dois anteriores “A Lei do Desejo”, de
Guerra”. de Alejandro Amenábar, e “Buñuel no
1987 e “Má Educação” de 2004. Neste de agora o
Labirinto das Tartarugas”, de Salvador Simó,
diretor revela o primeiro e impossível desejo, o
Almodóvar no ano de 2000 já ganhou nessa
entendimento
muito
sua
categoria com o filme “Tudo Sobre Minha Mãe”(
homoafetivade
desenvolvida
olhar
Todo sobre mi madre/1999), sem dúvida uma
desconfiado e reprovador de sua mãe, com quem
obra prima e inesquecível, talvez o mais marcante
manteve sempre a relação mais afetivamente
desse diretor. Com certeza será um competidor de
ligada em termos de afeto e tensão, e tenha
peso ao prêmio que pelo Brasil será disputado
preferido viver distante dela, decisão sobre a qual
pelo filme de Karim Aïnouz, “Avida Invisível”,
ela se queixa até o fim dos seus dias de acordo
inspirado no livro de Martha Batalha “A Vida
com a personagem do filme agora apresentado.
Invisível de Eurídice Gusmão”(Cia das Letras) que
O quadro que acaba por chegar em suas mãos ao
foi o nosso indicado. Almodóvar neste ano de
final
de
2019 já levou pra casa o Leão de Ouro pelo
descoberta, um carinho, um mistério que ele não
conjunto da obra no Festival de Cinema de
quer desvendar, mais valem as lembranças e
Veneza.
da
história
é
discreto
como
de
sob
um
o
presente
sonhos juvenis.
Dor e Glória tem um aspecto que passaremos a
Há no primeiro desejo uma força que moverá o
abordar, ele se insinua muito discretamente, sem
sujeito por toda sua vida, fica claro isso nas cores
que seja abertamente apresentado, em seu tom
de Almodóvar. .
melancólico, às vezes soturno, aprofunda-se na
questão das perdas e envelhecimento.
19
cinematerapia: volume 02
O protagonista, em sua visita ao médico, depois
Almodóvar
de resistir por muito tempo a procurar ajuda, diz-
Mallo(Antonio Banderas/Asier Flores) se desnuda
lhe que ainda não venceu dois episódios, a morte
em
da mãe e a cirurgia na coluna que fez logo depois.
vulnerabilidade dos laços, cena emocionante fica a
Agora terá que ser examinado e operado por
cargo de Asier Flores que representa Salvador na
conta de uma ossificação na coluna cervical o que
infância, quando frente ao desejo imenso que se
lhe provoca engasgos assustadores, doença de
dá conta, desmaia e tem uma febre inexplicável
causa desconhecida nomeada como Síndrome de
sob o olhar ainda reprovador de sua mãe, e diga-se
Forrestier que pela calcificação que causou
elogios mil a como Penélope Cruz representa tão
próxima ao esôfago, faz com quase nada de
bem esse aspecto, sem exagero e sem omissão,
líquido ou alimento consiga passar por ali. Um
deixa tão claro que dói ver.
via
fragilidade,
seu
em
protagonista,
tudo
que
Salvador
compõe
a
Almodóvar engasgado com algo, mesmo sempre
dizendo tanto, é algo a se refletir a respeito de
Como já foi apontado por muitos estudiosos, a
uma geração que ainda teve que viver uma vida
homofobia e a misoginia guardam muito em
meio dupla em relação ao desejo que fugisse da
comum. Que ousadia uma mulher envelhecer!
norma aceita socialmente.
Assim pensa nossa sociedade machista e misógina,
onde o homem mais velho pode namorar e casar
O filme quase sempre em meio tom de luz só se
com uma moça jovem, mas o contrário é visto
ilumina na parte das lembranças de infância, ali
como uma afronta, como recentemente foi visto
são subitamente inundada de muita luz, flores e
numa saia justa diplomática criada por declarações
cores. Mas retornemos ao aspecto que se passa
vindas
discretamente e que está ligado em parte à perda
temporariamente o poder no Brasil.
de
mandatários
que
exercem
da mãe, em parte na consciência do próprio
envelhecimento. Na clínica, quase sempre, somos
O mesmo encontra-se hoje uma parcela da
levados a trabalhar com uma conscientização
população LGBT. Muitos dos gays que puderam
mais profunda quanto ao envelhecimento e
assumir sua sexualidade estão envelhecendo, e
existência da morte, quando um sujeito perde
cada vez mais isolados ou afastados do que antes
um dos pais, mais marcantemente quando perde
era considerado o centro, há pesquisas que
aquele que exerceu a função de cuidados mais
apontam a questão da “volta ao armário” como
próximos(nem sempre a mãe). Talvez esse filme
estratégia de sobrevivência na velhice em muitos
seja exatamente a declaração de Almodóvar, se
casos, é verdade que também há inúmeros outros
tomarmos ao pé da letra que é um filme
casos dos que se assumem já na meia idade. O
autobiográfico,
de
envelhecer chega para todos e com a liberdade
consciência sobre a própria finitude, talvez daí
sexual, a maior aceitação e todo o processo que
também
elementos
vivemos
seu
tom
prepararam para a velhice, porque não é fácil
melancólico é ao mesmo tempo tão sereno,
mesmo fazer isso. Os corpos que antes eram
diferente do tom de exagero que costuma
esculpidos a base de muita dieta e academia,
imprimir às histórias que resolve contar. Porque
quando não são mais os mesmos, trazem um
é fato que um traço que atravessa o filme é o da
sentido de perda e de menos valia. Com a
serenidade.
mudança, vem também a solidão.
se
necessários
quanto
possa
para
a
sua
procurar
entender
tomada
os
como
20
nos
últimos
anos,
nem
todos
se
cinematerapia: volume 02
As baladas e saídas noturnas, os múltiplos eventos
A melancolia que atravessa o filme então se
e viagens ousadas, não fazem mais parte de seu
aproxima por demais do aspecto de solidão que
cotidiano e o antes garanhão aventureiro terá que
marca Salvador Mallo, que desistiu de seu amor
encontrar
sociais.
por Federico por entender que os dois juntos e a
Obviamente estes aspectos não dizem respeito a
própria Madrid eram para eles uma composição
Almodóvar, mas o envelhecimento de um sujeito
tóxica, ao que se entende não voltou a amar
gay que não pôde desenvolver uma relação
daquela maneira. Diz em seu texto na peça
afetiva duradoura é presente sutilmente e amarra
anônima: “O amor não é suficiente. O amor pode
a narrativa. Seu grande amor abandonado no
mover montanhas...Mas não é suficiente para
passado , Federico(Leonardo Sbaraglia) aparece
salvar a pessoa que você ama”. E finaliza assim
de surpresa para visita-lo, após assistir a uma
como uma declaração que Almodóvar oferta ao
peça que Salvador doou para que o ator de seu
seu público: “Os filmes me salvaram”, talvez como
primeiro filme de sucesso, Alberto Crespo(Asier
uma declaração de amor ao seu espectador. Mas
Etxeandia), levasse ao palco anonimamente em
também declara que foi o amor que o fez colher
relação ao autor do texto. Federico se reconhece
mundo afora em suas viagens com Federico
no personagem descrito e procura por Salvador
aquilo que diz compor suas histórias. O amor
Mallo.
como via de descoberta do mundo, como foi o
novas
formas
e
relações
primeiro de Salvador que o fez desmaiar e como
Ao que se pode especular, talvez o personagem
foi Federico que o fez desbravar o mundo e a
de Alberto Crespo seja Antonio Banderas na vida
própria sexualidade.
de Almodóvar, ator que passou vinte e dois anos
sem contato com o diretor após um consagrado
O corpo move e impede, de inúmeras maneiras,
filme, “Ata-me”( ¡Átame/1989) e retornou sob sua
sua Dor e Glória. Almodóvar é esse diretor que,
direção no intrigante “A Pele que Habito”( La Piel
quase inexplicavelmente, consegue alcançar um
que Habito/2011).
público tão diverso, atinge diferentes camadas, é
adorado por diferentes grupos, basta uma busca
em páginas de cinema na web que facilmente isso
é constatado. Seu afeto que transborda na tela,
captura!
Que a dor não o consuma e que nos
oferte mais muito de sua glória!
20
cinematerapia : volume 02
Capítulo 05
Amor Por Direito (2015)
Dirigido por Peter Sollett,
com
roteiro
de
Ron
Nyswaner.
Começamos
português,
pela
reflexão
maravilhosamente
do
título
em
adaptado
e
traduzido. Amar é um direito? Se sim, todos
temos esse direito de forma igualitária em nossa
Copyright: Gage Skidmore
sociedade atual? Essa película, delicadamente e
emocionalmente, nos mostrará que não. Muitos
Ellen esteve no Brasil gravando um documentário
de nós temos o direito de amar cerceado por
chamado Gaycation, mostrando o universo LGBT
uma minoria que ao longo dos séculos ocupa a
ao redor do mundo. Ficou mais conhecida em
posição de maioria, ditando tudo o que os
nossas redes sociais ao entrevistar o Deputado Jair
demais podem e não podem fazer, condenando
Bolsonaro sobre tema e o ter enfrentado por suas
tudo aquilo que os contraria, tornando suas
declarações, classificadas por ela, como machistas,
agendas pessoais e religiosas doutrinárias em
misóginas e homofóbicas.
normas e Leis.
Obs: O nome correto hoje é Elliot Page, uma vez
Antes precisamos falar de Ellen Page, mulher
que informou publicamente que é um homem
com cara de menina ainda, com seus 30 anos
trans. O artigo foi publicado muitos anos antes
tem se tornado uma gigante do ativismo. Além
dessa informaçao.
de atriz ,é produtora e diretora e tem se
envolvido
relacionadas
cada
vez
a
gênero,
mais
nas
questões
especialmente
A história desse filme, que é baseado em fatos reais e
em
bem recentes, apresenta a policial Laurel Hester
questões ligadas ao feminismo. Sua carreira tem
interpretada por Julianne Moore em mais uma
de tudo um pouco, tendo despontado bastante
magnífica interpretação, que trabalhou durante 23
em filmes de ficção, como X-men e Menina
anos para a polícia, sempre se destacando por seu
Má.com, com uma personagem bem sombria.
duro trabalho e posicionamentos éticos, e que tem
Altamente reconhecida, indicada e premiada em
uma relação estável com a mecânica Stacie Andrie
diversos momentos da sua carreira, teve um
interpretada de forma comovente por Ellen Page,
ápice ao se assumir publicamente homossexual
que ao ser diagnosticada com um câncer de pulmão
em 2014 em uma conferência, sendo uma das
em estágio terminal começa sua luta para deixar sua
artistas atuais que pretende fazer a diferença
pensão para sua parceira.
nesta área, mostrando exemplos de pessoas bem
sucedidas e fora do armário, militando pela
saúde mental de jovens LGBT.
22
cinematerapia: volume 02
Sua reivindicação se transformará, sem mesmo
O único a pensar a questão sob uma ótica mais
que ela deseje isso, em um marco para que se
aberta, o conselheiro Bryan Kelder(Josh Charles, o
pleiteie o casamento de parceiros do mesmo sexo
William Gardner de Good Wife), marca pouco sua
nos Estados Unidos. Conta a produção ainda com
posição, representando assim toda uma sociedade
excelentes
Michael
que por acomodação se cala frente à ferocidade da
Shannon(O Abrigo) como seu parceiro na polícia
homofobia e de um conservadorismo que rouba
e Steve Carrel como o rabino gay ativista Steven
direitos.
participações
como
de
Goldstein, que levará com estardalhaço a luta do
casal para o conhecimento público.
Na vida real já ganharam os noticiários inúmeros
casos onde a questão da morte do parceiro deixa
Delicadamente a produção traz a tona alguns
totalmente descoberto seu par, dando início
questionamentos importantes nos dias de hoje.
muitas vezes a disputas com seus familiares que
São
a
em grande parte até sua morte haviam segregado
diferença. Começamos com uma cena que onde
do seu convívio esse parente por conta de sua
o chefe de polícia parabeniza e cumprimenta
orientação sexual(ou ainda por identidade de
apenas o parceiro de Laurel pelo bom trabalho,
gênero). Ou ainda quando é preciso tomar
deixando-a
não
decisões sobre um paciente que se encontra
reconhecendo igual importância na resolução do
inconsciente e o parceiro ou parceira é excluído
caso. Aprendemos que Laurel, na adolescência,
por não ser considerado parente. Casamentos que
ao se assumir homossexual, foi trancafiada em
duraram décadas frente à morte perdem todo o
uma
assim,
direito, se tornam invisíveis, trazendo uma dor
grandes dificuldades em se assumir publicamente
lancinante e ressentimento para quem com isso
como lésbica. Ou ainda na cena do hospital,
tem que conviver. Um outro filme belíssimo que
quando Stacie se apresenta como companheira e
se aprofunda nos sentimentos angustiados dessa
a médica informa que aguardava um familiar.
invisibilidade é o “Direito de Amar”(A Single
Pequenos detalhes....não tão pequenos assim.
Man/2009). No caso de Laurel e Stacie é diferente
pequenos
detalhes
em
instituição
que
segundo
fazem
toda
plano
psiquiátrica,
e
tendo
essa história, ambas contam com o apoio de
Se
pensarmos
em
sua
história
pura
e
familiares, a irmã de Laurel e a mãe de Stacie se
simplesmente, seria apenas mais um drama, um
tornam muito presentes, amparando-as.
casal amoroso que se vê às voltas com a iminente
morte de um dos parceiros. O que traz o
Fato é que ao se negar direitos a cidadãos o que se
diferencial e transforma a narrativa em um
prega é uma norma social, neste caso o da
roteiro de luta, ocorre por conta de toda a
tolerância sob rigorosos marcadores, os colegas de
estrutura preconceituosa que ainda insiste no seio
Laurel significam esse aspecto, inclusive um deles
social, que se recusa a reconhecer como legítima
que sendo gay sente-se ainda mais impelido a
a união de parceiros do mesmo sexo.
negar-se a solidarizar-se por conta disso poder ser
visto como um algo que o despiria de seus
O que se precisa ter em mente é que a discussão
disfarces, ele verbaliza isso para o parceiro de
sobre crenças religiosas não pode invadir o
Laurel, Dane Wells(Michael Shannon) oferecendo
espaço dos direitos cidadãos, o filme focará
uma solidariedade que não poderá ser revelada
também
aos outros sob pena dele negar tudo.
neste
aspecto
através
de
um
dos
Conselheiros do condado, Bill Johnson(Tom
McGowan), um dos que decidirão sobre o pedido
de Laurel.
23
cinematerapia: volume 02
Este é um dos aspectos interessantes que o filme
Cada personagem, por menor que seja sua
revela como ótimo ponto de reflexão, é comum
participação,
que isso se apresente na vida cotidiana sem com
complexo caleidoscópio que no real segrega uma
isso levar a que se erga uma reflexão mais
parcela considerável da população, mesmo nos
amplificada do quanto é amputar de um sujeito
países que se pensam como mais civilizadamente
parte de si, há essa exigência entre até mesmo os
avançados, veja que esse caso se passa nos Estados
que se pensam como mais flexíveis, tipo: seja
Unidos, país considerado como um referencial de
homossexual, mas mantenha-se discreto, não
democracia e direitos cidadãos.
demonstra
algum
aspecto
desse
demonstre publicamente sua forma de amar e
não exija direitos iguais aos heterossexuais.
Julianne Moore compõe sua personagem mais
Quanto conservadorismo costuma levantar um
uma vez de forma convincente, há em sua
casal homoafetivo que passeia de mãos dadas ou
aparência todo o embate entre a exigência que
demonstra afeto em público como outros casais
sempre se fez de manter “no armário” sua
heterossexuais
qualquer
privacidade e tudo aquilo que constrói sua forma
questionamento. Já houve um tempo que essa
de ser no mundo. Entre as roupas e cabelos que
regra
buscam
também
fazem
se
sem
aplicava
a
casais
inter-
uma
aparência
até
extemporânea,
também
conservadora, até o que a doença irá revelar, sua
baseado em caso real). Lemos com frequência
força e necessidade de dizer publicamente quem é
nos
foram
de forma integral. Será a jovem parceira Stacie,
violentamente
eficientemente trazida à tela por Ellen Page, quem
reprimidos apenas por demonstrações simples de
provocará essa revolução nos modos de Laurel
carinho em público.
que em nome do amor enfrentará questões que
raciais(veja
o
noticiários
repreendidos
filme
“Loving”/2016,
casos
ou
de
casais
mesmo
que
até então preferira manter no ocultamento. CalarLaurel insiste na sentença: igualdade. Sim, é disso
se tem um alto preço, sabe-se disso, inclusive
que se trata, igualdade de direitos. A palavra
como agravante nos adoecimentos físicos.
tolerância é um mal que temos que combater,
quem tolera, tolera algo que já reconhece como
Cena comovente que fecha esses questionamentos
um diferente de menor valor. Por mais que a
se dá no cartório onde Laurel e Stacie oficializam
intenção possa parecer boa, é preciso ver que a
sua união civil, primeiro pelo tom antipático da
questão dos direitos legais dos homoafetivos não
funcionária que realiza a união e depois quando
tem nada a ver com tolerância, mas sim com
na porta do estabelecimento querem comemorar
isonomia. Ao que se sabe, orientação sexual não
isso, mas olham para todos os lados antes de se
dá direito a desconto no Imposto sobre Renda,
tocarem muito discretamente. Amplie a cena para
por
algum outro filme com um casal heterossexual, a
exemplo,
então
não
há
qualquer
argumentação possível no sentido de que se teria
cena
que aceitar direitos a menos pela forma como se
confraternizando, uma verdadeira ode ao amor.
ama ou se vive a sexualidade(ou identidade de
gênero). Neste sentido o filme desenha a questão,
dá nome ao que precisa ser nomeado, apresenta
as incoerências e forças em embate sobre a
questão.
24
teria
música,
passantes
sorridentes
cinematerapia: volume 02
É justamente nesse tratamento desigual que o
Por se tratar de um filme baseado em fatos reais é
filme centra seu foco, muito competentemente,
muito difícil conter a emoção. Chorar com a
diga-se.
no
história de amor das duas e sua luta pela igualdade
cotidiano a existência de diferentes composições
é quase que um movimento natural ao filme. Que
amorosas é um ato de luta, nada fácil, diga-se,
a mensagem de Laurel seja mais ouvida e
porque com isso expõe e magoa a quem enfrenta
difundida. Fica a frase mais marcante do filme
as situações. Stacie que até quase ao final só
para reflexão: “Nao pedimos por tratamento
enfrenta a questão por conta da insistência de
especial,
Laurel, entende finalmente como passar por tudo
acrescentaríamos, visibilidade cidadã.
aquilo
Sem
que
dúvida
que
enfrentaram
hoje
era
afirmar
como
pedimos
por
IGUALDADE”
e
uma
declaração de amor, da existência dele entre elas.
A psicanálise já lá desde Freud despatologizou a
homossexualidade que passa a ser abordada
Aqui no Brasil “em maio deste ano o STF em
apenas
sede de Recursos Extraordinários (RE 646721 e
orientação da libido, segundo o cerne de onde
878694), declarou inconstitucional o artigo 1.790
parte o desbravador pesquisador e fundador da
do Código Civil brasileiro. O artigo prescreve
psicanálise, na verdade a heterossexualidade seria
diferentes regras sucessórias para cônjuges e
tão incompreensível quanto a homossexualidade,
parceiros”(fonte:Justificando nov/17). No filme
uma vez que constitucionalmente o ser humano
ficará informado que em 2015, vejamos que
seria bissexual, a passagem pelo Complexo de
recente isso, nos Estados Unidos se chegava a essa
Édipo muito tem a ver com a predominância da
conclusão, quando então foi declarado que: “o
orientação sexual(e identidade de gênero), mas
direito de se casar é um direito fundamental
hoje
inerente à liberdade da pessoa sob as Cláusulas
determinam essa predominância.
do Devido Processo Legal Justo e da Proteção
com o trecho inicial da conhecida carta de Freud a
Igualitária da Décima Quarta Emenda, os casais
uma mãe de homossexual(abril/1935) que fala da
do mesmo sexo não podem ser privados desse
invisibilidade da questão e de sua leitura sobre
direito e dessa liberdade“. No Brasil de há bem
tudo isso:
como
sabemos
uma
que
das
outros
possibilidades
fatores
de
também
Finalizamos
pouco tempo, quando então não enfrentávamos
essa onda retrógrada que vimos se fortalecer
Minha querida Senhora,
neste ano, a nossa Justiça determinou que fosse
obrigatório aos cartórios realizar o casamento
Lendo a sua carta, deduzo que seu filho é
entre pessoas do mesmo sexo, ampliando assim a
homossexual.
questão da União Civil. Embora a questão na lei
atenção o fato de a senhora não mencionar este
avance, vemos que na vida comum estamos ainda
termo na informação que acerca dele me enviou.
muito longe de alcançarmos uma igualdade de
Poderia lhe perguntar por que razão? Não tenho
tratamento. Frequentemente somos informados
dúvidas que a homossexualidade não representa
sobre
se
uma vantagem. No entanto, também não existem
declararem gays com manifestações afetivas, até
motivos para se envergonhar dela, já que isso não
mesmo quando isso se dá apenas em suas redes
supõe vício nem degradação alguma.
casos
de
pessoas
demitidas
por
sociais ou círculo íntimo, pessoas expulsas de
bares, padarias, restaurantes, por esse motivo,
fora o grande circuito de violência que alimenta
nossas
aterradoras
estatísticas
em
relação
à
população LGBT.
25
Chamou
fortemente
a
minha
cinematerapia : volume 02
Capítulo 06
Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014)
Depois do grande sucesso
do curta metragem “Hoje
Eu
Não
Quero
Voltar
Sozinho Pra Casa”, o diretor
e roteirista Daniel Ribeiro
se
lançou
a
produção
desse longa.
Copyright: FICG.mx
A troca no título já dá conta do amadurecimento
A chegada de Gabriel vem a abalar a relação entre
proposto pelo roteiro e houve por conta disso
eles, provocando inicialmente uma vivência de
grande expectativa em relação ao lançamento do
ciúme e de perda de lugar por sua amiga. Leo vive a
filme que não deixou a desejar, de maneira
vida escolar no modelo mais completo de inclusão,
envolvente e assim como no curta, gentil e
tendo como diferença na sala de aula sua máquina
delicadamente, manda seu recado super bem.
de
escrever
em
Braille
que
possibilita
suas
anotações.
Um filme que pode lançar temas para debates
sob variados aspectos, o primeiro amor, a busca
Todo o filme é generoso, faz tocar no espectador a
pela autonomia na juventude, a vivência de
lembrança dos medos adolescentes em relação a
limitações físicas na adolescência, a relação de
superproteção
orientação
que
sexual
impede
que
o
aceitação, a relação amorosa, e não adocica a ponto
crescimento,
desponta
com
de estragar a mistura, mas consegue ao mesmo
a
tempo permanecer na linha do romântico juvenil,
sexualidade, relações de poder em grupos jovens
resgata uma crença nas boas coisas que amar pode
(com ou sem bullying) e tantos mais outros. Um
conter. Apresenta uma harmonia que permanece
caleidoscópio generoso da vida de adolescentes,
como forte fio mesmo nos momentos de conflito
classe média, em um grande centro do Brasil.
entre os personagens. Enfim, um filme doce e
generoso.
Leonardo (Ghilherme Lobo), Gabriel (Fabio
Audi) e Giovana (Tess Amorim) são os três
Então vamos lançar a questão que gira em torno do
personagens que conduzem a história. Tudo se
questionamento do fato dele ter criado alguma
passa entre a sala de aula, a casa e alguns passeios
que
nossos
portador
de
jovens
farão.
deficiência
Leonardo
visual
que
desde
polêmica. Inserimos então a produção em um Brasil
é
que anda às voltas com temas que até então preferia
seu
“deixar no armário”.
nascimento e por tal fato muito controlado e
protegido por sua família, tem em Giovana a
grande amiga que facilita muito sua vida entre
casa e escola.
26
cinematerapia: volume 02
É justamente nesse tratamento desigual que o
Por se tratar de um filme baseado em fatos reais é
filme centra seu foco, muito competentemente,
muito difícil conter a emoção. Chorar com a
diga-se.
no
história de amor das duas e sua luta pela igualdade
cotidiano a existência de diferentes composições
é quase que um movimento natural ao filme. Que
amorosas é um ato de luta, nada fácil, diga-se,
a mensagem de Laurel seja mais ouvida e
porque com isso expõe e magoa a quem enfrenta
difundida. Fica a frase mais marcante do filme
as situações. Stacie que até quase ao final só
para reflexão: “Nao pedimos por tratamento
enfrenta a questão por conta da insistência de
especial,
Laurel, entende finalmente como passar por tudo
acrescentaríamos, visibilidade cidadã.
aquilo
Sem
que
dúvida
que
enfrentaram
hoje
era
afirmar
como
pedimos
por
IGUALDADE”
e
uma
declaração de amor, da existência dele entre elas.
A psicanálise já lá desde Freud despatologizou a
homossexualidade que passa a ser abordada
Aqui no Brasil “em maio deste ano o STF em
apenas
sede de Recursos Extraordinários (RE 646721 e
orientação da libido, segundo o cerne de onde
878694), declarou inconstitucional o artigo 1.790
parte o desbravador pesquisador e fundador da
do Código Civil brasileiro. O artigo prescreve
psicanálise, na verdade a heterossexualidade seria
diferentes regras sucessórias para cônjuges e
tão incompreensível quanto a homossexualidade,
parceiros”(fonte:Justificando nov/17). No filme
uma vez que constitucionalmente o ser humano
ficará informado que em 2015, vejamos que
seria bissexual, a passagem pelo Complexo de
recente isso, nos Estados Unidos se chegava a essa
Édipo muito tem a ver com a predominância da
conclusão, quando então foi declarado que: “o
orientação sexual(e identidade de gênero), mas
direito de se casar é um direito fundamental
hoje
inerente à liberdade da pessoa sob as Cláusulas
determinam essa predominância.
do Devido Processo Legal Justo e da Proteção
com o trecho inicial da conhecida carta de Freud a
Igualitária da Décima Quarta Emenda, os casais
uma mãe de homossexual(abril/1935) que fala da
do mesmo sexo não podem ser privados desse
invisibilidade da questão e de sua leitura sobre
direito e dessa liberdade“. No Brasil de há bem
tudo isso:
como
sabemos
uma
que
das
outros
possibilidades
fatores
de
também
Finalizamos
pouco tempo, quando então não enfrentávamos
essa onda retrógrada que vimos se fortalecer
Minha querida Senhora,
neste ano, a nossa Justiça determinou que fosse
obrigatório aos cartórios realizar o casamento
Lendo a sua carta, deduzo que seu filho é
entre pessoas do mesmo sexo, ampliando assim a
homossexual.
questão da União Civil. Embora a questão na lei
atenção o fato de a senhora não mencionar este
avance, vemos que na vida comum estamos ainda
termo na informação que acerca dele me enviou.
muito longe de alcançarmos uma igualdade de
Poderia lhe perguntar por que razão? Não tenho
tratamento. Frequentemente somos informados
dúvidas que a homossexualidade não representa
sobre
se
uma vantagem. No entanto, também não existem
declararem gays com manifestações afetivas, até
motivos para se envergonhar dela, já que isso não
mesmo quando isso se dá apenas em suas redes
supõe vício nem degradação alguma.
casos
de
pessoas
demitidas
por
sociais ou círculo íntimo, pessoas expulsas de
bares, padarias, restaurantes, por esse motivo,
fora o grande circuito de violência que alimenta
nossas
aterradoras
estatísticas
em
relação
à
população LGBT.
27
Chamou
fortemente
a
minha
cinematerapia: volume 02
O recente furor em torno do chamado de “beijo
Na linha religiosa alimentando a falácia de não
gay” em novelas televisivas dá o tom desse
aceitar o pecado, mas acolher o pecador em seu
debate, ao mesmo tempo que, vemos avançando
obrigatório sofrimento. No filme todo e qualquer
todo um setor conservador que grita e esperneia
sofrimento não nasce em qualquer ligação com a
contra as mudanças que recentemente vêm
orientação sexual e sim na vivência que há em
alterando progressivamente o panorama moral
qualquer grande aventura que significa amar com
que até então sustentava as relações socialmente
desejo pela primeira vez.
aceitas.
Os
pais
de
Leo,
Laura(Lúcia
Romano)
e
Dos bares ao Congresso Nacional, a sexualidade e
Carlos(Eucir de Souza) formam um casal
aquilo que entendemos como
usual está na
modelo mais tradicional que se possa erguer,
pauta, discutido e revirado, levando inclusive ao
zelosos e amorosos procuram cercar o filho de um
desplante
cuidado
de
um
grupo
de
parlamentares
onde
a
questão
da
diferença
no
pela
religiosos defenderem a derrubada de uma
deficiência visual pode, inclusive, ser questionada
Resolução
de
por ele. A cena do fazer a barba com a ajuda de seu
Psicologia, apoiada em orientações da OMS e
pai antes da festa é uma boa exemplificação do
APA
a
quanto a orientação sexual e da identidade de
homossexualidade como patologia e oferecer as
gênero fogem ao estereótipo que por muito
impossíveis
da
tempo acompanhou o modelo de homossexual
homossexualidade que já foi desacreditada até
que o social quer ver como único. A questão da
mesmo por um dos seus principais divulgadores,
orientação homo afetiva não necessariamente
Robert Spitzer. Aparentemente algo ultrapassado
recai em uma identificação com o gênero oposto,
e medieval mas que aparece semanalmente nos
muito pelo contrário, o prefixo homo quer dizer
consultórios e nos serviços de saúde: pessoas que
amar e desejar um sujeito do mesmo sexo
buscam
(gênero). Hoje sabemos que encontraremos tanto
001/99
que
do
proíbe
ao
terapias
"reversão"
encaminhadas
Conselho
por
psicólogo
de
da
Federal
tratar
reversão
sua
pastores,
com
sexualidade,
promessas
na
orientação
homo
como
hetero
variações
milagrosas de que existe uma "cura" para uma
complexas nas combinações de identidade, tendo
doença que sequer existe.
como
ápice
dessa
exemplificação
a
transsexualidade que pode combinar ou não
Se há algo que Leo e Gabriel nos fazem entender
orientação e identidade de gênero. Alguns filmes
no filme é o quanto o afeto que os aproxima é
como “Normal”(2003), “Transamérica”(2005) e
legítimo e “natural”, sem traumas ou abusos que
“Laurence
fundamentem qualquer colocação de dúvida a
questão de forma exemplar. Temos ainda aqui na
respeito de algo que se conduz, desliza, próprio
atualidade o genial quadrinista Laerte Coutinho
da linha do desejo. Talvez isso tenha sido
pra esquentar ainda mais o debate do tema.
Anyways”(2012),
apresentam
essa
realmente um incômodo aos homofóbicos de
plantão, que até aceitam discutir a orientação
A poesia de Drummond atravessa nossa história e
homo afetiva, desde que se problematize a
parafraseando
questão, desde que se tente dar um nascedouro
Leonardo que amava Gabriel que era amado por
da pulsão como algo que teria sido, de alguma
Karina (Isabela Guasco) e amava Leonardo, e no
maneira, “acidentado”.
filme, esperançosamente, fechando um círculo e
teremos
Giovana
que
amava
formando um casal apaixonado, que aventurandose nas descobertas da primeira relação amorosa,
abre as portas para o mundo, para tudo aquilo que
antes não era enxergado ou sequer suposto como
28
possível, como saber do eclipse ou andar de
bicicleta.
cinematerapia: volume 02
Amor esse refúgio que faz valer a vida dos
Na verdade em uma linha afirmativa, necessária,
absurdos que temos que enfrentar, que atenua a
até mesmo na condução de uma psicoterapia que
hostilidade que atravessa a caminhada, como os
lide com a inclusão da questão do enfrentamento
colegas da escola dos meninos. O primeiro
do mundo pelo ser de orientação homo afetiva,
assumido
que
precisamos de mais filmes como esse, que não se
transmite aquela sensação que só quem se
pretende uma obra de “luta”, mas que apenas
aventurou na terra do amor pode reconhecer,
apresenta a vivência simples e direta de um
aquele momento único onde tem-se a sensação
sujeito(na obra um adolescente), no qual uma das
de ter encontrado ali um lugar, um porto
características é ser gay (como o faz também a
acolhedor e seguro. Um porto que antes de ser
série “Looking), isso não o descreve como um
uma chegada é bem mais um abastecimento para
todo, não o faz identificar-se apenas por esse
a partida para a vida, para a grande aventura que
prisma, pelo contrário, ao afirmar sua orientação
é
ele descortina sua singularidade de maneira
abraço
experimentar
entre
as
Leo
e
ações
Gabriel
do
cotidiano
compartilhado.
ampla, como a olhar para um espelho que une
todos os seus elementos.
Um adolescente que bravamente quer conhecer o
mundo
do
vínculo
amoroso,
como
ele
é
A forma direta e simples como Giovana lida com a
construído, a conversa que tem com sua avó
revelação
(Selma Egrei) aponta para essa busca, para a
apontam
possibilidade do encontro, do cuidado que cada
significativa
dos
par empreende ao longo de sua caminhada. Leo
descobertas
efervescentes
quer autonomia, sua avó pondera sobre sua
adolescência de uma maneira bem mais direta,
pressa, sem culpar ou acusar, acolhe a ansiedade
menos encoberta ou obediente a muitas regras.
do neto de forma muito carinhosa, como a dar
Sabemos que a vivência da homossexualidade, da
um
juventude,
bissexualidade ou ainda outras experimentações
relembra sua vida, como conheceu seu marido,
de identificações de gênero têm sido um forte
como iniciaram a história de amor que funda os
marcador em variados grupos de jovens, mais
laços que levaram até a existência do neto. De
marcadamente
certa maneira informa o traço cauteloso de sua
Sabemos do quanto a adolescência se une em
filha
grupos,
toque
Laura,
da
peculiaridade
muito
anterior
da
ao
excesso
de
remete-nos
para
em
o
a
fato
muitos
de
jovens
em
tribos,
que
hoje
da
grandes
que
relatos
uma
lida
parcela
com
as
sexualidade
na
centros
se
que
urbanos.
identificam
por
cuidados que na atualidade invade o mundo
comportamentos e gostos(onde a música é um
interno de Leo. Um traçado histórico ajuda e
forte
muito a criar alternativas para o presente, muitas
conservadora, quase sempre ligada a grupos
das vezes para que possa ser composto precisará
religiosos, querendo desenterrar a velha questão
da ajuda de um psicoterapeuta, até porque nem
do casamento virgem, obviamente heterossexual,
todas as famílias podem abrir suas recordações
em algo que já virou movimento denominado de
de
“Eu Escolhi Esperar” ao qual uma parcela diz
forma
tão
serena,
como
vimos
aqui
recentemente abordando outros filmes.
aderir.
29
marcador).
Reage
a
isso
a
linha
cinematerapia: volume 02
Na contramão dos avanços mais importantes de
tomada do corpo, grupos como esse significam a
defesa de tudo aquilo que descamba e alimenta
os piores pontos de angústia e sofrimento no
adolescente e que mostra seu manifesto nos
preconceitos
erguidos,
um
dos
quais,
a
homofobia, que agride e mata uma significativa
parcela da população no Brasil todos os anos. O
ressentimento
dos
que
não
podem
amar
livremente é uma terrível ameaça aos que amam
abertamente.
Como
veremos
no
filme
nos
personagens que formam o grupo que persegue
Leo e Gabriel.
O filme que parece singelo traz então dentro de si
muitos méritos, com certeza faz o espectador
acabar de assisti-lo com um gostoso sorriso no
rosto, se jovem com mais coragem para suas
buscas, se não cronologicamente mais tão jovem,
fazendo-o
lembrar
do
quanto
é
boa
a
ingenuidade da crença no grande amor. Sua
mensagem mais forte será a de resgatar uma fé
no capacidade de vínculo que faz com que cada
um de nós prossiga sempre, porque é verdade
que amamos para sobreviver às mediocridades
do
cotidiano.
Um
filme
sobre
primeiras
experiências, das mais variadas possíveis. A
coragem é filha dileta da nossa capacidade de
amar
o
outro,
se
entregar
plenamente,
compartilhar, e Leo e Grabriel com toda certeza
merecem nossos aplausos. Encerramos com a
sensação do filme, com a esperança na salvadora
mudança , em uma civilização menos mal estar e
mais amor, como diria o velhinho sabido em
carta para sua amada noiva Martha Bernays(27 de
Junho, 1882 ):
“Como é ousado aquele que tem a certeza de ser
amado."(Sigmund Freud)
Um filme sobre primeiras experiências, das mais
variadas possíveis.
30
cinematerapia: volume 02
Capítulo 07
Uma Nova Amiga (2014)
Do
mesmo
irreverente
diretor de "Jovem e Bela"
(Jeune
&
Jolie/2013),
François Ozon convida para
reflexões polêmicas, em
mais
uma
potente
cutucada.
Copyright: Georges Biard
Pensar fora dos padrões tradicionais parece ser
O diretor assina o roteiro levemente inspirado no
uma constante marca que o trabalho de Ozon
livro homônimo de Ruth Rendell e a partir da
vem amadurecendo e que provocou com o seu
escritora inglesa move uma película com tensão e
filme anterior(citado acima) ou com seu “Dentro
reflexão com toques quase almodovarianos, faz do
de
o
preconceito no sentido literal do termo, o caminho
deliciosamente instigante “Postiche – Esposa
do suspense e dos segredos compartilhados entre
Troféu”(Postiche/2010)
Claire(Anaïs
Casa”(Dans
Deneuve(a
la
Maison/2012),
que
trouxe
com
a
diva
Demoustier
)
e
sua
nova
amiga
Belle de Jour) ao Brasil para o
Virgínia(Romain Duris). A vivência do luto profundo
deslumbre dos frequentadores do Fest Rio 2011,
pela morte prematura de sua amiga de infância
ou
seu
Laura (Isild Le Besco) e de manter a promessa feita a
reconhecimento mundo afora o “8 Mulheres”(8
ela de cuidar de sua filha recém nascida e do marido
Femmes/2002).
George, fará com que Claire mergulhe em uma
ainda
com
o
filme
que
marcou
profunda viagem que a levará ao questionamento de
Vemos, mais uma vez, o diretor tratar de uma
seus próprios enlaces amorosos.
maneira delicada um tema que costuma gerar
forte resistência, imprime a ele um humor
O filme abre sua perspectiva pegando o espectador
agradável. Em certos aspectos poderá remeter
ainda naquela modorra de início e já o avisa quanto
aos também ricos “Laurence Anyways”(2012) de
ao inusitado com uma das cenas mais belas e mais
Xavier Dolan, “Transamérica”(2005) de Duncan
impensavelmente bem construídas do cinema dos
Tucker, “Normal”(2003) de Jane Anderson ou
últimos anos. Vemos uma jovem noiva sendo
mesmo aos já clássicos “Priscila A Rainha do
carinhosamente preparada com esmero e a câmera
Deserto”(1994), de Guy Gross e “Para Wong Foo,
vai se afastando e o que o espectador se defronta faz
Obrigada por Tudo! Judie Newmar”(1995) de
com que se ligue rapidamente, de supetão, ao filme
Beeban Kidron. Neste que abordaremos no
que se propôs a assistir. Vemos Laura(Isild Le Besco)
texto, Ozon fornece ao espectador com uma
que é a personagem que correrá todo o tempo como
dose de ocitocina(o hormônio do amor), toque
linha que costura a história que assistiremos, em seu
de suspense e bom gosto uma verdadeira
caixão fúnebre, e então unidos pela dor da perda de
compreensão
Laura, Claire, a melhor amiga e George, o viúvo,
sobre
a
diferenciação
entre
orientação sexual, identidade de gênero, papel
mergulharão
social, sexo biológico e desempenho sexual.
acomodadas nos laços acolhedores com Laura.
em
suas
verdades
que
eram
Desamparados buscarão em uma aliança pelo que
31
não tem caixa que caiba, desafiando-se mutuamente
em suas fragilidades e potências.
cinematerapia: volume 02
Dessa
maneira
mergulha
o
espectador
na
Virgínia é puro prazer com sua primeira saída às
transformação gradual que George irá operando
compras, cumplicidade que Claire permite que se
em busca de realizar a forma como sempre se
desenvolva entre elas, vai no caminho dessa
enxergou e que confidencia a Claire que Laura
possibilidade
sabia antes mesmo de se casarem. O mundo
ausência de Laura, mas com o aprofundamento da
feminino será visitado em seus aspectos mais
relação entre elas se verá algo bem maior que uma
sedutores, tornados pela personagem Virgínia em
mera substituição emocional. George explica para
algo muito repleto de atrativos e força. De
Claire quando ela o surpreende pela primeira vez
crossdresser a uma inegociável identidade de
que, enquanto casado com Laura, ele havia
gênero o filme convida a pensar na anarquia
deixado adormecido seu desejo por vestir-se
pulsante que insiste no desejo, que denuncia-se
como mulher e diz: “A presença, a feminilidade
ainda mais fortemente quando não segue o script
dela, me completavam”. Talvez esta fala resuma a
de uma normalidade imposta por uma maioria.
grande homenagem que esse filme acaba por ser
do
vazio
afetivo
deixado
pela
para tudo aquilo que toca o feminino em sua
O filme encontra um momento na atualidade que
reprodução de papel social, a todos os marcadores
vive em extremos, por um lado há hoje em
do que é visto como feminilidade para o coletivo,
alguns lugares do planeta e entre segmentos
a impossível invisibilidade que uma mulher
sociais uma maior acomodação do que foge à
assume
regra heteronormativa fundada na pura biologia
corporalmente o que se entende como feminino,
dos órgãos genitais, e por outro lado, e até
ao mesmo tempo forte presença e ao mesmo
mesmo por isso, vemos erguer-se quanto ao que
tempo fragilidade e desamparo. A presença de
foge ao padrão aceito como normal um ataque,
Laura introjetada e exteriorizada acalma aos três,
via de regra, violento. Se pensarmos no noticiário
George, Claire e Lucie a bebezinha órfã da mãe.
recente em nosso país veremos como isso se
Claire abre sua aceitação ao receber chamada
encontra extremamente polarizado e teremos
telefônica de George e mudar o nome de seu
que constatar, infelizmente, que ainda somos um
contato para Virgínia.
quando
traz
pra
si
representar
país extremamente conservador, um país que
também
apresenta
um
traço
de
misoginia
Claire e Virgínia conquistam o shopping ao som
marcante e que, talvez por isso mesmo, trata os
de Katy Perry, entoando: “You change your mind.
transgêneros
e/ou
Like a girl changes clothes...”. A troca de roupas
desprezo. Nossos índices de violência cometida
que abre uma nova perspectiva de vida, trazendo a
contra os transgêneros e travetis é alarmante,
feminilidade não somente para Virgínia, mas
precisam
com
como se pode observar, também para Claire, que
elementos que permitam que se possa conquistar
passará a se preocupar com tonalidade de batom,
alguma ventilação em ideias emboloradas mais
vestidos que pouco usava, trejeitos e tudo que
por crendices arraigadas que por conhecimento e
marca o reconhecimento do que é se apresentar
informação. Neste aspecto esse filme pode ser
como mulher ao mundo. A grande aventura de
uma útil ferramenta porque traz em si todas as
Virgínia será ganhar um pequeno mundo, entre
qualidades de entretenimento ao mesmo tempo
lojas e compras a realização da identidade que
que um convite a um pensar diferente e muita
busca.
ser
com
tanta
pensados,
agressividade
questionados,
empatia pelas personagens.
32
cinematerapia: volume 02
Felizes com as compras irão ao cinema, e Virgínia
Virgínia toma a cena definitivamente, George não
sofrerá o seu primeiro assédio a partir desse lugar
retornará,
feminino que ocupa, excita-se, o que deixa Claire
desarrumará de vez qualquer certeza que ainda
enciumada(ainda sem se dar conta disso), e
carregue o espectador dentro da caixa na qual
questionada
homens,
socialmente somos treinados a pensar o desejo
responde categoricamente que não, e que a cena
humano. Por mais que construamos uma cultura
do cinema a havia excitado pela fato daquele
baseada em identificações fixas e dadas como
homem percebê-la como uma mulher, e que
normas, somos obrigados a pensar que o desejo
desejava tanto as mulheres que queria ser igual a
não tem regras definitivas e que escapa e desliza
elas. Aqui vai um esclarecimento necessário que
de inúmeras maneiras. Se, por um lado, isso pode
fala de que a identidade de gênero não tem
ser assustador, por outro,
relação direta com orientação sexual, isso põe por
essa é a natureza humana e talvez aquilo que nos
terra o estereótipo do gay afeminado como único
faz
modelo possível, é um dos, mas não o único e de
inúmeras saídas para os obstáculos que se enfrenta
que toda mulher transgênero deseja um homem,
no ato de viver.
por
ela
se
gosta
de
mais
e
a
finalização
inventivos,
dessa
história
podemos pensar que
mais
capazes
de
criar
há casais homoafetivos onde umx dxs parceirxs é
trans.
São inúmeras as possibilidades onde o
Passam-se sete anos e encontramos duas mães,
afeto desliza junto ao desejo.
Virgínia e Claire, que buscam Lucie na escola,
Claire agora grávida. Essa família encontra um
O marido de Claire, Gilles(Raphaël Personnaz),
lugar no mundo, talvez não o da maioria, mas um
começa a desconfiar de algum segredo, ao que
lugar de afeto tão legítimo como outro qualquer.
Claire se defende dizendo que George é gay,
Seguem em seu caminho de mãos dadas, dando o
acalmando os ciúmes de seu parceiro. Mas
recado de que podemos e devemos pensar em
George não se reconhece nessa orientação, ele,
diversidade como algo que faz parte do percurso
ainda que cada vez mais Virgínia, permanece
humano, que o afeto é na verdade o que constrói o
desejando o objeto feminino. Em determinado
caminho onde seres desejantes encontram o que
ponto
identidade
faz a vida valer a pena. Uma família homoparental
masculina, volta ao trabalho e se afasta de Claire
onde o que menos contará é o sexo biológico com
que se dará então conta que sente falta de sua
o qual vieram ao mundo.
ele
tenta
retornar
à
sua
nova amiga e chama Virgínia de volta. O
encontro dos dois leva ao desejo que descobrem
O filme se apresenta ao espectador como um
e então se dá a cena que confundirá ainda mais o
excelente obra que entretém e faz pensar e com
já atônito espectador, uma vez que ao iniciarem
um agradável clima, torna-o cúmplice de Virgínia
seu envolvimento sexual, Claire se dá conta do
pelas escolhas de Claire e inspiração de Laura,
orgão genital de Virgínia e foge dizendo que ela é
envolve em um tema que ainda mexe com
um homem. Virgínia nega, ela é uma mulher, é
certezas arraigadas, faz isso de forma precisa e
dessa forma que se reconhece. Atordoada sofre
eficiente sem perder a ternura, e com coragem.
um acidente que revela a todos sua identidade.
Em coma, não quer retornar o que só acontecerá
quando Claire a veste de Virgínia. Há uma
conversa entre George e Gilles, onde este diz que
tinha receio de não ser amado por Claire por
conta do grande envolvimento que via entre ela e
Laura,
denunciando
assim
perceber
o
homoerotismo dela.
33
cinematerapia: volume 02
Sabemos que a estrutura nuclear sobre a qual nos
erguemos
repensada,
maneira,
podemos
ainda
está
longe
representada
mas
dentro
incluir
de
dela,
o
fato
de
poder
alguma
sem
de
ser
outra
perdê-la,
um
certo
afrouxamento nos espartilhos que causam mais
dor
do
que
alívio,
porque
segregar
traz
sofrimento a todas as pontas, aos que segregam e
aos que são segregados, aumenta uma tensão que
poderia ser evitada por novas negociações. Ao se
tornar um crítico ácido das formas conservadoras
das sociedades ocidentais, principalmente da
classe média francesa, Ozon colabora para que
paremos
pra
pensar
algo
que
andam
“sussurrando em versos e prosas(...)que estão
falando alto pelos botecos(...)o que não tem
governo nem nunca terá.”
Como Claire e Virgínia, rendendo com Ozon
uma homenagem ao feminino como o que
resgata a potência de desarrumar, cantemos “Une
Femme Avec Toi”, sorrindo, porque é possível
construir um universo particular de alguma
alegria, mesmo frente ao desamparo que a
posição feminina marca.
34
cinematerapia: volume 02
Capítulo 08
A Pele que Habito (2011)
Essa obra é uma daquelas
que
dizer
que
é
surpreendente, mesmo em
se tratando desse cineasta,
é algo que não contempla
nem
pela
metade
a
dimensão que contém.
Copyright: Petr Novák, Wikipedia
Ela é apaixonante! Passeia de tal maneira pelos
subterrâneos do humano que cria ao longo do
Um bom exemplo e convite à reflexão é a alusão às
filme
esculturas de Louise Borgeois, detalhe que nos foi
uma
causando
tensão
em
quase
alguns
uma
que
insuportável,
necessidade
de
passado pelo olhar observador de uma colega
descarga ao seu final e que aparece quando os
psicanalista, Vânia Otero, a quem agradecemos pela
créditos sobem e ouvimos discretos risos que
dica. Outro detalhe interessante é o da coincidência
poderão ir num crescente até chegar a um sutil
de que seja a música que toca no momento da festa
gargalhar. Compreensível fenômeno, já que é
em que a filha sofre o episódio que alimentará toda
quase impossível conseguir levantar da poltrona
a trama, a mesma, Petit Fleur, que conduz a magia
após vivenciar o que o diretor nos apresenta em
do filme Meia Noite em Paris, e indo, em direção
uma sucessão de cenas inacreditáveis e falas que
oposta ao encantamento daquele, apresenta-nos à
cutucam com humor nossas mais profundas
crueza e perversidade que também compõe o
“entranhas” emocionais.
universo humano, e filmado por um Almodóvar sem
pudores.
Antonio
Banderas
está
magnífico
em
seu
personagem Robert Ledgard. O ator retorna aos
Se, em como em todo e qualquer roteiro, tenhamos
filmes do diretor depois de muito tempo (22
visto os personagens principais, poderíamos pensar
anos depois de Ata-me). Segundo especialistas,
em um filme sem coadjuvantes, porque todos os
esse é uma das poucas de suas produções em que
personagens imprimem à trama uma importância
o cineasta baseou seu roteiro em obras de
crucial,
terceiros, no caso desse filme, no livro Mygale
representados, por seus respectivos atores.
(Tarântula), de Thierry Jonquet. De qualquer
forma o que vemos na tela é a mais pura
assinatura de Pedro Almodóvar, sua presença
pode quase ser sentida ao nosso lado, olhando e
esperando ver cada reação que temos, e são
muitas e variadas. Muitos toques sutis que só
vamos entender no trabalho de elaboração feito
à posteriori.
35
e
todos,
aparecem,
muito
bem
cinematerapia: volume 02
O roteiro narra a história de um médico que
Com ele dizemos desse “eu” que somos, e com
empreende
do
esse mesmo eu pensante, desconhecemos quem
desenvolvimento de uma pele artificial para
realmente somos. Vivemos e é isso que na pele
repor
vamos
importa. Mas essa pele psiquismo é afeita a
tomando conhecimento em cenas retrospectivas
paixões, a investimentos que não cessam, em uma
de sua história, da perda de sua esposa em um
necessidade de toque que realimenta a carga
acidente de carro que provocou queimaduras em
afetiva que move o sujeito. E talvez seja essa uma
quase que a totalidade do corpo dela. Mais
das perspectivas que Almodóvar nos apresenta, até
adiante, em outra sucessão de cenas, ficamos
na relação quase “Síndrome de Estocolmo” que
sabendo que ela havia sido salva e com a
veremos desenvolver-se entre Robert e Vincent,
dedicação de Robert, se recuperado, até que
Robert e Vera. Magnífica a apresentação de Vera
vendo sua imagem em um vidro da janela de seu
feita pela atriz Elena Anaya
em
pesquisas
vítimas
de
em
torno
queimaduras,
quarto, seu terror foi tal que se suicidou pulando
dela.
Sua
empregada,
interpretada
pela
na
verdade
sempre
mãe,
que
impagável
é
Marisa
O filme passa a enfocar então a trágica trajetória
Paredes, sem que ele, Robert, saiba deste fato, fala
de sua filha (Blanca Suárez) que assistiu sua mãe
pontualmente
pular para a morte, enquanto ela, uma criança,
convencê-lo a livrar-se de Vera, mas é tarde, a
brincava e cantava sua canção predileta. Anos
realização do “estranho” em Robert já o havia
mais tarde, participando de uma festa, em uma
tomado por inteiro, ligado pelo traço em que
tentativa quase que primeira de inserção social,
apenas a morte dele ou do objeto poderá marcar o
essa
transtornos
fim da obsessão. Na mais intensa ambivalência o
mentais e tendendo ao isolamento, sofre no
laço se desenvolve, em uma tomada intensa em
jardim da festa um suposto estupro, praticado
amor e ódio, perversamente amalgamada. Dois
pelo jovem Vincent (Jan Cornet) que estava sob
predadores, duas presas, no balé que compõe o
efeito de drogas e que pouco irá se lembrar do
tecido
episódio, para sua infelicidade. Confusa, ela toma
“indiferenciação” que toca o sentido da temida
o pai, que a encontra, como o estuprador. Toda
castração, no filme efetivamente realizada, e, no
trama então vai se concentrar na vingança de
entanto, não mais presente como visão real,
Robert e só vamos entendendo sua dimensão no
embora sabida, é negada duplamente pela dupla.
transcorrer dos fatos.
Perversa relação. Mas ater-se a isso para entender
jovem
sofrendo
de
alguns
da
sobre
relação
a
de
questão,
tentando
perversidade,
na
o filme é muito pouco, reduz por demais o que
Esse filme toca em seu próprio título, fala desse
pode ser pensado a partir da emoção que nos
eu corpo, eu pele, com o qual nos identificamos e
provoca esse roteiro que mapeia os grandes
vivemos nossos atos no real, esse corpo que parte
conflitos que perpassam o sujeito desejante. Ou
de uma identificação e muito recalcamento para
alguém sabe realmente dizer o que determina
sua presença no mundo material.
aquilo que reconhece e assina como seu “eu”? Para
alguns a mais observável consciência de si, para
outros a maior vivência do lugar do estranho.
36
cinematerapia: volume 02
Onde somos? Apenas sabemos que sentimos que
A cena Tigrão e Vera faz lembrar outro trabalho de
somos, na pele, ou nos fechamos ao mundo,
Louise Borgeois(Couple IV). O ciclo de ódio se
catatônicos ou em forma de ouriço. Em qual
completa e ninguém sai ileso desse visceral
medida
espanhol
esse
outro
nos
interessa
que
denuncia
as
cores
fortes
que
verdadeiramente, existirá um outro que seja
abrigamos, mesmo que disfarçadas, e que há no
destituído
Vincent
passional de cada um de nós, a coloração, pesada,
encerrará o filme de alguma maneira remetendo-
escondida por cortinas sociais em tons pastéis. A
nos a essa questão. Era o mesmo na pele estranha
culpa, tão espanhola, representante de toda uma
que passa a ser a sua? Esse revestimento artificial
orientação que atravessa a sociedade ocidental,
que resiste até ao fogo.
desce com sua mão pesada onde na verdade todos
do
olhar
que
lançamos?
os pecados serão acobertados pela grande mãe.
Modificado em sua mais profunda identificação
Paira no ar a grande pergunta irrespondível, o que
ou, ainda, mais encontrado em sua oculta
é o amor? Ele existirá sem seu par inseparável, o
representação? O que constrói nossa identidade
ódio
de gênero, será ela tão fundamental para dizer
dependência?
despertado
pelo
desamparo
e
pela
quem é esse eu? Nem Almodóvar se arrisca a
responder a isso, mas corajosamente nos deixa
Vemos o amor posse, domínio, controle,
com a questão. Freudianamente poderíamos
perfeição, jogo de projeções e idealizações. O
supor que o diretor tomou o caminho certo se
objeto é o mesmo, não importa a pele que habite,
pensarmos como ficou a formulação final de
Robert ama, não importa em quem, traz toques de
Freud sobre o Édipo em que prevalência não
doçura em seu terrível ato de dominação, vemos
quer dizer único caminho, onde sabemos que
isso nas cenas de cuidados tanto quanto a Vincent
investimentos e identificações correm em seu
quanto com Vera. Cenas sutis de uma beleza
curso esperado nas duas direções. Onde todos
escancarada em sentidos.
somos iniciados pelo feminino.
Uma questão de quantidade, já diria Freud, o
O suspense que mostra a que veio, humaniza seus
amor deseja impor-se ao objeto, toda paixão é, em
algozes tanto quanto às supostas vítimas, não há
certa medida, pathos, cabe ao possível dar o
inocentes. Talvez seja essa a verdade mais cruel
encaminhamento via escolhas que possibilitem
que nos lança, rindo e fazendo rir. Um toque e
um vínculo mais Eros do que Thanatos. No
tanto e entra no enredo o Tigrão, parece um
caminho da relação sexual onde os conteúdos
elemento solto no momento do filme, tipo aquela
parciais ficam nas preliminares do gozo genital, o
pausa que é dada para um relaxamento em todo
“perverso” sob a primazia do genital, todo amor
suspense que se preze, mas a aparente pausa que
passa pelas preliminares do perverso e encontra o
sua entrada representa é desmentida pelos fatos
caminho do vínculo, da relação de objeto.
que se sucedem, e no final acaba ampliando o
.
clímax e narrando o não dito que atravessou
todos os acontecimentos que levaram até ao
comportamento
atual
de
Robert.
Agora
entendemos todo o tecido, e então ele se
transforma em algo ainda mais estranho, já não
existe uma delimitação de bem ou mal, ético ou
não ético, a moralidade voa pela janela queimada
pelas verdades nuas e cruas que são lançadas
pelas lentes do diretor.
37
cinematerapia: volume 02
Robert
ama
como
alguém
que
não
pode
abandonar-se, ama como um Narciso ferido e
dessa forma perecerá aniquilado sob o materno
olhar
desesperado.
Tarântula
que
caça
e
aprisiona, mesmo sem fome, sedução sempre
atuante, mais do que o crime, Almodóvar
aproxima o sujeito espectador do seu feminino
oculto, e cuja força se esconde no ato de possuir
pela beleza. Robert é o masculino que toma,
aprisiona, utiliza, detém a chave do poder. Esse
menino que em sua infância passa no filme cenas
muito rápidas de um ambiente igual ao das
favelas do Rio de Janeiro. Alguma alusão à
construção
lúdica
da
opressão
tão
bem
amalgamada em nossa cultura? O excesso de
exposição
opressão
como
e
a
mais
nova
desqualificação
fronteira
da
aprisionante
do
feminino? Apenas conjecturas nossas... É sabido
que esse diretor de um jeito ou de outro, quase
sempre, está a falar do feminino tão marcante em
sua vida.
Fato é que esse filme além de uma obra
cinematográfica de beleza sem comparação,
poderá torna-se, também, um dispositivo de
mobilização excelente, cutuca de forma intensa
angústias inomináveis, verdades inconfessáveis
38
cinematerapia: volume 02
Capítulo 09
Minhas Mães e Meu Pai (2010)
O longa com a melhor
média de renda de sala nos
Estados
Unidos,
esteve
praticamente ausente na
premiação do Oscar, fato
contestato
por
diversos
grupos.
Copyright: www.promiflash.de
A direção foi de Lisa Cholodenko, roteiro dela
mesma e de Stuart Blumberg e traz no elenco Nic
Obviamente, sabemos que a origem dela dada pelo
(Anette Benning) e Jules (Julianne Moore), seus
casamento segue a máxima de Marx que diz que ao
filhos,
final,
Joni
(Mia
Wasikowska)
e
Laser
(Josh
Hutcherson) e o pai Paul (Mark Ruffalo).
ou
seja,
“em
última
instância
tudo
é
econômico”. Nasceu o casamento muito ligado
sempre à defesa do patrimônio, a questão dos
Para falar desse filme vamos começar pelo final,
herdeiros, tudo isso passando por um lugar de
como um pequeno toque de direção, compondo
submissão da mulher que garantia todos esses
assim a nossa rota aqui nesse texto. Iremos ao
acordos. Começava ali na família, enquanto do lugar
encontro da face de Paul, olhando pelo lado de fora
de filha, o passe que garantia muitas vezes a
da casa, por meio da janela para dentro do interior
ascensão pelo casamento, ou ainda, a manutenção
da sala, isso após ouvir a dura sentença de Nic: “-Se
de privilégios.
quer tanto uma família, construa uma pra vc”. Isto
se dá quase ao final do filme e anuncia seu
Mas o mundo se transforma. Inventaram a pílula, a
desfecho. Deixa-nos frente a uma pergunta mais
mulher tomou para si a posse do corpo, da sua
atual que nunca: do que são feitos os vínculos que
sexualidade, buscou sua autonomia, inseriu-se no
constroem as relações familiares? O filme bem
mercado de trabalho, e começou a questionar a
poderia ter começado nesta cena.
menos valia quanto a sua produção (objetiva e
subjetiva).
Mudam
aos
poucos
as
arrumações
Longe, muito longe estamos de poder “naturalizar”
familiares. A sexualidade passa a ser discutida com
o modelo de família nuclear, até mesmo de
maior profundidade, e deixa de ser assunto só de
“naturalizar”
da
homens e abre a questão da sua função natural
sexualidade humana dentro da nossa organização
voltada e abençoada para a procriação. Nessa onda,
social que sabemos ser completamente orientada
entram também os questionamentos em torno da
pelo heterocentrismo. Mas, aos poucos o mundo
heterossexualidade como a única via normalizada.
ocidental vem convivendo com transformações em
Freud dá o golpe final ao afastar a sexualidade
torno daquilo que entendemos como família e
humana do instinto, substitui pelo conceito de
afeto humano.
pulsão algo que fica em uma fronteira entre o
qualquer
atividade
que
fale
somático (físico, biológico) e o psíquico. Há na
sexualidade algo que promove a vida como um
todo. Sua função vai para muito além do ato sexual.
39
cinematerapia: volume 02
Para um olhar mais íntimo, recomendamos a
Uma das falas finais de Jules frente à família deixa
leitura de um livro que fica entre o ficcional e o
clara a abordagem escolhida por esse roteiro. É
histórico, baseado em relatos concedidos pela
um filme que poderia ser descrito como leve, essa
paciente que levou Freud a escrever seu texto
é sua maior originalidade frente ao que se faz com
conhecido como “Sobre a psicogênese de um
o tema, na maioria das vezes, em concepções
Caso de Homossexualidade Feminina”. O livro
cinematográficas. Seu roteiro é direto e simples.
chama-se Desejos Secretos – A História de
Sidonie C., a Paciente Homossexual de Freud. Na
A diretora alegou que procurou ter muito cuidado
verdade
Czonka-
para não apresentar Paul (Mark Ruffalo), o pai
Trautenegg, mas seu nome só foi conhecido
biológico, como o vilão da história, e realmente
depois de sua morte em 2004.
pensamos que tenha conseguido seu objetivo. Paul
chamava-se
Margareth
é
um
personagem
que
causa
simpatia,
sua
Então, chegamos à atualidade dessa questão, em
evidente desorientação apenas promove um toque
muito modificada até mesmo naquilo que antes o
a mais de empatia com o público, emociona em
campo
grande
psi
utilizava
como
compreensão
da
medida,
consegue
quebrar
qualquer
homossexualidade. Hoje não mais encarada com
barreira ao fato de ele ter se disposto a ser um
qualquer
doador de sêmen. Simpático sem dúvida, mas ao
noção
de
patologia
ou
desvio
e
contemplada a questão com uma orientação
longo
constante do Código de Ética do Psicólogo que
identificação
deixa claro que não será permitido a esse
idealizado em um pai. Paul é sem dúvida um
profissional,
a
excelente amigo. Ele entra na vida dessa família
estará
por meio da curiosidade do caçula, o rapaz de
autorizado a oferecer qualquer procedimento
quinze anos chamado Laser (Josh Hutcherson)
que tenha como meta a mudança da orientação
que pede a sua irmã Joni (Mia Wasikowska) que
sexual, até porque, está mais do que demonstrada
está prestes a ingressar na faculdade, que localize o
a impossibilidade de ser esse um tratamento
pai. Os dois são filhos do mesmo doador, porém
possível.
cada um gerado por uma das mães, Mia por Nic e
estabelecer
homossexualidade
e
como
muito
patologia
menos
do
filme
“desconstrói”
possível
com
aquilo
qualquer
que
seria
Laser por Jules. O enredo do filme trará questões
Nossas personagens nesse filme, Nic e Jules,
que
formam
um
homoparentais, mas famílias constituídas por
casamento de muitos anos e dois filhos, esses
adoção ou inseminação in vitro com uso de
concebidos via inseminação de doador anônimo.
doador.
um
casal
homoafetivo
em
envolvem
não
somente
famílias
O início do filme apresenta ao espectador uma
família de classe média nos Estados Unidos, nada
Sem dúvida que, aos mais conservadores ou para
a observar que seja estranho, dentro dessa
aqueles que, via dogmas religiosos, ainda tentam
perspectiva. Os gêneros dos componentes do par
agarrar-se a qualquer resquício de compreensão
ou sua orientação sexual não interferem no cerne
da família a partir de uma perspectiva de
do que definimos como família. Se esse mesmo
naturalização da heterossexualidade, o filme será
roteiro contemplasse um casal heterossexual, não
uma
mudaria muito o rumo do filme, e talvez esteja aí
profundidade sobre a questão. Mas para todos
sua principal qualidade.
aqueles que já puderam se afastar, um pouco que
surpresa
e
fará
pensar
com
mais
seja, dessa concepção tão estreita e extemporânea,
esse longa se apresentará mais uma película de
história de amor e conflitos familiares
40
cinematerapia: volume 02
Já temos conhecimento no Brasil de inúmeras
A tese freudiana não cai por terra totalmente
famílias homoparentais, sejam essas constituídas
frente aos novos postulados que tentam colocar a
com filhos de relações anteriores heterossexuais,
orientação como fator inato, porque Freud não
seja por inseminação ou adoção. Já existe,
chegou nunca a desconsiderar o biológico, ele
inclusive, de fato, a possibilidade da adoção a
está, como já pontuamos anteriormente nesse
partir da colocação de ambos constituintes do par
texto, incluído no conceito de pulsão. Em qual
como os novos(as) cuidadores(as), dando à criança
medida algo genético ou os vínculos formados
o direito ao uso dos dois sobrenomes. Embora no
com o mundo em tenra infância orientam a
Brasil ainda não tenhamos a possibilidade legal
libido,
do chamado “casamento gay”, questões que
construída, porém, já está lá no velho Freud, que
versam em torno da relação com os filhos, já
qualquer que seja essa orientação, é uma das
ganharam algumas decisões tomadas, via justiça,
resoluções possíveis dentro de um critério de
que garantem a possibilidade de reconhecimento
normalidade, ou ainda como alguns gostam de
pleno. O filme nos apresenta a uma dessas
dizer, de boa resolução.
disso
não
temos
ainda
uma
certeza
possibilidades de maneira bastante direta e
íntima.
O que assistimos nesse filme é uma história sobre
uma
crise
familiar,
enfrentada
com
muita
Os filhos aparecem como personagens quase
coragem e transparência. Mesmo diante dos
comuns, trazem aqueles conflitos de gerações
percalços que atravessa a personagem Jules, a
que
da
questão da homoafetividade dela se torna algo da
adolescência e passagem para o mundo adulto. A
qual tem muita consciência. O longa pode ser
curiosidade de conhecer o pai biológico, em
muito interessante para abordar o tema de que
nenhum momento, os faz questionar a família na
práticas
qual estão inseridos enquanto um lugar legítimo.
correspondem à orientação sexual. Este mesmo
Entre um conflito e outro, a manifestação da
assunto, que estamos acostumados a ver tratado
sexualidade como um forte componente, até
de maneira diferente, quando falamos de sujeitos
mesmo a dificuldade que Nic e Jules encontram
que
para enfrentar a questão frente a uma suposta
longe da censura social e optam por uma vida
homossexualidade
heterossexual, formam laços, têm filhos e onde
sempre
se
apresentam
que
Laser
nessa
fase
poderia
estar
vivendo.
sexuais
preferem
manter
não
sua
necessariamente
homossexualidade
nada disso os afasta da consciência do seu desejo,
esse sim claro e imperioso que alimentará, quase
De forma sutil, o filme aborda uma das questões
sempre, outro tipo de angústia crescente. O
que é sempre apresentada pelos homofóbicos,
“armário” que via de regra precisará ser aberto
aquela que constrói a fantasia que filhos criados
para que esse sujeito encontre paz e alegria, para
por casais homossexuais trariam também uma
recuperação de parte fundamental de sua auto-
orientação homossexual. Dessa maneira, vemos
estima. Jules, com sua vivência com Paul, não se
mais uma vez, o debvate de tudo que ainda se
aproximou mais dela mesma e deixa isso claro.
ergue como tentativa de formação da orientação
Apenas faz um desvio, perdida e sem rumo. O
sexual. Segundo Freud todo indivíduo nasceria
afeto será aquilo que realmente a levará de volta
com uma constituição bissexual, definindo de
pra casa. Por sua vez, Joni sai de casa pronta pra
certa maneira na passagem pelo Complexo de
vida, e como todos os filhos, precisa pedir que sua
Édipo, tanto sua orientação sexual, quanto suas
família a permita encarar seu crescimento. Nada
matrizes
mais corriqueiro.
que
compõem
seu
processo
de
identificação.
41
cinematerapia: volume 02
A mudança nas configurações familiares é algo
que ainda remete-nos à angústia, famílias mistas,
monoparentais, casais homoafetivos e até mesmo
ao grande número que se concentra em alguns
lugares de pessoas que simplesmente rejeitam a
possibilidade
monogamia
de
ou
casar-se,
de
de
procriarem.
manter
Isso
a
tudo,
convivendo, com pólos conservadores, quer seja
dentro de um mesmo recorte geográfico da
civilização, quer seja em pólos opostos como
ocidente e oriente.
Como se o espectador tivesse sido convidado a
folhear um álbum de família, tão e somente isso,
esse filme ganha valor.
42
cinematerapia: volume 02
Capítulo 10
Sex and The City
Sapatos com os formatos
estranhos, roupas
coloridas, cabelos muito
bem escovados,
maquilagem perfeita,
independência financeira,
Copyright: Keete 37
neuroses, futuro e
A questão da amizade amarra tanto o seriado quanto
conflitos.
os filmes de uma forma esperançosa, embora deixe
de apontar conflitos que marcam também, dentro
Tudo isso mesclado gerou a receita que deu origem
do universo feminino, a relação de intimidade,
ao livro de Candace Bushnell e também manteve
quase sempre também investida por uma rivalidade
“Sex and the City” no ar por várias temporadas no
sutil.
formato de seriado. O figurino é deslumbrante e
ousadamente
fascinante.
Uma
verdadeira
O que veremos nessas personagens ficará marcado
propaganda de marcas que remetem ao status quo
por algo muito próximo de estereótipos, mas que
dentro da estrutura social que retrata e que nos
por meio dessa intenção, levantará reflexões sobre o
marca a todos no intricado jogo de papéis, classe e
papel dessa mulher no mundo a partir de relações
busca de lugar.
bastante contemporâneas. Porém, diríamos que
muitos dos temas expostos extrapolam a questão de
Iniciamos nosso texto sobre esses filmes a partir da
gênero,
constatação de que seria interessante sermos uma
toda
se-á neles mulheres novaiorquinas, cidade que
de
passagem,
será
bem
trabalho para sua inserção colaboram para todas as
moradores buscam maneiras em grupo de sair da
em
foram
mudanças econômicas e a chamada do mercado de
cidade de trabalho, onde de alguma forma seus
indicado
que
que a constitui e sobre a qual tem direito. As
Parker). Nova York com suas características de
é
possibilidades
toma conta da sexualidade, que a entende como algo
contratada por Carrie Bradshaw (Sarah Jessica
também
de
autonomia mais marcante a partir do momento que
da personagem coadjuvante, a assistente pessoal
isto
gama
Podemos pensar que a mulher passa a ter sua
destacado esse aspecto no primeiro filme, através
solidão,
e
conquistadas.
uma
muito
solidão
encontrar-se entre as velhas e antigas expectativas e
recorte muito particular desse universo, abordar-
característica
à
masculino, quanto o feminino, que buscam ainda
série como os filmes feitos a partir dela, de um
predominantemente
remetem
relação sofreu no século XX intriga tanto o mundo
universo feminino. Obviamente que trata tanto a
tem
que
que o espanto frente às modificações que essa
personagens que trazem como meta abordar o
que
os
dificuldade das relações na atualidade. Pensamos
mulher e um homem escrevendo sobre roteiro e
sabemos
como
modificações que marcam as mudanças de papéis de
muitos
gênero. A subordinação do feminino ao masculino,
momentos ao longo da película.
sofre então, importantes modificações.
43
cinematerapia: volume 02
Apesar
da
estereotipia
há
Miranda Hobbes (Cynthia Nixon) é conflito!
momentos nos filmes onde algumas cutucadas
Aparentemente é a que vivencia mais conflitos,
importantes são dadas e que falam da relação
quando na verdade é a que os mais os externaliza,
entre os gêneros. O casal principal do primeiro
verbaliza e representa com mais clareza. É rígida,
filme, Carrie e Mr Big, leva-nos a refletir sobre o
congelada, neurotizada por um predominante
amor que se rende às expectativas que remontam
funcionamento do superego. Não se permite
bem mais à solicitações do social e construção de
muitas coisas e também encena os aspectos mais
imagem do que propriamente as necessidades
superegoicos do grupo.
dos vínculos amorosos.
algum
momento,
das
personagens,
O quanto também em
para
que
uma
relação
Samantha
(Kim
Cattrall)
seria
a
modelo
amadureça terá que perdoar ao outro por não ser
idealmente analisada por Freud. Seria o gozo do
àquele que se encaixa em expectativas projetadas.
bom velhinho! Libido pura e sem superego ou
permissiva. Samantha é puro desejo, se assume
Nossas quatro personagens remetem a diferentes
como tal e paga seu preço. É dominada pelo seu
vínculos, diversas possibilidades de investimento
funcionamento
da libido e da importância dos vínculos de
impulsos do Id, mas não em uma maneira
amizade
psicótica, e sim concretamente sexualizada. É a
que
as
sustenta
todo
tempo
no
atravessamento de suas crises vivenciais.
pulsional
que
remete
aos
expressão da libido pura, que busca a satisfação
sem
muita
capacidade
de
adiamento
ou
Carrie Bradshaw (Sarah Jessica Parker) é o sonho
sublimação, com um superego flácido, mas não
de muitas adolescentes modernas. É a mulher de
perverso. Faz o que deseja sempre. E como deseja!
sucesso que investiu em sua carreira. Cada
investimento
deste
trouxe
também,
claro,
Talvez
esta
personagem
fosse
a
que
mais
conflitos, adaptados a esta modernidade de seu
proporcionaria material para análises, visto que
cotidiano. Exerce a catarse na sua coluna, onde
não tem nenhum pudor em realizar e verbalizar
milhares de leitoras se identificam. É a líder do
todas as suas fantasias. Ao mesmo tempo nos
grupo,
filmes.
remete a possibilidade da mulher aproximar sua
Aparentemente mais estável afetivamente, apesar
sexualidade do ideário masculino. Ao fazer isso
de suas eternas compulsões.
restará sempre a pergunta se isso seria algo
ou,
do
seriado
e
dos
satisfatório ou apenas um rito de passagem. Ao
Charlotte York (Kristin Davis) É a mais recatada
término do primeiro filme, saindo da uma relação
verbalmente. Seus ideais e sonhos são diferentes,
de quase seis anos, ela nos brinda com algo que
ainda românticos.
Podemos dizer que é mais
suplanta, mais uma vez, questões de gênero, mas
recatada do que as demais, e tem esperanças
que as evidencia fortemente por ser pronunciada
quase como “pollyana”. E como sonha esta
pela boca de uma mulher, diz ela: “Não é que eu
personagem! Esta talvez fosse analisada por
não te ame, eu amo, mas acontece que eu amo
Freud, e, por manter ainda algumas questões tão
mais a mim e é comigo que convivo há 49 anos”.
enraizadas na neurose, seria uma boa candidata.
.
Precisa proteger sua vivência de perfeição, tem
medo de doenças, contaminações etc, não chega
a se constituir em sintoma, mas como traço de
caráter fica sempre ali no limite.
44
cinematerapia : volume 02
De tudo se falou um pouco nesse seriado ou
A questão da amizade amarra tanto o seriado
nesses filmes. Quase todas as fantasias, manias,
quanto os filmes de uma forma esperançosa, quase
pavores
sempre também investida por uma rivalidade
e
medos,
questionamentos,
anseios,
dificuldades,
posicionamentos.
Muito
sutil. Podemos pensar que a mulher passa a ter sua
próximo da complexidade da psique feminina e
autonomia mais marcante a partir do momento
por isso tantos episódios e tanta resposta positiva
que toma conta da sexualidade, que a entende
durante anos.
como algo que a constitui e sobre a qual tem
direito
Interessante observar o movimento que o filme
trouxe das telas para as salas de cinema. Houve
Esse seriado e filmes trazem uma tentativa
um regaste social neste momento do que é a
reconhecidamente
“amizade entre mulheres”, em uma maneira
demanda de público a fala da mulher atual,
saudável para todas. Muitos grupos de amigas se
contextualizada,
deram a possibilidade de viver um momento
cumprirão sua meta. Tanto para as mais adaptadas
“girlie” simultaneamente no cinema e na vida
ou
real.
questionadoras
ousada
então
conservadoras,
ou
de
quanto
ao
terem
alguma
para
feministas,
como
maneira,
as
mais
há
uma
possibilidade de reflexão. E conseguem comover e
O que as feministas mais radicais diriam deste
fazer sorrir.
filme? Camile Paglia, feminista atual, declarou
algumas vezes ser favorável a alguns episódios ou
personagens, e reconheceu a importância desse
seriado-filmes. Nem tudo são Flores no reino de
Carrie.
Até
porque,
independente
da
visão
estereotipada e fragmentada do universo da
mulher, ousou ao tentar falar e compreender algo
que poucos diretores se aventuram, somente os
mais conhecidos como cults puderam cometer
tal ousadia em clássicos como “La Belle de Jour”,
as complexas personagens de Almodóvar, o
consagrado Bergman com “Gritos e Sussurros” e
alguns outros tantos.
45
cinematerapia: volume 02
Capítulo 11
Grace e Frankie (2015, 2016) – Temporadas 1 e 2
A Rede Netflix tem se
firmado como uma grande
produtora de seriados, e
não apenas um serviço de
streaming, como a
proposta inicial.
Copyright:Ted Eytan
A cada ano lança novos seriados e filmes, com
Gracie – Jane Fonda volta às telas dos seriados
produções reconhecidas pela crítica e adoradas
americanos, mostrando o porquê faz sucesso há 60
pelo público. Entregues para o espectador de forma
anos. Hoje com quase 80 anos, interpreta Grace,
completa, traz mais esse atrativo que é poder
uma esposa de advogado, metida a socialite e sócia
acompanha-la por inteiro no ritmo que desejar e
de uma empresa de cosméticos. Extremamente
puder.
vaidosa e fria emocionalmente, passou a vida toda
focada em sua família e carreira, onde a imagem
Grace e Frankie surgiu de mansinho em 2015, sem
vale mais do que tudo. Tem um pequeno problema
atrair muita atenção dos internautas, mas logo se
com consumo de álcool, e todo seu castelo de areia é
tornou um símbolo de comédia atual, com um
destruído quando seu marido Robert assume seu
resgate de atores e atrizes com uma temática pra lá
romance com Sol. Encontrar um novo lugar nessa
de atual. Fazendo rir leva a que se mergulhe em
dinâmica será uma tarefa extremamente difícil e
temas que costumeiramente são tratados com certa
onde Frankie será de uma ajuda imprescindível.
evasiva e até um pudor socialmente construído e
alimentado.
Frankie - Somente de olhar para Lilly Tomlin o
espectador dará risadas. Não tem como não se
A sinopse é muito simples. Dois advogados, sócios
recordar das inúmeras comédias que ela fez nos
de um escritório há décadas, resolvem reunir suas
século passado, tão repetidas nas tardes de férias
duas esposas e lançam a bomba: vão se divorciar de
escolares.
suas esposas e assumirem seu caso amoroso que
lidar
com
essa
uma
focada em princípios e valores orientais, africanos,
encontraram suas maneiras e formas mais ou
de
interpreta
por do sol. Era casada com Sol e leva uma vida
bomba em ambos os núcleos familiares, que
patológicas
ela
hippie/maluca/artesã/batedora de palmas para o
mantinham entre si há de mais de 20 anos. Uma
menos
Aqui
antigos, clássicos e/ou tudo que você pode encontrar
nova
de excêntrico. É o oposto da moeda de Grace e as
realidade.
duas sempre se "suportaram" até então, apenas por
seus maridos serem sócios. Agora, com a união dos
Nossas análises se baseiam tanto na primeira
dois, se veem forçadas a dividir muito mais do que
quanto na segunda temporada, sem, entretanto,
apenas
levantar muitos spoilers.
os
títulos
de
primeiras-damas.
Como
herdaram dos seus casamentos, uma casa de praia
em comum, refugiadas ali de suas lembranças, terão
que conviver dividindo o espaço. Tarefa que renderá
grande parte das boas risadas que a série provoca.
46
cinematerapia: volume 02
Sol(Sam Waterston) – É um advogado bem
As filhas de Grace e Robert são, entre si,
sucedido, sócio de Robert no escritório, bastante
absolutamente diferentes em personalidades. Uma
focado quando trata de assuntos jurídicos, mas
mãe e dona de casa, amorosa e dócil e a outra
que se revela em sua vida pessoal como alguém
combativa, agressiva e focada em sua carreira,
ainda mais “bicho grilo” que sua ex mulher
principalmente depois de ficar à frente do negócio
Frankie. Sua relação com Robert é marcada por
que pertenceu a sua mãe.
doçura e momentos de um carinho cativante.
escondido o avesso desses aspectos, como se
Sem dúvida que forma com Robert um dos casais
tivessem que caber unicamente em uma fôrma.
Cada uma mantém
mais doces das séries mais recentes. Como casal
homoafetivo compete em doce simpatia com o
A série foca ao longo de suas duas temporadas
par
Sisters”,
interessantes discussões principalmente em torno
Kevin(Matthew Rhys) e Scotty(Luke MacFarlane).
do que chamamos de “saída do armário”, ou seja, o
do
seriado
“Brother
and
momento da comunicação da homoafetividade ao
Robert(Martin Sheen) – É um advogado do tipo
círculo social, o envelhecimento com sua dose de
incisivo e até agressivo, acostumado a se impor
desejo que não cessa de existir, a dor das
através da defesa/ataque via as construções
separações principalmente em relações de muitos
jurídicas. Ex marido distante e frio de Grace, que
anos, a amizade como esteio das transformações,
mantinha a família enquadrada no estilo família
a possibilidade de revolucionar a si mesmo em
tradicional, e ao longo da série, sua ex mulher
qualquer etapa da vida. Chega a abordar de forma
contará passagens que remetem a esse homem
direta a questão do direito ao suicídio em doenças
emocionalmente distante, capaz de manter em
terminais, e o faz com leveza e humor sem perder
casa escondido no armário, um arsenal de
o fio de ironia que conduz seus roteiros. Jane
presentes a serem dados a ela em ocasiões
Fonda com sua Grace nos faz lembrar um pouco
necessárias. Mas, ao assumir sua relação com Sol,
de sua outra personagem, Jeanne, abordando o
se revelará um romântico e apaixonado parceiro.
tema desejo e envelhecimento, no filme “E Se
Sonha e constrói a possibilidade de um grande
Vivêssemos Todos Juntos?”( Et si on vivait tous
casamento para assim poder expressar todo o
ensemble?/2012), de Stéphane Robelin. Os quatro
amor que ficara até a revelação, circunscrito por
filhos dos dois ex casais, Briana(June Diane
décadas apenas à sua intimidade com Sol, como
Raphael),
ele mesmo diz, precisa para sentir-se em paz
Embry) e Mallory(Brooklyn Decker); mantém
consigo mesmo gritar ao mundo o seu amor, sem
entre si discussões bem da juventude atual e em
mais dissimulações e silêncio.
um certo clima que faz lembrar até o inesquecível
Bud(Baron
Vaughn),
Coyote(Ethan
seriado que marcou gerações, “Friends”.
Transitam em torno do casal, também, os seus
filhos, surpreendidos pelas revelações e que logo
No episódio sete da segunda temporada, Frankie e
encontrarão, cada um à sua própria maneira,
Robert terão uma conversa muito especial, a
todos de forma muito diferente, uma forma de
questão
lidar tanto com a separação dos pais, quanto com
humana
suas relações com o novo casal.
carinhosamente
Sol e Frankie
da
mágoa,
que
essa
tanto
velha
arruína
abordada,
companheira
relações,
desmancha-se
é
em
têm dois filhos adotivos que trarão questões bem
considerações
interessantes ao logo da série, como por exemplo,
construído. As relações amorosas são sempre parte
no que toca na necessidade do contato com mãe
fundamental da vida de cada um, onde, como
biológica.
dizia o velho Freud, mais estamos desprotegidos,
em
um
diálogo
muito
onde somos mais felizes e/ou mais infelizes.
47
bem
cinematerapia: volume 02
Há na possibilidade de manter uma relação uma
Através dessa relação de amor e ódio as duas
escolha que precisa ser feita a cada novo
conquistam o telespectador e as questões de
solavanco que a vida sempre traz. É preciso
sexualidade e gênero acabam passando como se
aprender a ver o outro se aproximar e se afastar,
estivessem em um segundo plano, pois são
estar e não estar, ser cúmplice do amor ou
apresentadas com naturalidade e tranquilidade e
alguém que irá se situar no que se perde pelo
assim, pensamos, podem ser mais assimiladas por
caminho.
quem
acompanha
a
série,
ainda
mais
se
pensarmos em um público de idade já mais
Há um componente narcísico em todo amor, isso
avançada
não é algo necessariamente negativo, mas algo
personagens principais, embora a série seja ótima
que constrói o sujeito via o caminho das
para qualquer faixa etária adulta.
que
irá
se
identificar
com
os
afinidades. Ao se romper os laços amorosos, cada
um daquele par, deverá resgatar para si o que
No episódio três da segunda temporada, Frankie
desenvolveu na relação e seguir compondo então
incentiva Grace em busca de uma antiga e
novas alianças a partir do construído em si até
abandonada paixão dizendo a ela que “nunca é
então. Se há nesse seriado algo a ser muito bem
tarde para o amor, minha amiga”. Ela mesma após
contemplado e refletido isso se dará em torno
a vivência de sua grande dor pela perda da
desse tema. A forma como o casamento de Sol e
cumplicidade amorosa com Sol, iniciando então
Robert é enfim realizado logo no primeiro
uma
episódio da segunda temporada, é um tremendo
Hudson).
indicador disso.
“despedida” com o Sol e um mergulhar em sua
nova
O
relação
que
afetiva
só
foi
com
possível
Jacob(Ernie
após
uma
dor chamando o desapego de pontos de referência
No decorrer da série somos presenteados com
até então fundamentais para ela. Intensa em tudo
muitas risadas que antecedem muitos momentos
que faz não se esquiva de dizer para Jacob sobre
de informação, tensão e reflexão. De uma forma
seu medo e receio de mergulhar em uma nova
mais
possibilidade
leve
e
simplista,
alguns
assuntos
são
de
vínculo,
que
traz
sempre,
abordados, como lubrificação vaginal na terceira
inevitavelmente,
idade
Masturbação,
fragilidade na entrega. Honesta e plena sabe
feminilidade e envelhecimento são abordados de
comunicar aquilo que mais faz com que muitos
maneira
acabem se fechando à possibilidade de amar, ou
e
relações
“Frankie”
sexuais.
promovendo
risos
e
informação de uma forma bastante pontual.
uma
grande
dosagem
de
seja, a dificuldade em confiar em uma lealdade do
outro, não no sentido da fidelidade ou eternidade,
Ao
longo
dos
episódios
vemos
as
duas
mas no sentido da sinceridade e respeito ao que o
protagonistas passarem por diversas fases: da
outro constrói afetivamente e junto.
negação à elaboração dos seus lutos. Antes apenas
dividiam
os
mesmos
espaços
quando
É interessante ver uma série assim que não perde
estritamente necessários. Agora, se tornam uma
nem um pouco do seu brilho, criatividade e
essencial na vida da outra, apesar de brigarem a
capacidade de cativar em sua segunda temporada.
cada nova situação do dia-a-dia.
Os temas permanecem pulsantes e repletos de
novas variáveis muito interessantes.
48
cinematerapia: volume 02
Em tempos onde uma onda conservadora toma
impulso bélico em frentes políticas nos diversos
países, incluindo Estados Unidos e Brasil, uma
série como essa vem em bom momento, oxigena
pensamentos e desmancha conceitos mofados
que necessitam serem pensados com alegria e
humor.
Grace,
Frankie,
Sol
e
Robert
nos
apresentam a uma verdadeira revolução que o
mundo operou e que toca muito de perto as
relações mais íntimas e fundamentais na vida do
sujeito.
A possibilidade de viver abertamente modos de
amar antes tão estigmatizados é sem dúvida um
diferencial na construção de um outro mundo
mais em paz, aqui neste aspecto lembramos do
filme excelente para pensar nisso que é o “Beleza
Sul-Africana”(
Hermanus,
Skoonheid/2011),
onde
em
uma
de
Oliver
interessante
representação, uma cena memorável em uma
lanchonete o protagonista mostra um olhar ao
antes impossível para ele, ao ver um casal de
rapazes se tocarem em uma mesa vizinha. Fica a
recomendação, assim como também o de um
documentário também disponível na Netflix com
o título “The Circle(Der Kreis/2014), o longa é
dirigido por Stefan Haupt, trata-se de uma
excelente
produção
que
mistura
entrevistas
documentais, fotos de época e uma dramatização
dos
fatos
narrados
em
uma
excelente
representação dos atores Matthias Hungerbühler
e Sven Schelker. Dessa maneira vemos o quanto
tivemos que caminhar em termos de laços
civilizatórios até ao encantamento e as boas
risadas com Sol e Robert, Grace e Frankie.
49
cinematerapia: volume 02
Capítulo 12
Ninfomaníaca (2013)
Não é de hoje que
produções abordam sem
meias palavras a
sexualidade humana
naquilo que ela tem de
mais peculiar.
Recentemente
tivemos
algumas
produções
interessantes sobre o tema, algumas mais densas e
Copyright: Georges Biard
angustiantes como Shame, mais tocantes como o
“As Sessões”, mais divertidos como “Um Divã Para
Há um recente documentário, como o título “Sex
Dois”,
Alguém
and the Cinema”(2009), do diretor Jeffrey Schwarz,
Apaixonado” e tantos outras variações e filmes.
que traça um bom histórico da questão, focando
Desde tempos de produções como o polêmico
principalmente o cinema americano, mas não
“Calígula”, “Império dos Sentidos”, “Império da
deixando de citar todo o cinema europeu que ousou
Paixão”, entre tantos outros, o tema da sexualidade
mais, e bem antes, que o comportado e mediado
ganhou contornos do nu e cru, literal, de diretores
cinema de Hollywood que foi obrigado a enfrentar
mais holywoodianos aos mais cults a curiosidade
por um longo período restrições a exibição de cenas
sobre o impulso sexual propriamente dito tem
propriamente sexuais. Hoje, sabemos que, quase
ganhado leituras das mais diversificadas. Podemos
todos os diretores aquecem seus espectadores com
lembrar
cenas explícitas ou que remetem de forma muito
mais
aqui
complexos
dos
mais
como
antigos
“Um
que
também
marcaram como “Lua de Fel”, “La Luna”, “Seis
clara
Semanas e Meia”, “Gigolô Americano”, “Perdas e
produções compreenderam o forte apelo que há em
Danos”, do emblemático “Belle de Jour” e tantos
cenas sexualizadas. Neste documentário é falado
outros. A sexualidade, principalmente a feminina,
sobre todos os itens que constam normalmente
foi tema de curiosidade explorado por muitos
desses contratos, que delimitam o campo onde o
diretores e diretoras, alguns com o teor de
diretor se movimentará, partes do corpo que serão
denúncia como, por exemplo, “A Flor do Deserto”.
filmadas, uso de dublês ou não, nível das carícias etc,
Muitos que imprimiram o desvio da repressão, via
dando aos atores uma relação de maior confiança
o chiste, o hilário, como o recente “Hysteria” ou
que supostamente permitirá a entrega nas cenas
ainda explorando de forma humorada os supostos
filmadas. Uma ilustração disso quase pitoresca é
desvios, como no “A Secretária”. Quase impossível
relatada nesta produção a respeito das filmagens do
compor
quente “Lolita”(1962) de Stanley Kubrick.
uma
lista
justa
de
tantos
“Gritos
e
ao
ato
sexual
entre
os
personagens,
as
Sussurros”.
Veremos que há filmes já na década de 20,
considerados
por
muitos
como
os
primeiros
eróticos, como “Erotikon”(1929) do diretor Gustav
Machatý,
trazendo
a
bela
Ita
Rina
como
protagonista, um filme que para os padrões de hoje,
poderíamos classificar como “água com açúcar”.
50
cinematerapia: volume 02
Teremos ainda antes da década de 20, a atriz
É como se ele tivesse resgatado Grace(Nicole
Theda Bara que dá vida ao termo “vamp”, e que
Kidman) de Dogville(2003) ou Grace(Bryce Dallas
alcançou enorme sucesso com "A Fool There Was"
Howard)
(Escravo de uma paixão/1915). As câmeras dos
invasão de privacidade abrindo-lhes a intimidade
diretores voltam-se aos belos corpos de suas
de
atrizes, diga-se que quase sempre como a tentar
Joe(Charlotte
entender o que move o desejo feminino, quase
Assovic/
como uma tentativa de responder à ironia
literalmente uma abordagem “rasgada” de sua vida
lançada por Freud ao perguntar o que afinal
sexual,
desejaria uma mulher. O cinema ao abordar
“Melancholia”(2011) investindo em um lançar ao
praticamente deixa explícito o fato de que
externo a agressividade que alimenta a depressão.
supomos
saber
o
que
pretende
o
de
seus
“Manderlay”(2004)
impulsos,
vemos
e
feito
então
Gainsbourg/Stacey
Ronja
talvez
surgir
Martin/Maja
Rissmann/Anaya
tentando
uma
fugir
Berg),
de
sua
desejo
masculino, e de o feminino se constituir como
No início da segunda parte de seu filme talvez
um enigma. Os nus masculinos até hoje são
deixe logo de saída, bem claro, que quer tratar
muito mais raros, principalmente o frontal, e
daquilo que entende como “forças da natureza”
parece que a primeira cena dessa maneira
agindo sobre o sujeito humano, do quanto a
filmada por Hollywood seria com Richard Gere
delicada relação entre cultura e pulsões impõe
em “Gigolô Americano”(American Gigolo/1980).
uma
Já Trier no Ninfomaníaca apresenta isso de forma
renúncia, felicidade ou sofrimento, como na
absolutamente escancarada.
divisão das igrejas citadas por Seligman(Stellan
difícil
harmonização
entre
satisfação
e
Skarsgård). A mulher ou o feminino como força
Mas embora essa seja sem dúvida uma
propulsora
discussão muito interessante, pensamos que o
sociedade(civilização) e satisfação, passando pela
filme ou os filmes sobre o qual aqui estamos
discussão do conceito proposto por Freud de um
falando, pretenderam dissecar muito mais que a
“masoquismo
atividade ou o desejo sexual propriamente dito.
movimento, o sadismo.
de
toda
primário”
a
disputa
e
seu
entre
segundo
Parece que o diretor Lars Von Trier muda a
roupagem de seus roteiros, mas está sempre às
Do quanto se disfarça com verniz frágil impulsos
voltas com uma mesma questão que diz respeito
de
aos
“politicamente correto” talvez ainda para amargar
impulsos
humanos,
mais
embora
“naturais”
ele
mostre
aos
sujeitos
uma
agressão
e
exclusão,
volta
sua
ira
ao
clara
suas desavenças no Festival de Cannes quando
tendência a fazer crer que somos compostos por
provocou rebuliço e sua expulsão ao manifestar
forças destrutivas em primeira instância, não
simpatia por Adolf Hitler, uma lástima para bravos
costuma fechar a questão em nenhuma de suas
companheiros do cinema alemão como Herzog,
obras, sendo essa mais uma que lança, disseca,
Wim Wenders ou mesmo Fassbinder, que com
mas não responde como poderemos ver em suas
um cinema muito consistente, não cairiam nessa
obras mais conhecidas do grande público.
cilada revisionista ou em sua explicação quase
didática, como vemos na Parte 1 sobre a diferença
entre anti-sionismo e anti-semitismo.
51
cinematerapia : volume 02
Ou ainda, nessa discussão estéril que é ainda
O cineasta das provocações já inicia esse ano de
contrapor o processo civilizatório como única
2014 e seu costumeiro arsenal, comparecendo ao
barreira à satisfação humana, Freud já havia dado
Festival de Berlim com uma camiseta com o
muito maior complexidade a essa discussão lá
símbolo de Cannes, escrito nela, “persona non
pela década de 20 do século XX, e parece que
grata”, em seu afã de defender o “politicamente
Triers estacionou, como alguns teóricos pós
incorreto”,
freudianos,
e
ironicamente, chamar de avesso daquilo que ele
Doença Nervosa Moderna”. Uma pitada de
tanto ironiza, e sabemos que o outro lado é apenas
Herbert Marcuse e o entendimento do quanto a
outra faceta do mesmo objeto. Porém, também
atividade sexual em seu excesso também foi
poderemos pensar em seu antigo desejo de
capturada pelo “modo de produção”, talvez ajude
resgatar um cinema mais criativo, longe das
um pouco neste debate.
fórmulas
em
“Moral
Sexual
Civilizada
veremos
comerciais
o
que
poderemos,
hollywoodianas,
resta
a
dúvida do que move toda sua pantomima.
Podemos lançar uma pergunta literal, talvez até
banal: afinal que dívida Joe cobrava(Parte 2)? E
A bela imagem da árvore no cimo da montanha
nesta
discussão
que Joe encontra e que faz pensar ser a que a
bastante rasa que o filme pode acabar por aludir.
representa, como um dia seu pai(Christian Slater)
Será que haverá quem diga que o filme coloca o
a apresentou a que o representava, faz pensar em
resgate de uma dívida em relação à sexualidade
uma tentativa absurda de encontrar uma ligação, a
feminina? Se assim for, cabe a pergunta se a
árvore pende como um corpo feminino em
sexualidade feminina teria que sofrer os mesmos
posição de uma relação sexual, e desobedecendo
desvios da masculina para se impor e se seria ela
todas as expectativas tentando unir-se a outra
sempre
o
montanha ou ao sol, como a tentativa que talvez
falocentrismo defender? Sexualidade feminina e
seja da personagem em estabelecer ligação com
maternidade necessariamente se excluem? Parece
seu próprio corpo e com o corpo do outro, ou
que o diretor resgata a cena do menininho na
como canta a música da banda alemã Rammstein’s
janela do seu outro o “Anticristo” para estocar
que aquece o filme, “Führe mich”- Leve-me . Ou
culpas. Esse aspecto da mulher mãe excluída da
ainda ao corpo materno, corpo do vínculo, da
sexualidade não seria aquilo que Freud se refere
matriz do amor, sempre a dar as costas, como o de
como um certo tipo de “impotência masculina”
sua mãe(Connie Nielsen).
evidência
mesmo
fica
inscrita
masoquista
uma
como
quer
em seus textos “Contribuições à Psicologia do
Amor”? O que oculta mais do que revela o diretor
O autor Joel Birman em uma passagem de seu
com suas estiletadas?
livro “Mal Estar na Atualidade” tem uma passagem
que pensamos ser um bom gatilho aqui para
Mas é fato que produz em sua Parte 1 uma
ajudar-nos a pensar nessa metáfora, diz ele:
das sequências mais lancinantes já vistas no
cinema
do
quanto
uma
mãe,
no
filme
“Evidentemente, o sujeito do inconsciente oscila
representada por Uma Thurman(Sra H.), pode
permanentemente entre este dois pólos, isto é, o
utilizar seus filhos em uma vingança sórdida
narcísico
contra o abandono de “seu homem”, do quanto
oscilação estrutural, o desejo apenas é possível se o
pode ensinar aos filhos o caminho do vínculo
sujeito pende para o pólo alteritário. A condição
estéril, fora do desejo, em algo que se aproxima
de possibilidade do desejo é que o outro se
dos estudos e casos de alienação parental, que
apresente como algo sedutor e atraente o bastante,
sabemos provocar consequências nefastas ao
capaz de despertar a possibilidade de satisfação
sujeito que a sofre e em todo tecido social.
desejante do sujeito.
52
e
o
alteritário.
Entretanto,
nessa
cinematerapia: volume 02
Caso contrário, o desejo se apresenta como da
Toda mulher faz com que outra cuide de sua
ordem do impossível, e ao sujeito resta tão-
“garra”, e sabemos bem o quanto o feminino pode
somente a utilização voraz do corpo do outro
ser, exatamente, aquele ponto da cultura que mais
para
ergue regras morais para o impedimento do
afirmar
de
maneira
predatória
seu
autocentramento. Nesse contexto, o outro é
desejo,
usado
inesquecível
e
manipulado
enquanto
corpo
para
e
aqui
temos
filme
que
de
lembrar-nos
Giuseppe
do
Tornatore,
apaziguar a inquietação pulsional do sujeito, que
“Malèna”(2000), que ilustra perfeitamente essa
o
nossa permissão para uma certa divagação fora da
devora
como
um
canibal.
Com
isso,
a
experiência da diferença se revela impossível, já
que seja, supostamente, a proposta pelo diretor.
que o sujeito se sustenta apenas por meio de suas
miragens,
mergulhado
na
mais
profunda
Eros e Thanatos em seu balé descrito por Freud e
mediocridade existencial."
a cena do pai morto, a surpresa de Joe com sua
excitação, uma fala de Seligman que mais do que
Joe busca o ingrediente do qual se falou em seu
qualquer outra desnuda a hipocrisia que somos
primeiro clube onde a atividade sexual sem freios
chamados a construir sobre a leitura do próprio
era como uma bandeira, grande desapontamento
corpo e suas reações “naturais”. Fica com a
que sofrera em relação a sua primeira instrutora
abordagem a reflexão do quanto todo processo de
B.( Sophie Kennedy Clark) sobre o romper toda e
perda de vida tem muito de humilhação, como a
qualquer regra em relação as limitações das
sequência do hospital deixa vista de forma
atividades sexuais, que, era evidente que Joe não
também cruelmente crua.
retirava delas nenhum prazer. A cena de sua
primeira relação é absolutamente dentro daquilo
Leremos defesas apaixonadas sobre esse filme e
que vemos como algo que atravessa bem mais o
ataques tão apaixonados quanto, o fato é que, mais
início da vida sexual dos meninos, uma coisa
uma
direta, uma inauguração sem outra finalidade que
conclusões, Lars Von Trier balança o cenário e
“perder a virgindade”. E, será justamente esse
provoca confusão, faz pensar, cria dúvida e com
primeiro modelo de homem sexual, que se
isso uma desconstrução necessária. Pensamos que
tornará, bem mais adiante, o dono de seu afeto,
qualquer
vínculo que a leva até o desfecho e à casa de
traçado teórico resultará em um grande vazio, o
Seligman.
mesmo, talvez, que Joe nos faz enfrentar em suas
vez,
concordando
tentativa
de
ou
não
capturá-lo
com
em
suas
algum
mais de cinco horas de filme.
E então por onde cada sujeito começa a cortar
suas unhas, seguindo a tese conversada com a
A sexualidade há muito já foi capturada, hoje
protagonista na Parte 2? Pelo dever ou pelo
estéril em sua grande maioria, lança o sujeito bem
prazer? Mais uma vez a tese a qual Triers dedica
mais ao seu vazio do que ao seu preenchimento.
suas
Pelo
obras,
faz
aqui,
marcadamente,
uma
excesso,
como
tudo
que
irrompe
no
pontuação. Mas, queremos propor uma ousadia e
contemporâneo, esvazia mais do que completa,
pensar que, via de regra, as mulheres não
angustia mais do que nutre.
costumam cortar suas unhas, entregando o
polimento delas para uma terceira pessoa. Indo
na direção do que propõe o diretor poderíamos
pensar
em
muitas
variações
para
seus
questionamentos.
53
cinematerapia: volume 02
Mas, de outro ponto de vista, temos também que
ver que houve sim um avanço no sentido de
menos
repressão,
embora
como
poderemos
pensar via a trajetória de Joe com seu filho, a
repressão
talvez
nunca
tenha
se
dado
efetivamente sobre a atividade sexual, mas sim
em seus vazamentos extra conjugais, ao colocar
em xeque um aparelhamento da civilização
ocidental que finca suas bases em uma relação de
propriedade amarrada por um casal. E a obra
finaliza em sua tese, com o toque da repressão
como mãe da violência, ficamos convidados a
pensar sobre tudo isso!
É irônico que seus dois objetos de amor se
encontrem e a excluam da relação, despertem
nela a fúria da posse, e finalmente dando-lhe o
desprezo e a surra que inauguram o relato.
Afinal, o que deseja uma mulher? Talvez a
sequência que trata de um paralelismo com a
polifonia apresentando os três tipos de homens,
responda um pouco a esta indagação, indo na
direção de uma estrofe da letra do grupo alemão
da música tema do filme “Führe mich”, em “um
só corpo”. E, não seria justamente isso, o paraíso
do desejo de todo sujeito em sua posição de
amor, essencialmente feminina, desamparada e
entregue ao furor do caos pulsional?
54
cinematerapia: volume 02
Capítulo 13
Sob a Pele (2013)
“Sentir...Campo...Preencher...
Preenchido...Feltros...Pílula...
Pílulas..."
Um filme do diretor Jonathan Glazer, baseado no
livro homônimo de Michael Faber e roteiro de
Walter Campbell, trazendo no papel principal a já
cultuada atriz Scarlett Johansson que declarou que
não aparecerá mais nua em nenhuma outra
produção. Não foi um sucesso de público(15.439 no
Brasil segundo o site adorocinema) e dividiu a
crítica, vaiado na sessão de imprensa do Festival de
Veneza/2013, mas merece uma espiada e algumas
Copyright: JCS
elucubrações. Sempre bom lembrar que aqui não
necessariamente
construímos
crítica
sobre
a
A atriz que vimos crescendo dentro das telonas, da
produção em seus aspectos mais técnicos, mas a
qual ainda guardamos a imagem o corpo juvenil e
olhamos sob a perspectiva do interesse para
feições ingênuas de outros tempos, como, por
debates do campo psi, vemos a produção, tão
exemplo,
somente, como cinéfilos psis.
Americana”(An American Rhapsody/2001), agora
no
emocionante
“Uma
Rapsódia
em sua maturidade em forma e expressão, alguns
Este não é um filme que utilize um formato
criticaram sua forma física por não representar a
que atraia o grande público, vai em um ritmo
vista como mais bela, magra. Conduzido por belas
muito denso, e aqui emprestando a esse termo o
imagens o espectador vai sendo seduzido pela nossa
que comumente se associa quando se fala assim de
protagonista, algumas dessas imagens de uma beleza
uma obra cinematográfica, ou seja, sua cadência é
que em determinado momento, como a das árvores
lenta, atraindo a atenção de forma gradual, mas
no bosque, podem até remeter a um quê de
bastante envolvente. Uma das críticas feitas a ele
Alexandr Sokurov(seria exagero a comparação?) ou
diz: “Uma grande afirmação do que quer dizer ser
de Terrence Malick.
humano”(Blankprojector), e é exatamente nesta
perspectiva que ele nos interessa. Um Cult meio
Curiosidade boa o fato de que ator Paul Branningan,
trash, talvez possa ser visto dessa maneira.
que atuou tão maravilhosamente no recente e
recomendado de Ken Loach, “A Parte dos Anjos”(
Seguindo na linha de voltar uma perspectiva
The Angels' Share/2012), seja a presa que vai revelar
analítica do como a sexualidade vem construindo
ao espectador o que acontece com as vítimas que
temas no cinema da atualidade, essa produção
Laura atrai.
oferece um tempero a mais. Nossa extraterrestre
representada pela agora madura e bela Johansson
atrai suas presas pela sedução, pelo apelo sexual.
Interessante a importância do batom para que se
sinta pronta para a caçada.
55
cinematerapia: volume 02
Hipnotizados pela atração que ela exerce não se
O que a desconcerta é a capacidade de relação que
dão conta da imersão em um pântano virtual no
observa, em sua forma mais amorosa ou em sua
qual são capturados, sendo em seguida, sugados
forma mais destrutiva. O afeto esse elemento de
em todas as suas entranhas, restando apenas o
ligação que estranhamente desenvolvemos em
invólucro, a pele. A epiderme das sensações,
direção ao outro, componente básico daquilo que
daquilo que leva ao prazer, a experiência, ao
forma a empatia, a solidariedade, como vemos na
contato.
cena da tentativa do mergulhador(Kryštof Hádek)
de salvamento na praia. O choro do bebê
Freud defendeu durante toda sua elaboração
abandonado
teórica a questão da libido enquanto força motriz
qualquer ação de proteção ou amparo, como faria
do
sempre,
com a grande maioria dos seres humanos, ali
inquestionavelmente, como energia sexual. Ao
colocados para eles como algo próximo a uma
longo da construção de sua escola teve vários
outra espécie ou coisa, no sentido mais amplo da
embates pela defesa dessa tese. Ao abordarmos
coisificação.
sujeito
e
esta
sendo
encarada,
não
faz
nascer
nos
“visitantes”
aqui o filme “Um Método Perigoso”(Dangerous
Method/2011) sublinhamos essa questão em sua
Ela busca os solitários, aqueles que ninguém
parceria com Carl Gustav Jung. E não podemos
sentirá falta, os esquecidos, e poupa, não se sabe
esquecer que ela, a energia sexual, anda sempre
bem o porquê, aquele que por sua deformação
amalgamada com a agressividade, um dos pontos
física(Adam Pearson), encontra-se ainda mais
mais fecundos da elaboração freudiana que, sem
afastado de qualquer possibilidade de laço afetivo.
propor um julgamento sobre o sujeito, revela-o.
Ao lançar a isca para ele convidando-o a tocá-la,
pode ter aberto em seu ser o estranhamento que
Laura(Scarlett Johansson) chega à Terra e usará
dará lugar a sua angústia e busca. Talvez naquele
do seu forte magnetismo sexual para atrair suas
espelho cruel tenha ela vislumbrado a dúvida que
presas, daí em diante nos veremos às voltas com
instaura a necessidade do outro. Perdida, vaga até
tudo aquilo que questiona o que forma o sujeito
encontrar o cuidado do estranho do ônibus que a
em sua relação com o outro e consigo mesmo e
inclui em um subjetivo encontro.
que afeto é esse que surge ali no limite do desejo
sexual propriamente dito e dos vínculos que
Vinda de não se sabe onde, resultado das cenas
formam a relação amorosa em sua inserção no
iniciais do filme onde duas formas se fundem em
amplo e complexo tecido social. Laura é tocada
uma obscuridade que dá margem a muitas
pelo humano, por aquilo que cuida, acolhe, cria o
possibilidades
afeto,
um
feminina, roubando a forma de uma mulher que,
emaranhado de um legítimo desejo de sentir, de
veremos no final do filme, ainda existe, fundida a
ser tocada. É sobre aquilo que nos faz sujeito em
ela, neste aspecto remete ao “A Hospedeira”(The
relação, que a atrai, não necessariamente a
Host/2013). A pele, a mente, o corpo, quem está
necessidade de prazer sensorial das coisas, a cena
ali? O que se constitui enquanto o ser que
da torta de chocolate na lanchonete é exemplar
pensamos existir?
e
intrigada,
vê-se
perdida
em
para descaracterizar qualquer alusão a uma busca
dos prazeres básicos, então aproxima e afasta de
argumentos como o consagrado pelo público “A
Cidade dos Anjos”(City of Angels/1997).
56
de
interpretações.
Ela
surge,
cinematerapia: volume 02
Laura se comporta como a mais exemplar
O filme vai se mostrando com algumas belas
histérica, seduz com intensidade, mas frente ao
imagens de um local de paisagem linda, mas
espanto diante da investida sexual, aterrorizada,
gélida, na Escócia. Boa parte dele é composta por
foge, não fica claro o que teria acontecido ao seu
imagens escuras, o que dá a quem assiste a
anfitrião, mais uma vez o filme deixa margem a
sensação de imersão, como em um sonho de
todo tipo de interpretação e conclusão. Perdida
angústia ou um estado febril. É bem eficiente em
na floresta como o mais pueril conto infantil,
envolver dessa maneira a quem assiste. Suas bem
acaba encontrada pela maldade perversa, do
encaminhadas imagens, apresentadas em uma
lobo, aquela mesma que antes era parte do seu
lentidão que convida à sensação, fazem com que
ser, a que anula o outro enquanto desejo, dono de
todos os lapsos de explicação pareçam não
seu próprio destino e escolhas. Ao que conduz ao
importar tanto, como elementos associativos que
pântano do desaparecimento da condução da
precisariam de, em um “à posteriori”, serem
própria
decodificados.
vida.
Assustada
corre,
da
dura
constatação que algumas vezes o contato é
também uma cruel agressão, que se longe do
Não deixa o espectador naquele clima de tudo
prazer, do consentido, pode ser aterrorizante.
pode ser, mas também não exagera no sentido de
entregar
Sem
dúvida
não
é
um
filme
para
ser
a
conclusão
pronta,
mais
do
que
entender o que se passa, convida o espectador a
compreendido, mas sim que parece pretender
retornar para questões complexas a respeito do
acordar
Como
estar no mundo e de certa maneira até mesmo do
dissemos antes, não é de fácil assimilação, mas
sentido da vida, já que aparentemente as pessoas
isto não o torna nem um pouco menos atraente
que ela observa, passeiam à esmo, sem grandes
para os que buscam um despertar de emoções no
direcionamentos, apenas vivem o cotidiano em
contato com uma obra cinematográfica. Ali no
seu absurdo e em sua alegria. Enquanto caça,
limite do suspense, da ficção, devolve ao realismo
Laura se vê observando esses seres estranhos, até
de questionamentos que carregamos ao longo da
então,
nossa
processadas, como salsichas. Vestida na pele
algum
existência.
espanto
Sem
e
reflexão.
apelar
para
soluções
apenas
vistos
como
presas
a
serem
sobrenaturais, instaura a questão do que afinal é
humana
ser humano. Laura passeia pelas ruas cheias de
curiosidade que a leva a olhar a estranheza do
gente, das mais diferentes, seu olhar busca
homem e seu meio. A angústia do meio do
características que tornam sua presa mais fácil,
caminho onde se coloca, meio fera, meio mulher.
começa
a
sentir
uma
crescente
mais desprotegida quanto a sua abordagem.
Estuda cada um, inquiri, conhece um pouco do
A nudez feminina, a sedução que conduz ao
presente daquele sujeito no mundo. As cenas
aniquilimento, a sexualidade não realizada, que
filmadas com câmera escondida, inclusive a da
apenas
boate, e pessoas escolhidas aleatoriamente nas
transformada em necessidade de contato e separa
ruas imprimem ao filme seu toque muito
mais
singular.
sexualidade propriamente dita. Assustada com a
intenta
uma
vez,
a
captura
banindo
perversa,
então
a
vê-se
própria
tentativa de penetração, ela se olha para ver o que
Sendo ela uma figura feminina as defesas do
masculino
parecem
serem
mais
tênues,
era buscado naquele corpo, seu susto é digno de
a
um chiste sobre “a diferença anatômica entre os
confiança é alcançada com maior rapidez, as
sexos”.
defesas de proteção são afrouxadas pelo ímpeto
da libido, da tensão sexual que ela estimula,
captura.
57
cinematerapia: volume 02
As cenas de violência são conduzidas com um
toque de “coisa comum”, de “banalidade”, vistas
pelo olhar de seres que não enxergam o ser
humano como nenhuma espécie que mereça um
olhar com mais compaixão . Como atirar em
alvos que os caçadores tanto apreciam, raposas
ou outros bichos que acabam como o casaco de
pele que ela veste.
O que será que tocou àquela criatura a ponto de
fragilizá-la ao extremo? O filme não se preocupa
sequer em deixar pistas para qualquer conclusão,
parece querer é introduzir essa pergunta que
acompanha ao espectador ávido por respostas.
Com toda certeza ela entenderá que aquilo que
nos faz mais compassivos é também aquilo que
nos torna monstros, uma delicada equação que a
humanidade propõe se equilibrando sempre
puxada pelos seus opostos.
Quase que em uma exposição do pânico
masculino
vivido
pela
fantasia
da
“vagina
dentada”, que faz com que a tensão na relação
entre
os
gêneros
torne-se,
em
sua
grande
maioria, uma relação de ataque e defesa, o filme
graceja com o fantasmático que ainda segrega e
mata.
A
concepção,
representação,
a
o
palavra,
espelho,
não,
a
a
pele,
a
experiência...subjetivação.
58
cinematerapia: volume 02
Capítulo 14
Cisne Negro (Black Swan, 2010)
E lá vem ela, a sociedade
espetáculo despida em
Nina, vestida de Cisne
Negro, e destituída,
pacificada, pela ausência de
sua ambivalência
A platéia delira, esquece que para chegar à beleza
desta cena, o tombo foi inevitável, é preciso
Copyright: Niko Tavernise
conhecer o chão, talvez em seus aspectos de
|
profundeza. Doce menina, sweet Nina do espelho
quebrado, de forma bem diferente de Alice em suas
maravilhosas
aventuras.
Destino
Não somos críticos de cinema e sequer especialistas
feminino,
em comentar todas as nuances técnicas da sétima
perfeição do gesto, pele que incomoda, quase a
arte, escolhemos filmes onde reconhecemos uma
pedir para ser despida.
potência considerável em mobilizar emoções, não
necessariamente serão os filmes onde a análise de
Intenso, denso, confuso, angustiante....de tirar o
um crítico de cinema verá as melhores atuações.
fôlego. E estréia no Brasil o comentadíssimo filme
Não privilegiamos circuitos, mas sim uma forma de
“Cisne Negro”, levando com grande expectativa
linguagem cinematográfica que toque um maior
milhares de espectadores às salas de cinema.
número de espectadores em suas emoções mais
Tratamos aqui nesta coluna de lançar um olhar
profundas e necessárias. Pode ser um filme dos
sobre variados filmes a partir de leituras orientadas
chamados de grande bilheteria ou alguns que
pelas construções da psicanálise, sem dúvida que
esta é, e sempre o
correm
será, uma tarefa instigante,
paralelos
nos
chamados
circuitos
alternativos ou cults.
complexa e que resultará incompleta. É exatamente
neste ponto que lançamos um desafio. Pensamos
E vem aí um dos prêmios mais comentados pelos
que ao fazermos isso erguemos “provocações” para
amantes do cinema, concordando ou não com as
que outras leituras possam ser construídas por
indicações e premiações se torna impossível não
afinidade ou discordância. Mas, o que em verdade
prestar a atenção à entrega do Oscar. Que filmes
tentamos trazer a partir daqui, será a proposta de
utilizarmos
um
ferramenta
de
filme
como
mobilização
e
uma
terão atraído mais os olhares deste circuito da crítica
possível
facilitação
que
de
avalia
privilegiando
trabalhos do campo psi, e isso abrange mais do que
concorrentes
a clínica como já tivemos oportunidade de pontuar
a
partir
os
de
técnicos?
aqueles
inúmeros
aspectos,
Serão
estes
filmes
mesmos
que
mais
promoveram polêmica e aceitação por parte do
em outros textos.
público? Sabemos que nem sempre se dá uma
sintonia entre prêmios e grande público, embora a
procura por parte do público, aquilo que chamamos
de bilheteria, seja um dos aspectos que conta muito.
59
cinematerapia: volume 02
Natalie Portman que veste a pele da personagem
“A única pessoa em seu caminho é você mesma”
Nina em “Cisne Negro” é/era uma forte candidata
diz Thomas Leroy
ao
dúvida
versão inovadora que pretende para o Lago dos
merecerá/ia levar pela beleza e intensidade que
Cisnes. Quer ver em Nina o aparecimento do
imprimiu a sua personagem. A presença de Nina
Cisne Negro, e Nina tomada pela idéia de
garante as mais intensas emoções, chegando a
perfeição,
tocar o corporal do espectador. A respiração
mesma, encontrando no caminho a complicada e
aumenta
em
ambivalente mãe(Barbara Hershey), dominadora
determinado momento no filme, o diafragma
e repleta de intensas projeções aliada a uma
contrai-se pela tensão crescente, acompanhamos
inconsciente disputa com sua filha. A cena da
em angústia a personagem.
comemoração com o bolo, evidencia isto de
prêmio
de
e
melhor
diminui
e
atriz.
assim
Sem
como
(Vincent Cassel), diretor da
travará uma dura batalha contra si
maneira ao mesmo tempo sutil e cruel. No clímax
A utilização da técnica das seqüências de cenas
do filme a mãe desesperada perguntará: “- Onde
em velocidade acelerada pela direção de Darren
está
Aronofsky,
aumenta a entrada na atmosfera
responderá em um novo tom de voz, agressivo e
tensa do filme, coloca também desta forma uma
intenso: “- Ela se foi!”. Chegará até a ela a força
lupa na beleza das cenas. O olhar entre frágil e
bruta, destrutiva. Em uma leitura meio nonsense
feroz de Nina nos toca. Uma dança que pulsa
de
com a força que tem a música de Tchaikovsky,
representado em uma bela mulher, une femme
bela síntese da história do homem frente suas
fatale. Mas voltemos à Nina.
minha
Freud,
doce
menina?”.
Thanatos
bem
Ao
que
que
poderia
Nina
ser
demandas pulsionais. Sem dúvida esse filme traça
todo uma trajetória teórica naquilo que de mais
Uma pessoa dominada pelo controle, perfeição,
indomável habita-nos, a força da sexualidade e da
tanto no interior quanto no exterior. Sua rigidez
agressividade.
vai até na disposição de seus objetos, passando
pelos cabelos e impecáveis movimentos, treinados
Não há como fugir da concepção freudiana ao
até uma exaustão impossível de se acompanhar
nos deixarmos invadir por esse filme. A morte
visualmente.
toca,
compor
a
ambivalência
presente
nos
vínculos
Ouvimos
diagnósticos
muitas
para
tentativas
nossa
de
conflituada
objetais, e deixará impressões profundas pelas
personagem, embora esse seja um exercício quase
cenas muito bem encaminhadas, se tomarmos
impossível, fica configurada, como alerta dado
esse sentido.
Vemo-nos, envoltos em uma
pela sua figura espelho, a personagem Lilly (Mila
ambientação muito próxima a um sonho de
Kunis), perguntando-lhe se não estava surtada
angústia, o coração acelera frente a algumas
com o posto de primeira bailarina. Tantos teóricos
tomadas, mais uma vez contração e respiração
apontam para o borderline como o diagnóstico
que oscila entre hiperventilação e suspensão. Há
que fala de clínica contemporânea, talvez Nina
em muitas cenas uma perceptível excitação, o
represente a todos nós o potencial dessa acepção. .
corpo do espectador de alguma maneira é tocado
Uma investigação mais detalhada nos apontaria a
por esse filme, assim como uma brisa que passa
comorbidade com um transtorno alimentar, além
desavisadamente pelos cabelos provocando um
dos sintomas psicóticos e de auto-mutilação
leve arrepio.
apresentados na trama. Cenas tão intensas e
vivenciadas em primeira pessoa, que dão a
sensação de incompreensão e confusão naqueles
que assistem. Vivenciamos o corte da realidade
junto com a personagem.
60
cinematerapia: volume 02
Nina passeia em risco entre a visão da realidade
Seria a partir deste lugar que, “colocado nessa
interna e externa, acaba perdendo-se em seus
posição limite, entre a vida e a morte, o sujeito
emaranhados.
pode
negociação
Para
egóica
nascer,
frente
no
a
corte
sua
da
constituir
efetivas
possibilidades
de
relação
sublimação e de criação, pela construção de uma
ambivalente com o objeto materno, para dar
forma singular de existência e de um estilo
vazão ao seu Cisne Negro, Nina ataca seu Cisne
próprio para habitar seu ser”. Nina toca fundo
Branco, ataca-o como se fosse ele o Cisne Negro,
nesta ferida.
projetando-o em Lilly, mas ao final, totalmente
em identificação projetiva, é seu corpo o que
Não é um filme fácil de ser assistido, podemos
sangra e o que salta para a morte. Sorri atingindo
encontrar nele traços de direções que foram
a ansiada perfeição, o que vale é a exposição.
consagradas pelos seus toques do “estranho”, mas
Palmas e ovação vindas da platéia. Há um toque
como falamos aqui no início deste texto, são
sereno no sorriso final de Nina. Apaziguadas as
exatamente esses filmes, os que tiram o fôlego,
fortes oposições no teatro do corpo.
que mexem de alguma maneira com o imaginário
do espectador, que mais nos interessam em nosso
A personagem quase invisível de Winona Ryder, a
projeto. Talvez um pouco no caminho de um
destituída primeira bailarina Beth MacIntyre
resgate do velho Freud do início, aquele que tinha
remete Nina a sua construção da inveja como
potência plena, sem o receio do inusitado, o
caminho de sua identidade, talvez aí tomando o
velhinho estóico que descreve Peter Gay, aquele
caminho inverso da sua relação materna. Nascida
que no final da vida, ele mesmo resgata, como seu
de uma bailarina frustrada que despeja sua
próprio Cisne Negro, lançando para a posteridade
expectativa em relação à filha, sweet menina, os
seu Moisés e o Monoteísmo.
seus anseios de realização, e que ao mesmo
tempo, pela veia da inveja, tenta impedir o
Saindo do cinema acompanhados de Nina e do
crescimento e a transformação dessa menina em
Cisne Negro de cada um de nós, o corpo tocado
mulher, é preciso o Cisne Negro da agressividade
indelevelmente,
e sexualidade para construir um caminho de
caminho poderá ser aberto, talvez quem sabe em
libertação para Nina, que aprende o gozo, toma
um mais belo pas de deux com a vida. Há tanta
posse do corpo, em uma clara representação de
intensidade no Cisne Negro de Nina, que ele nos
sua ambivalência, cuidado e ataque.
choca, leva ao êxtase, ou como disseram alguns:
algo
se
transforma,
algum
intoxica, mas talvez com o mais puro oxigênio.
As cenas são um tanto chocantes, podem levar a
uma certa repulsa e clara angústia. Seria o
Como filme, talvez deixe a desejar, como disseram
caminho
do
os mais críticos, mas como um potencial de
feminino em sua potência? Dependendo da linha
emoção, tira o fôlego. Ou ainda, no caminho
que tomemos essa será uma pergunta de muitas
sublinhado com um resto de esperança, possamos
respostas possíveis. Nosso corpo conhece “a dor e
dizer como Birman:
a alegria de ser o que é”. Vamos entender aqui
pode traçar na carne o seu destino singular, pela
feminino como algo que suplanta a questão de
construção de um estilo de existência”. Dançar é
gênero, como propõe Joel Birman em seu livro
preciso, talvez com um pouco mais de Eros.
do
masoquismo
a
construção
Mal Estar na Atualidade, nos diz o autor que
todos nós, homens e mulheres, tememos esse
feminino, visto nele a castração, como o lugar da
morte e da ausência.
61
“Somente assim o sujeito
cinematerapia: volume 02
Capítulo 15
Ex Machina: Instinto Artificial (2014)
Filme britânico dirigido e
roteirizado pelo estreiante
diretor, Alex Garland, já
lança com seu título aqui no
Brasil uma questão no
mínimo dúbia ao unir a
questão do instinto ao
artificial, criando assim no
título, um paradoxo.
O filme usa e abusa da tensão sexual não explícita,
Lembrando que em psicanálise não falamos do
levando não somente ao ingênuo e confuso Caleb a
sujeito a não ser a partir da visão pulsional, a pulsão
interrogações acerca do lugar do desejo. Em tempos
está para além do instinto e traz inscrita nela
de discussão mais aprofundadas sobre sexo virtual,
variáveis múltiplas. O filme surpreendeu e ficou
relações amorosas via rede, solidão compartilhada e
com o Oscar para Melhor em Efeitos Visuais.
novos artefatos excitantes para atividade sexual, ele
cai como uma eficácia inquietante para vivências já
Levado por um suspense que vai se apresentando
corriqueiras. Foi noticiado recentemente deixando
aos poucos, o espectador se vê diante de questões
uma grande parcela muitos intrigados, a confecção
que animam as discussões atuais e pequisas sobre
de
um futuro ficcional que se constrói com as
nos faz pensar nas fronteiras da subjetivação. Onde
humano?
Nesta
construção
próprio
que
do
ser
aspectos
não
com
cuja
Ava,
Nathan
a
Mozart
na
ciência
da
Ava aproveitando-se de uma queda de energia,
quando então não podem ser observados, que ele
não é seu amigo e que também não é confiável. A
exista sem a dimensão sexual?(...) A consciência
rotina dos dois, Nathan e Caleb, entre conversas e o
pode existir sem interação?"
desenvolvimento da pesquisa vai em uma tensão
crescente acompanhando e dando o ritmo de
Conheceremos então a sedutora personagem, Ava,
suspense ao filme.
representada pela recentemente oscarizada atriz
trazendo
pessoa
computação. Aos poucos verá, como logo o adverte
"Pode me dar um exemplo de consciência... que
Vikander,
uma
um grande fã com seu ídolo, compara conversando
poderão deixar de serem observados?
Alicia
a
A relação de Caleb com Nathan é inicialmente a de
estará a precisa linha que marca a construção de
psíquico
iguais
que se busca com o desejo?
tempo remete de maneira muito pontual ao que
aparelhamento
muito
finalidade é tão somente para atividades sexuais. O
descobertas científicas contemporâneas. Ao mesmo
um
bonecxs
ainda
nos
papéis
principais o ator Domhnall Gleeson( como Caleb
Smith) que também foi muito elogiado por sua
particiapção no já consagrado “The Revenant”, e
Oscar Isaac(como Nathan).
62
cinematerapia: volume 02
Interessante que em uma conversa dos dois sobre
Numa sequência como essa é que um cinéfilo
o comportamento de Ava, Caleb diz que ficou
suspira pelo prazer que há em se deparar com
intrigado com o fato dela ter feito uma piada, e
filmes autorais, daqueles que são engendrados a
que isso foi até aquele momento o sinal mais
partir das próprias reflexões e fantasias de seu
evidente pra ele de ter ali uma IA(inteligência
realizador. Pretensioso ou não, diz o que quer
artificial), segundo sua interpretação porque “ela
dizer, ousa e se coloca em risco.
só poderia fazer isso consciente da própria mente
e também da minha”. É interessante então
“O desafio é encontrar uma ação que não seja
lembrar do quanto Freud destacou o complexo
automática”.
trabalho psíquico envolvido em um chiste, dos
mais elaborados, a ponto de dizer que: “Na
Partem essa discussão em torno da pintura que há
brincadeira se pode dizer tudo, até a verdade”. E
na casa de Nathande Jackson Pollock , artista
será exatamente isso que Ava faz com sua
norte-americano nascido no início do século
brincadeira de devolver a Caleb sua própria fala
passado(nascido em 1912), que parte suas obras de
sobre querer ver a escolha que faria. De maneira
um pingo de tinta, não usa nem cavalete e nem
muita intensa a partir desse momento ela ganha a
pincéis, com a tela no chão e pisando nela, sua
cumplicidade do seu interlocutor.
execução partiria de um sentido supostamente
aleatório, sem intenção. Sua arte ficou conhecida
Ava é uma aula de sedução, não poupando nada
como “pintura de gotejamento”. Em pleno início
no
de século onde se descortinava a questão do
uso
de
tudo
aquilo
que
se
contrói
culturalmente como o que faz de uma mulher
Inconsciente
uma sedutora em potencial. A primeira vez que
impulsos, é interessante observar a relação que o
ela se veste se parecendo então completamente
roteiro estabelece com o determinismo que ainda
com
e
hoje buscamos e o deconhecimento que persiste
significados, embora longe dos artefatos de
quanto ao que nos move, nossa “programação”. O
mulher fatal, sua aparência frágil e meio recatada
que há de insondável, o que há de aleatório, o que
provoca,
há de fortes impulsos em tudo aquilo que
uma
humana,
como
ela
é
cheia
mesma
de
sinais
observa,
uma
exaltação dos sentidos sexuais em Caleb.
como
determinante
dos
nossos
realizamos sem saber? Nathan de certa forma é a
expressão de Pollock já que este também sofre de
O diálogo entre Caleb e Nathan sobre a questão
alcoolismo , depressão e ataques de fúria, como o
de gênero e sexualidade presentes em Ava,
pintor em questão. O Inconsciente é sempre
intelectualmente é um dos pontos altos do filme,
infantil, já nos lembrou de certa forma isso,
entre a importância da sexualidade para o
também, o diretor Paolo Sorrentino em seu
processo de busca de interação até ao fato de que
magnífico “La Grande Belezza”(2013) que levou o
não sabemos o que compõe o“programa” da
Oscar de Melhor Filme Estrangeiro(2014), na cena
nossa orientação sexual, jogadas como em um
onde a menina joga tintas em uma tela, meio tipo
ping-pong entre dois grandes mestres que faz
Pollock, tomada pela angústia de ser levada a se
com que nossos olhos não acompanhem o trajeto
exibir pelos seus pais para uma plateia futil e
da bola, conquistam o já atordoado espectador
adestrada.
que só poderá elaborar em um à posteriori
bastante amplificado pelas impressões do que se
verá logo a seguir, guiado pelo roteiro intrigante
que Garland compôs.
63
cinematerapia: volume 02
Dia 5, Ava diz que vai testar Caleb. Pela sua
Havia até então em Kyoko uma subserviência que
capacidade de decodificar as micro expressões
intrigava e incomodova, não somente a Caleb, mas
faciais ela é, como lhe diz Caleb, um detector de
acreditamos que também a quem assiste ao filme.
mentiras ambulante. E lança a pergunta: o que
Ao puxar sua pele artificial e mostrar a Caleb sua
acontecerá comigo caso eu falhe no teste? Coisa
estrutura de máquina ela revela sua obediência e
que Caleb realmente não sabe responder e ela
ao mesmo tempo que há inquietação, e de certa
questiona se existe alguém que o desligue caso
maneira deixa clara a visão de dominação que
falhe e por que seria justo fazer isso com ela. A
Nathan em seu isolamento tem como visão da
essa altura vê-se que nosso jovem protagonista já
mulher, talvez de todos, podemos pensar isso até
se
pela
pela escolha da forma em como colocar Caleb
enigmática Ava, totalmente seduzido por aquele
naquela experiência, um falso concurso onde na
ser que parece tão real, e que luta por sua
verdade a escolha foi feita pelo histórico de buscas
"sobrevivência". Ela lhe deixa com a difícil
de Caleb e sua inocência.
encontra
totalmente
capturado
pergunta: você quer ficar comigo?
A pergunta que Nathan coloca fecha a indagação
“Os bons atos anteriores de um homem o
que o filme quer levantar, ou seja, se a capacidade
defendem”, diz Nathan após citar Oppenheimer,
de simular emoção para alcançar o objetivo seria
em meio a uma bebedeira, talvez refletindo sobre
então o que se poderia pensar que se alcançou
seus próprios atos e pesquisas. Ele um homem
então um novo ser com inteligência artificial, que
riquíssimo que alcançou a fortuna por ter
segundo ele fará um dia que os humanos sejam
desenvolvido
e
vistos como olhamos para os fósseis de animais
armazenamento de dados chamado de "Livro
pré históricos. Ela sente ou simula como meio de
Azul", que se torna a base de sua pesquisa secreta
alcançar resultados?
um
programa
de
buscas
sobre IA. Ele acredita que esse tipo de programa
não é uma questão de "se", mas sim de "quando".
Ava a Eva da criação da IA faz morder a maça
Então por que não realizar tal artefato?
embebida da ilusão fantasiosa de amor, Caleb se
entrega à serpente da sedução e promove meios
Caleb descobre que já antes de Ava, Nathan havia
para que ela possa fugir de seu paraíso artificial,
produzido outras IAs, chocado com a descoberta
mantendo-o agora prisioneiro dele, abandonado e
de que até mesmo a auxiliar Kyoko(Sonaya
ferido em sua própria vaidade. A metáfora está
Mizuno) também é uma das suas fabricações, ela
colocada, o cruzamento, a escolha, a face humana
serve de todas as maneiras a seu inventor,
que nos faz todo tempo ter no sentir aquilo que
inclusive sexualmente como em cenas anteriores
promove a vida. Não há resposta do porque em
já havia sido demonstrado.
alguma fase de nossa evolução as emoções
passaram a fazer uma parte importante do estar
no mundo e muito menos de como seria se tudo
que nos restasse fosse uma inteligência capaz de
juntar dados de forma ilimitada e dirigir as opções
a partir disso.
64
cinematerapia: volume 02
Ao iniciarmos esse texto abordamos a questão
A
pulsional como aquilo que move impulsos,
Wittgenstein, filósofo cujas reflexões unidas a
desejos que nos levam às realizações. Na conversa
proposta desse filme talvez tragam alguns debates
que Caleb e Nathan estabelecem a respeito do
interessantes.
que movia Ava fica a grande dúvida a respeito do
provocação quase escondida que o diretor lança
que também nos programa, um misto de algo
com a cena sutil?
dama
da
pintura
Quem
foi
sabe
irmã
de
tenha
Ludwig
sido
essa
original, genético e somado a isso o ambiente
emocional no qual nos desenvolvemos. Se não
Se tomarmos como certo o fato que nosso
estamos
nós
desenvolvimento individual repete a evolução da
mesmos, seríamos capazes de criar máquinas que
nossa espécie poderemos nos perguntar em que
não se voltassem contra seu criador? Em outro
medida a aquisição da linguagem e capacidade de
ponto do filme Ava pergunta a Nathan por que
comunicar uma emoção se torna exatamente a
ele criara algo que o odiava tanto? Obviamente se
linha
referindo a ela em seu cárcere privado. Sua
semelhantes? Ao mesmo tempo, Ava nos revela
capacidade de imaginar estava na exata medida
que essa capacidade de comunicar é também a
de sua necessidade de escapar do cativeiro e
chave para possamos interferir no desejo do outro
dominação.
pra ligação ou manipulação. “Eu quero ver como
prontos
pra
responder
sobre
que
promove
a
ligação
com
nossos
você escolhe” é a frase que se torna o chiste via
Ao conseguir encontrar os outros protótipos, Ava
Ava, talvez nossa própria comédia e drama diante
se faz enfim toda humana, veste a pele artificial
da vida e das relações que estabelecemos.
cobrindo todo o corpo, ganha a forma feminina
que é reconhecida no mundo. A nudez quase
púbere de Alicia Vikander dá um tom de entrada
no mundo bastante pontual. Interessante nessas
cenas observar que sutilmente a pintura muda de
Pollock para um Klimt(Margaret StonboroughWittgenstein) em sua forma de caraterizar a
mulher, também ele usando algumas vezes o
pontilhado com folhas de ouro, como no caso da
bela pintura “O Retrato de Adele” que também
ficou conhecida como “A Dama Dourada” cuja a
história do roubo do quadro pelos nazistas, posse
do quadro pela Austria pós guerra e a disputa
pela sua propriedade, foi recentemente filmada.
A presença do quadro na cena é sutil, e
confrontado com as explicações sobre a arte de
Pollock antes podemos pensar na forma que se
desenha e revela-se agora em um contorno
preciso de Ava, a dama de branco que ganhará o
mundo, sainda da caixa cinza, como disse Caleb e
adquirindo o sentimento do colorido do mundo,
talvez humana, ou quase...
65
cinematerapia: volume 02
Capítulo 16
As Vantagens de Ser Invisível (2012)
“Eu me sinto infinito.”(Charlie)
Em entrevista publicada por uma revista de
circulação nacional o autor do livro, roteirista e
diretor desse filme, Stephen Chbosky, disse algo
que encerra o filme, e com o qual iniciaremos este
texto:
“...nós adultos nos lembramos dessa fase com certa
distância. Nos lembramos do primeiro amor, da
Copyright: Artonico
primeira vez que nosso coração foi partido e na
fase adulta colocamos todas as experiências em um
contexto. Sabemos que tudo vai passar, que vamos
viver outras coisas, e que aquelas não serão mais tão
importantes. Sabemos que o coração partido pela
primeira vez se tornará uma lembrança boba, pois
você ainda vai conhecer outras pessoas e depois vai
conhecer sua esposa, ou marido, e aquele primeiro
amor será passado. Com esse olhar universal, não
damos atenção ao adolescente, não respeitamos
sentimentos que já vivemos.”
felicidade que atravessam nossas mais exigentes
cobranças. Quando um adolescente aparentemente
parece se enquadrar nestes requisitos o mundo
adulto sorri aliviado, em qualquer lugar do mundo
como
em filme, segundo o que ele mesmo afirmou,
“precisava de distância entre as duas obras”.
Primeiramente chamado para o roteiro, acabou
sendo indicado pelos produtores para também
conduzir a direção. Fato é que o filme consegue
construir mesmo uma linguagem própria e afastarse daquele risco de vermos imagens congeladas
emocionalmente é densa e que cutuca questões
forma que construímos os valores de sucesso e
conhecidos
livro seu autor inicia a aventura de transformá-lo
tentando alcançar a leitura de uma obra que
Tendemos a olhar para o mundo juvenil da mesma
serão
Mais de 12 anos após o lançamento e sucesso do
os
vencedores,
os
populares, a grande promessa de futuro. Mas, e
quando isso não acontece? E quando temos um
adolescente que se diferencia destes modelos, o que
o mundo adulto vê? Será que vislumbra alguma
outra coisa que não seja o fracasso, o estranho, o
algo a ser domado, castigado ou tratado? Neste
filme, guiados por nossos personagens veremos um
bocado de tudo isso, um grito que rompe o silêncio
asfixiante, enlouquecedor, como o de Charlie.
Abrimos a porta do quarto do filho, do que fomos e
dos que hoje são.
66
fortemente emocionais. Não é deixado nada de fora
dentro de temas difíceis que, quase sempre, são
tratados
com
reserva,
e
quando
não,
apenas
contemplados com um olhar complacente, com
uma compaixão que aniquila ainda mais o que
precisa de gritos e golpes, não de sussurros, que
exige indignação e não de piedade.
Da fobia social ao bullying; da orientação sexual a
homofobia; dos cuidados e idealizações à pedofilia
(feminina, a que quase nunca é abordada); dos maus
tratos como caminho da repetição, e mais uma
gama de padrões de sofrimento, esta obra abordará,
sem estardalhaço, mas também sem meias medidas.
As alegrias e conquistas frente ao mundo interno e
externo são igualmente descortinadas de maneira
delicada e envolvente.
cinematerapia: volume 02
Nossos jovens atores encaminharam cada um seu
Nosso personagem principal levantam questões
personagem de forma tão ampla e convincente,
tão atuais sobre a adolescência que percebemos
que viraram gente, como se saídos da tela e
que estes conflitos são quase que universais e
sentados contando suas vidas ao espectador
atemporais.
atento. Mais uma vez o ator Ezra Miller (do
idiomas mas as formas de se relacionarem e
“Precisamos Falar Sobre Kevin), interpretando o
estabeleceram
personagem Patrick, emociona e se entrega de
adolescentes, permanecem as mesmas.
Mudam-se
as
vínculos
cidades,
saudáveis,
tempos,
entre
corpo e alma ao papel. Charlie interpretado por
Logan Lerman(de Percy Jackson) se faz conhecer
Ficam para trás o Charlie ou a Sam, Patrick, Mary
em uma medida tão perfeita entre a contenção
Elizabeth(Mae Whitman), de cada um de nós. E
de gestos e a explosão de sentimentos que
chegam os filhos que crescem e voltam a cutucar
conduz de forma completamente pontual o fio
sentimentos esquecidos, algumas vezes os pais
do que é o que corre profundamente em suas
apenas respondem com seus códigos morais do
falas, a cada gesto deixa anunciado:
mundo adulto ou silenciam em uma cumplicidade
ainda não
me revelei; e quando o faz, se humaniza de tal
em
maneira que perceberemos na obra seus traços
adolescência um caminho doce e outro muito
autobiográficos (ditos existentes pelo autor).
amargo, nem sempre é tão fácil assim idealizar
torno
do
“não
dito”
sagrado.
Há
na
esse período do desenvolvimento do sujeito. Em
De
que
emaranhados
tentam
emergir
os
algum
lugar
de
cada
um,
o
pedido
de
adolescentes, vindos de sua infância e de suas
sobrevivência em grupo repete a filogênese, as
tramas
tribos
familiares?
Nossos
personagens
são
fundamentais
para
alguma
generosamente farão confidências sem pudores
experimentação de bem estar, e podem ser
ou hipocrisia. Trazem em comum o sentimento
também,
de inadequação e um componente de vínculo
caminhos e lembranças para os anos vindouros.
que
“No grupo, o indivíduo adolescente encontra um
podemos
chamar
de
generosidade,
a
a
grande
armadilha
que
marcará
aproximação de Sam (Emma Watson, de “Harry
reforço
Porter) em direção a Charlie deixa isso evidente.
mutáveis do ego que se produzem neste período
da
As questões que paralisam Charlie e a revelação
muito
necessário
para
vida”(Aberastury/Knobel
–
os
aspectos
“Adolescência
Normal”)
que aos poucos vai se desvendando ao longo do
filme, remetem a muito do que sabemos a
“Ainda
respeito de uma timidez patológica e sua relação
incertezas, as motivações não são assim tão
com abusos sofridos na primeira infância.
A
diferentes, muda a forma, mas os conteúdos estão
emoção ao mesmo tempo contida e efusiva dele
lá, próprios dessa fase tão importante da vida,
ao encontrar acolhimento, novos amigos, leva ao
onde quase todas as nossas matrizes recebem o
espectador
em
acabamento que teremos que lidar até que uma
sentimentos e épocas remotas de sua vida,
boa análise possa quebrar padrões de repetições,
períodos que a maturidade geralmente soterra
descortinando uma nova possibilidade de olhar
por debaixo de toda a parafernália psíquica, a que
para o mundo, em última instância, para o
se investe em papel social,
dinâmico e o econômico dos nossos afetos. Neste
um
profundo
mergulho
que aprende a
somos
os
mesmos”,
as
dúvidas,
as
representar e a formular suas experiências.
sentido
Experiências dele tão intensas que nos remetem
mensagens que recebeu ao longo desses anos
as
alguns
sobre como seu livro ajudou a muitos jovens a não
momentos talvez não saibamos se o que nos
se sentirem tão desamparados, ao que parece o
emociona é a trama do filme ou reminiscências
filme
nossas
próprias
histórias.
Em
de nossos próprios enredos que também, um dia,
soterramos.
67
vemos
irá
o
autor/diretor
contemplar
também
que
essa
fala
de
questão,
supomos que não só dos jovens, mas para seus
pais se constituindo em um importante lembrete.
cinematerapia: volume 02
A passagem de Charlie com Sam é bem pontual
A forma como Charlie escolhe entrar, no que aqui
também para os estudos que apontam para que,
no Brasil corresponderia ao Ensino Médio, é
as vivências de abuso infantil, são significadas no
peculiar, olhando para seu final e vendo os dias
“à
da
que faltam até a ele, nos fornece indicadores de
genitalidade, no desejo que resgata também a
que nem para todos, talvez nem para maioria, essa
possibilidade de perceber no corpo a importância
fase será constituída apenas por festas e alegria, há
da imposição de limites. Vemos a passagem do
tumulto
filme que se dá apenas em tomadas de cenas,
enfrentamentos e fuga, e de qualquer forma que
onde o não dito grita sem precisar de nenhuma
se
palavra, entendemos a profundidade da dor ali
apresentada como aquele comportamento contra-
encenada,
fóbico
posteriori”,
o
no
autor
amadurecimento
leva
ao
filme
amplas
dê,
e
angústia,
muita
que
tensão,
vemos
incertezas
até
em
e
medos,
mesmo
uma
quando
juventude
representações. Ao significar a dor, ela pode ser
enlouquecidamente desafiadora, que se coloca em
libertada, a insuportável, a que se equilibrava
risco sem muito discernimento. Os jovens se
com grande dispêndio de energia. Através dessa
colocam em perigo com muito mais facilidade, há
libertação Charlie encontrará o sintoma em sua
uma ilusão de imortalidade que atravessa a faixa
crueza, e como todo sintoma ele não é o mal em
da adolescência, em sua luta pela autonomia, o
si, porque também carrega a corajosa tentativa de
desafiar limites passa muitas vezes por perigos
encontrar novos caminhos, outras elaborações, a
impensados e por uma certa dose de imprudência.
saída da repetição, a “talking cure”. Os sintomas
Sobrevivem os adultos de sua adolescência. não
de uma maneira geral devem ser compreendidos
apenas uma "fase"
dentro desta perspectiva, e na adolescência ainda
costumam mencionar, mas como um importante
mais, como um indicador da dinâmica que
pedaço da vida do sujeito, fundamental na
precisa ser vencida, o luto pela infância, como
constituição do seu psiquismo.
ou "passagem" como muitos
defende Aberastury e Knobel no livro citado.
Sexualidade e agressividade, duas correntes de
As primeiras aventuras, o primeiro beijo, dito por
um mesmo fio, Charlie é a própria representação
Sam que deve ser recebido com amor, as
de
primeiras experiências de romper barreiras, a
tudo
isso
transformado
em
culpa
e
paralisação.
música como um forte marcador desta fase da
vida,
o
mundo
do
adolescente
vai
sendo
Patrick(Ezra Miller) dá o toque da sexualidade
apresentado de uma maneira muito bonita e
que foge a expectativa heteronormativa, como se
comovente. E sabemos como o jovem em seu
já não bastasse o conflito e angústia desta fase, o
afastamento do mundo adulto precisa ver-se
romper com códigos do mundo adulto(velho), a
retratado, compreendido e acolhido como sujeito
descoberta de um amor que desobedece a lógica
desejante, e esta película faz isso de forma muito
convencional
rica. Como não observar a silenciosa tentativa de
e
que
torna
a
bissexualidade
naturalmente vivenciada na infância um algo a
Charlie
ser descartado, agora mal visto pelos códigos da
pequenos gestos de desistência quanto a isso? Um
vida adulta. A homofobia que se inscreve no
toque necessário para que se possa olhar o
externo ou ainda no próprio ser, como nos é
aparente isolamento como uma dificuldade de
mostrado
(Johnny
dizer que precisa ainda de algum resto dos pais da
Simmons), castigado pela violência de seu pai,
infância. A mãe (Kate Walsh, a Addison de Private
grande
em
Practice e Grey's Anatomy) ainda guardando um
personagem esse pai, uma lei sem face, mas
traço ao chamá-lo de “Carinho” resgata um olhar
implacável.
possível, ainda há uma mãe que cuida ali, nem
via
toque
o
personagem
de
não
se
Brad
constituir
em
tentar
confidenciar
todos os jovens têm a mesma sorte.
68
ao
pai,
os
cinematerapia: volume 02
Quando
Sam
questiona
Charlie
sobre
relacionamentos e amor, este diz : "recebemos o
amor que acreditamos que merecemos". Quantos
reagiram a essa frase com o clássico, "nossa, que
profundo para um adolescente!" Tanto para se
entender e analisar a partir dessa frase! O fato de
ser adolescente não o desvaloriza enquanto
sujeito do inconsciente, tão observador e tão
intenso,
com
constantes
mergulhos
no
seu
mundo, nem tanto assim paralelo. Mundo esse
que ele mantém contato constante através das
cartas. Cartas que somem quando se sente seguro
o suficiente e já pertencente ao novo mundo. Não
que o mundo tenha mudado, mas agora ele o
percebe, integra e faz parte, e assim, pode
abandonar esse seu quase objeto transicional que
recebia parte de sua angústia. O objeto perdido
pode ser ultrapassado, o luto se completa, e isto,
no caso de Charlie, supõe uma perspectiva
bastante ampla.
Um filme que abre tantas reflexões, e que mais do
que isso, chama para vivência de emoções fortes,
atualiza conteúdos e dá nome ao que nem
sempre identificamos. Uma juventude inserida e
não capturada, a potência da forças novas,
diversas e diferentes, não será justamente isso
que no momento vivemos de maneira tão
intensa? E dentro dela mesma, desta potente
juventude, a velha luta de forças, entre o silenciar
e conservar ou gritar seus sintomas e expandir-se
em novas representações.
69
cinematerapia: volume 02
Capítulo 17
Deixe a Luz do Sol Entrar(2017)
“Eu não me ocupo com o
resto. Tento encontrar um
belo sol interior. É tudo que te
peço. Entende?”(Denis, le
voyant)
Belos títulos, tanto o original em francês, algo
próximo a “um belo sol interior”, que talvez remeta
melhor a uma elucidação da protagonista, assim
como o nome dado em português onde se coloca a
forma dúbia e a complexidade do dilema vivido
pela personagem, está literal numa frase que é
Copyright: Martin Kraft
falada quase ao final do filme pelo vidente
interpretado por Gérard Depardieu. O filme é
dirigido pela francesa Claire Danes(Bastardos/2013)
Às vezes pedinte e outras vezes, cruel ou impositiva,
que
exemplifica muito bem o dilema vivido por uma
também
assina
o
roteiro
junto
com
a
consagrada escritora Christine Angot. Claire Danes
grande
parcela
é reconhecida por sua capacidade em questionar
independentes, sexualmente ativas, em busca de não
com profundidade a complexidade das relações
ter que se colocar na enganosa escolha entre ser livre
amorosas na atualidade.
socialmente
ou
amorosamente.
de
mulheres
financeiramente
satisfatoriamente
resolvida
Uma boa série inglesa para
Juliete Binoche inunda a tela, mais uma vez de
complementar a discussão que o filme levanta é
forma magnética, captura e seduz o espectador,
“Apple Tree Yard”.
preenche a imagem com sua presença madura e
sua feminilidade marcante bem caracterizada em
Acompanharemos Isabelle por um curto período de
sua personagem Isabelle, uma feminilidade nada
tempo a deslizar de um parceiro a outro, diferentes
frágil, nem angelical. Angustiante, sensualmente
em todos os aspectos, menos em um, nenhum deles
provocativo, incômodo, faz refletir sobre a solidão
está totalmente disponível para um envolvimento
muito presente na atualidade e o desencontro nas
do jeito que ela anseia e busca. Por inúmeros
relações amorosas contemporâneas.
Ser livre e
motivos, desde homens casados até uma marcante
manter uma relação afetiva ligada, suficientemente
diferença de classe social, Isabelle tem que se
boa, será que é possível? A protagonista oscila entre
contentar com relações que não se dispõem a um
uma atuação carente, dependente e vulnerável até
“depois” a um fazer juntos, a meta é o sexo e uma
uma presença mais agressiva e ativa em busca de
vez realizada esgota o encontro, gerando nela, cada
um parceiro no amor.
vez mais, uma insatisfação crescente. É verdade que
ainda mantém também algum contato com seu ex
marido(Xavier Beauvois), eles se encontram para
sexo, ele a deseja, e fica claro que foi ela que
encerrou o casamento por se sentir insatisfeita
dentro dele.
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cinematerapia : volume 02
Deste casamento ela tem sua única filha, uma
Essa relação será apresentada ao espectador logo
menina de dez anos que está passando uns dias
ao início do filme, o lugar que Isabelle ocupa nesse
com seu pai que mesmo assim ele toda hora
imaginário
encontra um motivo para entrar na casa de
modernidade que não sabe ainda muito o que
Isabelle, em uma discussão, alega que por ser
fazer com essa nova posição feminina que surgiu
também casa de sua filha e patrimonialmente ele
no tecido social.
é
bem
característico
de
uma
ter direito a metade dela, teria livre acesso a ela,
talvez esse sutil
problemática,
ponto condense o foco da
ao
não
saber
Se pensarmos bem todas as marcantes mudanças
diferenciar
ocorridas em relação aos papéis da mulher frente
propriedade de residência traça a sutileza do que
à
o roteiro aborda. É preciso residir com graça nas
completar cem anos. A vertigem do rodopio ainda
relações para que elas efetivamente
existam
é muito presente, e na atualidade ela marca uma
como referência, ganhem a chave que abre o
angústia que toma os dois gêneros que não sabem
afeto.
o
sociedade,
que
fazer
configurações
maioria
para
ainda
está
encaixar-se
que
se
longe
de
nas
novas
aceleram
nas
Artista plástica bem sucedida, Isabelle se defronta
transformações. Podemos até supor que hoje o
com um grande vazio afetivo, a solidão marca
caos retrógrado que quer se instalar é herdeiro
seus dias, não porque não tenha boas relações
desse estado confusional que o sujeito se encontra.
sociais e uma agenda cheia, mas sim pela
superficialidade que tudo isso toma em seu
Um bom texto freudiano para juntar a esse filme a
contorno emocional, tudo se transforma em
quem for buscar fazer algum debate é um dos que
“encontros” como costuma ser de uma maneira
consta em sua obra intitulada de “Contribuições à
geral na agitada vida dos grandes centros, como é
Psicologia do Amor”, principalmente o primeiro
o caso de Paris onde ela mora. Sua vida está bem
da série que leva o título de “Um Tipo Especial de
longe
Escolha de Objeto Feita Pelos Homens”.
de
ser
monótona
ou
entediante,
ao
Dos
contrário, o que marca o sentimento de vazio
tempos onde Freud decidiu ouvir o que tinham
existencial que a angustia é justamente uma falta
para falar as mulheres vistas como desajustadas,
de sentido nas relações que vai estabelecendo
até a atualidade, tanto da posição do feminino(e
pelo caminho, inúmeras e intensas.
do masculino) se modificou que pouco ou nada a
princípio
Nas alusões todo o tempo trazido por outros
deveríamos
encontrar
de
questões
similares, mas como dizem, “só que não”(sqn).
personagens, a questão do ser comida, é como se
todos se transformassem em deliciosos petiscos
De certa forma as mulheres continuam enfrentar
que não chegam a saciar, ela mesma
a peça
dilemas semelhantes, seu corpo até foi de certa
“devorada” sem critério pelo desejo alheio. Sua
forma livre do espartilho, mas continua a não lhe
relação com o banqueiro mostra bem o quanto
pertencer totalmente, o uso que faz dele, como se
ela se deixa deslizar por alguma busca de uma
articula nas movimentações dos estratos sociais
adesão a um lugar de domínio, aquele lugar
podem
naquela relação a fascina, chega a dizer que o que
adoecimento.
a faz ter orgasmo é justamente o fato de pensar
que ele é desprezível, segundo suas palavras, um
babaca, ele é grosseiro, direto em seu apetite
sexual, a coloca de forma clara no lugar de objeto
sexual.
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ser
fonte
de
grande
angústia
e
cinematerapia: volume 02
Isabelle é neste sentido a mulher ideal para
Mas problematizemos isso e entendamos que isso
pensamos nessas questões, afinal é uma mulher
é a fala de um homem sobre a posição feminina
independente
si
frente sua própria sexualidade, o que nos leva a
mesma, culta, pertencente a uma elite social e
uma questão importante, embora sem resposta
intelectual,
simples
possível(ainda): por que ao exercer a sexualidade
sobrevivência, tendo tempo para pensar em si
de maneira plena e livre a mulher teria sua
mesma e sua inserção em seu próprio desejo. Ela
posição levada a uma “depreciação de objeto”(ler
deseja amar e ser amada, magicamente. Ao invés
os textos freudianos indicados anteriormente)?
de mergulhar na busca do entender seus padrões
Por que ao buscar parceria sendo dona do próprio
de repetição, apelará para a saída mágica e é
corpo e exercendo sua liberdade sexual a mulher
então, ao final do filme, que encontrará o vidente
estaria afastando justamente aquilo que busca, o
interpretado
encontro,
financeiramente,
não
precisa
pelo
lutar
sempre
dona
pela
genial
de
Gérard
Depardieu.
a
cúmplice
parceria?
Será
que
socialmente os marcadores apenas se fantasiaram
de
diferentes
permanecendo
em
essência
a
A ironia que é trazida de forma rápida e sutil, faz
mesma
entender que na verdade ambos estavam lidando
machismo? Isabelle e sua busca constrói a síntese
com questões semelhantes, e que a desilusão dele
dessa questão.
velha
misoginia,
o
mesmo
mofado
era talvez equivalente a dela, o que aponta para o
fato que independente do grande poder que
O momento atual faz pensar na letra dos versos da
ainda detém a parcela masculina, a angústia do
canção, “a dor e a delícia de ser o que é”, cada
vazio amoroso tem sido presente de igual
sujeito hoje busca no mundo estabelecer algo nada
maneira.
fácil,
embora
seja
“vendido”(faz
movimentar
fortunas), o amor romântico, a busca do par, a
Uma cena tocante de sua fragilidade afetiva se dá
relação que segundo o próprio Freud, pode
quando Isabelle contracena com Alex Descas que
apontar para a mais intensa realização ou a mais
interpreta Marc um homem poderoso no meio
dolorosa frustração. Músicas, livros, filmes, versos
das artes e muito mais velho, ali ela está quase
fazem pensar que “ninguém é feliz sozinho”, e
pedinte, a mão que busca com algum desespero
talvez esse seja mesmo um forte impulso que
um parceiro para caminhar lado a lado, ela
investido socialmente como foi, não torna possível
praticamente implora que ele esteja com ela, ao
sem grandes esforços, escolher, há quem faça isso,
que ele responde que funciona mal quando se
mas será preciso aceitar estar em alguma categoria
sente enclausurado em alguma demanda, precisa
colocada como “diferente”, o igual é o par em uma
viajar e quem sabe em outro momento os dois
sociedade que preza a família nuclear como base
poderiam se encontrar sem compromisso quanto
de sustentação(incluindo aqui as homoafetivas).
a isso. Na consulta que fará com Denis, le voyant,
ele a alerta, pedindo desculpas pela grosseria das
Em determinado momento do filme, retornando
palavras, para que não se contente em ser apenas
sozinha de metrô para sua casa, Isabelle pensa na
uma boa refeição para alguém, assegura-lhe que
frase que sua amiga falou para ela contando de sua
ela pode, tem o direito e terá algo maior que isso.
relação, se detém na expressão, “nos damos bem
em todos os sentidos”,
repete incrédula, “em
todos os sentidos” sem entender exatamente o que
a expressão poderia englobar. Seria possível tal
coisa?
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cinematerapia: volume 02
Pensar que sim a faz olhar para si mesma ainda
com mais desvalorização, como se não fosse
capaz de alcançar algo assim tão simplório. Mas
fica a questão, existir dentro de uma relação,
mantendo-a estimulante e agradável será assim
mesmo um lugar tão comum, tarefa de fácil
execução?
No meio desse caos de solidão compartilhada,
surge nas novas gerações algo que se quer colocar
como “orientação sexual” que aponta por uma
parcela de indivíduos que seriam pertencentes ao
que se nomeia como “assexualidade”, podendo ou
não se envolver romanticamente com outra
pessoa, dentro da orientação ainda existiriam
variações como os demissexuais(interesse sexual
condicionado
ao
envolvimento),
greyssexuais(interesse em momentos específicos)
entre outras.
Estimasse que 7,7% das mulheres
brasileiras e 2,5 dos homens estariam nessa
classificação(dados
ProSex-IPq/USP).
Questão
que coloca uma “saia justa” já que se defende o
respeito à diversidade, mas, ao mesmo tempo,
como conceber que exista um sujeito capaz de
sublimar
toda
energia
sexual
que
move
o
aparelhamento psíquico? Questão controversa
psicanaliticamente falando, fica o desafio.
Isabelle é um passeio nada sutil por questões que
ferem a vida de muitas corajosas mulheres que
estão no mundo em busca de compartilhar afeto
sem abrir mão de sua autonomia. Afinal, se
levarmos adiante a questão que lá atrás o
fundador
da
psicanálise
colocou
sobre
as
mulheres(o que desejam?), talvez possamos ir no
caminho
aberto
por
Marie
Langer,
famosa
psicanalista francesa, e pensar que o maior desejo
seja o de autonomia, autodeterminação, sem que
isso signifique, como uma peste, ter que aprender
a ser só.
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