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EURE (Santiago)

Print version ISSN 0250-7161

EURE (Santiago) vol.42 no.126 Santiago May 2016

http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612016000200009 

ARTÍCULOS

 

Ativos territoriais, estratégias de desenvolvimento e governança territorial: uma análise comparada de experiências brasileiras e portuguesas1

 

Valdir Roque Dallabrida.

Universidade do Contestado, Canoinhas, Santa Catarina, Brasil.


RESUMO | Possuir ativos com algum grau de especificidade, em geral, é considerado uma vantagem diferenciadora para determinados territórios. Exemplificando, experiências de Indicação Geográfica no Brasil e de Denominações de Origem Controlada ou Protegida em Portugal estão entre as principais estratégias de especificação de ativos territoriais. São quase inexistentes estudos sistemáticos e comparados sobre a eficácia dos sistemas de governança territorial utilizados em tais experiências. Através do recurso a estudos documentais e bibliográficos, visitações, entrevistas e aplicação de um inquérito por questionário se analisa criticamente a relação entre ativos territoriais, estratégias de desenvolvimento e governança territorial. Os resultados da análise permitem afirmar que: tais formas de especificação são uma opção, não necessariamente a única e, em alguns casos, nem a mais significativa; há desafios não superados em relação aos sistemas de governança territorial; o recurso ao associativismo e à diferenciação, em geral, não passa de uma estratégia que viabiliza negócios lucrativos privados.

PALAVRAS-CHAVE | economia regional, gestão territorial, desenvolvimento territorial.


ABSTRACT | Possessing assets with some level of specificity, in general, is considered a comparative advantage for certain territories. For example, experiences in the Brazil Geographical Indication and Controlled or Protected Denominations of Origin in Portugal are among the main strategies of specification territorial assets. Systematic and compared studies on the effectiveness of territorial governance systems used in such experiences are almost nonexistent. The relationship of territorial assets, development strategies and territorial governance is critically analyzed through documentary and bibliographical studies, visitations, interviews and a questionnaire survey. The results of the analysis allow us to state that: such forms of specification are an option, not necessarily the only one, and in some cases, not the most significant one, there are unresolved challenges related to territorial governance systems, recourse to associativism and the differentiation, in general, no more than a strategy which makes possible private-profit business.

KEY WORDS | regional economy, territorial management, territorial development.


 

Introdução

Ativos territoriais são fatores em uso, utilizados na produção de mercadorias ou serviços num determinado território. Já os recursos são fatores a revelar, a desenvolver ou a organizar como potenciais reais. As estratégias de especificação de ativos territoriais podem ser consideradas formas de valorização das vantagens sustentáveis dos territórios, na perspectiva de contribuir para a qualificação de seu processo de desenvolvimento. As experiências de Indicação Geográfica (IGS) no Brasil e de Denominação de Origem Controlada ou Protegida (DOC/DOP) em Portugal, ou outras formas organizacionais correlatas, são exemplos dessas estratégias de especificação.

A questão da especificação de ativos territoriais e da sua relação com os processos de desenvolvimento está sustentada em abordagens teóricas que reafirmam a importância da instância territorial. Esta postura teórica não significa adotar um enfoque estritamente localista. Trata-se, sim, de recuperar contemporaneamente o território como construção social. Ou seja, ao invés do fim da geografia e dos territórios, argumento que chegou a ser defendido no final do Século XX (Friedman, 2005; O’Brien, 1992), assistimos a um processo de desterritorialização, ou seja, de precarização socioespacial promovido por um sistema econômico altamente concentrador (Haesbaert, 2006), que estimula e pressupõe formas de integração global fortemente assimétricas.

Sobre o tema em referência, Santos (2005) considera que, cada vez mais, os territórios são formados de lugares contíguos (que ele chama de espaço banal, o espaço de todos) e de lugares em rede. O autor salienta, no entanto, que os mesmos lugares que formam redes formam também o espaço banal, contendo, simultaneamente, funcionalidades diferenciadas. Sustenta sua afirmação relembrando que além das redes e com as redes existe o espaço banal, o espaço de todos, todo o espaço, porque as redes constituem apenas uma parte do espaço e o espaço de alguns.

Na obra referida, Santos (2005) profere uma célebre frase, que pode dialogar com o tema que aqui está sendo tratado, ao fazer referência à maneira como alguns produtores rurais brasileiros, na década de 1990, defendiam seus interesses, por exemplo, ofertando no mercado produtos cultivados agroecologicamente, o que permitia passar de um consumo puramente econômico para um consumo político. Considerando aquele contexto, defendia, então, a construção de novas horizontalidades, que permitissem "(...) a partir da base da sociedade territorial, encontrar um caminho que nos liberte da maldição da globalização perversa que estamos vivendo e nos aproxime da possibilidade de construir uma outra globalização, capaz de restaurar o homem na sua dignidade" (p. 260).

Na mesma linha de argumentação, Pecqueur (2009), fazendo menção à possibilidade de avançar da vantagem comparativa à vantagem diferenciadora, critica o modelo ricardiano de troca internacional baseado nas vantagens comparativas, abordagem que pressupõe a ideia de comparabilidade e, portanto, de equivalência geral das ofertas em um mercado essencialmente competitivo. O autor afirma que essa não é a realidade que se constata no mundo contemporâneo, sendo mais comum a situação em que se instala um modelo de concorrência no qual somente as economias com baixo custo de produção podem triunfar. Assim, segundo o autor, uma saída para o problema consistiria na diferenciação dos produtos dos territórios. Os sinais distintivos de um território, sua especificidade, seriam entendidos, então, como uma vantagem diferenciadora.

Muito foi escrito já sobre o tema em questão. No entanto, entende-se ser necessário aprofundar a dimensão relacionada às diferentes estratégias de especificação de ativos territoriais com o foco em uma questão central: qual a contribuição efetiva dos sistemas de governança territorial de estratégias baseadas na especificação de ativos territoriais para a sustentabilidade social, econômica e ambiental dos territórios envolvidos?

Esta questão de investigação parte da seguinte hipótese: a legislação brasileira e internacional considera os sinais distintivos de um território como marcas e atributos da coletividade territorial, o que gera a expectativa de apropriação coletiva dos seus resultados nas experiências de especificação de ativos territoriais, mas este resultado não tem sido alcançado, em parte pela inexistência de sistemas adequados de governança territorial.

Para validar esta hipótese foram realizados estudos sobre a eficácia dos sistemas de governança territorial de dez experiências de especificação de ativos territoriais do Brasil e de Portugal. Por eficácia dos sistemas de governança territorial entendemos, neste caso, a capacidade efetiva destes contribuírem para a sustentabilidade social, econômica e ambiental dos territórios em causa. Essa capacidade depende, em grande medida, da qualidade das práticas de governança territorial.

Além desta introdução, o texto está estruturado em mais quatro partes: (a) o aprofundamento teórico sobre temas como território, identidade territorial, desenvolvimento e governança territorial, ativos e recursos territoriais; (b) a explicitação dos procedimentos metodológicos e da amostra investigada; (c) a análise dos resultados e (d) as considerações finais.

Referencial teórico

O debate contemporâneo sobre desenvolvimento contempla diferentes subtemas, dependendo da área do conhecimento. Na Geografia, um subtema recorrente é o debate sobre território, territorialidade e identidade territorial e sua relação com o desenvolvimento. São referenciais que dialogar com o tema aqui abordado: ativos territoriais, estratégias de desenvolvimento e governança territorial.

Território e territorialidade

Há concordância por parte de autores da Geografia de que território é uma construção social resultante de relações de poder. No território expressam-se, simultaneamente, dimensões de unidade e de conflitualidade. São relações de caráter social, político, econômico e cultural, por vezes até religioso, inseridas na história de uma sociedade situada territorialmente. Portanto, o território precisa ser compreendido numa perspectiva integradora, ou seja, como um domínio politicamente estruturado e também como apropriação simbólica, identitária, inerente a certa classe social e ao produto gerado por ela (Haesbaert, 2006). Além disso, é necessário considerar a perspectiva relacional para o território, enfatizando a multidimensionalidade de poderes que sobre ele se fazem sentir (Raffestin, 1993).

Neste texto, assume-se a definição proposta por Dallabrida (2006, p. 161), que integra as preocupações dos autores citados: "O conceito de território refere-se a uma fração do espaço historicamente construída através das interelações dos atores sociais, econômicos e institucionais que atuam nesse âmbito espacial, apropriada a partir de relações de poder sustentadas em motivações políticas, sociais, econômicas, culturais ou religiosas, oriundas do Estado, de grupos sociais ou corporativos, instituições ou indivíduos". Os territórios são produzidos espaço-temporalmente pelo exercício de poder de um determinado grupo social, para o atendimento das suas territorialidades cotidianas (Saquet, 2015).

Sobre territorialidade, esta corresponde às relações sociais e às atividades diárias que os homens têm com seu entorno, sendo resultado do processo de produção de cada território, assumindo um papel fundamental para a construção da identidade e para a reorganização da vida quotidiana (Saquet, 2003). Raffestin (2015), referindo-se aos principais autores referenciais, afirma haver convergência em relação a duas questões: o conceito de território enquanto resultado de um processo de produção e o de territorialidade enquanto sistema de relações.

A territorialidade pode ser edificada através do estímulo aos laços identitários e ao fortalecimento do capital social e cultural, promovendo a valorização, proteção e capitalização das especificidades culturais, das tipicidades, do patrimônio ambiental, das práticas produtivas e das potencialidades econômicas (Albagli, 2004).

Considerar a condição multidimensional do território implica admitir que sua concepção não fizesse referência apenas às relações de posse nem de poder, envolvendo, também, as relações e os processos socioeconômicos e ambientais. Assume-se aqui uma concepção multidimensional de território e de territorialidade. Trata-se de uma concepção que poderá orientar o redimensionamento das relações de poder e a proposição de alternativas de desenvolvimento que valorizem a(s) identidade(s) territorial(is), o que estabelece profundas relações com a questão dos ativos territoriais e seus impactos no desenvolvimento dos territórios.

Território e identidade territorial

O fato dos autores anteriormente referenciados afirmarem que a territorialidade deve estar edificada sobre laços identitários sublinha a importância da identidade territorial. Sobre a relação entre território e identidade, há uma relação cumulativa entre ambos. "Enquanto se, por um lado, a identidade territorial gera e orienta os processos de territorialização, por outro lado estão as mesmas ações de territorialização a reforçar o processo de identificação entre a comunidade e o seu espaço vivido" (Pollice, 2010, p. 9). Na mesma linha de argumentação, Caldo (1996, p. 285) descreve a identidade geográfica como uma "(...) relação identitária que liga uma determinada comunidade ao seu espaço vivido". Ao fazer referência ao espaço vivido, o autor quer reforçar que não está a se referir apenas à dimensão espacial do fenômeno identitário, mas também àquelas ligações de pertença que constituem o território em si.

É importante ressaltar que a identidade territorial é dinâmica, mudando no tempo à semelhança de todos os outros componentes territoriais. Esta constatação nos ajuda a estabelecer uma relação entre identidade e inovação territorial, apesar de ela ser aparentemente contraditória. "A identidade territorial, onde oportunamente valorizada, pode contribuir ao desenvolvimento e à implementação dos processos inovadores em escala local" (Pollice, 2010, p. 11).

Mas o dinamismo da identidade territorial não é uma questão dada, pois ao mudar a identidade territorial mudam também os símbolos dessa identidade. Às vezes esta mudança é estimulada pela própria representação que os atores externos fazem do território e da sua especificidade (Pollice, 2010). É importante lembrar que esta pressão no sentido de interferir na mudança de percepção da identidade territorial pode também ser arquitetada pela elite local, com o propósito de levar ao esquecimento traços identitários do território que revelem situações socioeconômico-culturais que venham a condenar ações do passado, contrariando os interesses de tais atores hegemônicos. Nestes casos, o lugar se adapta à imagem atribuída desde fora do território, contribuindo para a perda da identidade local. Assim, tais pressões externas podem ser entendidas como formas de manipulação das identidades territoriais, como estratégia de controle do território (Pollice, 2010).

Uma crítica sobre os debates em relação à identidade territorial é a que considera que a mistificação dos valores identitários territoriais revela formas fechadas de identidade, fundadas sobre identidades historicamente sucessivas ou sobre a revitalização artificial de tradições já perdidas (Pollice, 2010). Entende-se, no entanto, que os limites entre a defesa da preservação da identidade territorial e a necessidade de inovação não são necessariamente evidentes, exigindo, portanto, uma avaliação caso a caso.

Identidade territorial e desenvolvimento

Partindo do argumento de que é em torno da própria matriz identitária que o lugar se estrutura e se diferencia do entorno geográfico, é possível estabelecer uma relação próxima entre identidade e desenvolvimento territorial. Neste sentido, toda a estratégia de desenvolvimento precisa se sustentar em uma base conceitual ampla, que contemple os aspectos relativos à identidade cultural dos territórios e não somente focada nas externalidades de um determinado produto, processo ou serviço (Sacco dos Anjos & Caldas, 2010).

Referindo-se aos possíveis impactos da identidade territorial no processo de desenvolvimento, Pollice (2010, p. 18-20) destaca sete aspectos: (1) a identidade territorial tende a reforçar o poder normativo dos valores éticos e comportamentais localmente compartilhados; (2) a identidade territorial contribui para melhorar a transferência intrageracional e intergeracional do saber; (3) o sentido de pertença constitui o cimento do sistema econômico territorial; (4) é necessário que o conjunto de empresas locais se fundamente numa reinterpretação crítica e inovadora, pois a capacidade de auto-organização dos sistemas territoriais está profundamente ligada à possibilidade de criar alguns mecanismos de introjeção da mudança; (5) o desenvolvimento endógeno se substancia na capacidade da comunidade local de valorização do território, em particular, àqueles recursos não localizáveis que constituem elemento de diferenciação; (6) a expressão mais significativa desta relação identitária entre a estratégia de desenvolvimento e a cultura do território é dada por mecanismos de convergência política e de compartilhamento projetual, reduzindo os comportamentos oportunistas ou ideológicos das forças que ali se confrontam; (7) os sentimentos identitários determinam, no nível local, um apego afetivo aos valores paisagísticos e culturais do território.

Consideram-se como fundamentais os aspectos ressaltados pelo autor, tendo em vista o tema do presente artigo. Para reafirmar a relação entre ativos com especificidade territorial, identidade e desenvolvimento territorial, assume-se a perspectiva teórica expressa em Dallabrida (2015, p. 325).

O desenvolvimento territorial é entendido como um processo de mudança continuada, situado histórica e territorialmente, mas integrado em dinâmicas intraterritoriais, supraterritoriais e globais, sustentado na potenciação dos recursos e ativos (materiais e imateriais, genéricos e específicos) existentes no local, com vistas à dinamização socioeconômica e à melhoria da qualidade de vida da sua população.

Um dos elementos teóricos presentes na concepção aqui assumida é o fato de que contam não somente os recursos e ativos materiais, mas também os imateriais ou intangíveis, bem como a distinção entre genéricos e específicos. Os fatores intangíveis manifestam-se territorialmente em situações ou comportamentos perceptíveis, tais como a propensão empreendedora, o nível cultural, o espírito colaborativo, a ética comportamental, a sensibilidade estética, dentre outros.

Por fim, é fundamental registrar que, ao abordar a relação entre território e desenvolvimento, não se deve desconsiderar o fato de que, apesar do poder de autonomia atribuído à escala territorial, os territórios estão inseridos num mundo globalizado, em que a multiescalaridade dos processos está presente (Brandão, 2007; Fernández & Dallabrida, 2008; Swyngedouw, 2010). Essa constatação não relativiza a argumentação teórica aqui referida, mas revela a complexidade em que o tema se situa, tanto teoricamente quanto no contexto da realidade socioeconômica e cultural.

Desenvolvimento territorial e sustentabilidade

Na concepção de desenvolvimento territorial aqui referida, ressalta-se a importância dos recursos e ativos materiais e imateriais nos processos de mudança de uma sociedade organizada territorialmente. Mas resta ainda uma ressalva: mesmo que se entenda que um processo de desenvolvimento precisa, necessariamente, contemplar a dimensão da sustentabilidade ambiental, talvez seja necessário esclarecer do que se está falando quando nos referimos ao desenvolvimento sustentável.

Assume-se a concepção de sustentabilidade expressa no relatório da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD, 1988, p. 46): "O desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades". Nesta concepção de sustentabilidade estão referidas duas questões-chave: necessidades e limitação. Estes são parâmetros importantes a serem observados, com o que a sociedade humana é convidada a pensar e distinguir as reais necessidades para sobreviver, considerando as noções dos limites ou limitações da natureza físico-natural.

Neste estudo serão consideradas quatro dimensões em relação à sustentabilidade como elementos indicativos na observação das experiências de especificação de ativos territoriais estudadas, quais sejam, o social, o ambiental, o cultural e o econômico.

As perspectivas de criação de riquezas nos territórios estão relacionadas às capacidades dos grupos quanto à organização e à elaboração de processos originais de emergência de recursos (Benko & Pecqueur, 2001). O fato de um território assumir os princípios da sustentabilidade ambiental no seu projeto de desenvolvimento futuro parece de fundamental importância, pois agregaria mais elementos distintivos à identidade territorial da região.

Qual a importância e quais as perspectivas desta situação positiva vir a ocorrer? Albagli (2004) faz considerações que contribuem para a resposta à questão colocada. A autora chama a atenção que a sustentabilidade do desenvolvimento pode estar ancorada na noção de território. No entanto, a apreciação do território unicamente a partir da sua capacidade de atrair investimentos e de gerar lucratividade tende a consumir de forma predatória os recursos tanto naturais, quanto sociais e culturais. Em contrapartida, o desenvolvimento local tendo como suporte a noção de território tende a estimular os laços de identificação e solidariedade, garantindo no longo prazo melhores condições de sustentabilidade. Dentre outros, esses argumentos justificam a hipótese de trabalho que motivou a realização do presente estudo.

O debate conceituai sobre governança

A introdução do tema governança se justifica pelo fato de que o presente estudo se propõe avaliar a contribuição do sistema de governança territorial na sustentabili-dade de experiências de especificação de ativos territoriais.

Faz-se referência apenas a algumas obras, em específico, sobre governança territorial2. Em síntese, autores assim a definem: (1) processo de planejamento e gestão de dinâmicas territoriais, numa ótica inovadora, partilhada e colaborativa, por meio de relações voluntárias e não hierárquicas de associação entre atores públicos, semi-públicos e privados (Ferrão, 2010 e 2013); (2) novo modo de gestão e decisão dos assuntos públicos num território, como modalidade reforçada de bom governo, fundamentada num papel insubstituível do Estado, uma concepção mais sofisticada de democracia e um maior protagonismo da sociedade civil (Farinós, 2008; Romero & Farinós, 2011).

Sobre governança territorial se assume um posicionamento referenciado em Dallabrida (2015), e que representa uma síntese das referências anteriores.

A governança territorial corresponde a um processo de planeamento [planejamento] e gestão de dinâmicas territoriais que dá prioridade a uma ótica inovadora, partilhada e colaborativa, por meio de relações horizontais. No entanto, esse processo inclui lutas de poder, discussões, negociações e, por fim, deliberações, entre agentes estatais, representantes dos setores sociais e empresariais, de centros universitários ou de investigação. (p. 325)

Ressalta-se que processos desta natureza se fundamentam "(...) num papel insubstituível do Estado, numa noção qualificada de democracia, e no protagonismo da sociedade civil, objetivando harmonizar uma visão sobre o futuro e um determinado padrão de desenvolvimento territorial" (Dallabrida, 2015, p. 325). Por fim, processos assim caracterizados, além de servirem de parâmetro, tem como fim o desenvolvimento territorial.

Situando a questão da especificação de ativos territoriais e suas formas de governança

Ao se tratar conjuntamente as experiências de especificação de ativos territoriais no Brasil e Portugal, é indispensável lembrar que há uma diferença expressiva entre a quantidade de produtos e o teor das normas. Assim mesmo a opção em eleger experiências dos dois países, deveu-se à oportunidade da realização de estudos de estudos em Portugal, em 20133.

Dados de 2011 indicam a existência, nos países da União Europeia, de 1.035 produtos com certificação, dentre Denominações de Origem Protegida (DOP), Indicações Geográficas Garantidas (IGP) e Especialidades Tradicionais Garantidas (ETG). Se a esses dados agregarmos as 1.334 DOP ou Denominações de Origem Controlada (DOC) e 587 IGP de vinhos, chegaremos a um universo de quase 3.000 produtos registrados (Silva et al., 2012)4. Segundo relatório da União Europeia, em 2010 Portugal contava com 170 produtos certificados, sendo 59 do setor vitivinícola5.

No Brasil a certificação de produtos com especificidade territorial é feita via a Indicação Geográfica. Esta consiste em duas modalidades: a Indicação de Procedência e a Denominação de Origem. A Indicação de Procedência (IP) faz referência ao nome geográfico de um país, cidade, região ou território, que se tornou conhecido como centro de produção, fabricação ou extração de determinado produto ou prestação de serviço. Já a Denominação de Origem (DO) é o nome geográfico de um país, cidade, região ou território que designe produto ou serviço cujas qualidades ou características se devam exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico específico, incluídos fatores naturais e humanos. Assim, a diferença singular entre as formas de Indicação Geográfica está associada às características e peculiaridades físicas e humanas potencializadas pelo território6.

No Brasil, até dezembro de 2015 estavam registradas 53 experiências de Indicação Geográfica, sendo 45 nacionais e 8 estrangeiras. Das nacionais, 36 são na espécie Indicação de Procedência e 9 como Denominação de Origem. Todas as estrangeiras são registradas como Denominação de Origem7.

Em Portugal, destaca-se a quantidade de vinhos com certificação, identificados pela sua região de produção. Para os vinhos se utiliza a designação Denominação de Origem Protegida para os produtos vitivinícolas cuja originalidade e individualidade estão ligadas de forma indissociável a uma determinada região, local ou denominação tradicional, e cujas qualidades ou características específicas são devidas ao meio geográfico, fatores naturais e humanos. Estes produtos estão sujeitos a regras específicas de controle que visam garantir a autenticidade e qualidade e podem ser rotulados como Denominação de Origem Controlada. Já a Indicação Geográfica Protegida é a designação adotada para os vinhos de uma região específica cujo nome adota na rotulagem, elaborados com pelo menos 85% de uvas provenientes dessa região. Tal como os produtos com dop/doc, são sujeitos a regras específicas de controle. Estes vinhos normalmente são rotulados como Vinho Regional.

Os demais produtos certificados, sejam de origem agrícola ou animal, são designados como dop ou igp. Já os produtos designados como ETG não estão vinculados a uma origem específica, correspondendo a um produto agrícola ou gênero alimentício produzido a partir das matérias-primas tradicionais, ou com uma composição tradicional ou um modo de produção e/ou de transformação tradicional que o distinga de outros produtos similares. São distinguidos também produtos cultivados de forma agroecológica.

Em relação à situação das igs e DOC/DOP, os processos de governança territorial em experiências com produtos sustentados na identidade territorial articulam comportamentos dos indivíduos e do ambiente institucional, caracterizando-se num processo dinâmico envolvido na formulação e resolução de problemas produtivos, amparado na existência de um compromisso institucional (Ex. a normatização que regula a forma de produção e o padrão de qualidade dos produtos), que envolve atores econômicos e públicos (Pecqueur, 2000), ou seja, estamos diante de um tipo complexo de governança. Por este e outros motivos, as formas de estruturação da governança para a sustentação das experiências, torna-se um elemento significativo de análise. Neste sentido, Flores (2006) chega a afirmar que tais estruturas respondem por parte do sucesso das iniciativas de valorização de produtos com base na identidade territorial.

Procedimentos metodológicos e caracterização da amostra investigada

O estudo das experiências de governança territorial em áreas de Indicação Geográfica (Brasil) e de Denominações de Origem Controlada ou Protegida (Portugal) contemplou vários procedimentos metodológicos: (a) análise bibliográfica; (b) consulta documental; (c) visitação de experiências; (d) entrevistas com atores chave, tomando por base questões semiestruturadas que buscavam informações sobre o histórico da experiência, sua estrutura organizacional e de funcionamento, principais potencialidades e limites, iniciativas previstas para a superação dos desafios, resultados alcançados e seu impacto no desenvolvimento do território atingido; (e) realização de um inquérito por questionário a cinco atores de cada experiência, com questões que tinham como propósito avaliar aspectos relativos à qualidade das práticas de governança territorial.

O questionário utilizado na pesquisa foi elaborado tomando por base a concepção sobre governança ou governança territorial de um conjunto de autores, tendo sido destacados os componentes analíticos considerados princípios fundantes de práticas qualificadas de governança territorial. O quadro 1 sintetiza tais componentes analíticos, na forma de dimensões, categorias conceituais e critérios.

 

QUADRO 1 | Dimensões, categorias e critérios para avaliação de práticas
de governança territorial

FONTE ELABORAÇÃO PRÓPRIA COM BASE NA PESQUISA

 

Foram analisadas dez experiências, sendo cinco no Brasil e cinco em Portugal. Para todas elas foram consultados documentos e informações disponíveis. Em nove casos foi realizada a visitação, observando a experiência e entrevistando pessoalmente os atores-chave. O inquérito por questionário foi aplicado em seis experiências, três no Brasil e três em Portugal. No quadro 2 são caracterizadas as experiências, com sua tipificação, procedimento metodológico aplicado e localização.

 

QUADRO 2 | Experiências pesquisadas de DOC/DOP (Portugal) e de IG (Brasil)

PONTE ELABORAÇÃO PRÓPRIA COM BASE NA PESQUISA - (*PESQUISA DOCÜMENTAL)

 

Análise dos resultados

Divide-se a análise dos resultados das experiências pesquisadas em quatro aspectos: (a) questões de ordem geral, referentes às experiências observadas no Brasil e Portugal; (b) observações específicas das experiências brasileiras e portuguesas, relacionadas às dimensões ambiental, social, cultural e econômica; (c) questões gerais referentes à estrutura de governança territorial das experiências pesquisadas; (d) análise da qualidade das práticas de governança territorial.

Questões de ordem geral referentes às experiências observadas (Brasil e Portugal)

Em primeiro lugar, observações feitas no estudo de experiências de especificação de ativos territoriais de Portugal (DOC/DOP) e do Brasil (IP/DO) permitem questionar a eficácia da proliferação das figuras de proteção e certificação de produtos. Esta situação, em geral, resulta em dificuldades por parte dos consumidores em avaliar as singularidades e os diferenciais de qualidade dos produtos protegidos8.

Nas visitas de experiências de DOC e DOP de Portugal verificou-se que da produção total apenas parte vai para o mercado com o selo de certificação, demonstrando que, mesmo em países europeus com uma tradição de produtos certificados que excede os 100 anos, observa-se que o consumo de produtos diferenciados ainda não é massivo. Esta situação é muito mais significativa no Brasil, onde a certificação de produtos, no caso, na forma de ip ou do, ocorre apenas a partir dos últimos 20 anos. Mesmo considerando diferenças nas dimensões, o motivo alegado é o mesmo: poucos consumidores ainda tomam como referência para o consumo a questão da certificação. Isso remete à necessidade de estratégias de divulgação diferenciadas daquelas já utilizadas, e que apresentem maior eficácia.

Análise das experiências brasileiras

Com base na visitação e estudo de cinco experiências de ig's brasileiras, foram percebidos aspectos positivos e desafios de diferentes ordens. No quadro 3 estão destacadas as questões mais significativas, considerando as respostas dos entrevistados.

 

QUADRO 3 | Tipificação das experiências e observações em relação às dimensões
da sustentabilidade

PONTE ELABORAÇÃO PRÓPRIA

 

Sintetizando, ao analisar experiências brasileiras podem ser destacados como principais desafios os seguintes: (a) reduzido número de sócios nas IG's, o que denota baixa capacidade de inclusão social; (b) as IG's, em geral, são negócios lucrativos privados que utilizam a estratégia do associativismo para se viabilizarem, talvez, mais por exigência legal do que por convicção de necessidade; (c) nas experiências agrícolas, é percebida a falta de mão de obra não especializada; (d) há reconhecimento unânime dos entrevistados de que a população pouco conhece o que é uma IG, o que implica em limitações no mercado de consumo; (e) necessidade de ampliação do marketing dos produtos; (e) carência de uma cultura solidária e de associativismo; (f) baixa preocupação com as questões ambientais e as possibilidades de produção sustentável ambientalmente; (g) o impacto econômico das IG's pode ser ampliado, se considerar atividades potenciais, entre elas o turismo, além da integração com as demais atividades econômicas; (h) por fim, a especificação de ativos territoriais como estratégia de desenvolvimento se apresenta como uma possibilidade, não a única. No entanto, para não fazer referência apenas aos desafios, ressaltamos que, de maneira geral, percebe-se nos territórios com IG's a valorização da identidade cultural, além de maior dinamismo socioeconômico.

Análise das experiências portuguesas

Em relação às experiências de Portugal, alguns dos desafios coincidem com os destacados nas experiências brasileiras, com relevo para a questão da carência de uma cultura solidária e de associativismo e o fato de que, na verdade, trata-se de negócios lucrativos privados que utilizam a estratégia do associativismo para se viabilizarem. Ao alertar sobre esta situação, não se está emitindo qualquer juízo de valor, positivo ou negativo. Trata-se apenas de uma constatação, pois tal situação será favorável para umas finalidades e interesses e desfavorável para outros.

Quanto à tipologia das experiências visitadas em Portugal, tem-se a seguinte situação: duas relacionadas à vitivinicultura em regiões portuguesas tradicionais na produção de vinho; uma relacionada à produção de queijos especiais; outras duas relacionadas ao beneficiamento de produtos de origem animal com especificidade.

a) Questões relacionadas à dimensão social

Com base nas experiências analisadas na produção de vinhos, de queijo e produtos de origem animal, é possível observar que são estruturadas sob a forma de comissões nacionais, ou associações, que articulam a produção quanto ao apoio técnico, normatizações legais, regulação do volume da produção, inserção dos produtos no mercado e marketing geral, principalmente no setor industrial. Portanto, as relações de trabalho regem-se pelos padrões próprios do sistema empresarial moderno. Já o setor de produção da matéria prima (a uva, o leite e animais) compreende tanto produtores e criadores isolados como organizações empresariais. Alguns setores agregam mão de obra sazonalmente, como na produção de vinho. Em certas regiões, tais atividades são as que mais empregam.

b) Questões relacionadas à dimensão ambiental

Em geral, as atividades produtivas analisadas não têm impactos ambientais significativos. Já há alguns anos existe a preocupação com questões de preservação ambiental, no entanto, ainda é pouco significativa a produção sustentável ambientalmente, havendo ainda utilização de agroquímicos no processo produtivo e industrial. O caso mais emblemático, em que o processo produtivo tem uma relação equilibrada com o meio ambiente, é o da produção de animais autóctones. São raças rústicas, menos exigentes em instalações, cuidados alimentares e quanto à sanidade. Trata-se de um sistema de produção extensiva, em campos abertos, alimentando-se de ervas e frutos silvestres, restos de colheitas agrícolas, complementada com cereais e rações compostas.

c) Questões relacionadas à dimensão cultural

Das experiências visitadas, cabe um destaque inicial à produção vitivinícola. O setor mantém uma relação de identidade com a tradição histórica centenária na produção de vinhos. Por isso há uma forte relação de identidade da região com tais tradições, o que leva a manter ativas festividades que marcam as fases de produção vinícola, como o exemplo da vindima (período de colheita). Além das festividades, a tradição é mantida também pela preservação da memória arquitetônica e histórico-cultural, por exemplo, com a presença de museus. No entanto, é possível observar que se mantém viva a relação de identidade com sua história, predominantemente, como estratégia de marketing para divulgação dos produtos e como atração turística.

Outro caso de destaque é a produção de animais autóctones. Trata-se da preservação de formas de criação do passado, quando ainda não havia a introdução de melhoramento genético no setor. Já no caso do queijo, resgata-se e mantém-se uma tradição de atividade quase única em algumas regiões, em função de restrições locais de ordem físico-natural, pois é uma atividade historicamente realizada em regiões de vegetação rasteira e solos pouco aproveitáveis para atividades agrícolas, semelhantes às savanas, em geral com baixa pluviosidade em boa parte do ano.

d) Questões relacionadas à dimensão econômica

Mesmo que parte do processo produtivo ocorra sob a forma de produção familiar, com destaque para o caso do queijo, estamos nos referindo a atividades inseridas no circuito da produção industrial e comercial nacional e internacional. Em especial o vinho, trata-se de um produto de tradição em Portugal, o qual representa um percentual significativo das suas exportações. Portanto, trata-se de atividades inseridas na lógica de mercado, tendo assim necessidade de ser competitivas tecnologicamente e em termos de qualidade e preço.

Questões referentes à estrutura de governança territorial dos dois países

Nas experiências brasileiras, nas quais o estudo pode ser feito de uma forma mais aprofundada, foram constatadas dificuldades de produtores, artesãos ou empresários em trabalhar e se relacionar associativamente, situação relacionada com níveis significativos de centralização de poder, vaidades e interesses individualistas, em detrimento de conquistas coletivas. Questões semelhantes, no entanto com diferentes dimensões e características, puderam também ser observadas nas experiências em Portugal. Por exemplo, uma experiência de dop visitada iniciou como cooperativa agrícola, a qual recentemente foi fechada, sendo agora operacionalizada por meio de empresas individuais.

Em relação à estrutura de governança de produtos com especificidade territorial, no Brasil há constrangimentos de ordem legal e prática, principalmente, no que se refere à criação de estruturas destinadas à comercialização coletiva do produto certificado territorialmente. Na unanimidade, no Brasil, as experiências visitadas apresentaram este desafio, pois são estruturadas na forma de associações, as quais legalmente não estão habilitadas a operar comercialmente no mercado. Perguntavam-se alguns entrevistados: seria o caso de constituir uma cooperativa para a comercialização coletiva? No entanto, outros argumentavam esta não ser a alternativa adequada, pelo fato de ter impedimento legal de associarem-se a uma mesma cooperativa, juntamente, produtores individuais e empresas. São questões que precisam ser aprofundadas, criando os instrumentos legais adequados para sua operacionalização.

No caso de Portugal este problema é resolvido, ao menos em parte, em alguns casos pela constituição de cooperativas encarregadas da industrialização ou comercialização. Em outros casos, há a estruturação de associações nacionais e, no caso do vinho, as comissões vitivinícolas regionais. Tais associações, ou comissões, assumem o papel de assessorar tecnicamente a atividade, além da promoção comercial, nacional e internacional. O processo de industrialização e comercialização é feito pelas empresas, individualmente.

Há em Portugal, comparativamente com o Brasil, um maior profissionalismo comercial nas atividades produtivas com produtos certificados. Assim, é possível que alguns avanços já obtidos em Portugal possam, no futuro, ser readequados para as experiências de IG's brasileiras, mesmo que, em algumas situações, sejam necessárias mudanças na legislação.

Análise da qualidade das práticas de governança territorial

A análise dos inquéritos aplicados com atores das experiências de DOC/DOP em Portugal e de IP/DO no Brasil permite fazer algumas observações. As análises levam em conta o resultado da aplicação de um inquérito em seis experiências, no Brasil e Portugal, atingindo uma amostra de dezoito atores, entre dirigentes, técnicos e assessores, representantes dos setores sociais, empresariais e públicos. Dos trinta questionários enviados, conseguimos um retorno de 60%. Mesmo que o universo da amostra possa ser considerado relativamente pequeno, é um indicativo com alguma significancia.

A opção de resposta permitia quatro alternativas: discordância total e parcial (1 e 2); concordância parcial e total (3 e 4). A avaliação feita pelos atores inquiridos, tanto nas experiências brasileiras como nas portuguesas é predominantemente positiva. No quadro 4 está um resumo das respostas dos inquiridos, apresentando os percentuais de respostas de discordância, as quais permitem inferências quanto às características das práticas de governança territorial analisadas.

 

QUADRO 4 | Percentual (%) de respostas de discordância (1 e 2), nos
inquéritos do Brasil e Portugal

PONTE ELABORAÇÃO PRÓPRIA

 

Analisada a situação apenas por estas informações estatísticas, tem-se uma situação favorável quanto à governança territorial, considerando a percepção dos atores envolvidos nas experiências. Apenas em sete dos vinte e oito princípios definidos, o grau de discordância é significativo, isto é, acima de 25%. A análise se deterá mais nestes elementos.

Os princípios que foram avaliados como predominantemente negativos são (pela ordem decrescente): Protagonismo Estatal (Estado como articulador principal das redes); Integração Vertical (integração das políticas oriundas das diferentes instâncias de governo no território); Resiliência (resistência ou maleabilidade de atores e instituições em face das mudanças); Eficácia das Políticas (foco dos resultados e nos objetivos definidos coletivamente); Protagonismo Social (participação ativa da sociedade civil); Liderança (descentralizada e partilhada); Integração Horizontal (integração intersistêmica entre as políticas com impacto no território).

Os primeiros quatro princípios, em relação aos quais os graus de discordância variaram entre 34 e 56%, justificam alguns comentários, pois demonstram aspectos da govenança territorial que representam os desafios mais significativos.

Primeiro, na avaliação dos atores inquiridos o Estado não está desempenhando seu papel de articulador principal nas práticas de governança das experiências analisadas. Significa isto que, na percepção dos atores inquiridos, o Estado não tem sido eficaz. Os procedimentos metodológicos aplicados não permitem concluir sobre as razões da ineficácia, o que merece ser aprofundado em futuros estudos. Em segundo lugar, está colocada a questão da integração das políticas públicas com incidência nos territórios, indicando que há sobreposição de políticas. Em terceiro lugar aparece a questão da resistência à mudança, a Resiliência, também avaliada negativamente. Este aspecto é significativo, considerando que estas experiências têm como foco a atividade empresarial, na qual estar aberto à mudança, às expectativas do mercado em transformação constante, na maioria das vezes é decisivo para a sustentabilidade das experiências.

No que se refere ao quarto aspecto, a eficácia das políticas, as respostas dos inquiridos indicam que as políticas com impacto territorial, não estão focadas nos resultados esperados pelos atores territoriais ou em objetivos definidos coletivamente. Outros três princípios recebem uma avaliação de discordância em 28% das respostas, o que é significativo. Segundo os inquiridos, indicam problemas, respectivamente, em questões de liderança, de protagonismo social e de integração horizontal das políticas territoriais. Este último aspecto tem relação com a questão da integração das políticas públicas, ambas com impacto nos territórios, também avaliada negativamente.

Das dimensões das práticas de governança territorial, a que tem maior incidência de respostas discordantes é a que se refere às relações entre os atores nos processos associativos, seguido da dimensão referente à coordenação das políticas nos territórios. Tal situação tem relação com o que foi comentado a respeito da desintegração das políticas, sejam de origem estatal ou não, além das questões referentes aos problemas de liderança e resistência às mudanças. Coincide com percepções já formadas quando da visita a algumas experiências, ao conversar com atores envolvidos e dirigentes.

Considerações finais

Compartilhamos a concepção de autores como Abagli (2004), de que a apropriação do território unicamente a partir da sua capacidade de atrair investimentos e gerar lucratividade tende a consumir de forma predatória os recursos tanto naturais, quanto sociais e culturais. Em contrapartida, o desenvolvimento, tendo como suporte uma noção sistêmica e inclusiva de território, tende a estimular os laços de identificação e solidariedade, podendo dar uma maior garantia de sustentabilidade no longo prazo. A primeira opção está presente quando se observa que as estratégias de especificação de ativos territoriais utilizam o associativismo como forma de viabilização de negócios lucrativos e não como princípio, conforme está previsto na legislação brasileira sobre Indicações Geográficas ou na legislação sobre outras formas organizacionais correlatas em Portugal.

Antes de ser uma acusação, trata-se de uma constatação, o que reafirma a hipótese orientadora deste estudo de que nas experiências de especificação de ativos territoriais este aspecto não só não parece ser devidamente considerado como, em geral, não se baseia em sistemas eficientes e justos de governança territorial. Ou seja, o fato de que os sinais distintivos dos territórios têm uma dimensão coletiva e devem ser mobilizados a partir de interesses compartilhados parece não ser devidamente considerado em muitas das experiências deste tipo.

Das demais questões evidenciadas pela presente investigação, as principais estão sintetizadas no quadro 5.

 

QUADRO 5 | Síntese das análises comparativas permitidas pela investigação

 

Além da síntese que consta no quadro 5, destacamos questões relacionadas com a estrutura de governança territorial das igs (Brasil) e DOC/DOP (Portugal). Nosso propósito era avaliar a contribuição efetiva dos sistemas de governança territorial de estratégias baseadas na especificação de ativos territoriais para a sustentabilidade social, econômica e ambiental dos territórios envolvidos. Ou seja, compreender se as estruturas de governança territorial de tais experiências estão ou não apoiadas em mecanismos institucionais adequados.

Nesse aspecto são constatados os maiores diferenciais. Experiências em Portugal estão estruturadas na forma de comissões nacionais, ou associações, que articulam a produção quanto ao apoio técnico, normatizações legais, regulação do volume da produção, inserção dos produtos no mercado e marketing geral, principalmente no setor industrial. No Brasil, as associações que articulam experiências têm dificuldades para aglutinar os envolvidos. Mesmo em Portugal, há experiências em que as associações são pouco operantes, apenas cumprindo questões de legislação.

Sem a pretensão de apontar ‘padrões ideais’, apenas fazemos referência que esta é uma dimensão que merece estudos mais aprofundados, para indicar qual a estrutura de governança territorial que melhor venha contribuir para a sustentabilidade das experiências de especificação de ativos territoriais em contextos políticos, socioeconómicos, institucionais e culturais distintos.

Por fim, quanto ao impacto da especificação de ativos na qualificação no processo de desenvolvimento territorial, é notório que as regiões envolvidas por tais experiências apresentam um maior dinamismo socioeconómico e cultural. No entanto, reafirmamos o que está presente em boa parte da bibliografia: é uma opção, não necessariamente a única e, em alguns casos, nem é a mais significativa. Outros estudos são necessários para aprofundar o debate e propor indicativos para a superação dos desafios apontados.

Notas

1 O artigo resume reflexões referentes aos estudos de pós-doutoramente realizados no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, sob a orientação do Prof. Dr. João Ferrão. Além disso, integra-se em dois Projetos de Pesquisa: Signos Distintivos Territoriais e Indicação Geográfica: um estudo sobre os desafios e perspectivas como alternativa de Desenvolvimento Territorial, juntamente com colegas do Grupo de Estudos sobre Desenvolvimento Regional (GEDER), com financiamento do CNPq; Estratégias de especificação de Ativos Territoriais como alternativa de Desenvolvimento, referente à Bolsa Produtividade em Pesquisa do CNPq/2013-2016.

2 Para aprofundamento do tema governança e governança territorial, ver: Dallabrida (2015).

3 Trata-se de estudos realizados pelo autor do texto no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em 2013.

4 Outras duas obras recentes fazem uma descrição da realidade brasileira em relação ao tema, comparativamente com países europeus: Froehlich (2012); Sacco dos Anjos e Caldas (2010).

5 Fonte: http://ec.europa.eu/agriculture/external-studies/2012/value-gi/final-report_en.pdf

6 Conf. Lei 9.279, de 14/05/1996 e Resolução Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) 75/2000.

7 Dados extraídos do site do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI): http://www.inpi.gov.br/menu-servicos/indicacao-geografica/pedidos-de-indicacao-geografica-no-brasil. Acesso em 01/12/2015.

8 Tal afirmação coincide com análises relatadas em Sacco dos Anjos e Caldas (2010) e Silva et al. (2012).

 

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Recibido el 11 de marzo de 2014, aprobado el 26 de noviembre de 2015

Correspondencia: E-mail: V.Roque, valdirdallabrida@gmail.com

 

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