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A financeirização do circuito imobiliário como rearranjo escalar do processo de urbanização

La financiarisation de l’immobilier en tant que réaménagement scalaire du processus d’urbanisation
Financialization of real estate as a rescaling of the urbanization process
Daniel de Mello Sanfelici

Résumés

Durant les cinq à dix dernières années, les offres et les ventes du marché immobilier résidentiel ont connu une croissance exceptionnelle et, par voie de conséquence, commencé à modifier le paysage des métropoles brésiliennes. Cette croissance a été stimulée par un entrelacement sans précédent du système financier avec le circuit de production et de consommation du cadre bâti urbain dans le pays. Les auteurs qui se penchent sur ce phénomène sont nombreux à tenter de l’interpréter à la lumière du mouvement de financiarisation de l’économie, envisagé comme une expression du pouvoir accru des investisseurs financiers soucieux de valoriser leur capital avec la transformation de l’espace urbain. Ce travail vise à contribuer au débat en cours en montrant que le processus de financiarisation, qui touche le marché immobilier brésilien depuis quelques années, a produit un réaménagement des relations entre les échelles socio-spatiales. La première partie de l’étude propose une vision panoramique des transformations des transactions immobilières issues de l’articulation avec le système financier. La deuxième partie se base sur une série d’entretiens réalisés entre 2011 et 2012 et sur des relevés de données relatives au secteur en question, pour distinguer les types de rapports entre agents de différentes échelles socio-spatiales. Dans ce mouvement, l’articulation entre échelle mondiale et échelle nationale est illustrée par le besoin des promoteurs à faire preuve de plus de « transparence » au niveau de leurs activités afin de pouvoir intégrer le portefeuille des grands investisseurs institutionnels étrangers. Quant aux liens entre échelle nationale et échelle locale, ils sont envisagés comme le fruit de partenariats établis entre les grands promoteurs immobiliers financiarisés et les petits et moyens constructeurs/promoteurs régionaux. Dans les deux cas, l’objectif est de souligner les mises à distance et les tensions résultant du rapprochement d’agents expressifs de logiques spatio-temporelles dissemblables. Partant de là, l’échelle géographique n’est pas vue comme une dimension étanche du processus social ; au contraire, elle est produite et transformée socialement et, en tant que telle, intériorise des tensions et des contradictions sociales. Finalement, l’accent est mis sur l’importance de la construction de liens scalaires pour la reproduction du pouvoir des finances dans l’actualité.

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Texte intégral

1No último decênio testemunhou-se, no Brasil, uma reestruturação sem precedentes no setor imobiliário e construtivo. Entrelaçados de forma mais estreita com o sistema financeiro, os negócios imobiliários experimentaram um boom que transformou rapidamente as metrópoles brasileiras em gigantescos canteiros de construção. Os agentes mais visíveis desse processo são as grandes incorporadoras e construtoras, que agora possuem raios de operação muito mais estendidos do que aqueles ao quais costumavam se restringir nas décadas precedentes. Algumas delas hoje atuam em mais de quinze estados da federação, de norte a sul, tanto em metrópoles quanto em aglomerações de menor porte. Por trás da visibilidade cotidiana dessas empresas, porém, está o poder financeiro de grandes investidores institucionais, fundos de investimento, bancos e outros agentes financeiros que despejam montantes exorbitantes de capital para financiar a expansão do setor e, evidentemente, obter uma fatia de seus ganhos também crescentes. Com ramificações que extravasam as fronteiras do país, a presença e o poder desses agentes nos rumos tomados pelos negócios com o solo urbano permitem fazer a leitura desse processo como uma expressão nítida da tendência à financeirização da economia capitalista.

2Esse artigo pretende corroborar com a discussão, em voga na Geografia e outras áreas dos estudos urbanos, acerca das repercussões socioespaciais da financeirização do investimento imobiliário. Considerando, em concordância com uma bibliografia crescente, a escala geográfica como uma dimensão fundamental da prática socioespacial e da espacialidade do capitalismo (Smith, 1992a; 1992b; Brenner, 2001; 2009a; 2009b; Swyngedouw, 1997; 2004; Vainer, 2006), sugerimos que a financeirização do circuito imobiliário no Brasil produziu, no último decênio, um rearranjo dos vínculos escalares como consequência do adensamento e intensificação das relações econômicas travadas entre agentes que privilegiam diferentes escalas geográficas de operação. Assim, se até há pouco os negócios imobiliários urbanos eram conduzidos prioritariamente por pequenas empresas de abrangência local ou regional, a abertura de capital das grandes incorporadoras e a entrada de investidores estrangeiros no controle dessas empresas sinalizam uma articulação diferenciada entre as escalas local, nacional e global na produção dos espaços metropolitanos. Esse (re)arranjo escalar não pode, porém, ser entendido como estável ou imutável, mas como uma configuração que encerra uma série de tensões e contradições que decorrem, como procuraremos demonstrar, das divergências entre as práticas, as prioridades e os horizontes espaciais e temporais dos diferentes agentes envolvidos.

3A primeira parte do artigo tem como objetivo elucidar, com apoio em dados secundários e em outros estudos, as repercussões da penetração das finanças globalizadas nos negócios imobiliários no Brasil. Procuramos demonstrar, interpretando os dados divulgados por um grupo de empresas selecionadas, que a necessidade de proporcionar resultados aos acionistas impeliu as incorporadoras a uma expansão acelerada do investimento e a uma diversificação geográfica de sua atividade. Na segunda seção do artigo, examinamos como esse cenário econômico renovado forjou novos laços entre as escalas geográficas e colocamos em destaque, com base em entrevistas realizadas com dirigentes de empresas e em publicações especializadas e/ou jornais, as instabilidades que afloram na construção desses vínculos interescalares.

Expansão vertiginosa conduzida pelas finanças: os negócios imobiliários no Brasil

4As reverberações do processo de expansão imobiliária recente sobre as metrópoles brasileiras já são evidentes por toda parte. Não há mais áreas nas grandes cidades brasileiras que não estejam sendo palco de projetos imobiliários de grandes impactos sobre a dinâmica da vida nos bairros e na cidade como um todo. Além disso, há uma evidente apreensão, tanto na imprensa quanto entre as famílias, com a trajetória de preços ascendentes que vem sendo exibida pelo mercado imobiliário das grandes cidades. A ideia de que uma bolha imobiliária – ou, de forma menos drástica, um arrefecimento do setor – poderia ser iminente vêm à tona com relativa frequência nos meios de comunicação.

5Essa ideia não é descabida. As bolhas imobiliárias possuem um potencial tanto mais evidente e destrutivo quanto maior for a implicação do sistema financeiro com o investimento imobiliário. Na verdade, o que tem ocorrido no país nos últimos dez a quinze anos tem sido justamente isso: uma penetração sem precedentes das finanças na produção e consumo do espaço urbano intermediada pelas empresas do setor imobiliário. É claro que essa situação indica mais a possibilidade de uma bolha do que sua inevitabilidade, mas entender as circunstâncias dessa aproximação entre o financeiro e o imobiliário é um passo importante para entender os sentidos da financeirização no que concerne a produção do espaço urbano. Procederemos, então, com uma breve descrição e análise das mudanças recentes no setor imobiliário para prosseguir, em seguida, para o cerne do argumento do artigo.

6O ponto central para compreender as mudanças que vêm se processando nos negócios imobiliários no Brasil reside em um conjunto de transformações institucionais e regulatórias que permitiram não apenas impulsionar o crédito habitacional, mas também tornar o circuito imobiliário (compreendido de forma ampla, incluindo aqui o crédito ao comprador final dos imóveis) mais atrativo aos investidores financeiros. Esse é um ponto importante de ser realçado porque, como David Harvey demonstrou em Limits to capital (Harvey, 1999), a produção e o consumo do ambiente construído urbano têm como requisito para sua efetiva realização – dadas as especificidades dos imóveis enquanto mercadorias de longa duração e alto valor – a constituição de um sofisticado aparato institucional e creditício.

  • 1  Para um estudo mais pormenorizado dessas mudanças, ver Royer (2009). Botelho (2007) e Fix (2011) t (...)

7A peça-chave desse novo arranjo institucional foi a aprovação do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) em 1997. Sintonizado com a atmosfera de reforma neoliberal do Estado sob o governo Fernando Henrique Cardoso, o SFI tinha como instrumento central a figura da alienação fiduciária, que permitia a execução não-judicial da garantia do empréstimo habitacional, agilizando, de tal forma, a recuperação, pelo credor, do montante emprestado. Somaram-se, posteriormente, outras medidas que, juntas, incentivaram enormemente a concessão de empréstimo habitacional no país. Merece destaque, por exemplo, a medida comumente denominada “valor do incontroverso”, aprovada em 2004, que determina que o mutuário que contestar judicialmente a regularidade de um contrato de empréstimo precisa determinar a parcela do empréstimo que não está sendo questionada e continuar pagando esse montante (anteriormente, um mutuário que questionasse judicialmente um contrato poderia interromper os pagamentos das prestações até que o litígio encontrasse resolução). Sem essas medidas seria difícil compreender o surto de crédito habitacional que iniciou em meados dos anos 20001.

  • 2  A securitização diz respeito à transformação de um contrato de dívida em um papel negociável em me (...)

8Mas a ampliação do crédito também deve tributo às condições econômicas diferenciadas de que o Brasil usufruiu nos últimos anos. Com taxas de crescimento moderadas e taxas de inflação baixas, esse cenário se mostrou propício à ampliação das linhas de crédito, não apenas no setor imobiliário. Além disso, é importante notar um crescimento substancial na emissão de papéis lastreados em fluxos de rendimento imobiliários. Referimo-nos, por exemplo, aos Certificados de Recebíveis Imobiliários, instrumentos também regulamentados pela lei do SFI e que resultam do processo de securitização de dívidas imobiliárias2; e às cotas de Fundos de Investimento Imobiliário, mecanismos de investimento coletivo que investem em ativos de renda (por exemplo, shopping centers e escritórios) e em que cada cotista recebe, mensalmente, dividendos que refletem a parte alíquota da qual o cotista é proprietário. Por importante que sejam esses instrumentos para entender a financeirização em sua relação com a transformação das cidades, pretendemos focalizar aqui em outro ponto de integração entre o financeiro e o imobiliário: as grandes incorporadoras que passaram a financiar o investimento mediante recurso ao mercado de capitais.

9Historicamente geridas como pequenas empresas familiares, as principais incorporadoras brasileiras – a maior parte sediada em São Paulo – enxergaram na expansão do crédito habitacional uma oportunidade única de expandir o investimento e ampliar suas receitas e lucros em um curto intervalo de tempo. Mas um aumento rápido do investimento não poderia ser financiado nem com recursos próprios, visto que poucas tinham volume de capital significativo, nem com acesso ao financiamento bancário, uma vez que os bancos possuem limites de concessão de crédito a um mesmo devedor. O acesso ao mercado de capitais mediante a emissão de papéis como ações e debêntures apareceu como uma alternativa para as empresas que precisavam, afinal, de um volume significativo de capital para despender com a compra de terrenos.

  • 3  Estrangeiro leva 72,5% das ações vendidas pela Rossi. O Globo, Rio de Janeiro, 15/10/2009.
  • 4  VGV é uma forma utilizada pelas incorporadoras para contabilizar seu produto. Refere-se a soma do (...)

10O volume de capital levantado por incorporadoras e construtoras no biênio 2006/7 mediante a emissão de ações e debêntures foi surpreendente: mais de R$ 15 bilhões em ações e quase R$ 2 bilhões em debêntures, a maior parte (em torno de 70% segundo entrevistas e matérias de jornais) adquirida por grandes investidores institucionais estrangeiros3. O uso desses recursos se materializou nos dados de unidades lançadas e valor geral de vendas (VGV)4 lançado entre 2005 e 2010, período que corresponde às transformações de maior profundidade no setor. A Tabela 1, abaixo, sintetiza esses resultados com base no desempenho operacional e financeiro de sete grandes incorporadoras de capital aberto.

Tabela 1- Número de unidades lançadas e VGV lançado por sete incorporadoras brasileiras – 2005-2010

Número de unidades lançadas

2005

2006

2007

2008

2009

2010

Cyrela

2733

5822

16924

18270

26417

27589

Gafisa

2446

3755

14236

34893

13426

26398

MRV

N/A

2987

12334

25968

28948

50136

PDG Realty

2089

3994

12860

18200

35598

42616

Rossi

1999

4409

9648

10542

16456

23239

Even

N/A

1485

4345

4233

3459

6515

Brookfield

554

256

2113

5698

14284

11508

Lançamentos em Valor Geral de Vendas (VGV) (R$ x 1000)

2005

2006

2007

2008

2009

2010

Cyrela

1.211.302

3.619.970

5.393.057

4.827.437

5.678.927

7.609.882

Gafisa

682.196

1.233.916

2.919.355

5.322.156

2.789.224

6.041.703

MRV

N/A

337.337

1.199.948

2.532.985

2.586.080

4.604.000

PDG Realty

592.207

761.715

2.259.550

3.776.750

5.454.300

9.151.250

Rossi

395

1.158.000

2.470.000

2.723.000

2.758.000

4.798.000

Even

N/A

744.436

1.757.753

1.435.128

926.735

1.528.026

Brookfield

176.600

378.000

1.922.200

2.662.500

2.674.900

2.981.300

Fonte: Relatórios trimestrais das empresas selecionadas.

11O ímpeto da expansão é notável: em termos de unidades, algumas empresas que lançavam aproximadamente 2000 unidades por ano (uma média que prevaleceu nos anos anteriores aos abrangidos pela tabela) passaram a lançar mais de 20 mil unidades. Em alguns casos, como a MRV, o salto foi maior: de menos de 3 mil unidades ainda em 2006 para 50 mil unidades em 2010. Quando mensurado em termos de preço, o volume de lançamentos não é menos surpreendente: apenas a Cyrela lançou mais de R$ 1 bilhão em 2005. Cinco anos depois, não apenas a marca do R$ 1 bilhão em lançamentos foi ultrapassada pelas sete empresas selecionadas, como também algumas superam a marca de R$ 5 bilhões em lançamento – a PDG, maior de todas, atingindo mais de R$ 9 bilhões lançados.

12Dispondo, subitamente, de um volume descomunal de recursos, essas empresas precisavam encontrar oportunidades seguras e lucrativas de investimento que oferecessem o retorno desejado aos investidores. Evidentemente, parte da resposta estava em continuar fazendo o que haviam feito até então, apenas em escala maior. No entanto, ficou logo evidente que o mercado ao qual haviam se dedicado até então seria insuficiente diante da pressão dos investidores por uma expansão vigorosa expressada em termos de volume de lançamentos. Era preciso encontrar novos mercados.

13Uma das soluções residiu em tirar proveito da abundância de crédito habitacional para direcionar investimentos para estratos de renda que outrora careciam de acesso à casa própria. A expansão das linhas de financiamento – seja com recursos de poupança, seja devido à implementação do programa Minha Casa Minha Vida – ao comprador da casa própria permitiram que famílias com renda mais baixa (de 3 a 5 salários mínimos, por exemplo) acessassem o mercado imobiliário, e muitas empresas passaram a atuar nesse segmento (Shimbo, 2010; Castro, Shimbo, 2010; Fix, 2011).

  • 5  Vale frisar que em alguns casos não houve perda de participação relativa da região metropolitana d (...)

14Outra direção de diversificação foi a dispersão territorial. A maior parte das empresas em questão restringia seu raio de operação a uma ou a poucas cidades do país – e, com exceção da MRV, todas elas atuavam prioritariamente na região metropolitana de São Paulo. A necessidade de encontrar novas oportunidades de investimento para cumprir as metas prometidas aos novos acionistas forçou essas empresas a iniciarem operações em outros mercados regionais. Resultou disso um ganho de participação relativa importante de outros estados, combinado com uma perda de participação relativa da região metropolitana de São Paulo na composição do investimento das empresas, um processo ilustrado abaixo pela discriminação, por região, dos lançamentos de duas incorporadoras (ver Tabelas 2 e 3)5. Além disso, algumas das empresas – notadamente MRV, PDG, Cyrela (ver Mapa 1) e Gafisa, as maiores – atingiram um grau de pulverização pronunciado, atuando muitas vezes em mais de quinze estados da federação.

Tabela 2 – PDG Realty – VGV lançado em 2007 e 2010 por região

Região

2007

2010

São Paulo (capital)

49.0%

22.1%

São Paulo (interior)

33.0%

21.7%

Rio de Janeiro

15.0%

10.1%

Nordeste

0.0%

8.1%

Sul

0.0%

10.9%

Sudeste (outros)

3.0%

2.3%

Norte

0.0%

11.6%

Centro-Oeste

0.0%

12.0%

Fonte: Relatórios trimestrais da PDG.

Tabela 3 – Rossi – VGV lançado em 2007 e 2010 por região

Região

2007

2010

São Paulo (Capital)

32.2%

16.0%

São Paulo (interior)

21.1%

22.0%

Rio de Janeiro

14.5%

6.0%

Rio Grande do Sul

12.5%

16.0%

Minas Gerais

0.0%

16.0%

Ceará

0.0%

4.0%

Amazonas

0.0%

7.0%

Distrito Federal

0.0%

3.0%

Bahia

0.0%

2.0%

Outros

19.7%

8.0%

Fonte: Relatórios trimestrais da Rossi.

  • 6  O estado de São Paulo é o único que se encontra segmentado em dois: a região metropolitana e o int (...)

Mapa 1 – Distribuição geográfica das unidades lançadas pela Cyrela em 20096

Mapa 1 – Distribuição geográfica das unidades lançadas pela Cyrela em 20096

Fonte: Relatório anual da Cyrela.

15Em resumo, a abertura de capital, impulsionada pelo desejo das incorporadoras de aproveitarem o incremento na demanda por imóveis causado pelo surto de crédito habitacional, desencadeou uma metamorfose das formas de atuação e das estruturas administrativas das principais empresas do setor imobiliário. De um setor predominantemente constituído de pequenas e médias empresas familiares, o imobiliário tornou-se foco de decisiva presença de investidores financeiros internacionais que passaram a exigir do setor uma postura bem mais agressiva em termos de volume de lançamentos e dispersão do investimento – ou seja, condizente com as expectativas de rentabilidade de fundos de aplicação coletiva. Em apenas cinco anos, tanto os dados de lançamentos (seja em unidades, ou VGV) quanto os de distribuição regional sofreram importante transformação, denotando a rapidez das transformações em foco. Nas páginas que seguem, procuramos argumentar que a financeirização, em sua relação com a produção do espaço urbano, pressupõe e engendra uma articulação renovada entre as escalas geográficas constitutivas do processo urbano. As incorporadoras e construtoras aparecem, aqui, como elos mediadores entre os movimentos voláteis das finanças globalizadas e a captura de rendas do solo urbano na escala local. As tensões que decorrem da construção desses vínculos escalares servem de testemunho ao fato de que os nexos entre as escalas são um produto social e podem ser constantemente contestados e redefinidos em decorrência de circunstâncias historicamente determinadas.

Produzindo vínculos escalares: tensões e contradições

  • 7  Esse termo, vale frisar, não é empregado por todos esses autores, mas os sentidos das mudanças em (...)

16A expansão vertiginosa dos negócios imobiliários no Brasil atual baseou-se, como diversos pesquisadores vêm insistindo nos últimos anos, em uma metamorfose da propriedade urbana que aponta para graus mais ou menos elevados de “flexibilização” (Pereira, 2006; Botelho, 2007; Fix, 2007; 2011; Volochko, 2008; Miele, 2008)7. Essa flexibilização tem como fundamento o aumento da liquidez dos ativos de origem imobiliária. A criação de condições de maior liquidez é pedra angular do processo de financeirização no que toca aos negócios urbanos, porque permite que o investidor financeiro, notoriamente avesso a compromissos de longo prazo (Braga, 1997; Chesnais, 2005), contorne alguns dos obstáculos que se atrelam inextricavelmente ao modus operandi do setor imobiliário e do mercado de terras urbano, tais como seu enraizamento estrutural em condições locais muitos específicas e o longo período de rotação. Uma vez tornado um ativo líquido, os papéis com lastro nos ganhos produzidos pelo mercado imobiliário podem ser agregados ao portfólio – e às práticas muito peculiares de gestão desses portfólios – de investidores institucionais (tais como seguradoras e fundos de pensão) e outros fundos coletivos de aplicação financeira (fundos de hedge, fundos mútuos, etc). Em termos bastante gerais, poderia se afirmar, tendo em vista o que já foi discutido até aqui, que a financeirização, em conexão com os negócios com a propriedade urbana, ampara-se na criação de uma arquitetura institucional e financeira por intermédio da qual investidores financeiros tornam-se aptos a capturar rendas do solo urbano geradas reiteradamente no movimento de produção e reprodução dos espaços urbanos.

17O que tem sido menos explorado e/ou problematizado na literatura recente refere-se ao fato de que a financeirização exige e promove a construção ou redefinição dos vínculos entre as escalas do processo social. Em outras palavras, o êxito maior ou menor das finanças em extrair rendimentos do processo de produção do espaço urbano depende da eficácia na construção de vínculos mais duradouros entre agentes, processos e estruturas que predominam e/ou privilegiam diferentes escalas geográficas. A proposição implícita nessa hipótese é de que não apenas as escalas e os arranjos escalares são socialmente produzidos, mas também de que esses arranjos podem ser reelaborados e redefinidos no contexto de embates políticos, conflitos sociais ou reestruturações econômicas, como reconhece uma crescente bibliografia (Smith, 1992a; 1992b; Brenner, 2000; 2001; 2009; Swyngedouw, 1997; 2004; Vainer, 2006). Mais do que isso, a produção de novos arranjos entre as escalas geográficas constitui um componente fundamental das transformações sociais, políticas e econômicas que, historicamente, repuseram as condições de reprodução econômica do capitalismo, gerando uma configuração relativamente estável e duradoura para a continuidade da acumulação de capital e para a ação dos distintos grupos e classes sociais (brenner, 2001). Com isso em vista, pode-se reler a financeirização do circuito imobiliário examinando a natureza dos elos e relações escalares construídos e as tensões e contradições que florescem nesse processo.

18Para fins analíticos, é possível discernir três escalas predominantes no âmbito do processo de financeirização dos negócios imobiliários urbanos. Esses três níveis escalares, e os agentes e processos a eles correlatos, estão sintetizados na Tabela 4. Algumas advertências metodológicas mostram-se, contudo, necessárias a fim de prosseguir a discussão. A primeira refere-se aos limites desse tipo de representação: uma importante e crescente literatura vem atentando para a necessidade de se pensar as escalas de forma processual e dinâmica, priorizando o discernimento dos vínculos sempre provisórios e contraditórios entre os níveis escalares em vez de entender as escalas como níveis estáticos e quase ontológicos da ação social. Nesse sentido, é preciso ter consciência desses limites de representação, porque uma tabela nunca dá conta de representar de modo satisfatório a complexidade dos elos, articulações e tensões entre as escalas discernidas. Ela serve apenas como ponto de referência analítico. A segunda advertência remete ao fato de que nem sempre certos agentes e processos podem ser nitidamente circunscritos em termos de um determinado nível escalar. Para citar um exemplo, alguns dos bancos nacionais que desempenham um papel primordial em financiar a aquisição da casa própria no cenário atual extravasam as fronteiras nacionais, de modo que poderiam, possivelmente, ser entendidos como agentes globais. O mesmo vale, por exemplo, para proprietários de terrenos na escala local: alguns deles podem ser, na verdade, empresas que possuem interesses que vão muito além da escala local. Feitas essas ressalvas, contudo, parece interessante identificar esses agentes e seus níveis escalares como um passo inicial para entender a complexa articulação de escalas produzida pela financeirização.

  • 8  O trabalho de campo beneficiou-se de uma parceria com dois colegas de Doutorado do Laboratório de (...)

19No que segue, identificaremos e discutiremos algumas articulações entre esses níveis e as tensões que emergiram tendo como base em pesquisa de campo realizada em São Paulo e em Porto Alegre entre 2011 e 2012. Os levantamentos de campo consistiram em entrevistas realizadas com analistas de mercado, empresários do setor imobiliário e dirigentes de entidades de classe entre Setembro de 2011 e Abril de 2012, bem como em levantamentos de dados coligidos por institutos de pesquisa e entidades do setor imobiliário e publicações setoriais8.

Tabela 4 – Dimensões escalares da financeirização do espaço urbano

Tabela 4 – Dimensões escalares da financeirização do espaço urbano

Fonte: Elaboração do autor.

20As articulações entre as escalas global e a nacional, por exemplo, colocam-se de inúmeras formas em relação ao fenômeno em discussão e seria impossível discutir todas essas formas. Tendo como foco as incorporadoras e construtoras, parece pertinente iluminar, para pensar a articulação entre esses dois níveis, quais são as circunstâncias econômicas, políticas e institucionais que possibilitam que grandes investidores financeiros – fundos de pensão, fundos de hegde, private equity, etc, a maioria com sede nos países avançados – agreguem papéis emitidos pelas incorporadoras nacionais (fundamentalmente ações e debêntures) ao seu portfólio de aplicações de abrangência global, forjando, assim, conexões entre agentes e processos posicionados em níveis escalares diferentes.

21Em um plano mais abrangente, o requisito primordial para esse desdobramento repousa sobre a construção, pelo Estado, de um ambiente mais receptivo aos fluxos financeiros internacionais. A elaboração dessa atmosfera favorável aos fluxos financeiros exigiu um firme compromisso do Estado brasileiro em implementar uma gama de reformas que alinhassem o país de forma inequívoca a um receituário político neoliberal, em voga nos principais países hegemônicos desde a década de 1980. Nesse sentido, era preciso, aos olhos dos grandes investidores financeiros, não apenas remover todas as restrições e entraves aplicados à entrada e saída de capitais de curto prazo, como também era necessário que o Estado brasileiro demonstrasse um decisivo comprometimento com a redução das taxas de inflação mediante a utilização dos instrumentos de política monetária e fiscal. O marco simbólico dessa virada foi representado pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, que logrou implementar um amplo programa de reformas do Estado (privatizações, cortes de gastos públicos, abertura comercial, liberalização financeira, etc) que apontam, de inúmeras formas, para formas de gestão política mais sensíveis aos interesses de investidores financeiros. Mas esse processo, na verdade, possui um horizonte mais largo, e nesse sentido o governo petista precisa ser visto, em inúmeros aspectos, como uma continuidade em relação ao modelo instituído anteriormente. O que importa é sublinhar o protagonismo do Estado brasileiro em transformar o país no que Leda Paulani (2008) designou criticamente por “plataforma de valorização” do capital financeiro internacional, criando as estruturas institucionais que geram confiança nos grandes investidores financeiros para investir em um mercado periférico – ou “emergente”, no jargão ideológico do mercado de capitais.

22No que se refere particularmente à articulação dos investidores com as incorporadoras, o cerne do problema consiste em saber que parâmetros e critérios os investidores utilizam para tomar decisões acerca de adquirir, reter ou se desfazer dos papéis do setor imobiliário. Aqui a articulação passa pela necessidade de produzir padronizações que permitam que o investidor avalie da forma mais objetiva possível a pertinência de se investir na empresa em questão, comparando-a com outras do mesmo setor ou de outros setores e países. Uma dessas padronizações diz respeito aos parâmetros de “governança corporativa” que instituições multilaterais como o Banco Mundial têm procurado disseminar nos países periféricos. A “governança corporativa” refere-se, no meio empresarial, a um conjunto de diretrizes que norteiam as práticas administrativas e contábeis das empresas com o fito de aumentar a “transparência” dessas empresas aos olhos dos investidores. Como diversos autores ressaltam, a definição e o conteúdo desses parâmetros refletem o poder que os investidores institucionais adquiriram sobre as prioridades e estratégias das empresas no capitalismo atual, fazendo prevalecer condutas administrativas que dão primazia à criação de “valor para o acionista” (shareholder value) em detrimento de um planejamento de mais longo prazo (Lazonick; O’Sullivan, 2000; Farnetti, 1998; Soederberg, 2003). Os procedimentos administrativos e de divulgação de resultados exigidos das empresas para serem listadas no Novo Mercado Bovespa – um padrão de listagem criado em meados da década de 2000 que constitui, segundo a bolsa, o nível “mais elevado de governança corporativa”9 – incorporam decisivamente esses parâmetros. Além disso, uma vez que abrem seu capital na bolsa, as decisões administrativas das empresas são cuidadosamente examinadas por agências internacionais de avaliação de risco, como Standard & Poor’s e Moody, que concedem um score que expressa o grau de comprometimento das empresas com a governança corporativa (ver Tabela 4).

  • 10  Utilizaremos, aqui, as entrevistas mencionadas apenas como fonte de informação. Evidentemente que (...)

23Contudo, mesmo após a adesão das incorporadoras a essas diretrizes internacionais, persistiram desencontros entre as expectativas e critérios adotados pelos investidores e as práticas de negócios que caracterizam o setor imobiliário no Brasil, e é aqui que se pode visualizar algumas tensões que podem ser lidas em termos de relações interescalares10. Como Kevin Gotham (2006; 2009) ressalta, o setor imobiliário é particularmente propenso a toda sorte de opacidades que dificultam sobremaneira sua conversão em um “ativo financeiro” dotado de liquidez. Particularmente relevante é seu enraizamento profundo em condições regionais e locais muito específicas, referentes à dinâmica de localização particular que cada mercado regional possui e à inserção que determinada empresa possui em uma teia densa de relações composta por diferentes agentes atuando nesses mercados locais. Diferentemente de um produto industrial homogêneo como um automóvel, no caso da moradia um indicador como volume de produção não fornece uma informação confiável sobre as receitas e a lucratividade de uma empresa. Duas empresas com o mesmo volume de produção e mesmos custos de construção podem ter resultados completamente diferentes dependendo da qualidade dos negócios que se envolveram nas diferentes regiões em que atuam. Essas circunstâncias geram uma incerteza, da parte do investidor financeiro, quanto aos critérios corretos a serem adotados para avaliar uma empresa e seu desempenho. Essa incerteza se exprimiu, no Brasil, em uma volatilidade dos critérios dos investidores para avaliar o setor, induzindo as empresas a erros de avaliação, decisões precipitadas e posturas especulativas. Em uma entrevista com uma analista do mercado imobiliário do Secovi/SP, Ana Maria Castelo, a entrevistada observa esse desencontro:

  • 11  Entrevista realizada em 24/10/2011 em São Paulo.

uma parte aí do impacto dos mercados [nas] grandes cidades [veio com] essa necessidade de gerar resultados. Os investidores não sabiam muito para onde olhar. Existia já um histórico de acompanhar a empresa, empresas da indústria, empresas de serviços, mas o setor da construção [...] era um setor novo dentro do mercado de capitais. Então, que parâmetro usar? E aí nessa incerteza, um dos parâmetros que eles começaram a usar foi o banco de terrenos. Ah, você tem um banco de terrenos bom significa que vai lançar, e aí as empresas começaram a correr pra formar esse banco de terrenos, já com o início aí da subida do preço dos terrenos11.

24De forma semelhante, um dos diretores de incorporação da Brookfield S.A., José de Albuquerque, afirma que:

  • 12 Guidance é uma espécie de planejamento anual no qual as empresas indicam sua intenção em termos de (...)
  • 13  Entrevista realizada em 06/10/2011, em São Paulo.

as empresas do setor imobiliário eram empresas mais familiares e quando teve a moda dos IPOs [Initial Public Offering, a abertura de capital em bolsa] aí nos anos 2006, 2008, vinte empresas correram para abrir capital, viraram capital aberto, Novo Mercado [Bovespa]. Só que aí Novo Mercado é aquela história, tem regras que o setor imobiliário não estava acostumado e [que] o mercado não estava acostumado. Então a primeira história pra situação subir, o resultado trimestral era quanto de VGV [Valor Geral de Vendas] você vai lançar, “guidance12 do ano”, “guidance do ano”. [...] Depois começaram: “o que você tem de landbank [banco de terrenos]”, “o que você tem de landbank”, “quem tem o melhor landbank é o melhor do mundo” e tal. Quer dizer, nem os mercados financeiros entendiam as companhias e muito menos as companhias entendiam o mercado financeiro13.

25A necessidade de satisfazer as demandas dos investidores respondendo às suas expectativas levou muitas empresas a se precipitarem em uma compra desenfreada de terrenos quando os investidores olhavam com especial apreço para o volume do banco de terrenos de cada empresa como indicador de rentabilidade futura. Isso ocorreu principalmente nos dois primeiros anos após a abertura de capital na bolsa (entre 2007 e 2009). Algumas empresas foram particularmente prejudicadas por essa postura: quando a crise financeira de 2008 se traduziu em uma escassez temporária de financiamento externo via mercado de capitais, essas empresas tinham muito capital imobilizado na forma de terrenos, o que tornou particularmente difícil continuar financiando as atividades. Daí que muitas delas foram forçadas a diminuir drasticamente o volume de lançamentos e mesmo liquidar parte de seu banco de terrenos, a fim obter recursos líquidos para honrar seus pagamentos – é o que explica a queda rápida dos lançamentos da Gafisa em 2009 (Ver Tabela 1). Outras ainda foram adquiridas por empresas maiores em situação financeira melhor. A diretora de relações com investidor da Even, Ana Paula Barizon, demonstra, também, uma percepção de que o mercado financeiro dita parâmetros que muitas vezes são inadequados à realidade do setor, mas faz questão de colocar a sua empresa como uma das que não se dobraram ao poder acionista:

  • 14  Entrevista realizada em 27/10/2011, em São Paulo.

a gente até brinca que tem as modas do mercado financeiro, então lá na época do IPOs [abertura de capital], o mercado financeiro queria que todo mundo fosse pra tudo quanto é lugar, diversificasse a atuação em mil estados, lançasse pra caramba, e a Even sempre teve um perfil mais conservador. A gente até acredita que a ação da Even sempre teve um leve desconto aí, por conta da postura mais conservadora do nosso management e da nossa estratégia. […] O mercado financeiro […] é mais de modismo, então lá em 2007 [...] a moda era lançar, lançar, lançar. Então quanto maior o guidance que as empresas davam, mais o mercado gostava e acabava achando que aquela empresa ia dar grande retorno […] E agora o que a gente vê do mercado é que a grande menina dos olhos é geração de caixa. [...] Quanto mais cedo uma empresa puder se tornar caixa positivo, é o que eles estão olhando agora. [...] [A] Even é muito focada na sua estratégia interna e o mercado financeiro tem os modismos14.

26A vinculação entre a escala global, representada aqui pelos grandes fundos de aplicação empenhados em compor uma carteira diversificada de ativos, e a escala nacional, onde predominantemente atuam, desde a abertura de capital em 2006/7, as grandes incorporadoras brasileiras, depende, portanto, de condições políticas, econômicas e institucionais que fazem dos papéis emitidos pelo setor imobiliário ativos atraentes (ou seja, líquidos, seguros e rentáveis) para os grandes fundos globais. O que está em jogo é a necessidade de uma sintonização entre as expectativas e temporalidades que definem a gestão financeira dos grandes fundos de aplicação e a natureza particular do setor no qual investem – no caso do imobiliário, um setor com uma lógica espaço-temporal bastante particular. Mas esse empenho por sintonização, por exprimir na maior parte vezes o poder assimétrico existente entre os investidores e as empresas, resulta em contradições que podem emergir de inúmeras formas e que podem colocar em xeque as relações forjadas entre esses agentes e processos predominantes em escalas diferentes. Como ilustramos aqui brevemente, no caso brasileiro houve desacertos e desencontros entre as expectativas e prioridades dos investidores e aquelas das incorporadoras/construtoras, acarretando em problemas para algumas empresas em particular, decorrentes de saltos especulativos, e/ou desvalorizações dos papéis das incorporadoras que não seguiram à risca as injunções dos novos acionistas.

  • 15  Aqui convém uma ressalva: nem todas as empresas que dispersaram seus investimentos pelo país o fiz (...)

27Um segundo aspecto do processo de financeirização do imobiliário no Brasil refere-se à criação de relações econômicas entre as empresas nacionais e empresas associadas/parceiras, a maioria das quais atuam na escala urbana/local15. O que se colocou após a abertura de capital para as grandes incorporadoras foi, como vimos, uma pressão por expandir rapidamente o volume de lançamentos a fim de satisfazer as expectativas de crescimento dos novos acionistas. Essa necessidade logo revelou a insuficiência do mercado de São Paulo – mercado de origem para a maior parte das incorporadoras – para contemplar as metas visadas, o que impeliu as empresas a se dispersarem regionalmente, seja por meio da aquisição de empresas menores, seja por meio de parcerias com incorporadoras locais ou, finalmente, mediante a abertura de escritórios regionais. Essa expansão, contudo, trouxe à tona o fato de que existe uma série de riscos atrelados à tentativa de coordenação de investimentos pulverizados por todo o território nacional.

28Uma dessas dificuldades refere-se à práticas administrativas e capacidades técnico-operacionais dos parceiros com os quais as grandes incorporadoras contaram para se irradiar pelo território nacional. Muitos desses parceiros, convencionalmente pequenas empresas familiares, simplesmente careciam das condições técnicas e econômicas exigidas para construir empreendimentos na quantidade e qualidade requerida pelas grandes empresas. Também faltavam a essas empresas o rigor das práticas de contabilidade e administração que eram exigidas, pelos investidores financeiros, das empresas de capital aberto. Isso resultou, em inúmeros casos, em extravasamento dos custos previstos e queda na rentabilidade dos empreendimentos nas regiões distantes. O analista de investimentos do Banco do Brasil, Wesley Pereira, observa, no contexto da expansão regional, que

[…] as incorporadoras [são] baseadas em três grandes segmentos: incorporação, construção e vendas. A incorporação entra na parte do projeto, na parte do terreno e tal. A construção é a engenharia, propriamente dita e vendas é a parte de corretagem. Então [as construtoras] viram que na parte de incorporação elas tinham estrutura suficiente para prospectar um terreno e fazer um projeto. Só que para construir, elas optaram por construir via parcerias. Então em um ambiente aquecido de mão de obra, essas parcerias foram se encarecendo, mais do que o previsto nos contratos.

29Logo em seguida, o entrevistado complementa:

  • 16  Entrevista realizada em 21/10/2011, em São Paulo.

30As empresas começaram a incorrer em custos de obra mais altos do que aqueles previstos no projeto, [...] por conta do fluxo mesmo, do risco imobiliário, do risco da carência de mão de obra, da carência de engenheiros, então aquele custo que era 100, virou 150. Se a rentabilidade do projeto foi apertada, antes do lançamento, e este custo estourou em 50%, existe uma forte probabilidade daquele empreendimento não ser rentável ou da rentabilidade dele estar comprometida. Por que estourou [o custo]? Porque os contratos foram feitos por meio de parcerias e as empreiteiras locais, [...] que são dessas regiões aonde a empresa não tinha atuação. Elas começaram a chamar de volta a empresa dizendo que não têm condições de absorver este custo de contrato. [Então] os contratos foram tendo aditivos, as cláusulas de reajuste podem não ter sido acordadas. [...] Então as empresas começaram a enfrentar problemas de custo16.

31A diretora de relações com investidores da Even, Ana Paula Barizon, coloca o problema de forma análoga, embora com algumas nuances diferentes. Falando sobre a postura que a empresa tomou em relação à dispersão regional, a entrevistada assevera que:

  • 17  Entrevista realizada em 27/10/2011, em São Paulo.

[…] em 2008, quando veio a crise, a gente contratou uma consultoria externa pra definir um plano estratégico mais focado [...] E essa consultoria desenhou um planejamento estratégico junto com o management aqui da Even, [...] aonde eles definiram que eles não iam atuar em outros estados senão Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo. Por quê? Porque [a] gente acredita [...] que o Brasil é um país continental, então, pra você ter eficiência na sua atuação no lugar, você tem que ter relevância naquele lugar. Então, a gente não acredita que você fincar uma bandeirinha em cada estado, levantar um empreendimento em cada estado, vai ser eficiente. O que a gente acredita é que se você tiver relevância num mercado os melhores terrenos acabam vindo pra você, os melhores talentos acabam vindo pra você, você tem conhecimento do mercado local, você consegue se antecipar a demandas, algumas mudanças de comportamento da demanda17.

32Um ponto adicional colocado nesse último excerto refere-se ao fato de que os riscos decorrem não apenas das insuficiências técnicas e operacionais das empresas parceiras, mas também do desconhecimento de certas peculiaridades dos mercados regionais. Como explica Michael Ball (1983), para que uma incorporadora tenha êxito em determinado mercado, é preciso que ela consiga se inserir capilarmente em uma trama densa de relações sociais que envolve inúmeros agentes locais (proprietários de terra, planejadores, pequenas construtoras, políticos, etc) ligados ao circuito imobiliário. Essa inserção, que só é concebível quando uma empresa se dispõe a operar de forma mais sistemática e contínua em uma região (daí a ideia de “relevância”), é o que permite construir as bases econômicas para uma atuação mais rentável –  adquirindo os melhores terrenos em contato cotidiano com potenciais vendedores, atraindo talentos ao participar mais ativamente do mercado de trabalho local, identificando demanda potencial ao aperfeiçoar o conhecimento da dinâmica local de usos do solo, etc.

33Os problemas enfrentados por algumas empresas nesse processo de acelerada dispersão territorial terminaram por forçá-las a recuar e reconcentrar novamente investimentos no Sudeste, o pólo nacional da acumulação de capital – são os casos, notadamente, da Cyrela e Gafisa. Isso não deve ser interpretado como um movimento inexorável, que sinalizaria uma reversão absoluta da tendência à dispersão territorial – afinal, empresas como PDG e MRV não modificaram tanto suas políticas de dispersão justamente por não terem enfrentado os mesmos problemas. Antes, é preciso interpretar os percalços de algumas incorporadoras como expressão de contradições que emergem da tentativa de articular as escalas nacional e local dos negócios com a propriedade, um desdobramento do movimento de financeirização do imobiliário na medida em que decorrem da demanda por expansão dos novos acionistas. Deve-se insistir, portanto, no fato de que esses arranjos escalares, que constituem uma dimensão central do processo de financeirização dos negócios imobiliários, comportam formas de tensão e instabilidade que exprimem, em última análise, as dificuldades de compatibilizar processos e agentes cujos horizontes e lógicas espaço-temporais de ação são marcadamente dissonantes.

Considerações finais  

34A financeirização do circuito imobiliário teve como requerimento básico a construção e/ou aprimoramento de canais por intermédio dos quais os grandes investidores financeiros internacionais puderam, de forma cada vez mais eficaz e sistemática, se apoderar dos rendimentos produzidos pela reestruturação do espaço urbano e regional no Brasil. A criação desses canais pressupõe uma complexa arquitetura econômica e político-institucional, sugerindo que a presença do Estado é aqui indispensável. Além disso, para que os grandes investidores financeiros – notadamente, os grandes fundos coletivos de aplicação e os assim chamados investidores institucionais – pudessem se interessar pelo mercado imobiliário urbano, foi necessário criar mecanismos para flexibilizar a propriedade imobiliária urbana, metamorfoseando essa última em papéis (recebíveis imobiliários, cotas de fundos de investimento imobiliário, ações de incorporadoras etc) negociáveis em mercados secundários regulados e supervisionados pelo Estado.

35 O que pretendemos demonstrar nesse artigo é que a financeirização dos negócios imobiliários dependeu, também, para seu êxito, de um rearranjo escalar do processo de urbanização. Em outras palavras, a financeirização envolveu a criação e/ou redefinição das relações travadas entre as escalas global, nacional e local, um processo que é necessariamente contraditório. Procuramos colocar em foco, aqui, algumas das contradições que permeiam essa articulação entre as escalas no processo de financeirização do circuito imobiliário, centrando a análise em dois momentos: no nível dos vínculos entre o global e o nacional, em que destacamos as tensões que decorreram da inconstância e incongruência dos critérios mediante os quais os investidores financeiros internacionais têm avaliado o desempenho das grandes incorporadoras brasileiras; e no nível dos vínculos entre o nacional e o local, em que observamos os obstáculos enfrentados pelas grandes incorporadoras, no âmbito de sua política dispersão territorial, que decorreram de sua associação com empresas familiares locais com pouca experiência ou capacitação para conduzir negócios no volume e na qualidade requerida pelas parceiras maiores. Trata-se, portanto, de uma configuração escalar que é altamente instável porque contém diversas fissuras, embora essa instabilidade não tenha atingido um ponto de ruptura.

36Convém lembrar, finalmente, que os processos sociais de produção e rearranjo de vínculos escalares medeiam, e ao mesmo tempo são mediados, por relações de poder, de tal forma que a reconfiguração de hierarquias escalares produz “geografias e coreografias de inclusão/exclusão e dominação/subordinação que conferem poder a certos atores, alianças e organizações em detrimento de outras” (Brenner, 2009, p. 73). Além disso, as “hierarquias escalares podem operar não apenas como arenas para lutas por poder social, mas também como objetivos [dessas lutas] na medida em que essas hierarquias escalares são desafiadas e perturbadas no curso das lutas e conflitos sociopolíticos por posicionalidade” (Brenner, 2009, p. 73). Logo, é preciso ver o arranjo escalar aqui discutido como uma configuração que exprime, em última análise, o poder adquirido pelos grandes investidores institucionais e fundos de aplicação financeira de ditar os rumos do desenvolvimento da economia capitalista e, cada vez mais, também da urbanização nas últimas décadas. Uma vez que se deseje confrontar as condições econômicas e sociais que reduzem as metrópoles brasileiras a extensos campos para valorização de capitais na esfera financeira, acentuando processos de segregação e fragmentação socioespacial, é necessário colocar em pauta a construção de arranjos escalares fundamentalmente diferentes, mais afinados com o que Henri Lefebvre (2001) entendia por direito à cidade.

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Notes

1  Para um estudo mais pormenorizado dessas mudanças, ver Royer (2009). Botelho (2007) e Fix (2011) também oferecem uma descrição e análise dessas transformações.

2  A securitização diz respeito à transformação de um contrato de dívida em um papel negociável em mercados secundários. Os CRIs são títulos que possuem rendimento derivado do pagamento das prestações (principal mais juros) das famílias que contraem empréstimos habitacionais.

3  Estrangeiro leva 72,5% das ações vendidas pela Rossi. O Globo, Rio de Janeiro, 15/10/2009.

4  VGV é uma forma utilizada pelas incorporadoras para contabilizar seu produto. Refere-se a soma do valor potencial de todos os empreendimentos lançados.

5  Vale frisar que em alguns casos não houve perda de participação relativa da região metropolitana de São Paulo, e sim uma dispersão do restante dos lançamentos da empresa por um número maior de estados da federação.

6  O estado de São Paulo é o único que se encontra segmentado em dois: a região metropolitana e o interior.

7  Esse termo, vale frisar, não é empregado por todos esses autores, mas os sentidos das mudanças em curso estão, de uma forma ou de outra, ilustrados nessas diferentes pesquisas.

8  O trabalho de campo beneficiou-se de uma parceria com dois colegas de Doutorado do Laboratório de Geografia Urbana da USP: César Simoni dos Santos e Sávio Augusto Miele. A cooperação envolveu a realização de entrevistas, coleta de dados e, principalmente, um debate contínuo sobre a natureza do processo de produção do espaço das metrópoles atuais, que contribuiu muito para algumas das reflexões desse artigo.

9  Cf. http://www.bmfbovespa.com.br/empresas/pages/empresas_novo-mercado.asp.

10  Utilizaremos, aqui, as entrevistas mencionadas apenas como fonte de informação. Evidentemente que as percepções dos entrevistados estão imbuídas de representações que são a tradução subjetiva do domínio prático que esses agentes possuem da estrutura social na qual se encontram imersos. Por isso, sua visão de mundo tende, inevitavelmente, a naturalizar as relações sociais que conformam sua prática cotidiana e a ignorar manifestações que expressam as contradições que essas relações encerram. Depreende-se, daí, que deve ser mantido um distanciamento crítico dessas representações, que não podem, absolutamente, nortear a argumentação. Vale lembrar, além disso, que a discussão levada a cabo, aqui, também dependeu de extensa pesquisa em fontes como publicações setoriais e periódicos econômicos.

11  Entrevista realizada em 24/10/2011 em São Paulo.

12 Guidance é uma espécie de planejamento anual no qual as empresas indicam sua intenção em termos de lançamentos, vendas, etc.

13  Entrevista realizada em 06/10/2011, em São Paulo.

14  Entrevista realizada em 27/10/2011, em São Paulo.

15  Aqui convém uma ressalva: nem todas as empresas que dispersaram seus investimentos pelo país o fizeram mediante o estabelecimento de parcerias com empresas locais, algumas optando, ao invés disso, por abrir sucursais ou escritórios regionais responsáveis por gerir os negócios em diferentes mercados. Isso não significa, contudo, que não esteja em questão aqui um processo de articulação entre níveis escalares distintos: toda incorporadora que deseje expandir territorialmente seus negócios acabará por defrontar-se com a necessidade de lidar com uma miríade de circunstâncias econômicas e sociais que diferenciam enormemente os mercados onde atua. Seu êxito ou fracasso no processo de expansão regional repousa, fundamentalmente, sobre sua capacidade de ser suficientemente flexível para enfrentar essas circunstâncias diferenciadas encontradas na escala local.

16  Entrevista realizada em 21/10/2011, em São Paulo.

17  Entrevista realizada em 27/10/2011, em São Paulo.

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Table des illustrations

Titre Mapa 1 – Distribuição geográfica das unidades lançadas pela Cyrela em 20096
Crédits Fonte: Relatório anual da Cyrela.
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/8494/img-1.png
Fichier image/png, 146k
Titre Tabela 4 – Dimensões escalares da financeirização do espaço urbano
Crédits Fonte: Elaboração do autor.
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/8494/img-2.jpg
Fichier image/jpeg, 184k
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Pour citer cet article

Référence électronique

Daniel de Mello Sanfelici, « A financeirização do circuito imobiliário como rearranjo escalar do processo de urbanização »Confins [En ligne], 18 | 2013, mis en ligne le 22 juillet 2013, consulté le 16 avril 2024. URL : http://journals.openedition.org/confins/8494 ; DOI : https://doi.org/10.4000/confins.8494

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Auteur

Daniel de Mello Sanfelici

Doutorando em Geografia Humana, Universidade de São Paulo (USP)danielsanfelici@gmail.com

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Droits d’auteur

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