ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 3

Abdome agudo como manifestação atípica de chikungunya

Acute abdomen as atypical manifestation of chikungunya

RESUMO

INTRODUÇÃO: A febre de chikungunya é uma arbovirose causada pelo vírus chikungunya (CHIKV). Constitui um dos principais diagnósticos diferenciais da dengue, devido à febre e artralgia características.
RELATO DE CASO: Paciente de 8 anos, sexo masculino, negro, iniciou história de dor abdominal associada à febre de caráter diário, odinofagia e astenia. Evoluiu com o passar dos dias, com mialgia e poliartralgia. Foi então internado para investigação. Manteve piora do quadro clínico com persistência da febre e acentuação da dor abdominal. Após 8 dias de internação apresentou sinais de perfuração intestinal e choque séptico. Após cirurgia e estabilização do quadro, foi submetido a sorologias, e confirmando infecção por CHIKV por Elisa.
DISCUSSÃO: A maioria dos indivíduos infectados pelo vírus da chikungunya desenvolvem infecção sintomática (70%). Valores altos em relação às demais arboviroses. Os sinais e sintomas são clinicamente parecidos aos da dengue - febre de início agudo, artralgia e mialgia, cefaleia, náusea, fadiga e exantema. Alguns casos podem evoluir de forma atípica, caracterizada pelo aparecimento de sinais de gravidade ou por apresentar manifestações clínicas menos frequentes, como as do caso em questão. A frequência dos quadros graves é de 0,3%.
CONCLUSÃO: Manifestações menos comuns podem ocorrer, devendo o pediatra estar devidamente atento e considerar a infecção por CHIKV como diagnóstico diferencial.

Palavras-chave: Abdome Agudo, Vírus Chikungunya, Perfuração Intestinal.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Chikungunya fever is an arbovirus caused by the chikungunya virus (CHIKV). It is one of the main differential diagnoses of dengue, due to characteristic fever and arthralgia.
CASE REPORT: An 8-year-old Black male patient had a history of abdominal pain associated with daily fever, odynophagia and asthenia. It evolved over the days with myalgia and polyarthralgia. He was then admitted for investigation. Maintained clinical worsening with persistent fever and increased abdominal pain. After 8 days of hospitalization showed signs of intestinal perforation and septic shock. After surgery and stabilization, he underwent serology and confirmed CHIKV infection by Elisa.
DISCUSSION: Most individuals infected with the chikungunya virus develop symptomatic infection (70%). High values compared to other arboviruses. The signs and symptoms are clinically similar to those of dengue fever - acute onset fever, arthralgia and myalgia, headache, nausea, fatigue and rash. Some cases may develop atypically, characterized by the appearance of signs of severity or by presenting less frequent clinical manifestations, such as those in this case. The frequency of severe frames is 0.3%.
CONCLUSION: Less common manifestations may occur, and pediatricians should be alert and consider CHIKV infection as a differential diagnosis.

Keywords: Abdomen, Acute, Chikungunya Virus, Intestinal Perforation.


INTRODUÇÃO

A febre de chikungunya é uma arbovirose causada pelo vírus chikungunya (CHIKV), da família Togaviridae e do gênero Alphavirus. O nome chikungunya deriva de uma palavra em makonde, língua falada por um grupo que vive no sudeste da Tanzânia e norte de Moçambique. Significa “aqueles que se dobram”, descrevendo a aparência encurvada de pessoas que sofrem com a artralgia característica. A transmissão ocorre principalmente pela picada de fêmeas dos mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus infectadas pelo CHIKV. Casos de transmissão vertical podem ocorrer quase que exclusivamente, durante o período intraparto em gestantes virêmicas. Pode ocorrer ainda transmissão por via transfusional, embora rara1.

A partir do final de 2014, a febre Chikungunya se dispersou para a maior parte das ilhas do Caribe e para os países da América Central, Norte e Sul, incluindo o Brasil. Desde a chegada do vírus às Américas, a Organização Panamericana da Saúde (OPAS) contabilizou 1,3 milhão de casos suspeitos, com 29,7 mil casos confirmados e 184 mortes2.

No Brasil, o primeiro caso confirmado foi em setembro de 2014, na cidade de Oiapoque, localizada no Amapá. A partir de então, ocorreu uma difusão rápida, que foi propiciada por diversos fatores. Entre eles, a susceptibilidade populacional, uma vez que é um novo vírus em circulação no território nacional; a ampla difusão dos vetores propagadores do vírus; e a grande extensão territorial nacional, dificultando a vigilância e medidas de saúde para controle da doença3.

A chikungunya constitui-se um dos principais diagnósticos diferenciais da dengue. Chama atenção, em especial, febre alta e poliartalgia. Raros são os quadros atípicos da doença3,4.

A singularidade das manifestações clínicas apresentadas, motivou a apresentação do seguinte caso.


RELATO DE CASO

Paciente de 8 anos, sexo masculino, negro, iniciou história de dor abdominal associada à febre de caráter diário, odinofagia e astenia. Com o passar dos dias, evoluiu com mialgia e poliartralgia. Foi então internado para investigação, e manteve persistência da febre e piora do quadro clínico. Exames laboratoriais de entrada mostravam valor de leucócitos normal, neutrofilia relativa, linfócitos normais, anemia, plaquetopenia e hiperbilirrubinemia de padrão colestático (leucócitos 4.690mm3, neutrófilos 73.8%, linfócitos 16.9%, hemoglobina: 7.9 e plaquetas 80.300). Foi prescrito antibioticoterapia de amplo espectro, com ceftriaxona, oxacilina e metronidazol, por suposta infecção bacteriana. Tomografia computadorizada do abdome mostrou hepatomegalia, derrame pleural bilateral e líquido livre na cavidade abdominal.

Após 5 dias de internação, apresentou piora súbita da dor abdominal, associada à constipação, vômitos, febre e sinais de choque séptico. Realizou ultrassonografia, que mostrou alças intestinais em bloco e líquido livre espesso na cavidade abdominal. Ao exame físico, apresentava-se ictérico, com abdome tenso, em tábua, com ruídos hidroaéreos abolidos e doloroso difusamente à palpação.

Após 8 dias de internação e sem melhora clínica, com hipótese diagnóstica de abdome agudo e sepse de foco abdominal, foi submetido à laparotomia exploradora. Na cavidade, foi observada e devidamente corrigida uma perfuração na borda contramesentérica do íleo distal, além de secreção entérica em grande quantidade. Após o procedimento e estabilização clínica, o paciente foi mantido sob cuidados intensivos e evoluiu satisfatoriamente do quadro cirúrgico emergencial. Entretanto, apesar disso, chamava atenção da equipe médica a persistência das queixas álgicas articulares e musculares. Foram então solicitadas algumas sorologias, incluindo dengue, chikungunya e zika, além de sorologias para toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus, sífilis e herpes simplex. O resultado foi uma IgM positiva para chikungunya (imunocromatografia e Elisa).


DISCUSSÃO

A maioria dos indivíduos infectados pelo vírus da chikungunya desenvolve infecção sintomática (70%)4. Valor alto em relação às demais arboviroses, cuja dengue é a mais conhecida em nosso meio. Os seus sinais e sintomas são clinicamente parecidos – febre de início agudo, artralgia, mialgia, cefaleia, náusea, fadiga e exantema. A principal manifestação clínica que as difere é a intensa artralgia (predominante da chikungunya), que muitas vezes pode estar acompanhada de edema. Esta associa-se à elevada taxa de morbidade, tendo como consequência a redução da produtividade e qualidade de vida4.

Após a fase inicial, a doença pode evoluir em duas etapas subsequentes: fase subaguda (15 dias a 3 meses) e crônica (mais de 3 meses)4.

Em relação à patogênese, acredita-se que pode haver uma desregulação dos mecanismos de controle do processo inflamatório, causado pela infecção persistente em macrófagos teciduais, ou pela presença de RNA viral no interior dessas células. As alterações histopatológicas sinoviais observadas após infecção por CHIKV são semelhantes às encontradas em pacientes com artrite reumatoide (AR) ou outras artropatias inflamatórias crônicas e incluem hiperplasia sinovial, proliferação vascular e infiltração de macrófagos perivasculares. Alguns preditores laboratoriais de cronicidade são considerados, como níveis elevados de proteína C-reativa e de sorologia para CHIKV IgG, além de sorologia IgM positiva persistente além da fase aguda5.

Alguns casos podem evoluir de forma atípica, seja pelo aparecimento de manifestações clínicas menos frequentes ou por apresentar sinais de gravidade. A frequência dos quadros graves é de 0,3%. Existem relatos da ocorrência de sepse e choque séptico em pacientes com febre chikungunya em terapia intensiva, onde não foi identificado outro possível agente etiológico que justificasse o quadro5.

Há diferentes apresentações descritas de casos atípicos. Estas afetam principalmente o sistema nervoso, osteomuscular, coração, pele e tegumentos, rim e fígado. As quais podem gerar complicações, inclusive morte. Estas formas clínicas ocorrem, principalmente, quando há comorbidades preexistentes e em extremos de idade (idosos e neonatos). Não está claro se as manifestações atípicas ocorrem devido ao padrão de resposta do hospedeiro ou se devem a formas mutantes do CHIKV6,7.

Na literatura pesquisada não foram encontrados casos semelhantes ao relatado. O quadro clínico apresentado foi bem singular pelas manifestações e pela gravidade das complicações, necessitando de abordagem cirúrgica e cuidados intensivos.


CONCLUSÃO

Embora as principais manifestações clínicas das arboviroses sejam bem conhecidas, o médico pediatra deve estar sempre atento para identificação de possíveis casos atípicos. Os mesmos devem ser investigados, notificados e descritos para conhecimento da comunidade médica.


REFERÊNCIAS

1. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Febre de chikungunya. Manejo clínico. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2015. p. 1-30.

2. Barroso WBG, Magalhães JL. Evolução da febre chikungunya no Brasil e os produtos relacionados. In: Anais do IV Simpósio Internacional de Gestão de Projetos, Inovação e Sustentabilidade (SINGEP); 8-10 nov 2015; São Paulo, São Paulo, Brasil. São Paulo: SINGEP; 2015.

3. Azevedo J, Alves PAS. Análise dos aspectos clínicos e manejo da infecção pelo vírus chikungunya. RCFMC. 2017;12(3):53-8.

4. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Chikungunya: manejo clínico. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2017. p. 1-77.

5. Marques CDL, Duarte ALBP, Ranzolin A, Dantas AT, Cavalcanti NG, Gonçalves LDA, et al. Recomendações da Sociedade Brasileira de Reumatologia para diagnóstico e tratamento da febre chikungunya. Rev Bras Reumatol. 2017 Mai;57(Supl 2):S421-S37.

6. Alarcón K, Horna M, Calderón W, Abarca J. Pancreatitis aguda como manifestación atípica de chikungunya. Reporte de un caso. Metro Ciência. 2017 Out;25(2):63-7.

7. Araujo IO. Rev Ped SOPERJ. 2016 Out;16(3 Supl 1):130.










1. Hospital Infantil Juvencio Mattos, Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica - São Luís - Maranhão - Brasil
2. Hospital Universitário Materno Infantil - HUUFMA, Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica - Sao Luis - Maranhão - Brasil

Endereço para correspondência:
Luiz Gonzaga Marques dos Reis Junior
Hospital Infantil Dr. Juvêncio Matos
Rua São Pantaleão, - Centro
São Luís, MA, Brasil. CEP: 65065-545
E-mail: lgmarquesjunior@hotmail.com

Data de Submissão: 21/10/2019
Data de Aprovação: 16/02/2021