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Uma discussão sobre as densidades de energia em ondas mecânicas unidimensionais

A discussion on the energy densities in one-dimensional mechanical waves

Resumos

Estudam-se as médias temporais das densidades das energias cinética e potencial em ondas mecânicas unidimensionais. Demonstra-se que o movimento harmônico simples dos elementos do meio não é condição suficiente nem necessária para que aquelas médias sejam iguais. Isso contradiz as abordagens em textos de Halliday et al. e Nussenzveig.

onda mecânica; densidade de energia; valor médio; movimento harmônico simples


The mean values (in time) of the kinetic and potential energy densities in one-dimensional mechanical waves are studied. It is shown that the simple harmonic motion of the particles is neither a sufficient nor a necessary condition for those mean values to be the same. This contrasts with the approaches in textbooks by Halliday et al. and Nussenzveig.

mechanical wave; energy density; mean value; simple harmonic motion


ARTIGOS GERAIS

Uma discussão sobre as densidades de energia em ondas mecânicas unidimensionais

A discussion on the energy densities in one-dimensional mechanical waves

Alexys Bruno-Alfonso; Alexandro Silveira Florêncio

Departamento de Matemática, Faculdade de Ciências, Universidade Estadual Paulista, Bauru, SP, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Alexys Bruno-Alfonso E-mail: alexys@fc.unesp.br

RESUMO

Estudam-se as médias temporais das densidades das energias cinética e potencial em ondas mecânicas unidimensionais. Demonstra-se que o movimento harmônico simples dos elementos do meio não é condição suficiente nem necessária para que aquelas médias sejam iguais. Isso contradiz as abordagens em textos de Halliday et al. e Nussenzveig.

Palavras-chave: onda mecânica, densidade de energia, valor médio, movimento harmônico simples.

ABSTRACT

The mean values (in time) of the kinetic and potential energy densities in one-dimensional mechanical waves are studied. It is shown that the simple harmonic motion of the particles is neither a sufficient nor a necessary condition for those mean values to be the same. This contrasts with the approaches in textbooks by Halliday et al. and Nussenzveig.

Keywords: mechanical wave, energy density, mean value, simple harmonic motion.

1. Introdução

O presente trabalho originou-se em uma discussão em sala de aula na Universidade Federal de São Carlos (Brasil), como parte do curso de Física B ministrado no ano 2000 por um dos autores (A.B.A.) às turmas de calouros de Física e Engenharia Física. No curso discutiram-se com detalhes matemáticos os fundamentos de Mecânica dos Fluidos, Oscilações e Ondas, e serviram como referências principais os excelentes textos de Halliday et al. [1] e Nussenzveig [2]. A discussão citada referiu-se à análise das médias temporais da energia cinética e da energia potencial na propagação de ondas harmônicas em uma dimensão, e deu-se em dois encontros. No primeiro, veio à tona a contradição entre desenvolvimentos matemáticos realizados em sala de aula e as abordagens nos livros de referência [1, 2]. No segundo, foi resolvida a questão e foi verificada a inconsistência do raciocínio apresentado nos textos utilizados. Pela relevância que essa discussão pode ter para a comunidade de estudantes e professores de Física, ela é apresentada, com vários melhoramentos, neste trabalho.

As densidades médias da energia cinética e da energia potencial em ondas mecânicas em uma dimensão podem ser calculadas mediante uma análise do movimento dos elementos do meio, a partir das leis de Newton e a lei de Hooke [3, 4]. Porém, textos muito utilizados nos cursos de Física Básica apresentam uma analogia que poupa o cálculo da energia potencial elástica média [1, 2]. Essa analogia é estabelecida entre o sistema bloco-mola [5] em oscilações livres (sistema S1) e um infinitésimo do meio unidimensional em que se propaga uma onda harmônica progressiva (sistema S2). Dessa maneira, S1 e S2 realizam Movimento Harmônico Simples (MHS). De um lado, Halliday et al. [1] expõem A taxa média na qual a energia cinética é transportada é... A energia potencial também é transportada pela onda e na mesma taxa média... Apesar de não se fazer a demonstração, você deve se lembrar que num sistema oscilante, tal como um pêndulo ou um sistema massa-mola, a energia cinética média e a energia potencial média são de fato iguais. Do outro lado, Nussenzveig [2] explica Como o elemento dx executa um MHS na direção y, a energia potencial média é igual à energia cinética média .... Em outras palavras, esses textos sugerem que se uma partícula realiza MHS então as médias das suas energias cinética e potencial são iguais. É importante salientar que esse raciocínio pode parecer correto porque, no caso de S2, tanto as hipóteses quanto a tese são verdadeiras.

Para compreender que esse raciocínio é incorreto basta analisar o sistema S3, que consiste de um infinitésimo do meio unidimensional em que se propaga uma onda harmônica estacionária. Nesse caso, as médias das energias cinética e potencial dependem da partícula considerada e, em geral, não coincidem apesar de que o sistema S3 realiza MHS. Essa questão é discutida neste trabalho, mediante abordagens físicas e matemáticas do fenômeno de propagação de ondas mecânicas em uma dimensão.

2. O sistema bloco-mola

O sistema S1 é bem conhecido dos cursos de Física Básica. Consiste de um bloco de massa m ligado a uma mola de massa desprezível e constante elástica k, que está fixa no outro extremo. Considere-se que o movimento do bloco leva em deformações longitudinais da mola, e que não há outras forças que ajam sobre o bloco nessa direção. Então, o deslocamento do bloco a partir da sua posição de equilíbrio é descrito pela função

onde A é a amplitude, w = é a freqüência angular e d é a fase inicial. A energia cinética do sistema S1 é

onde a velocidade instantânea da partícula é a derivada temporal yt(t) , e a energia potencial elástica é

Então, K1(t) e U1(t) são funções periódicas de período 2p/w, e a energia mecânica do sistema S1 é a constante

de modo que é estabelecida uma gangorra entre as energias cinética e potencial. Isto é, no sistema bloco-mola a energia cinética aumenta enquanto a energia potencial diminui, e vice-versa.

Agora, segundo o Cálculo Integral, a média temporal de uma certa função periódica f(t) de período T é

Assim, a energia cinética média é

a energia potencial elástica média é

e chega-se no resultado

Isto é, as médias temporais das energias cinética e potencial de S1 são iguais.

3. Ondas em uma dimensão

Seja y(x,t) a função que descreve o deslocamento do ponto x no instante t num meio linear e homogêneo. Essa função satisfaz a equação de ondas

onde V é a velocidade de fase das ondas, e as derivadas parciais são denotadas mediante índices. A energia cinética de um infinitésimo dx do meio na posição x é [1, 2, 3, 4]

onde l é a densidade linear de inércia, enquanto a energia potencial é [3, 4]

onde k = lV2 é uma medida da elasticidade do meio. No caso de ondas transversais numa corda, k é a tensão da corda, e para ondas longitudinais numa barra, k é o produto do módulo de elasticidade do material vezes a área da seção transversal. Se a barra é modelada por uma mola de constante elástica k e comprimento , então k = kL. Assim, para compreender a Eq. (11) basta levar em conta que o elemento dx é como uma mola de constante elástica k/dx que está deformada em y(x+dx,t) -y(x,t) = yx(x,t) dx.

Note-se que, dividindo as Eqs. (10) e (11) pelo comprimento dx, obtem-se (x,t)/2 e (x,t) /2. Essas são as densidades das energias cinética e potencial, respectivamente. Porém, para fazer mais claras as comparações com as energias do sistema S1, prefere-se lidar com os infinitésimos dK e dU.

Para analisar o sistema S2, que é um infinitésimo do meio unidimensional em que se propaga uma onda harmônica progressiva, considera-se a função

onde k = w/V é o número de onda. Note-se que cada ponto x realiza MHS com período T = 2p/w. De acordo com as Eqs. (10) e (11),

Assim, as energias cinética e potencial de S2 são iguais para qualquer valor de t, o que contrasta com a gangorra que ocorre entre essas energias no sistema S1. De acordo com a Eq. (5), os valores médios de dK2 e dU2 também são iguais, ou seja,

Também, a energia mecânica de S2 é

de modo que a energia mecânica do sistema S2 não se conserva.

É importante esclarecer que a igualdade dK = dU não é exclusividade das ondas harmônicas progressivas. De fato, para a onda progressiva

onde o perfil inicial f(x) é uma certa função derivável, as Eqs. k = lV2, (10) e (11) levam em

Portanto, os valores instantâneos das densidades de energia cinética e potencial são iguais, independentemente do perfil da onda progressiva unidimensional, e as médias temporais correspondentes são iguais, mesmo que os elementos do meio não realizem MHS.

Para refutar a idéia de que a igualdade das médias é devida ao MHS, analisa-se o sistema S3, que consiste de um infinitésimo do meio unidimensional em que se propaga uma onda harmônica estacionária. Nesse caso, considera-se a função

onde k = w/V é o número de onda. Assim, cada ponto x realiza MHS com período T = 2p/w. De acordo com as Eqs. (10) e (11),

e a Eq. (5) leva a

Analogamente,

conduz a

Conseqüentemente, ¹ exceto quando sen2(kx+g) = cos2(kx+g) = 1/2. As exceções são os valores de x tais que kx+g = (2n+1) p/4, onde n é um número inteiro.

Finalmente, basta considerar os ventres da onda harmônica estacionária, os quais correspondem aos elementos do meio que oscilam com amplitude máxima. Os ventres ocorrem, segundo a Eq. (17), nos valores de x que satisfazem kx+g = (n+1/2) p, com n inteiro. Nesse caso dK3 = lw2A2 sen2(wt+d) dx/2 enquanto dU3 = 0 em todo instante t, pois o elemento dx não sofre contrações nem dilatações relevantes. Portanto, os valores médios = lw2A2dx/4 e = 0 são diferentes, apesar de que o sistema S3 realiza MHS.

4. Discussão

Halliday et al. [1] e Nussenzveig [2] sugerem que se uma partícula realiza MHS então as médias das suas energias cinética e potencial são iguais. Dessa maneira, pretendem simplificar o tratamento matemático da energia potencial elástica em ondas mecânicas através de uma analogia com um outro problema já resolvido. Porém, foi demonstrado na seção anterior que o MHS não é condição suficiente nem necessária para que as médias temporais das energias cinética e potencial das partículas sejam iguais.

Adicionalmente, vale a pena ressaltar que aquela analogia [1, 2] ignora que a energia mecânica do sistema bloco-mola é constante, enquanto os elementos infinitésimos do meio em que se propaga a onda intercambiam energia com o restante do meio. Note-se que, se o deslocamento das partículas do meio linear é dado pela função y(x,t) , então a força resultante sobre um infinitésimo dx no ponto x é

pois, de acordo com a lei de Hooke, a força que age no lado esquerdo é -k yx(x,t) , enquanto a força que age no lado direito é k yx(x+dx,t) . Aplicar o símile [1, 2] significa aceitar que a energia potencial elástica devida à deformação do elemento dx está associada à força dF, o que não é correto.

Na verdade [3, 4], a energia de deformação vem dada pela Eq. (11) e responde a interações internas no elemento dx, enquanto a força externa dF encarrega-se de mudar a energia cinética do centro de massa do elemento dx. De fato, segundo a Eq. (10), a taxa de variação temporal da energia cinética do elemento dx é

Mas, de acordo com a equação de ondas (9), obtem-se

que coincide com a potência da força resultante dF que age sobre o elemento dx.

Por outro lado, a taxa de variação da energia mecânica de dx é [6]

e coincide com a soma das potências das forças externas que agem sobre o elemento dx. Essa soma é

Fica evidenciada assim a necessidade de se estudar com detalhes matemáticos a energia potencial elástica em ondas mecânicas.

5. Conclusões

Apresentou-se um estudo das médias temporais das densidades de energia cinética e potencial na propagação de ondas harmônicas num meio unidimensional. Viu-se que, no caso de uma onda harmônica progressiva, essas médias são iguais, como apresentado em textos de Física Básica [1, 2, 3, 4]. Porém, em contraste com dois desses textos [1, 2], demonstrou-se que isso não é conseqüência do movimento harmônico simples dos elementos do meio e ressaltou-se a necessidade de se fazer um tratamento específico e detalhado da energia potencial elástica em ondas mecânicas. Também foi mostrado que a igualdade daquelas médias não é exclusividade das ondas harmônicas progressivas.

O presente trabalho originou-se numa discussão em sala de aula que evidenciou e superou limitações da bibliografia consultada [1, 2]. Isso confirma a necessidade do estudo crítico, por parte de estudantes e professores, da literatura utilizada.

Agradecimentos

A.B.A. agradece aos calouros 2000 dos cursos de Física e Engenharia Física da UFSCar e ao Prof. Dr. José Marques Póvoa pelas úteis discussões. O trabalho recebeu apoio financeiro da PROEX/UNESP.

[5] Considera-se uma mola de massa desprezível.

[6] Supõe-se que as derivadas parciais mistas ytx e yxt são contínuas e, conseqüentemente, iguais.

Recebido em 18/06/04; Aceito em 01/09/04

  • [1] D. Halliday, R. Resnick e J. Walker, Fundamentos de Física 2 - Gravitaçăo, Ondas e Termodinâmica (Ed. LTC, Rio de Janeiro, 1996), p. 120.
  • [2] H.M. Nussenzveig, Curso Básico de Física 2 - Fluidos, Oscilaçőes e Ondas, Calor (Ed. Edgard Blücher Ltda., Săo Paulo 1999), p. 108.
  • [3] P.A. Tipler, Física para cientistas e engenheiros 1 - Mecânica, Oscilaçőes e Ondas, Termodinâmica, Ed. LTC, Rio de Janeiro (2000), p. 420.
  • [4] F.J. Keller, W.E. Gettys, M.J. Skove, Física 2, Makron Books do Brasil Editora Ltda., Săo Paulo (1999).
  • Endereço para correspondência
    Alexys Bruno-Alfonso
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jan 2005
    • Data do Fascículo
      2004

    Histórico

    • Aceito
      01 Set 2004
    • Recebido
      18 Jun 2004
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    E-mail: marcio@sbfisica.org.br