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Obstrução do íleo terminal por mucosa gástrica heterotópica

Terminal ileum obstruction owing to heterotopic gastric mucosa

Resumos

A mucosa gástrica ectópica localizada no intestino delgado, distal ao ligamento de Treitz é muito rara, excetuando-se a encontrada habitualmente no divertículo de Meckel e na duplicação intestinal. Existem formas congênita e adquirida, sendo esta última secundária à processos inflamatórios intestinais. As diferenças entre estas formas são basicamente histológicas, determinando no entanto aspectos fisiopatológicos distintos. Apresentamos caso de mucosa gástrica ectópica em paciente de 34 anos de idade, manifestada por obstrução do íleo terminal. Submetido a duas enterectomias e anastomoses primárias, apresentou boa evolução pós-operatória. O aspecto histopatológico, típico da forma adquirida com mucosa antral e intensa fibrose, foi provavelmente relacionado à quadro recente de tuberculose intestinal, porém não confirmada histologicamente. O antecedente de tuberculose pulmonar recente na família, aliado à linfoadenomegalia mesentérica encontrada a operação, sustentam tal suspeita. Este é fato inédito na literatura dentre as outras 28 publicações de heterotopia gástrica no jejuno e íleo.

Tecido heterotópico; Mucosa gástrica; Tuberculose intestinal


Heterotopic gastric mucosa situated in the small bowel distal to the Treitz suspensory ligament is very rare, except in Meckel's diverticulum and in intestinal duplications. There are two forms of this disease, congenital and acquired. The former is secondary to inflammatory bowel disease. The main difference between these forms is histological, although determining diverse physiopathological aspects. A case of a 34 year old man with heterotopic gastric mucosa in the terminal ileum manifested by intestinal obstruction is reported. He was treated surgically by enterectomy of two small bowel segments, both reconstructed by primary suture. His postoperative course was remarkable. The histopathologic study showed a typical pattern of the acquired type because of the presence of antral the antral mucosa and intense fibrosis. That is probably related to intestinal tuberculosis, but was not histologically confirmed. Individual and family recent history of pulmonary tuberculosis corroborates the suspicion. This is a unique report in the literature, among 28 other heterotopic gastric mucosa situated in the jejunum and ileum.

Heterotopic tissue; Gastric mucosa; Intestinal tuberculosis


Relato de Caso

Obstrução do íleo terminal por mucosa gástrica heterotópica

F. A. Atik, M. Ricci, J. C. Del Grande, C. M. Haddad

Disciplina de Gastroenterologia Cirúrgica do Departamento de Cirurgia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP.

RESUMO ¾ A mucosa gástrica ectópica localizada no intestino delgado, distal ao ligamento de Treitz é muito rara, excetuando-se a encontrada habitualmente no divertículo de Meckel e na duplicação intestinal. Existem formas congênita e adquirida, sendo esta última secundária à processos inflamatórios intestinais. As diferenças entre estas formas são basicamente histológicas, determinando no entanto aspectos fisiopatológicos distintos.

Apresentamos caso de mucosa gástrica ectópica em paciente de 34 anos de idade, manifestada por obstrução do íleo terminal. Submetido a duas enterectomias e anastomoses primárias, apresentou boa evolução pós-operatória. O aspecto histopatológico, típico da forma adquirida com mucosa antral e intensa fibrose, foi provavelmente relacionado à quadro recente de tuberculose intestinal, porém não confirmada histologicamente. O antecedente de tuberculose pulmonar recente na família, aliado à linfoadenomegalia mesentérica encontrada a operação, sustentam tal suspeita. Este é fato inédito na literatura dentre as outras 28 publicações de heterotopia gástrica no jejuno e íleo.

UNITERMOS: Tecido heterotópico. Mucosa gástrica. Tuberculose intestinal.

INTRODUÇÃO

As heterotopias da mucosa gástrica são incomuns, podendo ocorrer em todo o trato gastrointestinal, desde a língua até o reto, havendo, também, relatos de localizações peculiares, tais como na vesícula biliar e no escroto.

Esôfago de Barrett e divertículo de Meckel são, respectivamente, exemplos de manifestação adquirida e congênita de mucosa gástrica ectópica, respectivamente secundários à esofagite de refluxo prolongada e à persistência do conduto onfalomesentérico.

Além do divertículo de Meckel e da duplicação intestinal, a ocorrência deste tecido ectópico no intestino delgado é muito rara. Quando ocorre, localiza-se mais freqüentemente no duodeno, sendo, por outro lado, raramente encontrada no íleo. Observaram-se diferenças importantes do ponto de vista histológico de acordo com sua localização, determinando manifestações clínicas diversas e alterando diagnóstico e terapêutica.

Relatamos o caso de um paciente com obstrução do íleo terminal por mucosa gástrica ectópica adquirida provavelmente secundária à tuberculose intestinal.

RELATO DE CASO

Paciente de 32 anos de idade, masculino, pardo, admitido no pronto-socorro do Hospital São Paulo, UNIFESP - EPM, com quadro de dor abdominal, em cólica difusa, acompanhado de parada de eliminação de fezes há três dias, distensão abdominal e náuseas há um dia. Há três meses havia apresentado quadro semelhante, acompanhado de febre (37,8oC), mas com melhora em cinco dias após tratamento clínico e emagrecimento de 6 kg neste período. Na história pregressa, salientou que há cinco meses apresentou febre vespertina, dor torácica tipo pleurítica e tosse com expectoração clara, tratada como tuberculose pulmonar, apesar da ausência de confirmação microbiológica. Três membros de sua família apresentaram tuberculose pulmonar no último ano. Negava cirurgias abdominais anteriores.

O paciente apresentava regular estado geral, afebril, emagrecido, com abdômen globoso, distendido, assimétrico, ondas peristálticas visíveis, ruídos hidroaéreos aumentados, vasculejo, sem sinais de irritação peritoneal. Toque retal mostrou fezes líquidas na ampola sem tumorações.

Suboclusão intestinal foi demonstrada pela radiografia simples de abdômen e pelo trânsito intestinal (fig.1). A colonoscopia com exame de até 10 centímetros do íleo terminal não evidenciou a causa da obstrução.


Com a suspeita diagnóstica de tuberculose intestinal secundária a foco pulmonar, foi submetido a radiografia simples de tórax (fig.2) que mostrou opacificação heterogênea no ápice pulmonar direito compatível com diagnóstico de seqüela de tuberculose. A prova de Mantoux com padrão de reator forte (18 mm), embora seis pesquisas de bacilo de Koch no escarro e três no lavado broncoalveolar tivessem sido negativas. Adenosina diamina foi normal e cultura do escarro negativa para o bacilo de Koch.


O paciente evoluiu, apesar das medidas clínicas já mencionadas, com manutenção da suboclusão intestinal, tendo sido indicado tratamento cirúrgico.

O inventário da cavidade abdominal demonstrou presença de grande dilatação do intestino delgado a montante de duas áreas do íleo com estenose concêntrica, cujas localizações correspondiam a 25 e 40 centímetros da válvula íleocecal, acompanhadas de intensa linfoadenomegalia mesentérica. Realizadas duas enterectomias para retirada dos segmentos estenosados, com anastomoses primárias em único plano extramucoso. A recuperação pós-operatória foi satisfatória, sem intercorrências.

O estudo anatomopatológico (fig.3) demonstrou na serosa do segmento proximal do intestino delgado, áreas de aspecto cicatricial que retorciam a parede do órgão. A serosa era lisa e brilhante e a mucosa acastanhada, com pregueamento distorcido no nível da lesão numa extensão de um centímetro. Na histopatologia com HE, foram encontradas áreas de fibrose segmentar com focos de processo inflamatório crônico inespecífico. O segundo segmento apresentava serosa lisa, acastanhada e a mucosa com pregueamento conservado. A parede deste segmento distal media seis milímetros de espessura e o exame histopatológico revelou ectopia focal de mucosa gástrica com glândulas do tipo antral, reação inflamatória rica em linfócitos, monócitos e eosinófilos e intensa fibrose. A biópsia do linfonodo mostrou arquitetura distorcida por várias áreas de fibrose e presença de inflamação mononuclear.


DISCUSSÃO

A mucosa gástrica heterotópica localizada no intestino delgado é muito rara, em especial em regiões distais ao ligamento de Treitz. Até a presente data foram descritos na literatura 28 destes casos, sendo a maioria de localização jejunal. A faixa etária destes casos variou de 3 a 46 anos, com maior incidência nas duas primeiras décadas de vida. Recentemente, seu diagnóstico tem se tornado mais freqüente, provavelmente devido à expansão dos serviços de endoscopia com realização de biópsias em locais acessíveis, situados no esôfago, duodeno, cólon e reto.

A patogenia é motivo de discussão. Assim, baseado em dados histológicos, têm sido descritas a forma congênita constituída, segundo Taylor1, por mucosa gástrica organizada e altamente diferenciada, e a forma adquirida, que seria resultado de alterações metaplásicas, com substituição da mucosa nativa por mucosa gástrica. Recentemente2,3, houve melhor caracterização dessas formas, sendo a congênita composta normalmente por glândulas fúndicas bem diferenciadas, ricas em células principais e parietais. Já a outra forma, considerada como regenerativa de tecidos lesados por processos inflamatórios intestinais4, mostra estrutura muitas vezes incompleta de epitélio pilórico com células principais e parietais esparsas ou ausentes.

Somente a forma congênita, por originar-se da diferenciação de células pluripotentes do endoderma, apresenta potencial de degeneração maligna, como relatado por Caruso et al.5 em caso de adenocarcinoma de mucosa gástrica heterotópica no jejuno.

As formas de apresentação clínica têm ampla correlação com os achados histopatológicos. Baseado nisso, a exteriorização clínica pode manifestar-se por obstrução intestinal6 com ou sem intussuscepção2, hemorragia4 aguda ou crônica, perfuração7 e degeneração maligna5.

Isbister7 fez importantes considerações a respeito desta correlação anátomo-clínica, ao descrever um caso de perfuração jejunal em região de mucosa gástrica ectópica. O estudo anatomopatológico mostrou um epitélio rico de células parietais, resultando em atividade péptica a ponto de produzir perfuração. Cervetto et al.8 sugerem que o aparecimento de hemorragia ou perfuração, nesses casos, é dependente da capacidade de produzir secreção cloridropéptica e pelo grau de comprometimento vascular da parede intestinal em relação à invaginações subagudas e crônicas que eventualmente ocorram. Postulam ainda que haja uma maior incidência de perfuração ileal que jejunal, por haver menor contato com a secreção pancreática rica em bicarbonato que agiria como "tampão".

No presente caso, a obstrução intestinal foi secundária a intensa reação inflamatória com fibrose concêntrica e mucosa gástrica metaplásica. A característica histológica da lesão, composta de mucosa do tipo antral, não determinou atividade ulceropéptica, sendo a apresentação clínica relacionada a fenômenos de reparo cicatricial provavelmente ligados à tuberculose intestinal.

Dificilmente a mucosa gástrica ectópica no intestino delgado é descoberta se não tiver produzido complicações9. Achados de exames subsidiários como o trânsito intestinal podem lembrar muitas vezes processos neoplásicos, pelo aspecto polipóide da mucosa, ocupando a luz, como no caso em questão, cujo aspecto sugeriu quadro de tuberculose intestinal. O diagnóstico, portanto, é difícil e baseia-se na análise da combinação de métodos radiológicos, radionucleares, endoscópicos, cirúrgicos, e fundamentalmente histopatológico.

Na maioria dos casos, o diagnóstico é intra-operatório em virtude do caráter urgente imposto por perfuração ou obstrução. Este fato se tornou evidente neste caso, quando após pesquisa intensa da causa da suboclusão, não se obteve confirmação etiopatogênica.

A endoscopia digestiva tem papel fundamental na procura de lesões e sua complementação com biópsia das suspeitas diagnósticas. A capacidade de alcance da maioria dos endoscópios atuais atinge o intestino delgado até 50 centímetros distais ao ligamento de Treitz e cerca de 20 centímetros proximais à válvula ileocecal. No caso vigente, por apenas 15 cm o endoscóspio não alcançou a lesão. Os enteroscópios flexíveis que permitem examinar todo o delgado mostraram,no entanto, alcance limitado de visibilização de cerca de 70% de toda a mucosa e por isso não apresentam precisão diagnóstica total. A endoscopia digestiva intra-operatória merece citação pois permite com o auxílio do cirurgião o exame minucioso de todo o intestino delgado. Turck et al.10, empregando esta técnica, identificaram área de mucosa gástrica ectópica como causa de intussuscepções recorrentes, cujos achados visuais e palpatórios de dois outros procedimentos cirúrgicos foram normais.

O tratamento, obviamente, é a ressecção do segmento intestinal que contenha a ectopia com anastomose primária. Teoricamente, os casos assintomáticos não teriam indicação cirúrgica. Porém, a ressecção deve ser realizada pois o diagnóstico histopatológico somente é caracterizado com a exérese da lesão, além de existir algum potencial maligno nos casos de origem congênita.

SUMMARY

Terminal ileum obstruction owing to heterotopic gastric mucosa. Case report

Heterotopic gastric mucosa situated in the small bowel distal to the Treitz suspensory ligament is very rare, except in Meckel's diverticulum and in intestinal duplications. There are two forms of this disease, congenital and acquired. The former is secondary to inflammatory bowel disease. The main difference between these forms is histological, although determining diverse physiopathological aspects.

A case of a 34 year old man with heterotopic gastric mucosa in the terminal ileum manifested by intestinal obstruction is reported. He was treated surgically by enterectomy of two small bowel segments, both reconstructed by primary suture. His postoperative course was remarkable. The histopathologic study showed a typical pattern of the acquired type because of the presence of antral the antral mucosa and intense fibrosis. That is probably related to intestinal tuberculosis, but was not histologically confirmed. Individual and family recent history of pulmonary tuberculosis corroborates the suspicion. This is a unique report in the literature, among 28 other heterotopic gastric mucosa situated in the jejunum and ileum. [Rev Ass Med Brasil 1998; 44(4): 340-3.]

KEY WORDS: Heterotopic tissue. Gastric mucosa. Intestinal tuberculosis.

  • 1
    Taylor AL. Epithelial heterotopias of the alimentary tract. J Pathol 1927; 30: 415-49.
  • 2
    Gore I, Williams WJ. Adenomatous polyp of the jejunum composed of gastric mucosa. Cancer 1953; 6: 164-6.
  • 3
    Nawaz K, Graham DY, Fechner RE, Eiband JM. Gastric heterotopia in the ileum with ulceration and chronic bleeding. Gastroenterology 1974; 66: 113-7.
  • 4
    Soule EH, Hallenbeck GA. Polypoid gastric heterotopia of the jejunum and ileum causing subacute intestinal obstruction. Surg Gynecol Obstet 1959; 108: 282-8.
  • 5
    Caruso ML, Marzullo F. Jejunal adenocarcinoma in congenital heterotopic gastric mucosa. J Clin Gastroenterol 1988; 10: 92-4.
  • 6
    Lodge JPA, Brennan TG, Chapman AH. Heterotopic gastric mucosa presenting as small-bowel obstruction. Br J Radiol 1987; 60: 710-2.
  • 7
    Isbister WH, Weedon D. Perforated jejunal ulcer and heterotopic gastric mucosa. Br J Surg 1976; 63: 954-5.
  • 8
    Cervetto JL, Carpaneto E, Singer S, Guastavino E. Heterotopia gastrica polipoide en intestino delgado. Acta Gastroent Lat Am 1978; 8: 131-3.
  • 9
    Lee SM, Mosenthal WT, Weismann RE. Tumurous heterotopic gastric mucosa in the small intestine. Arch Surg 1970; 100: 619-22.
  • 10
    Turck D, Bonnevalle M, Gottrand F, Farriaux JP. Intraoperative endoscopic diagnosis of heterotopic gastric mucosa in the ileum causing recurrent acute intussusception. J Pediatr Gastroenterol Nutr 1990; 11: 275-8.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2000
  • Data do Fascículo
    Dez 1998
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