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A batalha contra a desnutrição em São Paulo: entrevista com Gisela M. B. Solymos

FOME E DESNUTRIÇÃO

A batalha contra a desnutrição em São Paulo

Entrevista com Gisela M. B. Solymos

A desnutrição infantil é um dos grandes problemas a desafiar todos aqueles que batalham pelo bem-estar e saúde dos brasileiros, tendo se tornado cada vez mais comum nos imensos bolsões de pobreza espalhados em todos os setores da vida nacional.

A desnutrição é uma questão prioritária porque, embora atinja, em sua maioria, crianças pobres, esconde-se atrás da alimentação precária, que impede o pleno desenvolvimento da pessoa. Os programas de combate à desnutrição têm se mostrado ineficientes porque não respondem de forma adequada às necessidades reais da população. Por isso, resolvemos trazer para nossos leitores informações a respeito de uma instituição que, há mais de dez anos, dedica-se a acompanhar a questão do ponto de vista da ciência. Mas, atuando como uma ong, ela também contribui para a luta contra a desnutrição, ao mesmo tempo em que acumula conhecimentos sobre os procedimentos que a sociedade pode e deve adotar nessa batalha. Tais motivos nos levaram a entrevistar, em abril do corrente ano, a professora Gisela Maria Bernardes Solymos, diretora do Centro de Recuperação e Educação Nutricional (Cren) e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) / Escola Paulista de Medicina.

O Cren é uma instituição muito conhecida nos meios especializados em assistência e amparo às crianças desnutridas. Suas atividades são acompanhadas inclusive em outros países e, porque apoiadas numa experiência de vários anos com a população favelada, o Cren sistematizou métodos de trabalho e ação que podem enfrentar com êxito uma enfermidade que afeta crianças da maioria das nações pobres e em desenvolvimento. Em função disso, seu hospital-dia e suas instalações na cidade São Paulo, na região da Vila Mariana, tornaram-se um ponto de referência para todos os interessados nessa questão, porque tiveram, inclusive, como ponto de partida atividades científicas realizadas na Unifesp.

A seguir, os principais trechos da entrevista concedida em maio deste ano a Marco Antônio Coelho.

ESTUDOS AVANÇADOS – Como foi o início das atividades do Centro de Recuperação e Educação Nutricional?

Gisela Solymos– O Cren foi inaugurado em dezembro de 1993 e iniciou suas atividades em regime de semi-internato, para crianças desnutridas, em maio de 1994. Mas nossa história com as crianças começa em 1988, quando uma equipe de profissionais ligados à Unifesp (professores e estudantes) desenvolvia uma pesquisa numa creche de uma favela na Freguesia do Ó, na cidade de São Paulo. O objetivo da pesquisa era conhecer as condições de saúde e nutrição nas famílias daquela região. Em seguida, ampliamos o trabalho para as favelas da Vila Mariana.

A partir de 1989, a professora Ana Lydia Sawaya, junto com a doutora Dirce Sigulem conseguiram a aprovação, pela Finep, de um projeto de pesquisa socio-econômico-nutricional das famílias residentes na microrregião 4 da Vila Mariana. Esse projeto obrigou-nos a estudar todas as favelas que existiam na época nessa região, a visitar todas casas. Foi um trabalho de campo que durou dois anos e envolveu psicólogos, assistentes sociais e enfermeiras, além de uma nutróloga francesa, que atuou como estagiária.

Nesse período foi desenvolvida uma técnica para abordar a família em sua casa, para conhecer a comunidade, para entrar numa favela e se fazer observações elementares. Não estava previsto na pesquisa darmos orientação a essas pessoas contatadas, mas como os profissionais eram de nível superior, ligados à Unifesp, demos essa orientação.

A partir daí nasceu um método de intervenção a que chamamos, em 1992, de Projeto Favela. Consistia ele em fazer mutirões de pesagem das crianças nas favelas, dar orientação às creches da comunidade e realizar um trabalho de ambulatório nos barracos. Tudo isso era feito com a participação de um pediatra e um nutricionista. Essa foi a pré-história do Cren, por meio dessa experiência pudemos observar que, para estudar e trabalhar com desnutrição, era indispensável trabalhar com a família e com a criança, na própria casa em que moram.

Quando o Cren foi inaugurado, nós já tínhamos esse trabalho estruturado e, então, selecionamos os casos mais graves de crianças desnutridas. Começamos a atendê-las no semi-internato, que faz parte da estrutura do Cren. Isso porque é muito difícil tratar casos graves como esses só com o atendimento na comunidade. Esses casos sinalizavam que aquela família vivia problemas maiores.

Uma criança gravemente desnutrida é um doente que exige permanentes cuidados da mãe. Esta, às vezes, é obrigada a correr ao hospital, pois a vida da mãe gira em torno dessa criança, causando muitas vezes sua demissão no emprego. Além disso, é freqüente a falta de recursos dessas mães para lidar com essa situação, pois são obrigadas a trabalhar e a cuidar de outros filhos. Daí a necessidade de um semi-internato ou Hospital-Dia. Pois somente ele pode interromper o círculo vicioso da desnutrição (má alimentação – doença; doença – má alimentação). Sendo assim, quando podem deixar o filho no semi-internato, sentem-se aliviadas por conseguir fazer outras coisas indispensáveis para a família.

Estimativas sobre a desnutrição em São Paulo

ESTUDOS AVANÇADOS – Qual a estimativa do Cren sobre o percentual de crianças desnutridas entre zero e seis anos na cidade de São Paulo?

Gisela Solymos – Dados absolutos não existem. Nas favelas em São Paulo vivem hoje cerca de dois milhões de pessoas; 30% a 50% das crianças que moram nos bolsões de pobreza – favelas, cortiços etc. – são desnutridas. Se apanharmos alguns dados oficiais que são inferidos (isto é, que não foram efetivamente medidos, pois se baseiam em cálculos estatísticos), concluiremos que 3,95% dessas crianças são desnutridas, conforme uma pesquisa publicada por Benício e Monteiro em 1997.

ESTUDOS AVANÇADOS – Na cidade de São Paulo há fome ou ela é apenas residual?

Gisela Solymos – Em São Paulo a situação é bem diversa daquela que se vê no semi-árido do Nordeste brasileiro. Na pior das hipóteses, aqui, uma família que não tem sequer um lugar onde morar, sempre consegue alimentos. Quando falamos de desnutrição na cidade de São Paulo falamos de uma família de risco que sofre diversos problemas associados, como doenças, desemprego ou sub-emprego, baixa escolaridade, analfabetismo, moradia precária, drogadição etc. Nessas famílias, certamente suas crianças são desnutridas.

As estatísticas são enganosas. Assim, ao se afirmar que no semi-árido 50% das crianças são desnutridas e que na cidade de São Paulo a desnutrição atinge quase 4%, não se pode concluir que o panorama aqui é bem menos grave. Isto porque é preciso levar em consideração a quantidade de crianças que vivem no semi-árido do Nordeste e quantas vivem nas metrópoles. Portanto, o essencial é comparar os números absolutos para saber onde está o maior número de crianças desnutridas no Brasil.

ESTUDOS AVANÇADOS – O Cren também trabalha com meninos de rua?

Gisela Solymos – Tivemos casos de mães que moram nas ruas, com filhos desnutridos. Essas crianças são atendidas por nós, já que nosso critério é atender a qualquer criança com desnutrição primária. Também temos aquelas que estão nos abrigos (casas de passagem para os casos em que a família perdeu a guarda da criança). Quando atendemos crianças nessa situação, em vez de voltarem para casa, elas dormem nas instituições determinadas pelo juizado de menores.

O trabalho com a mãe moradora de rua é possível e já foi feito, mas é muito difícil porque ela é uma pessoa que rompeu com todos os vínculos e dificilmente se associa a alguma pessoa ou a algum serviço. Ao menor sinal de desagravo ela desaparece e não sabemos como encontrá-la. Em outros casos, a família de risco pode ficar sem aparecer aqui por três dias, mas nós vamos atrás delas.

Dados sobre as atividades do Cren

ESTUDOS AVANÇADOS – No vídeo sobre as atividades do Cren não vi imagens de pais de crianças. O pai não pode também ser incorporado a esse trabalho contra a desnutrição?

Gisela Solymos – Pode e deve. Realizamos o trabalho de aproximação com os pais. Mas normalmente são as mães que assumem o tratamento dos filhos desnutridos. Há casos em que o pai é abandonado pela mulher e é ele quem passa a cuidar do filho.

Um caso desses é muito interessante, pois a solução da questão tem de ser resolvida com a inclusão do pai na vida social. Isto é, que ele deve ter documento e algum tipo de trabalho remunerado estável, na medida do possível. Por isso conversamos muito com os pais sobre cursos de capacitação. Também estabelecemos parcerias com empresas (por exemplo, a Engemav, que realizou cursos de capacitação em hidráulica e elétrica nos finais de semana).

Com isso criamos um diferencial que os beneficia no mercado de trabalho, a fim de que consigam emprego. Além disso, temos nossas oficinas, que estão à disposição de todos – mães e pais. Entre essas oficinas está a Arte na Cozinha.

Também pedimos a colaboração dos pais nas nossas festas, porque nelas há trabalhos específicos, como pintar uma parede, montar um palco etc. Enfim, pedimos sua participação na manutenção do Cren e no tratamento do filho.

ESTUDOS AVANÇADOS– Quantas crianças desnutridas são atendidas pelo Cren?

Gisela Solymos – Temos três níveis de intervenção. O mais complexo é o semi-internato, quando a criança passa a semana inteira aqui, das 7h30 às 17h30 horas; nesse nível temos agora cinqüenta crianças.

O segundo nível é o ambulatorial, a porta de entrada do serviço. Nele cuidamos de crianças com desnutrição moderada ou leve. Neste caso são tratadas no ambulatório cerca de setecentas crianças por ano.

O terceiro nível refere-se ao atendimento dado nas comunidades, cujo objetivo é transmitir orientação para as famílias, fazendo mutirão de pesagem das crianças, visita domiciliar etc. Neste caso atendemos cerca de trezentas crianças por ano. Assim, no total, assistimos a quase 1.050 crianças por ano.

ESTUDOS AVANÇADOS – O Cren atende a crianças de zero até seis anos de idade. Acima dessa idade não há risco de morte? O risco é só até os seis anos?

Gisela Solymos– A literatura científica mundial nos ensina que a fase crítica é do nascimento até os seis anos de idade. Esse é um fator. Além disso, a criança com mais de seis anos precisa ir para a escola, o que se torna sua prioridade. As que já estão com mais de seis anos, mas não se encontram totalmente recuperadas, são acompanhadas no ambulatório. Em alguns casos isso pode acontecer até os onze anos de idade. No entanto, não temos uma regra geral, pois tudo depende da avaliação de um pediatra. Levamos em conta também o chamado período da adolescência, no sentido de observarmos a recuperação nutricional também nessa fase.

Repercussão do trabalho do Cren

ESTUDOS AVANÇADOS – Vocês transmitem as experiências do Cren para outras áreas e setores interessados no trabalho com as crianças desnutridas?

Gisela Solymos – Tudo o que aconteceu no Cren – desde o modo como trabalhamos com as famílias até os projetos que realizamos – foram coisas que surgiram a partir da experiência da realidade. A primeira demanda que tivemos foi a de creches nas favelas em que atuávamos, procurando verificar se ali havia crianças desnutridas. Assim, houve um trabalho com essas creches para realizar um diagnóstico da desnutrição e a revisão do cardápio. A demanda cresceu tanto que tivemos de criar uma equipe específica a fim de cuidarmos dessas creches que necessitavam de acompanhamento.

Nasceu então um projeto chamado Programa de Prevenção e Combate à Desnutrição Infantil em Creches e Centros de Educação Infantil. Esse projeto foi financiado durante dois anos por uma empresa suíça de seguros. Houve também uma demanda muito grande de profissionais da área de saúde que nos pediam informações sobre como cuidar de crianças desnutridas. Por isso, criamos um curso de especialização chamado Desnutrição Energético-protéica e Recuperação Nutricional. Ele é realizado pelo Cren dentro do programa de pós-graduação da Unifesp a fim de capacitar profissionais. Esse curso dura um ano, com 360 horas de aulas. Também ministramos aulas na graduação para os alunos da Unifesp e temos estagiários em nutrição, enfermagem e em serviço social. Recebemos ainda estagiários de outros países, como Alemanha e Itália.

Recentemente, fomos solicitados pelo bndes para sistematizar toda essa tecnologia de forma a que um maior número de pessoas possam ter acesso a ela. Lançamos no ano passado a coleção "Vencendo a Desnutrição", que é uma série de livros para profissionais de nível médio e superior, assim como folders e vídeo para mães, como material educativo. Além disso, colocamos um site na Internet: www.desnutricao.org.br, onde é possível encontrar essas informações.

No 2º semestre de 2003 iniciaremos cursos de capacitação no Maranhão (Balsas e Grajaú), em parceria com a Embaixada da Itália e a ong italiana Mais. Fora do Brasil temos sido chamados para conferências para repassarmos essa metodologia de trabalho com crianças desnutridas. Fomos ao México, convidados pelo Ministério da Assistência Social, e ao Peru, por solicitação de seu Ministério da Saúde e da ong espanhola Cesal. E agora pretendemos ir a alguns países da África, em parceria com a Associação de Voluntários para o Serviço Internacional (AVSI).

Os recursos financeiros do Cren

ESTUDOS AVANÇADOS – Quais são os recursos financeiros que o Cren dispõe para manter todas essas atividades?

Gisela Solymos – O Cren tem convênio com a Unifesp, que foi e é nossa primeira grande parceira. Temos um convênio para a utilização do Hospital São Paulo, que pertence à Unifesp, para nele realizarmos exames laboratoriais.

Outro apoio decisivo com que contamos desde o início vem da ong italiana AVSI, que financiou a construção do prédio de nosso Centro. (Vide matéria nesta edição sobre a AVSI). Esta ONG nos dá um valioso apoio financeiro. A prefeitura de São Paulo firmou um convênio conosco, através da Secretaria da Educação (convênio-creche). Também recebemos apoio da fundação Abrinq, que está nos chamando para participar no programa Presidente Amigo da Criança, como consultores em um grupo temático.

Recebemos igualmente apoio de empresas, da população e diversas entidades, que fazem doações de vales-transporte, produtos de limpeza, cestas básicas para as famílias, realizam capacitação em limpeza para os nossos funcionários etc. Tudo isso é indicativo de como nosso trabalho tem inegável êxito e apoio, o que muito nos estimula e nos gratifica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Fev 2004
  • Data do Fascículo
    Ago 2003
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