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Curvas, crescimento e estado nutricional

Charts, growth and nutritional status

EDITORIAL

Curvas, crescimento e estado nutricional

Charts, growth and nutritional status

Claudio Leone

Professor-associado do Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), livre-docente de Pediatria Preventiva e Social pelo Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da USP e presidente do Departamento de Nutrologia da Sociedade de Pediatria de São Paulo, triênio 2007-2009, São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Faculdade de Saúde Publica da USP Avenida Dr. Arnaldo, 715 CEP 01246-904 - São Paulo/SP E-mail: leone.claudio@usp.br

O artigo "Crescimento físico e estado nutricional de crianças e adolescentes da região de Cotinguiba, Sergipe"(1), publicado neste número da Revista Paulista de Pediatria, além de mostrar importantes dados relativos ao estado nutricional de crianças de uma região brasileira, propicia pelo menos três pontos para reflexão bastante relevantes em nosso meio.

O primeiro deles diz respeito à transição epidemiológica que o país atravessa, a qual indubitavelmente está condicionada a epidemia de obesidade(2), principal objeto de preocupação dos nossos pesquisadores da área de Nutrição, mas que não deve fazer com que não se perceba a presença, ainda, da deficiência nutricional primária(3), com uma prevalência nada desprezível em algumas regiões. A amostra do artigo em questão, independentemente de sua representatividade, deixa isto muito claro quando evidencia que a desnutrição ainda afetava uma criança escolar em cada cinco avaliadas.

Isto mostra o quanto é complicado, pelas dimensões continentais do Brasil, realizar análises acerca da situação do país como um todo, com base em dados agregados, como muitas vezes ocorre quando se utilizam valores medianos obtidos por amostragens nacionais. Ao mesmo tempo, e ainda mais grave, é o fato de os resultados mostrarem a persistência de sérias iniqüidades, não importando se em grupos regionalizados, isolados ou não, mas que afetam um grande número de indivíduos quando se transformam as proporções em números absolutos e, o que é pior, indivíduos em plena fase de crescimento e desenvolvimento.

Poucos agravos podem ser piores do que o de tolher a um ser humano a chance de expressar plenamente todo o seu potencial ao atingir a idade adulta. Não pelo ônus ou pelas conseqüências sociais que esta situação possa gerar, de grande ou pequena monta, mas por se tratar de uma situação de iniqüidade que desrespeita um direito fundamental do ser humano, tanto quanto o é a sua vida.

O segundo ponto decorre da primeira reflexão, pois se há prevalências elevadas de desnutrição em algumas áreas e de excesso de peso em outras, torna-se patente a necessidade de um sistema de vigilância epidemiológica do crescimento e, portanto, de estado nutricional, de ampla cobertura no país, que permita captar a localização e, ao mesmo tempo, monitorar a evolução destas iniqüidades.

Ao se observar os dados do estudo, estes mostram que, em termos de médias, a estatura e o peso são inferiores às do referencial e tal diferença vai se acentuando progressivamente até os 14 anos de idade. Assim, depreende-se que, embora as crianças tenham alcançado um crescimento quase aceitável até o início da idade escolar, algum agravo pode ter comprometido sua velocidade de crescimento até os 14 anos, independentemente de qualquer consideração que se possa fazer acerca da validade ou não do referencial utilizado e do fato de não se tratar de um estudo longitudinal.

A ampla distribuição geográfica das escolas em nosso país, quase capilar, que, além disto, têm como clientela adstrita (quase cativa) as crianças da vizinhança onde se situam, as elevadas taxas de matrículas atualmente existentes, com a conseqüente concentração das crianças em um mesmo local e horário, e o fato do comprometimento do crescimento ainda continuar ocorrendo na idade escolar evidenciam que o sistema escolar reúne algumas das condições básicas necessárias à implantação de um sistema nacional de vigilância de crescimento e de estado nutricional: um sistema que, por suas características, faria com que os dados pudessem ser desagregados e ter sua evolução monitorada ao longo do tempo, por local e como um todo; idéia, aliás, da vigilância epidemiológica nutricional em escolares que não é nova nem recente(4,5).

O terceiro e último ponto de reflexão, porém não menos importante, é a questão do referencial e dos pontos de corte adotados na elaboração do diagnóstico coletivo, de interesse para a vigilância, e na detecção ou triagem de comunidades e de indivíduos de risco. Neste sentido, deve-se ter presente que se lida com um referencial, portanto são valores com os quais a população avaliada será comparada e, não, um padrão absoluto de crescimento obrigatoriamente válido para quase todos os grupos populacionais(6).

Um referencial é apenas um referencial, por mais que tenha sido elaborado com os melhores cuidados metodológicos disponíveis naquele momento e reflita o crescimento de uma população que vive em excelentes condições de bem-estar social, só representa o padrão de crescimento daquela população avaliada e não um padrão universal(7-9). Entretanto, isto não deve impedir a sua utilização para avaliar outros indivíduos ou populações, mas apenas aponta para a necessidade de que seja feito de maneira criteriosa. Tais critérios devem decorrer das características epidemiológicas que o fenômeno em questão, crescimento e/ou estado nutricional, apresenta no local em que o referencial está sendo aplicado. Esta terceira reflexão nos remete de volta à necessidade da existência de um sistema de vigilância epidemiológica do crescimento e do estado nutricional.

Quanto aos pontos de corte, ou recorre-se à definição padronizada internacionalmente ou definem-se pontos localmente, para o que valem as considerações feitas no caso do referencial, relativas ao momento epidemiológico. Deve-se ter presente que a criança e o adolescente se modificam com a idade e que não é possível definir pontos de cortes baseados em valores absolutos, como se faz para adultos, que sejam os mesmos para todas as idades. Embora óbvio, é preciso que os parâmetros sejam operacionalizados de maneira relativa ao sexo e à idade, portanto, na forma de percentis ou escores Z; caso contrário, os valores das prevalências dos distúrbios de crescimento e nutricionais seriam falseados.

Partindo destas reflexões, ainda cabe indagar: será que as crianças do estudo atingiram o máximo de crescimento que suas condições de vida lhe permitiriam? Que estão aquém do potencial, não há muita dúvida, se considerarmos o dado projetado pelo referencial, mas, como o crescimento é resultante da interação deste potencial (genético) com o ambiente(10) que envolve o indivíduo, será que elas cresceram tudo o que o ambiente em que viviam (Cotinguiba) lhes permitiria? Esta pergunta não pode ser respondida agora. Talvez fosse possível respondê-la se contássemos com dados provenientes de um sistema de vigilância epidemiológica de crescimento e nutricional que pudessem ser desagregados no nível daquela região, o que, infelizmente, não é o caso.

Seguramente, não atingir a expressão plena de seu potencial já é uma agressão inadmissível aos direitos inerentes a um ser humano, mas o que dizer quando ele sequer consegue atingir a expressão que seu ambiente lhe permitiria, por mais adverso que este seja? Certamente, seria algo indigno e inadmissível para uma sociedade que pretende ser equânime. Mesmo que a freqüência dos problemas de crescimento e má-nutrição não atingissem as dimensões de um problema de Saúde Pública, seria uma situação admissível?

Aliás, o que é um problema de Saúde Pública? Não seria apenas um valor de incidência ou de prevalência que a sociedade arbitrariamente define como o que está disposta a aceitar? Mas, será que é possível definir uma prevalência "normal" para alterações de crescimento e de nutrição? Não seria melhor pensar, no caso específico das alterações de crescimento e má nutrição, que prevalência seria socialmente justa, portanto aceitável?

Creio que a resposta todos nós, pediatras, a temos, deveria ser zero.

Recebido em: 1/6/08

  • 1. Petroski EL, Silva RJS, Pelegrini A. Crescimento físico e estado nutricional de crianças e adolescentes da região de Cotinguiba, Sergipe. Rev Paul Pediatr 2008;26:206-11.
  • 2. Popkin BM. The nutrition transition and its health implications in lower-income countries. Public Health Nutr 1988;1:5-22.
  • 3. Rojas J, Uauy R. Need to prevent obesity without neglecting the protection of children at risk of malnutrition. Rev Chil Nutr 1999;26:35-9.
  • 4
    Organización mundial de la Salud. Metodologia de la vigilância nutricional - serie de Informes técnicos, nº 593. Ginebra: OMS; 1976.
  • 5. Mason JB, Habitch JP, Tabatabai H, Valverde V. Vigilância nutricional. Ginebra: OMS; 1984.
  • 6
    No authors listed. An evaluation of infant growth: the use and interpretation of anthropometry in infants. WHO Working Group on Infant Growth. Bull World Health Organ 1995;73:165-74.
  • 7. Garza C, De Onis M. A new international growth reference for young children. Am J Clin Nutr 1999;70:169S-72S.
  • 8. Wright C, Lakshman R, Emmett P, Ong KK. Implications of adopting the WHO 2006 Child Growth Standard in the UK: two prospective cohort studies. Arch Dis Child 2008;93:566-9.
  • 9. Hui LL, Schooling CM, Cowling BJ, Leung SS, Lam TH, Leung GM. Are universal standards for optimal infant growth appropriate? Evidence from a Hong Kong Chinese birth cohort. Arch Dis Child 2008;93:561-5.
  • 10. Roche A, Sun S. Human growth: assessment and interpretation. Cambridge: Cambridge University Press; 2003.
  • Endereço para correspondência:
    Faculdade de Saúde Publica da USP Avenida Dr. Arnaldo, 715
    CEP 01246-904 - São Paulo/SP
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Set 2008
    • Data do Fascículo
      Set 2008
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