Acessibilidade / Reportar erro

Comparação entre provas de função pulmonar, escore de Shwachman-Kulczycki e escore de Brasfield em pacientes com fibrose cística

Resumos

OBJETIVO: Estudar as relações entre função pulmonar, radiologia de tórax e estado clínico em fibrose cística. MÉTODOS: Em estudo transversal e retrospectivo, analisaram-se prontuários e radiografias de pacientes do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Foram estudados as espirometrias e os escores de Shwachman-Kulczycki (S-K) e de Brasfield. RESULTADOS: A amostra final constituiu-se de 40 pacientes com média de idade de 9,72 ± 3,27. Foram obtidas as seguintes médias dos escores de S-K: total, 80,87 ± 10,24; atividade geral, 24,75 ± 1,1; exame físico, 18,87 ± 4,59; nutrição, 21,87 ± 4,18; e radiologia, 15,37 ± 5,23. A média do escore de Brasfield foi de 18,2 ± 4. As médias das variáveis espirométricas foram, em porcentagem do previsto: capacidade vital forçada (CVF), 82,99 ± 14,36%; volume expiratório forçado no primeiro segundo (VEF1), 83,62 ± 18,26%; e fluxo expiratório forçado entre 25 e 75% da CVF (FEF25-75), 74,63 ± 2,53%. O escore de S-K correlacionou-se moderadamente com a CVF e fortemente com VEF1 e FEF25-75. O escore de Brasfield correlacionou-se fortemente com o escore de S-K total e da radiologia, e moderadamente com a função pulmonar. O escore do exame físico correlacionou-se moderadamente com CVF, VEF1 e FEF25-75, bem como o da nutrição com FEF25-75 e o da radiologia com VEF1 e FEF25-75. A atividade geral foi a categoria que mais contribuiu para a pontuação total do S-K. CONCLUSÕES: Esses escores utilizados para a monitorização da fibrose cística são complementares, correlacionando-se entre si e com as provas funcionais. A categoria radiologia do escore de S-K é um bom substituto para o escore de Brasfield.

Fibrose cística; Espirometria; Pulmão


OBJECTIVE: To study correlations among pulmonary function, chest radiology and clinical status in cystic fibrosis. METHODS: A retrospective cross-sectional study was performed to evaluate chest X-rays and clinical charts of patients treated at the Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Spirometry findings, Shwachman-Kulczycki (S-K) scores and Brasfield scores were analyzed. RESULTS: The final sample consisted of 40 patients (mean age 9.72 ± 3.27). The following mean S-K scores were obtained: total, 80.87 ± 10.24; general activity, 24.75 ± 1.1; physical examination, 18.87 ± 4.59; nutrition, 21.87 ± 4.18; radiology, 15.37 ± 5.23. The mean Brasfield score was 18.2 ± 4. The pulmonary function test results, in percentage of predicted, were as follows: forced vital capacity (FVC), 82.99 ± 14.36%; forced expiratory volume in one second (FEV1), 83.62 ± 18.26%; and forced expiratory flow between 25 and 75% of FVC (FEF25-75), 74.63 ± 2.53%. The S-K score correlated moderately with FVC, whereas it correlated strongly with FEV1 and FEF25-75. The Brasfield score correlated strongly with the S-K total and radiology score, whereas it correlated moderately with pulmonary function. Physical examination correlated moderately with FVC, FEV1 and FEF25-75; as did nutrition with FEF25-75; and radiology with FEV1 and FEF25-75. General activity was the domain that had the greatest influence on the total S-K score. CONCLUSIONS: These two scoring systems are complementary, correlating with each other, as well as with pulmonary function tests. The radiology domain of the S-K scoring system is a good alternative to the Brasfield score.

Cystic fibrosis; Spirometry; Lung


ARTIGO ORIGINAL

Comparação entre provas de função pulmonar, escore de Shwachman-Kulczycki e escore de Brasfield em pacientes com fibrose cística* * Trabalho realizado na Unidade de Pneumologia Infantil do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Porto Alegre (RS) Brasil.

Ivanice Duarte FreireI; Fernando Antônio de Abreu e SilvaII; Manuel Ângelo de AraújoIII

IMédica Pneumologista e Tisiologista. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre (RS) Brasil

IIProfessor Adjunto do Departamento de Pediatria. Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre (RS) Brasil

IIIMédico Radiologista Pediátrico. Hospital da Criança Conceição, Porto Alegre (RS) Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Ivanice Duarte Freire Rua Duque de Caxias, 586/401, Centro CEP 90010-280, Porto Alegre, RS, Brasil Tel 55 51 3023-7018 E-mail: ivanicedf@terra.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Estudar as relações entre função pulmonar, radiologia de tórax e estado clínico em fibrose cística.

MÉTODOS: Em estudo transversal e retrospectivo, analisaram-se prontuários e radiografias de pacientes do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Foram estudados as espirometrias e os escores de Shwachman-Kulczycki (S-K) e de Brasfield.

RESULTADOS: A amostra final constituiu-se de 40 pacientes com média de idade de 9,72 ± 3,27. Foram obtidas as seguintes médias dos escores de S-K: total, 80,87 ± 10,24; atividade geral, 24,75 ± 1,1; exame físico, 18,87 ± 4,59; nutrição, 21,87 ± 4,18; e radiologia, 15,37 ± 5,23. A média do escore de Brasfield foi de 18,2 ± 4. As médias das variáveis espirométricas foram, em porcentagem do previsto: capacidade vital forçada (CVF), 82,99 ± 14,36%; volume expiratório forçado no primeiro segundo (VEF1), 83,62 ± 18,26%; e fluxo expiratório forçado entre 25 e 75% da CVF (FEF25-75), 74,63 ± 2,53%. O escore de S-K correlacionou-se moderadamente com a CVF e fortemente com VEF1 e FEF25-75. O escore de Brasfield correlacionou-se fortemente com o escore de S-K total e da radiologia, e moderadamente com a função pulmonar. O escore do exame físico correlacionou-se moderadamente com CVF, VEF1 e FEF25-75, bem como o da nutrição com FEF25-75 e o da radiologia com VEF1 e FEF25-75. A atividade geral foi a categoria que mais contribuiu para a pontuação total do S-K.

CONCLUSÕES: Esses escores utilizados para a monitorização da fibrose cística são complementares, correlacionando-se entre si e com as provas funcionais. A categoria radiologia do escore de S-K é um bom substituto para o escore de Brasfield.

Descritores: Fibrose cística; Espirometria; Pulmão/radiografia.

Introdução

A fibrose cística é a mais freqüente das doenças genéticas letais na população caucasiana, com uma incidência de 1:2.500 nascimentos.(1) Seu gene codifica uma proteína de 1.480 aminoácidos denominada cystic fibrosis transmembrane conductance regulator (CFTR), ou seja, proteína reguladora da condutância transmembrana, a qual se localiza nas glândulas submucosas da árvore traqueobrônquica, nos canais pancreáticos e biliares, nas criptas intestinais, nos túbulos renais, no aparelho genital e nas glândulas sudoríparas.(2) As funções da CFTR são múltiplas e ainda apenas parcialmente conhecidas. Uma mutação no gene ocasiona uma modificação na estrutura da proteína, tendo sido identificadas, até o presente momento, mais de 1.500 mutações diferentes.(3) A disfunção da CFTR leva a um distúrbio no transporte de cloro através dos epitélios, acarretando desidratação das superfícies mucosas, com formação de muco espesso que favorece o surgimento de infecções, ocasionando perda progressiva da função pulmonar. O acometimento pulmonar é responsável por mais de dois terços dos óbitos.(4)

Os achados radiológicos são precoces: hiperinsuflação; espessamento brônquico; impactação mucóide; bronquiectasias; e atelectasias.(5) As provas funcionais se caracterizam por um aumento da capacidade pulmonar total, da capacidade residual funcional e do volume residual, além de um acometimento precoce dos fluxos distais e da presença de hiper-reatividade brônquica.(6) O exame principal para confirmar o diagnóstico é o teste do suor, sendo necessários dois testes com cloro acima de 60 mEq/L (em crianças) e 80 mEq/L (em adultos).(7) Na análise genética, a identificação de duas mutações faz o diagnóstico, mas sua ausência não o afasta. O tratamento tem por base o uso de antibióticos, fluidificação das secreções pulmonares, fisioterapia respiratória, suplementação pancreática e manutenção de um estado nutricional adequado, propiciando considerável aumento na sobrevida desses pacientes.(4)

A progressão da doença é avaliada pelo estudo da função pulmonar através da capacidade vital forçada (CVF), do volume expiratório forçado no primeiro segundo (VEF1) e do fluxo expiratório forçado entre 25 e 75% da CVF (FEF25-75), sendo esse último o teste que mais precocemente se altera(8,9); por exames de imagem; e, também, por dados clínicos. A radiografia de tórax tem sido o primeiro método diagnóstico de imagem na avaliação do comprometimento pulmonar e é adequada para detectar as lesões mais significativas.(10,11)

A gravidade da doença respiratória é o fator isolado mais importante, afetando a sobrevida desses pacientes. Na impossibilidade de se monitorizar a doença de forma ideal através da função pulmonar, dos exames de imagem e de dados clínicos, simultaneamente, torna-se necessária a análise das correlações entre esses três métodos para que o médico possa valorizá-los adequadamente. Inúmeros sistemas de escores têm sido utilizados para classificar a gravidade da doença pulmonar de forma mais objetiva,(11-15) sendo o escore clínico de Shwachman-Kulczycki(16) e o escore radiológico de Brasfield(17) amplamente empregados. Há inúmeros relatos na literatura de correlações entre esses escores e função pulmonar.(18-24)

O objetivo desse estudo foi correlacionar dados funcionais, alterações radiológicas e estado clínico de pacientes fibrocísticos.

Métodos

Foram estudados os prontuários e documentos radiológicos de 40 pacientes com idade entre 5 e 16 anos portadores de fibrose cística, dentre um total de 98 pacientes em acompanhamento no Centro de Fibrose Cística do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, no período de janeiro de 2000 a dezembro de 2003. O diagnóstico de fibrose cística foi realizado em concordância com os critérios de consenso.(7) Foram incluídos no estudo pacientes pediátricos com doença estável (ausência de exacerbação) e que tivessem realizado, por ocasião de sua revisão anual, um radiograma convencional de tórax, uma espirometria com prova farmacodinâmica e pontuação pelo escore de Shwachman-Kulczycki (Tabela 1). Os critérios de exclusão foram: presença de asma brônquica; aspergilose broncopulmonar alérgica; tabagismo ativo; transplante prévio; e cirurgia de ressecção pulmonar.

O estudo é transversal e retrospectivo. O tamanho da amostra foi calculado em 38 pacientes para estimar correlações iguais ou superiores a 0,50 com nível de significância alfa de 0,05 e poder estatístico (1-b) de 90%. As radiografias de tórax obtidas nas incidências póstero-anterior e perfil foram analisadas segundo a pontuação do escore de Brasfield (Quadro 1) por um radiologista pediátrico de renomada experiência que trabalhou cegamente. O escore de Brasfield consiste em cinco categorias representando os aspectos radiológicos característicos da fibrose cística: aprisionamento aéreo; marcas lineares (espessamento brônquico); lesões cístico-nodulares (bronquiectasias); grandes lesões (atelectasias e pneumonia); e a impressão geral da gravidade. As três primeiras alterações radiológicas são classificadas segundo a gravidade de 0 a 4; as duas últimas, de 0 a 5. Os cinco subescores são somados e, então, subtraídos de 25 para resultar no escore final (um escore de 3 é o mais grave possível).


As espirometrias com prova farmacodinâmica foram realizadas por um único técnico com experiência em exames pediátricos e dentro das normas previstas pelo I Consenso Brasileiro de Espirometria.(8) Os testes analisados foram: CVF, VEF1 e FEF25-75, apresentados como valores em porcentagem do previsto para sexo, idade e altura, segundo as equações de Zapletal.(25) Foi utilizado um espirômetro Master Screen (Jaeger, Würzburg, Alemanha), conforme a rotina da Unidade de Fisiologia Pulmonar (Laboratório de Função Pulmonar) do Serviço de Pneumologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

O escore de Shwachman-Kulczycki é dividido em quatro categorias, cada uma com cinco pontuações possíveis, conforme o grau de comprometimento: atividade geral; exame físico; nutrição; e achados radiológicos. As quatro pontuações são somadas e o escore total é obtido: excelente (86-100); bom (71-85); médio (56-70); ruim (41-55); e grave (menor ou igual a 40). O escore foi realizado pelo próprio médico assistente do paciente durante sua revisão anual, sendo que cada um dos quatro pneumologistas pediátricos da equipe acompanha o mesmo paciente durante todo o curso de sua doença.

Os escores de Brasfield e de Shwachman-Kulczycki, as provas funcionais e a idade dos pacientes são apresentados como médias e desvios padrão. As cinco categorias do escore de Brasfield são apresentadas como medianas e seus intervalos interquartílicos. O coeficiente de correlação de Pearson foi utilizado para comparar os testes de função pulmonar com os escores. A análise de regressão linear múltipla pesquisou quais variáveis mais influenciaram o escore total de Shwachman-Kulczycki. Escolheu-se o nível de significância (alfa) de 0,05 e poder estatístico (1-b) de 90%. Para o banco de dados, foi utilizado o programa Excel, e os dados foram analisados pelo software estatístico Statistical Package for the Social Sciences para Windows, versão 12.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, EUA). O protocolo do presente estudo foi aprovado pelas Comissões Científica e de Ética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Resultados

Foram excluídos os pacientes muito jovens para realizar a espirometria (idade inferior a 5 anos); aqueles que não puderam realizar a avaliação completa com os exames de forma simultânea; e os que apresentassem uma exacerbação da doença. A amostra estudada compreendeu 19 meninos e 21 meninas entre 5 e 16 anos. Em relação à pontuação total do escore de Shwachman-Kulczycki, 62,5% dos 40 pacientes apresentaram escores iguais ou maiores que 80, com média de 80,9 ± 10,2. Na categoria atividade geral, 95% apresentaram um escore de 25, sendo que 20 foi a nota mais baixa. A média foi de 24,7 ± 1,1. Na categoria exame físico, 40% das crianças apresentaram escore 15, mas 55% ganharam escores iguais ou maiores que 20, com média de 18,9 ± 4,6. Na categoria nutrição, 32,5% apresentaram escore de 20 e 55% ganharam escore de 25, com média de 21,9 ± 4,2. Na categoria radiologia, 40% apresentaram escore 10, e 10% apresentaram escore 25, com média de 15,4 ± 5,2. Esse grupo de pacientes apresentou uma função pulmonar muito boa, com média do VEF1 de 83,6 ± 18,2% e do FEF25-75 de 74,6 ± 42,5%. Em relação ao escore de Brasfield, as médias também foram altas (18,2 ± 4, lembrando-se que o valor máximo é 25). Os dados das variáveis estudadas estão na Tabela 2.

Ao serem estudadas as relações entre as variáveis funcionais e o escore de Shwachman-Kulczycki, foi encontrada uma correlação positiva e moderada com a CVF (r = 0,35), e positiva e forte com ambos VEF1 (r = 0,50) e FEF25-75 (r = 0,54). O escore radiológico de Brasfield, quando relacionado com o escore de Shwachman-Kulczycki, mostrou uma correlação positiva e forte (r = 0,62), bem como quando foi comparado à categoria radiologia (r = 0,64). Já quando comparado com parâmetros funcionais, o escore de Brasfield correlacionou-se moderadamente com a CVF (r = 0,32), o VEF1 (r = 0,36) e o FEF25-75 (r = 0,35). Os coeficientes de correlação encontram-se na Tabela 3 e na Figura 1.


Ao ser correlacionada a função pulmonar com as categorias do escore de Shwachman-Kulczycki, encontraram-se correlações positivas e moderadas da categoria exame físico com a CVF (r = 0,34; p = 0,03), VEF1 (r = 0,39; p = 0,01) e FEF25-75 (r = 0,42; p < 0,01); da categoria nutrição com o FEF25-75 (r = 0,32; p = 0,04); e da categoria radiologia com ambos o VEF1 (r = 0,42; p < 0,01) e o FEF25-75 (r = 0,38; p = 0,01). O p não foi significativo ao se correlacionarem as categorias atividade geral com função pulmonar; nutrição com ambos CVF e VEF1; e radiologia com a CVF.

Quanto à contribuição de cada categoria do escore de Shwachman-Kulczycki para a pontuação total, verificou-se que a categoria exame físico se correlacionou muito com atividade geral (r = 0,32; p = 0,04) e radiologia (r = 0,50; p < 0,01), o que ocasionou sua retirada da análise. A categoria atividade geral foi a que mais contribuiu para o escore total, com cada ponto seu aumentando em 1,93 a pontuação final (p = 0,02).

Discussão

A fibrose cística é uma doença complexa, e sistemas de escores são necessários para se tentar avaliar objetivamente a sua gravidade,(14,26,27) pois a maioria dos aspectos clínicos avaliados estão sujeitos à subjetividade do examinador. O escore ideal deve classificar os pacientes e predizer seu curso clínico de forma clara e simples, adaptando-se à rotina de atendimento.

O escore mais difundido e utilizado foi criado por Shwachman-Kulczycki.(28) Ele é facilmente empregado pelo médico assistente, mas a maioria de suas categorias é baseada em informações subjetivas. Criado a partir de um estudo que acompanhou 105 pacientes por 5 anos, ele tornou evidente a necessidade de um sistema de avaliação da gravidade dessa doença(16) e fornece a percepção do estado clínico geral do paciente. Esse escore apresenta uma alta reprodutibilidade intra e interobservadores,(11) mas lhe falta uma categoria que avalie a função pulmonar.

No presente trabalho, a pontuação final do escore de Shwachman-Kulczycki se correlacionou positivamente com suas 4 categorias, sendo que o aspecto que mais influenciou o escore total foi a atividade física. Isso corrobora nossa idéia de que, inicialmente, o aspecto morfológico da doença se altera, sendo refletido nos exames de imagem; mais adiante, há alterações na função pulmonar, embora o paciente ainda seja capaz de manter atividade física e, por último, a capacidade para os esforços físicos está diminuída. Apesar da inevitável perda de função pulmonar, pacientes com doença leve a moderada ainda são capazes de manter atividade física pois, além do VEF1, outros fatores determinam a capacidade de realizar exercícios físicos, tais como o estado nutricional, a massa muscular, o condicionamento aeróbico e fatores emocionais.

Não foram encontradas correlações entre a categoria atividade geral e os testes de função estudados. Acreditamos que essa categoria realmente seja a última a ser alterada nos pacientes fibrocísticos e que esse resultado não esteja presente graças à muito boa função pulmonar que esse grupo de pacientes apresentou. Já os dados de exame físico se correlacionaram de forma positiva e moderada com a função pulmonar, sugerindo que achados clínicos mais detalhados e específicos refletem melhor a característica obstrutiva dessa doença. Em relação ao estado nutricional, encontrou-se uma correlação significativa apenas com o FEF25-75, a qual foi positiva e moderada pois, neste grupo de pacientes com excelente estado nutricional, o único dado funcional que se esperaria encontrar já comprometido seria o FEF25-75, por ser o mais sensível. As correlações com a CVF e o VEF1 não se mostraram estatisticamente significativas e, desse modo, a perda funcional não pôde ser correlacionada com o estado nutricional. Para que este se reflita na função pulmonar, o paciente fibrocístico deve se encontrar em um estágio mais avançado da doença. Quanto à categoria radiologia, por apresentar as alterações morfológicas da doença já precocemente, correlacionou-se positiva e moderadamente com o FEF25-75 e com o VEF1, mas não com a CVF. Sabe-se que o próprio VEF1 é um teste pouco sensível para a doença obstrutiva leve. A CVF é um teste que se altera mais tardiamente na doença e, portanto, não foi capaz de refletir as lesões radiológicas encontradas.

O escore de Shwachman-Kulczycki acompanha o declínio funcional, e a literatura reconhece que sua correlação com dados espirométricos é excelente.(29) Em nosso estudo, obtivemos uma correlação forte com o VEF1 e com o FEF25-75 e moderada com a CVF, indicando que o sistema de Shwachman-Kulczycki acompanha a função pulmonar em seu declínio e a correlação é mais forte com o teste mais sensível, o FEF25-75.

O sistema de escore radiológico ideal deve refletir o estado clínico e a perda funcional.(17,26) Excelentes correlações entre função pulmonar e radiologia estão descritas na literatura.(19,21,22,30) Quando correlacionados o escore de Brasfield e a função pulmonar, os coeficientes de correlação variaram de 0,50 a 0,70 para o VEF1; 0,35 a 0,68 para a CVF, e encontrou-se um r = 0,74 para a correlação com o FEF25-75.(12,21,22) Esta grande variabilidade, porém, indica que há muitas alterações radiológicas que não se refletem nos testes funcionais.(12) O escore de Brasfield, dentre outros escores radiológicos, tem a mais alta correlação com as provas funcionais, mas esse grau de correlação não se reproduziu em nosso estudo, que encontrou correlações moderadas com CVF, VEF1 e FEF25-75 (r = 0,36, r = 0,36 e r = 0,35, respectivamente), indicando que nem todas as alterações morfológicas se refletiram na função pulmonar, provavelmente em virtude do tamanho da amostra e das altas médias dos testes funcionais.

Os escores de Brasfield e de Shwachman-Kulczycki se correlacionam significativamente entre si(10,17,21,22,24) e a correlação positiva e forte presente em nosso estudo (r = 0,62) demonstra que o estado clínico do paciente se deteriora junto com a radiologia de tórax. De acordo com nossos resultados, existe uma correlação positiva e forte entre o escore de Brasfield e a categoria radiologia do sistema de Shwachman-Kulczycki. O primeiro é feito idealmente por um radiologista pediátrico; o segundo, no consultório, pelo próprio médico do paciente. Em face dessa forte correlação, a categoria radiologia pode ser um substituto bom e sensível na avaliação das alterações radiológicas do paciente fibrocístico quando o escore de Brasfield não estiver disponível. Isso demonstra o valor do escore de Shwachman-Kulczycki quando aferido no momento da consulta, fornecendo de imediato uma apreciação global do paciente fibrocístico.

Concluindo, o escore clínico de Shwachman-Kulczycki por si só é capaz de refletir a condição clínica de um paciente, e sua importância reside no fato de ele se correlacionar positivamente com o escore radiológico de Brasfield e com as provas funcionais. Embora esses escores avaliem aspectos diferentes do comprometimento pulmonar, suas correlações tornam possível uma monitorização adequada, mesmo na ausência de um desses métodos. Nosso estudo foi limitado por uma amostra pequena e por sua natureza retrospectiva; no entanto, corroborou dados da literatura e contribuiu para um melhor conhecimento dos pacientes em acompanhamento em um centro de referência em fibrose cística de nosso meio.

Recebido para publicação em 19/2/2007

Aprovado, após revisão, em 30/7/2007

  • 1. Hubert D. Mucoviscidose. In: Encycl Méd Chir-Pneumologie. Paris: Editions Techniques; 1993. vol. 4 (6-040-L-25). p. 1-9.
  • 2. Boucher RC. Cystic Fibrosis. In: Harrison TR, Fauci AS, editors. Harrison's principles of internal medicine. New York: McGraw-Hill; 1994. p. 1194-7.
  • 3. Cystic Fibrosis Mutation Database. [database on the Internet]. Cystic Fibrosis Genetic Analysis Consortium [updated 2006 Sep 8; cited 2007 Feb 15]. Available from: http://www.genet.sickkids.on.ca
  • 4. Blic J, Le Bourgeois M, Hubert D. Mucoviscidose. In: Encycl Méd Chir-Pneumologie. Paris: Editions Scientifiques et Medicales Elsevier; 2001. vol. 5 (6-040-L-25). p.1-14.
  • 5. Robinson C, Scalin TF. Cystic Fibrosis. In: Fishman AP, Elias JA, editors. Fishman's Pulmonary Diseases and Disorders. 3rd ed. New York: McGraw-Hill, Health Professions Division; 1997. p. 803-24.
  • 6. Abreu e Silva FA, Palombini BC. Fibrose Cística. In: Silva LC. Compêndio de pneumologia. São Paulo: Fundo Editorial Byk; 1993. p. 977-84.
  • 7. Rosenstein BJ, Cutting GR. The diagnosis of cystic fibrosis: a consensus statement. Cystic Fibrosis Foundation Consensus Panel. J Pediatr. 1998;132(4):589-95.
  • 8. I Consenso Brasileiro de Espirometria. J Pneumol. 1996;22(3): 105-44.
  • 9. Ruppel G. Manual of pulmonary function testing. 6th ed. St. Louis: Mosby; 1994. p. 43-81; 208-15.
  • 10. Grum CM, Lynch JP 3rd. Chest radiographic findings in cystic fibrosis. Semin Respir Infect. 1992;7(3):193-209.
  • 11. Wood RE. Prognosis. In: Taussig LM, editor. Cystic Fibrosis. New York: Thieme-Stratton; 1984. p. 434-60.
  • 12. Sawyer SM, Carlin JB, DeCampo M, Bowes G. Critical evaluation of three chest radiograph scores in cystic fibrosis. Thorax. 1994;49(9):863-6.
  • 13. Weatherly MR, Palmer CG, Peters ME, Green CG, Fryback D, Langhough R, et al. Wisconsin cystic fibrosis chest radiograph scoring system. Pediatrics. 1993;91(2):488-95.
  • 14. Brouard J, Lecoq I, Viel JF, Guillot M, Laurans M, Laroche D, et al. [Evaluation of diagnosis and follow-up in screened children with cystic fibrosis in Normandy] [Article in French]. Arch Pediatr. 2001;8 Suppl 3:603-609.
  • 15. Santos CI, Ribeiro JD, Ribeiro AF, Hessel G. Critical analysis of scoring systems used in the assessment of Cystic Fibrosis severity: State of the art. J Bras Pneumol. 2004;30(3):286-98.
  • 16. Shwachman H, Kulczycki LL. Long-term study of one hundred five patients with cystic fibrosis; studies made over a five- to fourteen-year period. AMA J Dis Child. 1958;96(1):6-15.
  • 17. Brasfield D, Hicks G, Soong S, Tiller RE. The chest roentgenogram in cystic fibrosis: a new scoring system. Pediatrics. 1979;63(1):24-9.
  • 18. Assis I, Camargos PA, Reis FJ, Sulmonett N, Carneiro AP. Assessing correlations between spirometry and Shwachman-Kulczycki score in children and adolescents. Pediatr Pulmonol. 2003;36(4):305-9.
  • 19. Matthew DJ, Warner JO, Chrispin AR, Norman AP. The relationship between chest radiographic scores and respiratory function tests in children with cystic fibrosis. Pediatr Radiol. 1977;5(4):198-200.
  • 20. Mukhopadhyay S, Kirby ML, Duncan AW, Carswell F. Early focal abnormalities on chest radiographs and respiratory prognosis in children with cystic fibrosis. Br J Radiol. 1996; 69(818):122-5.
  • 21. Reilly BJ, Featherby EA, Weng TR, Crozier DN, Duic A, Levison H. The correlation of radiological changes with pulmonary function in cystic fibrosis. Radiology. 1971;98(2):281-5.
  • 22. Rosenberg SM, Howatt WF, Grum CM. Spirometry and chest roentgenographic appearance in adults with cystic fibrosis. Chest. 1992;101(4):961-4.
  • 23. Terheggen-Lagro S, Truijens N, van Poppel N, Gulmans V, van der Laag J, van der Ent C. Correlation of six different cystic fibrosis chest radiograph scoring systems with clinical parameters. Pediatr Pulmonol. 2003;35(6):441-5.
  • 24. Wong EB, Regnis J, Shnier RC, Bye PT, Stewart ME. The relationship between tests of lung function and three chest radiological scoring systems in patients with cystic fibrosis. Australas Radiol. 1993;37(3):265-9.
  • 25. Zapletal A. Lung function in children and adolescents. Methods, Reference Values. In: Zapletal A, Samanak M, Paul T, editors. Progress in respiration research. Basel: Karger; 1987. p. 10-45.
  • 26. Conway SP, Pond MN, Bowler I, Smith DL, Simmonds EJ, Joanes DN, et al. The chest radiograph in cystic fibrosis: a new scoring system compared with the Chrispin-Norman and Brasfield scores. Thorax. 1994 Sep;49(9):860-2. Erratum in: Thorax 1994;49(11):1184.
  • 27. Shwachman H, Kowalski M, Khaw KT. Cystic fibrosis: a new outlook. 70 patients above 25 years of age. Medicine (Baltimore). 1977;56(2):129-49.
  • 28. Taussig LM, Kattwinkel J, Friedewald WT, Di Sant'Agnese PA. A new prognostic score and clinical evaluation system for cystic fibrosis. J Pediatr. 1973;82(3):380-90.
  • 29. Camargos PA, Queiroz MV. [Peak expiratory flow rate in the management of cystic fibrosis] [Article in Portuguese]. J Pediatr (Rio J). 2002;78(1):45-9.
  • 30. Kraemer R, Rüdeberg A, Kläy M, Rossi E. Relationship between clinical conditions, radiographic findings and pulmonary functions in patients with cystic fibrosis. Helv Paediatr Acta. 1979;34(5):417-28.
  • Endereço para correspondência:
    Ivanice Duarte Freire
    Rua Duque de Caxias, 586/401, Centro
    CEP 90010-280, Porto Alegre, RS, Brasil
    Tel 55 51 3023-7018
    E-mail:
  • *
    Trabalho realizado na Unidade de Pneumologia Infantil do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Porto Alegre (RS) Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jun 2008
    • Data do Fascículo
      Maio 2008

    Histórico

    • Aceito
      30 Jul 2007
    • Recebido
      19 Fev 2007
    Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia SCS Quadra 1, Bl. K salas 203/204, 70398-900 - Brasília - DF - Brasil, Fone/Fax: 0800 61 6218 ramal 211, (55 61)3245-1030/6218 ramal 211 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: jbp@sbpt.org.br