Acessibilidade / Reportar erro

Pierre Bourdieu, o corpo e a saúde: algumas possibilidades teóricas

Pierre Bourdieu, the body and the health: some theoretical approaches

Resumos

Este artigo busca mapear histórica e teoricamente as incursões de Pierre Bourdieu na área da saúde, os reflexos diretos dessas pesquisas em suas obras bem como, indiretamente, nos trabalhos dos pesquisadores ligados à sua perspectiva teórica ou que tenham com ele trabalhado. Com esse painel em mãos, analisamos e propomos alguns apontamentos teóricos sobre a teoria da práxis de Bourdieu, intentando alinhavar alguns possíveis desdobramentos para as pesquisas na área da saúde.

Bourdieu; Corpo; Habitus; Saúde coletiva; Estilo de vida; Representações sociais


This article seeks to survey historically and theoretically Pierre Bourdieu incursions in the health area, the related results from these researches in his works as well as indirectly in the works of researchers connected to his theoretical perspective or the ones who have worked with him. With this outline in hands, we analyze and propose a few theoretical approaches about Bourdieu's theory with the intent of project some possible applications for researches in health area for the purpose of contribute to solving serious health-related problems faced by society.

Bourdieu; Body; Habitus; Medical sociology; Health; Life style


TEMAS LIVRES FREE THEMES

Pierre Bourdieu, o corpo e a saúde: algumas possibilidades teóricas

Pierre Bourdieu, the body and the health: some theoretical approaches

Miguel Ângelo Montagner

Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp. Cidade Universitária Zeferino Vaz, Barão Geraldo 13083-970, Campinas SP. montagner@hotmail.com

RESUMO

Este artigo busca mapear histórica e teoricamente as incursões de Pierre Bourdieu na área da saúde, os reflexos diretos dessas pesquisas em suas obras bem como, indiretamente, nos trabalhos dos pesquisadores ligados à sua perspectiva teórica ou que tenham com ele trabalhado. Com esse painel em mãos, analisamos e propomos alguns apontamentos teóricos sobre a teoria da práxis de Bourdieu, intentando alinhavar alguns possíveis desdobramentos para as pesquisas na área da saúde.

Palavras-chave: Bourdieu, Corpo, Habitus, Saúde coletiva, Estilo de vida, Representações sociais

ABSTRACT

This article seeks to survey historically and theoretically Pierre Bourdieu incursions in the health area, the related results from these researches in his works as well as indirectly in the works of researchers connected to his theoretical perspective or the ones who have worked with him. With this outline in hands, we analyze and propose a few theoretical approaches about Bourdieu's theory with the intent of project some possible applications for researches in health area for the purpose of contribute to solving serious health-related problems faced by society.

Key words: Bourdieu, Body, Habitus, Medical sociology, Health, Life style

Introdução

Defender a relevância e importância da teoria sociológica de Pierre Bourdieu e dos autores que trabalharam muito perto de sua perspectiva teórica pode parecer, para muitos, uma redundância. A despeito disso, vale enfatizar que, no Brasil, sua teoria da práxis ou praxiologia tem muitos admiradores e simpatizantes, mas poucos que realmente utilizam seu referencial de forma sistemática e aprofundada. Não que um embasamento de fundo em uma tese, livro ou artigo não signifique um uso sério ou responsável, mas acredito que a contribuição de sua teoria pode e deve ser muito mais ampla e diversificada do que parece ter sido até agora. Especialmente na área da saúde, onde a mediação entre estruturas como os sistemas de saúde, públicos e privados, o Estado e o indivíduo é uma questão fundamental.

No entanto, a grande contribuição da praxiologia de Bourdieu não parece ter ocorrido até o momento. A rigor, não há estudos publicados por Bourdieu expressa e especificamente sobre a saúde e a prática médica, salvo passagens em suas obras que comentam a medicina como forma de elucidar temas centrais de trabalho, como em seu livro Les héritiers1, sobre os estudantes franceses ou em Homo academicus2, em que analisa o poder intelectual e o mundo da academia. Também nesse sentido, foi orientador dos estudos de Boltanski que culminaram com o clássico As classes sociais e o corpo3 e de Jaisson, com Les lieux de l'art: études sur la structure sociale du milieu médical dans une ville universitaire de province4.

No campo da sociologia da saúde no Brasil, o mesmo parece ter acontecido com a obra de Pierre Bourdieu. Apesar de algumas aplicações declaradamente relacionadas aos conceitos capitais da obra de Bourdieu, devemos apontar a dificuldade de penetração do pensamento do autor no Brasil e a marginalidade relativa de seus trabalhos, o que manteve suas obras mal-exploradas no campo intelectual brasileiro, sobretudo no espaço social reconhecido como de esquerda.

As razões são diversas e podem ser mais bem compreendidas através dos depoimentos daqueles que trabalharam com o autor diretamente. De acordo com Loyola5, ao momento histórico particular que atravessava o Brasil no final dos 60 e início dos 70 – que favorecia uma polarização entre funcionalistas e marxistas – propensos a captar a teoria bourdieusiana como infensa à mudança, devemos acrescer motivos internos a sua obra como: abrangência e complexidade, língua de origem, leitura difícil e complexa, além da ausência de traduções para o português. Segundo Miceli6, sua influência estruturou-se inicialmente em torno de uma Sociologia da Educação e, em outro pólo, uma Sociologia da Cultura e dos Intelectuais, a despeito de um trânsito contínuo entre pesquisadores brasileiros e franceses ligados ao grupo de Bourdieu.

Uma exceção, que permanece como uma referência na área da sociologia médica, deve ser apontada: Loyola7 trabalhou diretamente com Bourdieu e seus estudos resultaram em um artigo exemplar no qual ela utiliza três conceitos centrais – habitus, campo e representações sociais – de forma orgânica. Publicado no número 43 da revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales, dedicado ao tema "Ritos e fetiches", este artigo representa o resultado de uma pesquisa levada a cabo no Brasil, na Baixada Fluminense. É um exemplo muito feliz da aplicação dos conceitos de Bourdieu, de forma completa e conseqüente. Essa pesquisa transformou-se em livro, publicado primeiramente na França e posteriormente no Brasil, no qual se apresenta um vasto material fotográfico, além de uma profunda análise8.

Por esse motivo, o objetivo deste artigo é mapear os indicadores mais próximos de uma teoria voltada à saúde e ao campo médico nos textos de Bourdieu. Esse mapeamento se dará em torno de temas essenciais do instrumental do autor, focalizando especialmente aqueles que possam esclarecer e enriquecer a sociologia da saúde, sem no entanto esboçar um modelo conclusivo e completo.

Propomos aqui algumas implicações teóricas da praxiologia de Bourdieu e procuramos, em seguida, discutir essas possibilidades através dos autores que influenciaram sua obra, acrescidos da influência de Bourdieu nas obras de seus seguidores e colaboradores que publicaram em sua revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales.

As implicações da teoria da práxis

A análise do cabedal teórico e instrumental de Bourdieu nos sugere como resultado uma generalização mais vasta e consistente, a saber, que esse conjunto compõe uma teoria de médio alcance ou teoria dos degraus médios, nos moldes em que propunha Merton9, sem que isso signifique uma aproximação teórica funcionalista em sua obra. Nessa teoria de médio alcance, o habitus é o conceito que tem um papel central, pois ele marca o lugar do agente social ou sujeito histórico. Além disso, esse conceito inova ao possibilitar a mediação teórica entre indivíduo e sociedade ou estruturas e sujeitos históricos. O habitus tende a ser um conceito elástico, quase um axioma a partir do qual é possível construir trabalhos empíricos de monta. Sua caracterização é difícil e requer uma quantidade complexa tanto de indicadores quanto de variáveis. Além disso, é um conceito que atravessa o espaço social em um contínuo que vai do individual ao coletivo, de hexis corporal a illusio. (Figura 1)


Esse habitus, em nossa análise, guarda implicações que caracterizam uma segunda natureza, pressupostos básicos sem os quais ele não mantém sua coerência e operacionalidade. Essas implicações funcionam no limite de três lógicas distintas:

1) Lógica de retenção: trata-se da absorção de formas corporais e de posturas, que, em longo prazo, acabam por tornar-se um sistema operatório, um sistema visível de conhecimento e reconhecimento, uma substância, com qualidades sensíveis e explicitáveis, capazes de dar uma visão de conjunto do indivíduo ou de um grupo de indivíduos. Essa sedimentação pressupõe a ação no tempo, traz implícita a história. Pressupõe a incorporação, o tornar-se corpo. Essa hexis é composta de um capital físico ou corporal, correspondente a uma disposição e a uma trajetória individual, mas também de uma dimensão coletivizada, de grupo. Esse poder de retenção é um poder basicamente corporal, ainda que não se conheçam os mecanismos dessa capacidade de memorização física. Essa lógica está profundamente ligada a uma sociologia do corpo, a ser tratada a seguir.

2) Lógica de mediação: esta lógica apresenta-se estreitamente ligada a categorias mediadoras. A passagem entre o individual e o coletivo, do subjetivo ao objetivo, ocorre através de instâncias de mediação de ordem mental. No indivíduo, a sua percepção do mundo passa sobretudo por uma captação fenomenológica, particular, que individualiza o vivido cotidianamente. No entanto, a análise do geral nesse particular pode ser realizada pelo habitus, um conceito muito próximo ao de representações sociais.

3) Lógica de classificação: indica um caráter ativo, de projeção e julgamentos de valor. Pressupõe uma incorporação prévia de critérios, mas essencialmente se apresenta como um espaço de estratégias, de iniciativas, de livre-arbítrio. É o lugar por excelência da atuação individual e criativa, de uma margem de manobra através da qual os indivíduos projetam sua especificidade e sua criatividade. Ainda que marcada pelo peso do passado – os homens fazem história, mas não a fazem como querem, essas estratégias abrem um leque de possibilidades para as mudanças sociais. A idéia de projeto, de Sartre, encontra aqui um reflexo, mesmo mais atenuado e mediado pelo habitus incorporado pelo indivíduo.

Essa lógica classificatória implica conteúdos relacionais e, portanto, a idéia de relações sociais. Implica, também, a idéia de interações sociais, sobretudo a de interações simbólicas, no sentido de Goffman. Mas, acima de tudo, implica interações sociais em um espaço social específico e histórico, carregado de significados e relações desiguais entre agentes portadores de diferentes capitais sociais. Implica, por fim, um campo, eivado de diferenças de posição e estruturado. Dentro dessa matriz, o habitus gera diferenças contínuas entre indivíduos como maneira de arranjá-los estruturalmente. Essas diferenças são os estilos de vida.

Estas três lógicas interpenetram-se, mas possuem a virtude heurística de permitir uma coerência interna nas análises do mundo social. Se o objeto de estudo concentra-se em uma dessas lógicas, é possível estudá-lo e depois integrá-lo em uma teoria de médio alcance, ainda que ela não seja uma grande teoria, nos moldes dos grandes autores clássicos. Nosso esforço a seguir será o de fundamentar satisfatoriamente essas lógicas, começando pela lógica da retenção corporal.

Em busca de uma sociologia do corpo

Os conceitos centrais da praxiologia de Bourdieu são – a despeito de outros como capital simbólico ou social, violência simbólica – o de campo e o de habitus. Destes dois, o mais antigo a ser usado foi o de habitus, já a partir dos primeiros trabalhos de Bourdieu. Isso não aconteceu por acaso, mas porque o autor sofrera forte influência da fenomenologia em seu período de formação em filosofia. Contrariamente ao conceito de campo, habitus coloca a questão da centralidade do corpo como o lócus privilegiado de análise do sujeito social. Procura-se assim a existência de uma unicidade do ser, constante no tempo e no espaço, capaz de garantir uma ordenação dos acontecimentos e de dar um sentido único à vida humana: através da constância biológica/corporal, pode-se afirmar a existência de uma pessoa?

Do ponto de vista de Bourdieu é impossível captar esse todo humano que escapa ao próprio sujeito, histórico, determinado socialmente, imerso em um universo social fora de nossos controles. Mesmo perdendo parte da riqueza da vastidão humana, o que podemos realizar é a objetivação do habitus, justamente resultado estável mas não imutável desse processo de interiorização do social e de incorporação, na pele, de nossa persona social.

Como apontava Bourdieu, tudo acontece como nos descreveu Kafka em seu conto Na colônia penal10, no qual o corpo é o espaço de inscrição da nossa condenação ao social – inscrição das regras familiares e de classe, nossas limitações coletivas, nosso imaginário grupal – no corpo biológico. Naquele conto, da mesma maneira como faz obsessivamente em suas obras, Kafka deslinda a maneira como as linhas de força da sociedade, exteriores e que escapam ao sujeito, tecem redes que nos enredam de maneira inelutável. E mais, o narrador de Na colônia penal é convidado a assistir a uma execução de uma condenação já imposta, através do maquinário penal em uso. Depois de muitas horas, seria inscrita na pele do indivíduo sua pena, levando-o à morte, mas depois dele ter sentido profundamente o teor da sua sentença. Na nossa sociedade, o corpo é o suporte de uma construção identitária realizada pela estrutura social sobre a pessoa, construção da qual o próprio indivíduo não é inteiramente sujeito: qual o condenado da colônia penal, a sentença a ser escrita sobre nossa pele não nos é dada a conhecer.

Aliados a esse suporte biológico, o nome e nosso sobrenome, veículos por excelência de identificação do indivíduo, vêm se juntar e compor a objetivação da relação entre um corpo e um símbolo que o identifica. Todo o aparato social de formação de uma identidade, ou de uma persona, aqui entendida como máscara social, virá a se sedimentar sobre essa relação de tornar concreto um todo biográfico que na realidade não existe: podemos acompanhar as mudanças sucessivas pelas quais um agente social passa durante seu movimento na sociedade e que acabam por sedimentar um habitus relacionado à história do indivíduo. Esse inscrito, indelével e matriz geradora de práticas, pode ser definido como habitus, sistema de disposições socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes11.

Na sua chamada sociologia da Argélia, Bourdieu está claramente preocupado com as mudanças que ocorrem no indivíduo quando exposto à transformação das estruturas sociais, sobretudo uma mudança radical das estruturas econômicas12. Por isso, ele descortina profundamente a ética de honra dessas sociedades e constata uma forte dimensão impensada desse ethos: boa parte do comportamento dos indivíduos reflete uma estratégia de sobrevivência em um novo mundo, com uma lógica diferente; no entanto, outra parte significativa apresenta-se como um ethos incorporado, como uma hexis corporal. Nesse período publica Le déracinement: la crise de l'agriculture traditionnelle en Algérie13, em que mostra que as mudanças ocorridas na cultura argelina, submetida a um processo de colonização e aculturação, passavam por uma redefinição do conceito de saúde e do próprio corpo. Nele Bourdieu afirmava que não existe índice mais claro da ruptura com a tradição camponesa do que todos aqueles comportamentos nos quais se exprime uma atitude completamente nova em relação à doença: pode-se imaginar uma negação mais total da moral da honra do que essa complacência consigo próprio e com seu próprio corpo que a "civilização" incentivou?

Aqui se apresenta, com toda sua grandeza e miséria, a lógica da retenção corporal e a sua capacidade de manter o incorporado, mesmo quando a própria estrutura social já incorporada cessa de existir. Quando descreve as formas de comportamento dos argelinos, sua postura corporal, seu modo de se locomover, suas ações físicas, Bourdieu retoma uma tradição de estudos que remonta a Marcel Mauss, com seus textos sobre as técnicas do corpo.

Seus primeiros trabalhos buscaram justamente definir um ethos de grupo, traduzido em um senso de honra, em termos de uma hexis corporal. Em seu artigo Célibat et condition paysane, republicado em Le bal des célibataires, Bourdieu14 cita o texto de Mauss sobre as técnicas corporais. Já no capítulo quatro, "Le paysan et son corps", descreve minuciosamente a relação do camponês com seu corpo, através das suas posturas, modos, ou seja, descreve sua hexis corporal ou habitus. Bourdieu debita esse trabalho de interiorização de uma hexis corporal à instância da educação primária, realizada primordialmente pela família e grupo social. Em seguida, essa educação primária passa pelo trabalho pedagógico, institucionalizado no sistema de ensino.

Não por acaso, quando resolve realizar um esboço de uma teoria da prática, em um momento já de sistematização de suas teorias, Bourdieu descreve a aquisição do habitus a partir da incorporação da hexis corporal, de maneira prática e sem atingir o uso da linguagem. Essa primeira educação acontece pela absorção, através das relações sociais, de uma matriz de práticas contidas em um código, a hexis corporal fala imediatamente à motricidade, enquanto esquema postural que é ao mesmo tempo singular e sistemático, pois é solidário de todo um sistema de técnicas do corpo e de instrumentos, e carregado de uma miríade de significações e de valores sociais: as crianças são particularmente atentas, em todas as sociedades, a esses gestos ou essas posturas onde se exprime, a seus olhos, tudo aquilo que caracteriza um adulto, um caminhar, uma postura de cabeça, caretas, maneiras de sentar-se, de manejar instrumentos, cada vez associados a um tom de voz, a uma forma de falar e – como poderia ser de outra forma? – a todo um conteúdo de consciência15.

Percebe-se claramente uma solução de continuidade entre esse aprofundamento analítico e a tradição sociológica inaugurada por Durkheim, em seu período derradeiro de trabalho e que aponta uma inflexão fecunda em sua obra, aquele onde escreve As formas elementares da vida religiosa. Os conceitos imbricados nos estudos de religião de Durkheim foram brilhantemente desenvolvidos por Mauss e deram azo a uma série de pesquisas dentro dessa perspectiva teórica. Em sua célebre introdução à obra de Marcel Mauss, Claude Lévi-Strauss16 aborda com felicidade os pontos pertinentes dessa teoria e ressalta as linhas de pesquisa inauguradas por aquele autor. Em geral, o grande interesse a presidir os estudos de Mauss é aquele referente à relação entre o indivíduo e o grupo social ao qual pertence.

Seguindo esse raciocínio, Lévi-Strauss16 discerne como proeminentes, além da que liga sociologia e psicologia, duas grandes temáticas. Uma primeira, muito pertinente, é a que gira em torno da medicina psicossomática, união do biológico e das imagens mentais socialmente construídas, do físico e do simbólico, em síntese, do fisiológico e do social. O trabalho inaugural de Mauss nessa temática é Essai sur l'idée de mort, retomado e explorado atualmente, sobretudo dentro da antropologia. Uma segunda frente de estudos é a que trafega na busca das formas que tomam os movimentos corporais, os modos de higiene, as posturas, os gestos, a maneira de olhar, falar, enfim, tudo o que se refere ao corpo, quando o indivíduo sofre os condicionamentos de sua sociedade e sua ordem social que lhe impõe um sistema de postura comum. Esse resultado histórico e coletivo individualiza-se em cada agente social, apesar das regularidades grupais passíveis de serem estudadas.

De qualquer forma, o resultado de tal trabalho de incorporação reside em alcançar um comportamento em consonância com as estruturas sociais, sem ser uniformizado em regras definitivas. Para Bourdieu15, se todas as sociedades (e, coisa significativa, todas as 'instituições totalitárias', como disse Goffman, que pensam realizar um trabalho de "deculturação" e de "reculturação") investem uma tal atenção aos detalhes aparentemente os mais insignificantes da atitude, da postura, das maneiras corporais e verbais, é que, tratando o corpo como uma memória, elas lhe confiam sob uma forma abreviada e prática, a bem dizer memotécnica, os princípios fundamentais do arbitrário cultural.

Já Mauss17 afirma que a educação da criança é plena daquilo que chamamos de detalhes, mas que são essenciais. Ou ainda que em todos esses elementos da arte de utilizar o corpo humano os fatos da educação dominam. Mauss demonstra que a conformação das pequenas particularidades é o campo de batalha da integração da regularidade das estruturas sociais. E conclui que em suma, não existe talvez maneira natural no adulto (grifos do autor). Isso mostra o caráter sistemático, estrutural da transmissão das técnicas do corpo e da relação do indivíduo com ele.

Na educação voltada à formação profissional também se encontra a incorporação, no corpo, de valores sociais através da origem socioeconômica e de classe. Esse espírito de corpo, muito característico das profissões tradicionais e possuidoras de um alto grau de capital social, somente poderia ser obtido nos círculos familiares e extra-escolares, sob a forma de disposições duráveis que são constitutivas de um ethos, de uma hexis corporal, de um modo de expressão e de pensamento e de todos os imponderáveis eminentemente corporais que chamamos de "espírito"2.

Além da educação, um outro ponto de convergência entre os autores é aqui mais impressionante. Justamente aquele concernente a uma razão prática coletiva, a uma natureza social das disposições humanas, em suma, do habitus. Mauss17, após descrever uma série de observações sobre técnicas do corpo, salienta que eu tive então, durante muitos anos, esta noção da natureza social do habitus. Eu insisto que se perceba que eu digo em bom latim, compreendido na França, habitus. A palavra traduziu, infinitamente melhor que "hábito" [habitude], a "hexis", o "adquirido" e a "faculdade" de Aristóteles (que era um psicólogo). Ele não designa esses hábitos metafísicos, esta memória misteriosa, assunto de livros ou de curtas e famosas teses. Esses hábitos variam não só simplesmente com os indivíduos e suas imitações, eles variam sobretudo de acordo com as sociedades, as educações, as conveniências e os modos, os prestígios. É preciso ver aí as técnicas e o trabalho da razão prática coletiva e individual, lá mesmo onde não vemos normalmente mais que a alma e suas faculdades de repetição.

Para que se veja além de manifestações da alma e suas faculdades, necessário seria encontrar conceitos mediadores entre o recôndito, o pessoal, o irracional, o não consciente e o universo social. Na passagem do social ao conteúdo social dentro dos indivíduos, inserido, marcado, incrustado no agente, forçoso era encontrar esses mediadores. Nesse caso, tanto Mauss quanto Bourdieu tomaram o corpo como esse mediador prático entre o simbólico e o social.

De fato, Bourdieu estudou e tomou como objeto inúmeras práticas sociais, dentre elas as práticas relacionadas ao corpo. Essa temática do corpo exerceu forte influência no universo teórico de Bourdieu, ocupando um grande espaço, a par de um grande esforço, no programa de pesquisas deste autor. No Centro de Sociologia Européia, em conjunto com muitos pesquisadores, Bourdieu orientou trabalhos que estiveram centrados nas práticas de saúde. Boltanski18 denota o interesse de Bourdieu pela medicina como prática social ao afirmar que este trabalho foi dirigido por M. Pierre Bourdieu, que forneceu as idéias centrais e as hipóteses, e se insere em uma pesquisa mais vasta levada a cabo sob sua direção no Centro de Sociologia Européia, versando sobre as atitudes dos membros de diferentes classes sociais em vista da medicina e, mais geralmente, face ao corpo. Essa parceria frutificou em trabalhos conjuntos, versando sobre o estudo sistemático de pesquisas estatísticas e de revistas especializadas no que Boltanski3 chamava de sociologia do corpo: consumo médico, alimentação, alcoolismo, higiene, sexualidade, controle da natalidade, esportes, férias, tratamentos de beleza, etc.

As contribuições de Bourdieu à sociologia do corpo também podem ser inferidas de modo indireto, pois como aponto no trabalho no qual empreendi um estudo sobre a revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales, através de uma análise pormenorizada dos artigos e dos autores que nela publicaram, ela foi um lugar por excelência de apresentação de trabalhos ligados à saúde e à doença, preferencialmente inseridos na perspectiva científica bourdieusiana19.

Dentre todos os artigos publicados entre 1975 e 2001, quarenta e oito artigos eram ligados à sociologia da saúde e, especialmente, oito versavam sobre a temática corporal. Dentre todos os números da revista, dois são especialmente dedicados ao tema do corpo e neles as apresentações e primeiros artigos são de Bourdieu, o que demonstra sua preocupação com esse tema. Esses artigos apresentam-se multifacetados e apontam para uma interface entre diversas disciplinas. A seguir, faremos um breve comentário sobre cada um deles, destacando a sua visão sobre o corpo.

O primeiro número da revista dedicado totalmente à temática corporal foi o de número 14, Présentation et représentation du corps, de 1977, dois anos após a fundação da revista. Nesse número especial, o próprio Bourdieu, em conjunto com Monique de Saint Martin, escreveu um artigo intitulado "Remarques provisoires sur la perception sociale du corps". Nesse trabalho, valioso por sua riqueza conceitual, os autores retomam temas sobre o corpo e lançam novas possibilidades teóricas. Esse artigo busca entender o corpo como objeto de investimento – tanto libidinal como econômico – e, ao mesmo tempo, descortinar o corpo legítimo, socialmente aceito e socialmente conformado, segundo as injunções de classe, sexo, da divisão social do trabalho, da idade, da classe social. Esse corpo legítimo é traduzido na hexis corporal, que é uma relação durável e generalizada com o corpo real. Esse número é especialmente inovador por sua larga utilização do recurso visual, através de dois artigos em que há inúmeras fotos como dados empíricos de estudo. De início, "Les usages sociaux du corps à Bali", de Gregory Bateson, apresentado por Alban Bensa, representa interessante e instigante artigo, com os usos sociais do corpo apresentados através de fotografias, acompanhadas de um pequeno texto explicativo. A idéia é catalogar e expor, como em uma coleção, o repertório das técnicas corporais dos nativos de Bali. Por meio dessa catalogação, buscou-se mostrar os esquemas de classificação que estão embutidos nessas técnicas e que exprimem o modo de ser, o estilo, o habitus. Essas fotografias seriam os instrumentos que permitem extrair as regras que presidem o uso do corpo. Em seguida, "La ritualisation de la féminité", de Erving Goffman, mantém a linha de pesquisas centrada na exploração da forma externa e no modo de apresentação corporal. Como no artigo anterior, a utilização de imagens é um recurso extremamente adequado e Goffman busca desenvolver um método válido de utilização dessa técnica. O objetivo é extrair dessas fotografias a maneira pela qual o mundo é representado, através das imagens e posturas do corpo, sobretudo o feminino. Goffman centra sua atenção sobre três pontos: os estilos de comportamento ligados ao gênero, como a publicidade apresenta uma visão distorcida do feminino e as regras de produção desse artefato de propaganda.

Em 1989, o número 80 da revista L'Espace des Sports-2 dedicou-se novamente à temática dos esportes. Nosso interesse fixou-se especialmente no artigo de Loïc Wacquant, "Corps et âme – Notes ethnographiques d'un apprenti-boxeur", que é o resultado de uma observação participante do autor dentro de uma academia de ensino de boxe, localizada em um bairro negro norte-americano. O objeto do autor reúne uma série de características remarcáveis: diz respeito à maneira de utilização do corpo, envolve a idéia de um conjunto de representações sociais sobre a arte do boxe e ainda remete ao habitus formado pelo exercício constante e repetitivo de uma técnica corporal coletiva e, ao mesmo tempo, individual. Esse objeto, para Wacquant, é analisado sob três interesses: primeiro, obter e divulgar documentos etnográficos sobre um universo estigmatizado, mas mal conhecido realmente; segundo, explicitar os princípios de funcionamento desse campo esportivo; e, terceiro, refletir sobre uma prática centrada no corpo como instrumento social.

Em 1990, o tema do gênero, Masculin/féminin-1, é o fulcro do número 83 da revista, na qual Françoise Merllié publica o artigo "Le corps des femmes: l'intérieur et l'extérieur". Nesse texto a autora apresenta notas de leitura a respeito de dois livros sobre gênero centrados na relação entre o exterior: mudanças no modo das mulheres se vestirem; e o interior: musculatura e vísceras femininas.

Em 1994, um segundo número temático sobre o corpo é publicado, dedicado ao aspecto econômico dos usos corporais e intitulado Le commerce des corps. Nessa revista, número 104, a abertura é um texto de apresentação do próprio Bourdieu, "Le corps et le sacré". Essa edição mostra uma vertente inexplorada da sociologia do corpo, a saber, os seus usos "extraordinários" como venda de órgãos, indústria do sangue ou prostituição. O autor indica uma possível interpretação desses fenômenos através da relação entre o corpo e o sagrado, na linha durkheimiana. Dessa maneira, a ritualização do corpo visaria a uma defesa contra usos socialmente proibidos e venais. Após essa abertura, temos um artigo de Gabrielle Balazs que se centra na análise de um mercado específico, o da venda do corpo: o texto "Backstreets – Le marché de la prostitution", escrito como resenha de um livro, busca explicar o funcionamento da prostituição na Noruega, através de uma série de entrevistas feitas com agentes sociais envolvidos. Toma como objeto o mercado de prostituição e intenta mostrar as relações que se estabelecem pela divisão de trabalho entre os sexos e as representações sociais sobre o tema, ligadas à imagem do masculino e do feminino.

Alguns anos depois, o tema do corpo vem a ser explorado na sua vertente de intersecção com os estudos sobre a sexualidade. No número 128, Sur la Sexualité, repete-se a ligação estreita entre a temática corporal e a área médica: a maioria dos artigos é híbrida e incorporada à sociologia da saúde. O uso do corpo é tratado às vezes como problema social, outras como espaço da medicalização dentro das sociedades contemporâneas. Como exceção, o artigo conjunto de Pierre-Olivier de Busscher, Rommel Mendes-Leite e Bruno Proth, "Lieux de rencontre et backs-rooms", representa um esforço dos autores no sentido de descrever pormenorizadamente os lugares e comércios onde se realizam as atividades sexuais de um grupo de homossexuais. Por meio dessa descrição, ensaia-se um julgamento de valor sobre como esses lugares funcionam como espaços de regulação de uma determinada forma de homossexualidade e se procura medir os limites dessa regulação.

Esses números especiais mostram a preocupação de Bourdieu e de seus colaboradores com uma sociologia do corpo que guarda fortes relações com a área da saúde, e onde são explorados conteúdos sociológicos no limite do biológico – papel importante que pode ser muito desenvolvido com a utilização do conceito de habitus e de sua lógica de retenção e reprodução de comportamentos.

Em busca de uma sociologia das representações sociais

Apesar da importância da sociologia do corpo na teoria da práxis, resta inexplorada uma vasta gama de fenômenos, chamados de simbólicos e de significação, infensos a uma explicação puramente corporal. São necessários mecanismos eficazes e capazes de realizar a transmutação entre diferentes dimensões, entre o indivíduo e categorias coletivas. Para Bourdieu, esse poder de realizar a ligação só pode ser atribuído a uma lógica de mediação, atualizada através de um habitus.

É importante entender as respostas da tradição sociológica francesa, sobretudo Durkheim e Mauss, a essa questão. Para Mauss17, as técnicas do corpo explicam-se por estar encampadas pela vida simbólica do espírito humano, por um sistema simbólico, responsável por um trabalho de taxonomia psicossociológico e por uma classificação precisa. Esse trabalho de taxonomia realizado pelo universo simbólico, por esse mundo simbólico, remonta às formas primitivas de classificação das sociedades. Essas formas primitivas, responsáveis pela ordenação do mundo e pela criação das categorias de entendimento e de explicação desse mundo, são oriundas de uma realidade sui generis de cada sociedade, realidade historicamente dada. Quando discute as formas primitivas, Mauss discute essencialmente o conceito de representações coletivas, na tradição que ajudou a elaborar com Durkheim20, que afirmava que ao contrário, se, como pensamos, as categorias são representações essencialmente coletivas, traduzem antes de tudo estados da coletividade: elas dependem da maneira pela qual esta é constituída e organizada, de sua morfologia, de suas instituições religiosas, morais, econômicas, etc.

O conceito de representações em Durkheim baseia-se em três princípios básicos: a base material, chamada de morfologia social, causa e conforma as idéias, que assumem uma autonomia relativa em relação às condições materiais da sociedade; as representações sociais são coletivas e sui generis, portanto objetivas por si mesmas, pois são conformadas historicamente e as representações coletivas exercem coerção sobre os indivíduos e, apesar de sofreram suas ações, independem desses indivíduos.

Durkheim20 afirmou que a sociedade é uma realidade sui generis e que as representações que a exprimem têm pois um conteúdo inteiramente diferente das representações puramente individuais e pode-se ter certeza, por antecipação, que as primeiras acrescentam qualquer coisa às segundas. A própria maneira pela qual se formam umas e outras leva-as a diferenciar-se. As representações coletivas são o produto de uma imensa cooperação que se estende não apenas no espaço mas no tempo também; para fazê-las, uma multiplicidade de espíritos diversos associaram, misturaram e combinaram suas idéias e seus sentimentos; longas séries de gerações acumularam aí sua experiência e sua sabedoria [...].

A retomada da temática das representações coletivas é um capítulo novo da história das idéias. Apesar de não ser um conceito recente, uma teoria das representações sociais só se desenvolveu nas últimas décadas, sobretudo dentro da vertente mais sociológica da Psicologia Social. Essa retomada, realizada pelo viés da sociologia, ganhou força com o estudo de Serge Moscovici, La psychanalyse: son image et son public, em 1961. Ao aprofundar uma análise no campo da sociologia do conhecimento sobre a psicanálise, esse autor substitui o conceito de representação coletiva por representação social. Farr21 aponta que Moscovici julga mais adequado, num contexto moderno, estudar representações sociais do que estudar representações coletivas. O segundo conceito era um objeto de estudo mais apropriado num contexto de sociedades menos complexas, que eram do interesse de Durkheim. As sociedades modernas são caracterizadas por seu pluralismo e pela rapidez com que as mudanças econômicas, políticas e culturais ocorrem. Há, nos dias de hoje, poucas representações que são verdadeiramente coletivas.

A temática das representações sociais tem se revelado um campo prodigioso de pesquisas inovadoras e instigantes. Dentro da sociologia, esse tipo de estudo sempre foi cercado por uma aura de suspeição que se firmou no arcabouço metodológico positivista, através do preceito que prescreve o rompimento radical com as pré-noções e com uma sociologia espontânea, pré-científica.

Como afirmam diversos autores, uma forte inflexão se fez sentir a partir dos anos 70 e assistimos à volta do sujeito ou do agente social. Herzlich22 afirma que curiosamente, em fins dos anos 70, uma mudança de perspectiva bastante surpreendente operou-se na sociologia. Assistimos a uma crise profunda dos esquemas explicativos globais, fundados sobre o primado das determinações socioeconômicas. O "sujeito" – sua experiência, o sentido que ele dá à sua ação – tornou-se um objeto de estudo de máxima legitimidade. Ao mesmo tempo, o sociólogo começou a interrogar-se sobre sua posição em relação ao objeto de sua pesquisa.

Essa inflexão tornou, de um momento para outro, os estudos de representação em um veio precioso de análises e a busca dos sujeitos sociais tomou a forma de uma corrida do ouro. Com o enfraquecimento das grandes teorias, passou-se à busca de teorias parciais, que dêem conta de realidades fragmentárias, em suma, teorias de médio alcance. Por isso afirma Sobrinho23 que a teoria das representações sociais vem ocupando amplos espaços no campo das ciências humanas contemporâneas, na medida em que permite preencher certas lacunas abertas pela chamada crise dos paradigmas e, se não consegue responder, pelo menos contribui para a formulação de novas hipóteses para velhos problemas.

Não foi diferente quanto ao campo da saúde. Como conseqüência das aplicações da categoria entendida como representações sociais dentro do campo, podemos estendê-la à dimensão do adoecimento, da saúde, da morte e das visões de mundo que informam ao indivíduo tanto suas ações práticas quanto as suas concepções a respeito do binômio doença e saúde. Constatou-se recentemente um recrudescimento e retomada dos estudos teóricos nessa linha, dentro da sociologia, evidenciados pela constatação do volume de publicações de trabalhos com análises dentro dessa abordagem, além de uma valorização da releitura dos clássicos das ciências sociais que abordaram o tema das representações.

As representações sociais são um conceito ou uma categoria de análise que se alinha em um plano mediato, operando em termos práticos como um mecanismo que permite a passagem do coletivo, da estrutura ao individual, ao subjetivo. Mas, se como vimos, o habitus realiza uma lógica de mediação, esse papel é muito próximo do papel exercido pelas representações. Vale resgatar a consonância entre o conceito de representações e de habitus. A própria responsável por uma retomada e aprofundamento dos estudos em torno das representações na França, Claudine Herzlich22, afirma claramente que aliás, se poderia afirmar que, exceto talvez pelo peso conferido ao passado, a noção de habitus não se afasta totalmente da de representação social.

De fato, o conceito de habitus apresenta distinções em relação ao de representações e essas distinções apontam para categorias que exercem a mesma função sem serem idênticas.

A primeira delas, apontada pela autora, liga-se à temporalidade. O habitus é o resultado histórico de uma integração do social, de uma interiorização realizada em algum ponto da primeira educação e que correspondia às homologias estruturais entre o espaço social e o grupo social no qual estava inserido o indivíduo. Portanto, esse habitus primário corresponde a um momento fotográfico da trajetória individual, cujas marcas profundas jamais serão apagadas, senão parcialmente, sob a influência de outras socializações posteriores. Dessa maneira, a atuação via habitus ocorre no presente, sob as luzes de um passado incorporado e que corresponde a um determinado momento histórico, tanto individual como coletivo.

Uma segunda distinção é aquela referida ao caráter ativo do habitus. O habitus é mais que um repositório coletivo de construções sociais, é coletivo e sui generis. Ele atua como uma gramática gerativa, criando um repertório que varia de acordo com os espaços sociais nos quais o indivíduo está inserido. Em suma, possui um caráter classificatório.

Podemos apontar uma terceira e fundamental distinção: o habitus só pode se tornar inteligível através de suas manifestações ativas, através da aplicação de sua gramática gerativa a objetos e coisas. As representações são o resultado de um processo coerente que dá sentido às ações e aos discursos dos agentes sociais, e são, em geral, apreendidas como uma marca e uma manifestação do coletivo nos indivíduos. De muitas maneiras, essa problemática situa-se no ponto nodal da relação entre o individual e o coletivo, da mesma forma que os trabalhos de Bourdieu buscaram clarificar justamente esse ponto. Nesse sentido, concordamos com Sobrinho21 quando afirma que a teoria das representações sociais contribui, assim, no nosso entender, para enriquecer o estudo das identidades coletivas, quando articulada com os conceitos de campo e de habitus desenvolvidos pela praxiologia de Bourdieu. As representações são, assim, manifestações de um habitus e dessa forma podem ser proficuamente apreendidas e estudadas, sobretudo em suas características de conceito mediador entre o que pensa o indivíduo e o papel que ele representa na sociedade.

Em busca de uma teoria da distinção

Por fim, uma última temática salta a nossa frente ao lidarmos com a praxiologia de Bourdieu: aquela referente às relações diferenciais dos indivíduos imersos em um espaço social comum e cujas estruturas foram incorporadas desigualmente e desigualmente traduzidas em escalas e sistemas de apreciação e de julgamento da realidade. Essa retradução, referenciada e baseada em posições homólogas dentro do espaço social, acaba sendo investida em objetos reais, em atividades, em práticas, em julgamentos e gostos. Esse investimento obedece a uma lógica da distinção e se traduz em um resultado classificatório, em um estilo de vida.

O conceito de estilo de vida tem uma tradição vinda desde o início das teorias sociológicas. Passa por Weber e Simmel no começo do século, Bourdieu e Giddens já no final do século 20, se citarmos somente os mais conhecidos. Para Weber24, as distinções entre classes sociais realizam-se através da posição de cada indivíduo na estrutura produtiva e assim econômica. Mas somente essa posição não é suficiente para explicar os grupos sociais dentro de uma sociedade, pois em contraste com a "situação de classe" determinada apenas por motivos econômicos, desejamos designar como "situação de status" todo componente típico do destino dos homens, determinado por uma estimativa específica, positiva ou negativa, da honraria.

Por fim, somente o mundo econômico não explica satisfatoriamente as relações sociais dos indivíduos e muito menos a forma como se relacionam entre si. Para tanto, devemos considerar os grupos sociais em suas interações simbólicas, referenciadas por uma honra comum. Weber24 afirma que simplificando, poderíamos dizer, assim, que as "classes" se estratificam de acordo com suas relações com a produção e aquisição de bens; ao passo que os "estamentos" se estratificam de acordo com os princípios de seu consumo de bens, representado por "estilos de vida" especiais. A sociedade é vista como uma rede de relações, onde o que impera é a lógica distintiva, instrumento classificador de diferenças, estruturado no passado e cuja ação acontece no presente, através das escolhas pessoais. Ainda de acordo com Weber24, essas escolhas estabelecem uma regularidade e demonstram um esquema gerador comum, pois no conteúdo, a honra estamental é expressa normalmente pelo fato de que acima de tudo um estilo de vida específico pode ser esperado de todos os que desejam pertencer ao círculo.

De qualquer modo, nosso interesse focaliza os estudos de Bourdieu, cuja retomada das obras de Weber enfatiza exatamente o peso da sociedade – e suas estruturas – na determinação das chances que o indivíduo tem de realizar suas escolhas, feitas dentro de suas possibilidades objetivas.

Os estilos de vida como expressão do habitus

Bourdieu propõe examinar a sociedade e sua maneira de distribuir estruturalmente os agentes sociais através do estudo da lógica da distinção, aplicada aos espaços sociais, que são compostos de forma relacional. Em La distinction, esse universo relacional é exemplificado pela análise dos gostos particulares de cada grupo social, e por meio da projeção desses julgamentos de valor sobre os bens de consumo. Aí estamos no cerne da sociedade moderna, com suas necessidades distributivas do status social.

Bourdieu25 (1979) afirmava que o habitus é na realidade ao mesmo tempo princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e sistema de classificação (principium divisionis) dessas práticas. É na relação entre as duas capacidades que definem o habitus, capacidade de produzir práticas e obras classificáveis, capacidade de diferenciar e apreciar essas práticas e estes produtos (gosto), que se constitui o mundo social representado, ou seja o espaço de estilos de vida.

As expressões desse habitus são sinais visíveis, manifestações sistemáticas, constantes, das homologias entre campos diversos. Essas manifestações, sempre relacionais e referidas mutuamente, acabam por sedimentar um esquema, um sistema de símbolos e signos de distinção. Esse sistema relacional, cuja existência distingue socialmente os agentes sociais, assume formas explícitas em torno de gostos, valores e julgamentos, inclusive estéticos.

Apesar de Bourdieu não ter trabalhado com a distribuição dos bens da saúde, podemos apelar para o que o autor chama de princípio de homologia funcional e estrutural. Dessa forma, as oposições estabelecidas no campo de produção e consumo de bens de saúde partilhariam do mesmo tipo de homologia dos outros campos sociais, ou seja, organizam-se e estruturam-se de acordo com as oposições historicamente dadas na sociedade. Se há homologia entre as divisões entre dominantes e dominados, dentro dos campos sociais, certamente o campo da saúde é um espaço social por excelência para extrairmos objetivamente as homologias entre os grupos sociais. A lógica do consumo dos bens médicos também se organizaria em torno da lógica social de classificação dos grupos sociais. A ligação entre uma teoria da distinção social e a saúde tornou-se, nas últimas décadas, extremamente bem-vinda, pois permite explicar e explicitar os valores de grupos sociais dentro de sociedades cada vez mais fragmentárias e nas quais o consumo detém um poder classificatório relevante, pois determina os valores diferenciais entre os grupos sociais.

Essas abordagens sugerem uma forte aproximação com as teorias sobre estilo de vida, através dos health lifestyles – estilos saudáveis de vida. Cockerham et al.26 definem estilos saudáveis de vida como padrões coletivos de comportamento relacionados com a saúde, baseado em escolhas sobre opções disponíveis às pessoas de acordo com suas chances de vida e propõem um aprofundamento das teorias sobre estilos de vida, aplicando esses conceitos ao campo da saúde. No caso da teoria da práxis, as contribuições de Bourdieu são vistas por eles como mais relevantes no que concerne à identificação e caracterização do conceito de habitus como fomentador dos estilos de vida e enfatizando o papel das estruturas sociais na gênese do habitus (e assim dos estilos) e desvelando a determinação das escolhas individuais pelas possibilidades objetivas.

Ainda segundo esses autores, a clássica separação entre chances de vida e escolhas de vida, presente na obra de Weber, é reduzida, senão eliminada, através da aplicação do conceito de habitus, que incorpora ambas as instâncias. Esse metabolismo entre escolhas de vida e chances de vida é o mesmo que a relação entre escolhas subjetivas e possibilidades objetivas, longamente tematizada na obra de Bourdieu. Essa relação obedece à lógica da distinção e seus efeitos podem ser mensurados e estabelecidos pelas manifestações de práticas e gostos traduzidos em um estilo de vida. Em suma, entre os efeitos resultantes da interação entre um habitus e um campo.

À guisa de conclusão

Parece ser indiscutível a importância de estudos na área da saúde que nos levem além de um modelo centrado somente no biológico e, mais que nunca, o comportamento individual em face de saúde dentro do contexto das sociedades modernas é a tônica da resolução das doenças da modernidade, sobretudo com a mudança do perfil epidemiológico das sociedades modernas e o advento das doenças crônico-degenerativas. Nessa linha de pensamento, a teoria instigante de Bourdieu e, em muitos aspectos, ainda por se desenvolver empiricamente, permanece relativamente desconhecida. Nosso esforço foi o de contribuir nesse movimento de expor a lógica interna das obras de Pierre Bourdieu, através de três grandes linhas de análise teóricas, a sociologia do corpo, as representações sociais e os estilos de vida, pois todas guardam grandes afinidades eletivas com a área da saúde.

Artigo apresentado em 28/02/2005

Aprovado em 24/10/2005

Versão final apresentada em 25/11/2005

  • 1. Bourdieu P & Passeron, J-C. Les héritiers. Paris: Minuit; 1964.
  • 2. Bourdieu P. Homo academicus, Paris: Minuit; 1984.
  • 3. Boltanski L. As classes sociais e o corpo. (3Ş ed.). Rio de Janeiro: Graal; 1989.
  • 4. Jaisson M. Les lieux de l'art: études sur la structure sociale du milieux médical dans une ville universitaire de province. Paris: EHESS; 1995.
  • 5. Loyola MA. Bourdieu e a sociologia. In: Loyola MA, organizador. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio de Janeiro: EdUERJ; 2002. p. 63-86.
  • 6. Miceli S. Depoimentos. In: Loyola MA, organizador. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio de Janeiro: EdUERJ; 2002. p. 59-62.
  • 7. Loyola MA. Cure des corps et cure des âmes. Les rapports entre les médecines et les religions dans la banlieue de Rio. Actes de la recherche en sciences sociales, 43; 1982.
  • 8. Loyola MA. Médicos e curandeiros: conflito social e saúde. São Paulo: Difel; 1984.
  • 9. Merton RK. Sociologia, teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou; 1970.
  • 10. Kafka F. Metamorfose, Na colônia penal, O artista da fome. (3Ş ed.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1969.
  • 11. Bourdieu P. Campo do poder, campo intelectual e habitus de classe. In Sérgio Miceli, organizador. A economia das trocas simbólicas. (5Ş ed.). São Paulo: Perspectiva; 1998. p. 183-202.
  • 12. Bourdieu P. Sociologie de l'Algérie. Paris: PUF; 1961.
  • 13. Bourdieu P, Sayad A. Le déracinement: la crise de l'agriculture traditionnelle en Algérie. Paris: Minuit; 1964.
  • 14. Bourdieu P. Le bal des célibataires. Paris: Seuil; [1962] 2002.
  • 15. Bourdieu P. Esquisse d'une Théorie de la Pratique. Genève: Droz; 1972.
  • 16. Lévi-Strauss C. Introduction a l'oeuvre de Marcel Mauss. In Mauss M. Sociologie et anthropologie. (4Ş ed.). Paris: PUF; 1968. p.IX-LII.
  • 17. Mauss M. Les techniques du corps. Journal de Psychologie 1936; 32 :271-293.
  • 18. Boltanski L. Prime éducation et morale de classe. Paris: Mouton-EHESS; 1969.
  • 19. Montagner MA. A teoria da prática e a sociologia da saúde: revisitando as Actes de la recherche en sciences sociales [dissertação]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp; 2003.
  • 20. Durkheim E. Durkheim. São Paulo: Ática; 1984.
  • 21. Farr RM. Representações sociais: a teoria e sua história. In: Guareschi P & Jovchelovitch S, organizadores. Textos em representações sociais. Petrópolis: Vozes; 1994. p. 31-59.
  • 22. Herzlich C. A problemática da representação social e sua utilidade no campo da doença. Physis Revista de Saúde Coletiva 1991; 1(2):23-36.
  • 23. Sobrinho DM. Habitus e representações sociais: questões para o estudo de identidades coletivas. In: Moreira ASP & Oliveira DC, organizadores. Estudos interdisciplinares de representação social. Goiânia: Editora AB; 1998. p. 117-30.
  • 24. Weber M. Ensaios de sociologia. (5Ş ed.). Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan; 1982.
  • 25. Bourdieu P. La distinction: critique sociale du jugement. Paris: Minuit; 1979.
  • 26. Cockerham WC, Rütten A, Abel T. Conceptualizing contemporary health lifestyles: moving beyond Weber. Sociol Q 1997; 38(2):321-42.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2006

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2005
  • Aceito
    24 Out 2005
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br