Acessibilidade / Reportar erro

Interações entre o aluno com surdez, o professor e o intérprete em aulas de física: uma perspectiva Vygotskiana

Interactions between deaf students, teachers and interpreter in physics classes: a Vygotskian perspective

Resumos

O estudo apresenta uma análise das interações entre o aluno com surdez, o professor e o intérprete em sala de aula, além do papel desses sujeitos no processo de inclusão do aluno surdo. Trata-se de uma pesquisa qualitativa realizada em 10 escolas públicas de Ensino Médio de Campo Grande-MS que receberam 24 alunos com surdez. Nessa análise utilizamos a abordagem histórico cultural de Vygotsky. Os resultados evidenciaram que apenas o intérprete interage efetivamente com esses alunos e pouco colabora para que eles interajam com pessoas que não dominam a Língua Brasileira de Sinais. Em sala de aula, o professor transfere ao intérprete a responsabilidade pelo ensino e a aprendizagem desses alunos.

Alunos Surdos; Interação; Ensino de Física; Inclusão Educacional


This study presents an analysis of classroom interactions between the deaf student, teacher and interpreter, and the role of these actors in the integration of deaf students. This is a qualitative study conducted in public high schools Campo Grande-MS, where these students were enrolled. In this analysis we used a Vygotskian sociocultural approach. The results showed that only the interpreter interacted effectively with these students and also that the interpreter did contribute to promoting their interactions with others who were not fluent in Brazilian sign language (Libras) The teacher transferred the responsibility of the process of teaching and learning to the interpreter.

Deaf Students; Interaction; Physics Teaching; Educational Inclusion


RELATO DE PESQUISA

Interações entre o aluno com surdez, o professor e o intérprete em aulas de física: uma perspectiva Vygotskiana

Interactions between deaf students, teachers and interpreter in physics classes: a Vygotskian perspective

Jaqueline Santos Vargas I ; Shirley Takeco GobaraII

IUniversidade Federal de Mato Grosso do Sul, Instituto de Física, Campo Grande, MS, Brasil jkvargas-@hotmail.com IIUniversidade Federal de Mato Grosso do Sul, Instituto de Física, Campo Grande, MS, Brasil stgobara@gmail.com

RESUMO

O estudo apresenta uma análise das interações entre o aluno com surdez, o professor e o intérprete em sala de aula, além do papel desses sujeitos no processo de inclusão do aluno surdo. Trata-se de uma pesquisa qualitativa realizada em 10 escolas públicas de Ensino Médio de Campo Grande-MS que receberam 24 alunos com surdez. Nessa análise utilizamos a abordagem histórico cultural de Vygotsky. Os resultados evidenciaram que apenas o intérprete interage efetivamente com esses alunos e pouco colabora para que eles interajam com pessoas que não dominam a Língua Brasileira de Sinais. Em sala de aula, o professor transfere ao intérprete a responsabilidade pelo ensino e a aprendizagem desses alunos.

Palavras-chave:Alunos Surdos. Interação. Ensino de Física. Inclusão Educacional.

ABSTRACT

This study presents an analysis of classroom interactions between the deaf student, teacher and interpreter, and the role of these actors in the integration of deaf students. This is a qualitative study conducted in public high schools Campo Grande-MS, where these students were enrolled. In this analysis we used a Vygotskian sociocultural approach. The results showed that only the interpreter interacted effectively with these students and also that the interpreter did contribute to promoting their interactions with others who were not fluent in Brazilian sign language (Libras) The teacher transferred the responsibility of the process of teaching and learning to the interpreter.

Keywords: Deaf Students. Interaction. Physics Teaching. Educational Inclusion.

1. Introdução

Nos últimos anos as pesquisas voltadas à Educação Especial têm destacado a inclusão dos alunos com deficiência em escolas de ensino regular, isso porque a Constituição Federal de 1988 estabeleceu que a educação para esses alunos "[...] é dever do Estado e será efetivada mediante a garantia de atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede oficial de ensino" (BRASIL, 1988, p. 35).

A Educação Inclusiva é um sistema educacional no qual os alunos com deficiência e necessidades educacionais especiais frequentam as mesmas aulas que os alunos sem deficiência, em escolas regulares, tanto públicas quanto privadas. Além disso, é garantido por lei que os alunos com deficiência recebam um profissional que os auxilie e materiais pedagógicos, para que possam acompanhar as aulas como os demais colegas de turma.

A Educação Inclusiva, portanto, vem sendo discutida há vários anos, por diversos especialistas (pedagogos, educadores, profissionais da Educação Especial, etc.), além das próprias pessoas com deficiências, por meio de entidades e organizações. Alguns são contra a inserção dos alunos com deficiência em escolas regulares, pois estes alunos não conseguem acompanhar o ritmo dos alunos sem deficiência. Outros são a favor, porque acreditam que essa é a maneira destes alunos terem acesso à educação formal e inclusiva, pois ela é direito de todos, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948, p. 3).

Preocupados com o ensino e a aprendizagem de Física em escolas regulares para alunos com deficiências, priorizamos nossa investigação para as situações que envolvem alunos com surdez. Nosso foco foi analisar o contexto das escolas de Campo Grande/MS que recebem esses alunos e o apoio que eles precisam para fazerem parte de uma escola, de fato, inclusiva, que ofereça alternativas pedagógicas para atender as necessidades educacionais desses estudantes, respeitando as suas características.

Dessa maneira, observaram-se as interações dos alunos com surdez nas escolas regulares da Rede Estadual de Ensino, da cidade de Campo Grande, mais especificamente nas aulas de Física, independente da série na qual os alunos se encontravam. Nessas observações, os seguintes aspectos foram priorizados: interação professor-aluno, interação professor-intérprete, incluindo o comportamento dos alunos, comportamento em sala do intérprete, o comportamento do professor e a sua metodologia. Como o sujeito principal de nossa investigação é o aluno surdo, passaremos a identificá-lo do ponto de vista legal e social.

1.1 O aluno com surdez

A surdez é a incapacidade de audição. De acordo com o decreto nº 5.626, no artigo 2°:

[...] considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais. Considera-se deficiência auditiva a perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz (BRASIL, 2005, p. 1).

A Língua de Sinais tem origem francesa e vem se difundindo desde 1857. Define-se a Língua Brasileira de Sinais de acordo com a lei n° 10.436, de 24 de abril de 2002, como a "forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constitui um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil" (BRASIL, 2002, p.1).

Ainda, de acordo com o decreto supracitado, "considera-se pessoa surda aquela que, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Libras" (BRASIL, 2005, p.1).

De acordo com Quadros (2004, p.84), o surdo se comunica usando uma linguagem visual-gestual, e para que este consiga comunicar-se com os ouvintes, que usam a linguagem oral auditiva, é necessário que o intérprete atue como uma ponte entre o surdo e o ouvinte. De acordo com o decreto 5.626/05 (2005, p.6), é direito do aluno com surdez possuir um intérprete que o acompanhe no ambiente escolar.

1.2 O intérprete educacional de Língua de Sinais

O intérprete educacional é aquele que atua como intérprete de Línguas de Sinais em sala de aula e no ambiente escolar, ou seja, ele atua como intérprete na educação. Assim, o intérprete deve intermediar as relações entre o aluno com surdez e os colegas e professores ouvintes.

Porém, o que tem sido constatado é que esse profissional está adquirindo responsabilidades que não são atribuídas a ele. De acordo com uma pesquisa realizada em 2011 (VARGAS, 2011), com o intuito de verificar de que maneira estava acontecendo a inclusão, observou-se que os intérpretes estão exercendo o papel do professor, isso porque o professor não estava preparado para comunicar-se com o aluno com surdez. Portanto, os comentários que os professores teceram em sala de aula foi que o intérprete deveria adequar-se ao cotidiano do aluno. Os próprios intérpretes relataram que precisavam modificar as explicações do professor para que o aluno com surdez pudesse entender o que estava sendo explicado. Por meio de observações, verificamos de que maneira este profissional estava atuando em sala de aula, e como ele mediava as relações e interações dos colegas e dos professores com o aluno surdo. A seguir, discutiremos as relações sociais entre a pessoa surda e não surda no interior da sociedade.

1.3 Abordagem histórico-cultural e as questões da linguagem para o aluno surdo

O surdo, como membro da sociedade, também participa e é influenciado pelas relações sociais. Nesta seção, iremos olhar o surdo como um indivíduo, assim como um ouvinte, que constrói os novos conhecimentos influenciados pelas relações sociais. Nesse sentido, o referencial teórico adotado é baseado nas ideias de Vygotsky, autor que também trabalhou com crianças com problemas congênitos (cegueira, surdez, retardamento mental), o que o levou a estudar esses problemas para ajudar as crianças a se desenvolverem, realizando importante trabalho com crianças surdas.

Em seus trabalhos, Vygotsky (1984) tentou explicar o desenvolvimento cognitivo dos indivíduos. Para isso, focou os seus estudos no contexto social e cultural, enfatizando a natureza da gênese do conhecimento e aos processos sociais humanos. Dessa maneira, ele estudou o ser humano socialmente e geneticamente, e também estabeleceu relações com as condições biológicas. A pesquisa fundamentar-se-á nos trabalhos de Vygotsky sobre a relação do pensamento e a linguagem, articulados às interações existentes entre o aluno com surdez e os outros alunos presentes na sala de aula, mediados por instrumentos ou pessoas, além da articulação da teoria com os trabalhos voltados às pessoas com surdez.

Na teoria da mediação, "os processos mentais superiores têm origem nos processos sociais, ou seja, só a partir da socialização é que o sujeito se torna capaz de se desenvolver cognitivamente" (MOREIRA, 1999, p.110). Além disso, a relação do indivíduo com o mundo é sempre mediada por alguém ou por algum instrumento ou signos. Ou seja, as relações sociais são convertidas em funções psicológicas através dos instrumentos e signos, e ambos são usados como mediadores para as interações entre os seres humanos, mas também para interação destes com o mundo.

Os instrumentos são ferramentas que auxiliam o ser humano (e até mesmo os animais) a fazerem alguma coisa. É qualquer objeto que tenha uma utilidade prática. Já os signos são usados para simbolizar algo que já foi criado, ou seja, o signo significa outra coisa que já existe. "Eles trazem algum significado implícito" (SOARES, 2002, p.19). Assim, os signos podem ser diferentes em lugares que possuem culturas diferentes, já que ele é algo que tem significado dentro de certo contexto. Eles podem ter relação com a causa e o efeito, como, por exemplo, fumaça indica fogo. Também podem ser imagens ou desenhos para significar uma entidade concreta, ou pode ser algo abstrato, representativo daquilo que realmente significa, como, por exemplo, números, gestos, som, etc.

Para Vygotsky, a linguagem é um sistema de signos, mediadora das interações, que ocupa um papel central para o desenvolvimento do sujeito. Segundo Silva (1999, p. 22), Vygotsky afirma que é por meio da linguagem que o indivíduo ingressa em uma sociedade, internaliza conhecimento e modos de ação, organiza e estrutura seu pensamento. Os signos também mudam de acordo com os costumes, além disso, para esse autor os signos são compartilhados em uma comunidade, não tendo significado se for apenas para um indivíduo. Nesse sentido, os signos foram criados por necessidade de uma organização social.

No caso da pessoa com surdez, sujeito de interesse do nosso trabalho, ela só vai perceber que tem essa deficiência quando houver interações com outras pessoas. Assim, Vygotsky afirma que: "A criança percebe a sua deficiência em questão somente indiretamente, secundariamente como um resultado de sua experiência social." (VYGOTSKY, 1994, p.2). Dessa maneira, evidenciamos a importância das relações sociais entre pessoas, segundo esse autor. Porém, a linguagem usada pelos surdos é diferente. Por exemplo, os signos para a pessoa com surdez podem não ser os mesmos para uma pessoa ouvinte. O intérprete tem um papel de destaque nessas relações, pois ele se torna mediador das interações entre pessoas surdas e ouvintes. Segundo Quadros (2004, p. 60), o intérprete, especialista para atuar na área da educação, deverá ter um perfil para intermediar as relações entre os professores e os alunos, bem como entre os colegas surdos e os colegas ouvintes. O papel do intérprete é o de interpretar e não o de explicar os conteúdos e conceitos, como está acontecendo nas escolas em que somente o intérprete domina a língua de sinais.

2. Método

A presente pesquisa é de caráter qualitativo e analítico, pois nos propusemos a investigar as interações que acontecem com o aluno com surdez dentro a sala de aula, na disciplina Física, nas escolas regulares de Campo Grande-MS, além de outros aspectos que também envolvem essa situação.

2.1 Sujeitos da Pesquisa

As observações foram realizadas em 10 escolas estaduais na cidade de Campo Grande. Em cada escola foram observados e entrevistados: alunos surdos, professores de Física e intérpretes.

Para a caracterização do grupo, consideramos os alunos do 1°, 2° e 3° ano do Ensino Médio, pois na rede estadual de ensino, a disciplina Física só é lecionada nesses três anos. No caso dos professores, foram selecionados aqueles que ministravam aulas para a turma onde o aluno deficiente auditivo estava inserido. Portanto, participaram da pesquisa 10 professores, 13 intérpretes e 24 alunos com surdez.

2.2 As Observações e as filmagens

O registro foi realizado por meio de um diário de bordo para as anotações, e um mapa de sala, que serviram como um guia para perceber as interações entre os indivíduos observados. Além disso, algumas aulas foram filmadas, para complementar os dados.

Para a observação, foi elaborada uma ficha para observar: as interações entre os indivíduos presentes na sala de aula, com o foco no aluno surdo; o preparo e planejamento das aulas do professor; a maneira como o professor tentava interagir com o aluno surdo, e também com os outros alunos; e o interesse do intérprete pela disciplina.

Em média, foram observadas de uma a duas aulas em cada uma das escolas. Algumas escolas permitiram a filmagem, mas a grande maioria não. Nestas, foi usado apenas um diário de bordo para as anotações.

Das 10 escolas observadas, em apenas três (E3, E7 e E9) foram usadas filmadoras para registrar as aulas, pois o comportamento dos alunos ficou alterado na presença da câmera. Assim, achamos viável que apenas observássemos as aulas. Nas outras sete escolas foram usados diários de bordo, e elaboramos um modelo (roteiro) para todas as aulas observadas.

2.3 Análise das observações

Para as análises dos dados, foi utilizado o método de Análise de Conteúdo Categorial, de Laurence Bardin (2009, p. 55). O critério de categorização utilizado foi focado no objetivo da pesquisa. De acordo com essa metodologia, realizamos a pré-análise, a exploração do material, o tratamento dos dados e resultados e estabelecemos as categorias para a análise dos dados. O referencial teórico utilizado para as análises foi da abordagem histórico-cultural, especificamente apoiado nas teorias de Vygotsky, que também se preocupou com as crianças com surdez. O foco de interesse do nosso estudo foi direcionado para as interações em sala de aula.

Na fase da pré-análise, as anotações das observações e as filmagens passaram por uma leitura e observação flutuante, com o intuito de conhecer o material coletado. Com leituras mais analíticas, foram selecionados trechos que se repetiam e que estavam de acordo com o objetivo maior do trabalho: as interações.

Após a leitura flutuante, as filmagens foram transcritas, paralelamente a esta etapa, os trechos relevantes das anotações foram selecionados, finalizando a etapa das escolhas dos documentos e preparação do material.

A maior parte da exploração do material foi realizada na pré-análise, os trechos selecionados, relevantes para atingir o objetivo da pesquisa, foram estudados e agrupados por discursos semelhantes, para facilitar a formação das categorias a posteriori.

As categorias foram criadas a partir dos objetivos da pesquisa, cujo foco foi observar as ocorrências das interações e suas formas e intensidades entre os sujeitos da pesquisa.

Estas categorias estabelecidas foram: Planejamento das aulas; incentivo à participação do aluno; interação entre intérprete-aluno; interação professor-aluno e interação aluno colegas; e, observação do ambiente escolar.

3. Resultados e discussão

Nas observações, o nosso interesse foi o de verificar as relações existentes na sala de aula (com o foco nas interações) o qual o aluno com surdez fazia parte. Os resultados das observações das 10 turmas foram bem semelhantes. Assim, as análises foram estendidas ao grupo de alunos que participaram dessa pesquisa, porém, quando relevantes, algumas situações individuais foram exemplificadas.

De maneira geral, os professores se mostraram preocupados com a aprendizagem do aluno, mas não se esforçaram para mudar essa situação. De fato, foram raras as vezes que percebemos que o professor estava ministrando aula para todos os alunos e ao mesmo tempo para o aluno com surdez. O que nos pareceu foi que, às vezes, o professor lecionava para todos, ou apenas para o aluno com surdez. Desse modo, ele acabava optando pelo resto da turma.

Estabelecidas as categorias, segue, na sequência, a descrição e análise de cada uma dessas categorias.

3.1 Planejamento das aulas

Com relação ao planejamento das aulas, observou-se que os professores não possuíam o hábito de planejar as aulas, e isso dificultava, ainda mais, quando comparamos com o planejamento para o aluno com surdez. Eles ministravam uma aula tradicional, usando mais intensamente o quadro e giz. De todas as aulas assistidas, somente dois professores usaram desenhos no quadro para explicar o conceito que estavam ensinando, o que facilitou a visualização para o aluno com surdez. Embora todos os professores demonstrassem interesse em ministrar uma aula que o aluno surdo pudesse entender e participar, na prática, nenhum dos professores proporcionou uma intervenção para melhorar o processo de interação entre ele e o aluno, ou entre ele e o intérprete e, consequentemente, contribuir para aprendizagem do aluno com surdez.

3.2 Incentivo à participação do aluno

Durante as observações, percebemos que os professores tentavam comunicar-se com o aluno, mas o fato deles não saberem Libras fez com que essa comunicação fosse limitada. Verificamos que, em quase todas as aulas observadas, os professores apenas olhavam para o aluno surdo, esperando uma resposta deste com algum gesto. Em uma das aulas, um professor utilizou uma técnica proposta por ele mesmo: ele explicava o conteúdo para a sala, ia até a mesa do aluno e escrevia no caderno dele, perguntando se estava tudo certo. Se o aluno entendia, então ele retomava a aula, e seguia fazendo pausas durante a aula para dialogar com todos os alunos, inclusive com o aluno com surdez. Dessa maneira, quando olhamos o caderno do aluno com surdez, foi possível ver como o professor se comunicava com esse aluno.

3.3 Interação entre intérprete aluno

Com todos os alunos observados, foi possível verificar que havia uma relação muito forte entre o intérprete e o aluno com surdez. O aluno confiava em tudo que o intérprete repassava para ele. Essa relação fazia com que ambos ficassem interagindo entre si e não possibilitava que o aluno surdo aumentasse o grau de interação com outras pessoas.

De acordo com Quadros (2004, p. 28), para realizar a interpretação da língua falada para a língua sinalizada e vice-versa, é preciso seguir os seguintes itens:

a) confiabilidade (sigilo profissional);

b) imparcialidade (o intérprete deve ser neutro e não interferir com opiniões próprias);

c) discrição (o intérprete deve estabelecer limites no seu envolvimento durante a atuação);

d) distância profissional (o profissional intérprete e sua vida pessoal são separados);

e) fidelidade (a interpretação deve ser fiel, o intérprete não pode alterar a informação por querer ajudar ou ter opiniões a respeito de algum assunto, o objetivo da interpretação é passar o que realmente foi dito).

Além disso, é importante ressaltar que, de acordo com a teoria de Vygotsky, os alunos devem interagir para se desenvolver. Com o aluno surdo isso não é diferente, ele deve manter relações com outros alunos sem deficiência, pois só assim ele poderá desenvolver-se. Segundo Vygotsky (1994, p. 3), "os princípios e os mecanismos psicológicos da educação são os mesmos para uma criança com ou sem deficiência". Nesse sentido, o intérprete deveria incentivar a relação do aluno com surdez com os seus colegas, mas não é isso que acontece. Em todas as escolas onde realizamos as investigações, o aluno interagia somente com o intérprete, com os colegas eram apenas cumprimentos e saudações. O intérprete, embora tenha se mostrado muito prestativo, algumas vezes, pouco o incentiva a participar das relações sociais com os demais colegas na escola.

Um exemplo, que ilustra bem este fato, foi observado em uma das escolas onde um intérprete ficava com o aluno durante todo o tempo, inclusive na hora do intervalo, até para buscar o lanche na cantina. Esse tipo de comportamento, embora demonstrasse toda a preocupação e atenção do intérprete, não contribuía para o desenvolvimento do aluno surdo, porque não o incentiva - e até mesmo o impedia - a tentar uma comunicação com outras pessoas.

Outro ponto que é importante destacar na relação intérprete-aluno, é que o intérprete deve apenas interpretar o que o professor dizia, isto é, de acordo com a teoria de Vygotsky, o intérprete, a princípio, não deveria assumir o papel de mediador, que é a função do professor, ou seja, ele não deve interferir e nem modificar o que o professor estava explicando. Mas o que observamos, em todas as escolas, a mediação que ocorria ia além da interpretação da fala do professor com o aluno, mesmo quando o professor não estava explicando. Observamos que o intérprete também modificava algumas falas do professor, ao traduzir o conteúdo para o aluno com surdez. Esse é um aspecto que merece um aprofundamento e que será objeto de estudo futuro, que era investigar qual o papel do intérprete, dadas as dificuldades que ele tem em "traduzir" um novo conhecimento, que, muitas vezes, ele não domina. Além disso, nem sempre há sinais específicos na linguagem compartilhada (Libras) pelo aluno surdo e o intérprete, como é o caso de alguns conceitos de Física e Matemática.

3.4 Interação professor-aluno

Praticamente não existe uma relação direta do professor com o aluno, e este fato acontece em todas as escolas. O que parece é que existe uma turma regular, com alunos sem deficiência, e um aluno deslocado em um dos cantos da sala. Além disso, parece existir uma barreira entre o aluno e o professor.

O que se constatou era que o professor não sabia Libras, e isso foi confirmado nas escolas, e, portanto, ele acabava evitando um diálogo com o aluno. Quando o professor tentava essa comunicação, ela ocorria por meio de gestos ou da escrita. Dos 11 professores observados, apenas um deles tentou comunicar-se com o aluno por meio de expressões faciais e gestos; porém, o aluno não respondeu, demonstrando que não entendia o que o professor tentava fazer ou falar. Durante esse episódio, o intérprete apenas ficou observando e não interferiu para mediar essa relação.

3.5 Interação alunos-colegas

De acordo com Vygotsky (1998, p. 8), é por meio das interações que o sujeito se desenvolve. É importante destacar que essas interações devem ocorrer em situações em que os indivíduos estejam familiarizados. A escola é um lugar onde os alunos se relacionam, e é normalmente neste local que alguns alunos se formam como indivíduo, pois existem várias pessoas com culturas diferentes, mas com um mesmo objetivo: a aprendizagem de conhecimentos sistematizados, característicos da cultura escolar, e, consequentemente, o desenvolvimento sociocognitivo.

Nas observações realizadas, o que percebemos foi que os alunos ouvintes apenas cumprimentavam os alunos com surdez. Não havia nenhum tipo de interação na sala de aula. Na própria sala, para começar, os demais alunos sentavam afastados do aluno com surdez, mas a barreira principal era que eles possuíam línguas diferentes, sendo este o obstáculo principal para as interações entres os alunos.

O aluno surdo tem a mesma capacidade de desenvolvimento que um aluno ouvinte, mas como ele não consegue comunicar-se com os colegas, pois as línguas usadas por ambos são diferentes, as interações sociais que ocorrem naturalmente em um ambiente escolar, e a possibilidade de desenvolvimento pelas interações sociais, ficam limitadas, e ele não consegue desenvolver-se da mesma maneira que o aluno ouvinte, porque as suas interações não acontecem entre seus pares e entre ele e o professor. Isso tende a aumentar a diferença entre um e outro.

3.6 Ambiente escolar

Nas 10 escolas, foram realizadas observações com relação ao espaço físico, e o que verificamos foi uma infraestrutura não planejada aos alunos com surdez, nem mesmo aos que possuem outras deficiências físicas. Os banheiros não são adaptados, em apenas algumas delas existem rampas de acesso. Com relação ao aluno com surdez, não existe nenhuma mudança na escola que favoreça a adaptação deste aluno no ambiente escolar. Alguns intérpretes sugeriram a colocação de placas de sinalização para os alunos surdos para ajudá-los a localizar os ambientes. Outros disseram que deveria existir um sino visual dentro da sala de aula, para que o aluno saiba a hora de sair da sala, em vez do sino sonoro como o que existia. Porém, essas são apenas algumas das sugestões manifestadas pelos intérpretes, e, na realidade há muito que modificar na estrutura da escola, principalmente em relação ao ambiente físico.

4. Conclusões

Com as observações, foi possível perceber o quanto essas escolas, de maneira geral, não estão preparadas para receber os alunos com surdez, isso porque o ambiente não é adequado aos alunos e os profissionais das escolas não são capacitados para esse fim.

Ficou evidente no comportamento do professor, várias vezes, que ele não sabia como agir durante a aula para interagir com o aluno com surdez, pois o fato de não saber Libras dificultava os processos de comunicação. Outro fato que ocorreu, com todos os professores observados, é que eles achavam que não deviam preocupar-se com a aprendizagem do aluno surdo dentro da sala e aula, isso porque, para eles, o intérprete traduzia tudo o que era falado por ele, transferindo, assim, essa responsabilidade ao intérprete e considerando que o aluno recebia todo o conteúdo da mesma maneira que os demais alunos ouvintes.

No caso do intérprete, pode-se concluir que ele não estava preparado para atuar como educador, isso porque a maioria dos intérpretes observados não possuía nenhuma formação especializada em educação, apenas concluíram o ensino médio, o que dificultava o aprendizado do aluno surdo, principalmente em Física, pois há situações em que o intérprete precisava explicar e, até mesmo, transpor o que o professor estava ensinando para que o aluno surdo entendesse. Também, observamos que o intérprete não dominava os conceitos físicos e, ao tentar explicar esses conceitos, ele contribuía para reforçar as concepções espontâneas, muito comum nas Ciências, ou podia gerar concepções errôneas com relação aos conceitos ou conteúdo, já que o intérprete não possuía formação nas disciplinas que ele interpreta.

Outro ponto importante a destacar com relação ao intérprete é que ele deveria intermediar as relações entre o aluno com surdez e os seus colegas dentro da sala de aula, pois de acordo com a teoria de mediação de Vygostsky, o indivíduo se desenvolve cognitivamente através das relações sociais; porém, o que observamos é que existia apenas a relação entre o aluno com surdez e o intérprete, isso porque ambos se comunicavam por meio da Libras. Já o professor e os colegas de sala de aula não conseguiam interagir com o aluno surdo por não saberem a Língua de Sinais, isso evidenciou a falta de colaboração do intérprete e que o seu papel não estava sendo cumprido, como sugere a lei da inclusão, já que ele é o responsável por intermediar as relações existentes entre o aluno com surdez e o mundo. Considerando a abordagem histórico-cultural, o aluno com surdez e nas condições em que ele está sendo assistido nas escolas públicas, ele não está recebendo boas oportunidades para o seu desenvolvimento, pois é por meio das relações sociais que o indivíduo se desenvolve e consegue internalizar o conhecimento favorecendo a aprendizagem.

Com relação à disciplina de Física, constatou-se que o intérprete, por não saber Física, acabava não traduzindo o que realmente o professor ensinava. Outro aspecto importante a ser evidenciado é que o professor não planejava a aula pensando no aluno com surdez, pois, em sua concepção, ele achava que o intérprete iria traduzir todo conteúdo, depositando a responsabilidade no intérprete.

Em síntese, foi possível perceber que a forma como a inclusão de alunos surdos está sendo implementada nas escolas de Campo Grande/MS é ineficaz, e acaba excluindo esses alunos das interações sociais. Embora se encontrem fisicamente na escola, esses alunos permanecem praticamente isolados na sala de aula, pois enquanto houver uma distância entre o intérprete e o professor, e entre o professor e os alunos, as interações destes com o professor e colegas ficam prejudicadas, afetando, principalmente, o desempenho escolar desses alunos, além de limitar o convívio social, consequentemente o desenvolvimento sociocognitivo, elementos fundamentais para a ocorrência da inclusão desses alunos.

Recebido em: 30/05/2014

Reformulado em: 02/09/2014

Aprovado em: 09/09/2014

  • BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em:<http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_05. 10.1988/CON1988.pdf> Acesso em: 03 mar. 2012.
  • BARDIN, L. Análise de Conteúdo - 4 ed. rev. atual. - Lisboa: Edições 70, 2009.
  • BRASIL. Lei Nº 10.436, de 24 de abril de 2002 Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais ­ Libras e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 abr. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/l10436.htm> Acesso em: 24 abr. 2013.
  • BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Decreto Nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005 Regulamenta a Lei Nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Decreto/D5626.htm>. Acesso em: 03 mar. 2014.
  • MOREIRA, M. A. Teorias da Aprendizagem São Paulo: Editora Pedagógica Universitária, 1999.
  • ONU. Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos Paris, em 10 de Dezembro de 1948.  Disponível em:<http://unicrio.org.br/img/DeclU_D_HumanosVersoInternet.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2012.
  • QUADROS, R. M. O tradutor e intérprete de língua brasileira de sinais e língua portuguesa / Secretaria de Educação Especial Programa Nacional de Apoio à Educação de Surdos - Brasília: MEC ; SEESP, 2004. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/tradutorlibras.pdf>. Acesso em: 03 set. 2013.
  • SILVA, M.P.M. A construção de sentidos na escrita do sujeito surdo 1999. 105f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1999. Disponível em:<http://www.salesianolins.br/areaacademica/materiais/posgraduacao/Educacao_Especial_Inclusiva/Fundamentos_e_pr%E1ticas_de_%20ensino_para_pessoas_com_necessidades_educativas_especiais/diss%20marinho%20silva. pdf>. Acesso em: 25 set. 2013.
  • SOARES, J. R. A concepção histórico-cultural do papel da educação no desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Revista Expressão, Mossoró, n.32, p. 17-27, 2002. Disponível em: <http://www.uern.br/pdf/revistaexpressao/revistaexpressao_2002_2.pdf>. Acesso em: 06 nov. 2013.
  • VARGAS, J. S. A inclusão do deficiente auditivo em escolas públicas de Campo Grande: as visões do professor, coordenador, intérprete e do aluno Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)-Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2011.
  • VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 6. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
  • VYGOTSKY, L. S. Princípios de educação social para a criança surda. In: VYGOTSKY, L. S. Obras escolhidas Tomo 5. Fundamentos de Defectologia. Tradução por Prof. Dr. Adjuto de Eudes Fabri, 1994. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/16420056/Vigotski-Principios-de-educacao-social-para-a-crianca-surda-traduzido-por-AE-Fabri>. Acesso em: 06 out. 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2014
  • Data do Fascículo
    Set 2014

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2014
  • Aceito
    09 Set 2014
  • Revisado
    02 Set 2014
Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial - ABPEE Av. Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01 Vargem Limpa, CEP: 17033-360 - Bauru, SP, Tel.: 14 - 3402-1366 - Bauru - SP - Brazil
E-mail: revista.rbee@gmail.com