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O Que Mudou na Família Brasileira?: da Colônia à Atualidade

What Has Changed in Brazilian Families?: From Colony to the Present

Qu'y a-t-il de Changé Dans la Famille Bresilienne ?: de L'Époque Coloniale à Aujourd'hui

Resumos

O artigo tem por objetivo fazer uma análise comparativa da família brasileira do período colonial até a atualidade observando as mudanças e continuidades ao longo do tempo. Tomando como base os recenseamentos da população manuscritos e impressos nos últimos 150 anos, verifica o que realmente ocorreu na sociedade brasileira quanto ao processo de formação de famílias, desenvolvimento econômico e crescimento populacional.

Família; Mulheres; Demografia; História


The purpose of the article is to analyze comparatively the Brazilian Family from Colony to nowadays, observing changes and continuities over time. Using manuscripts and published censuses of population in the last 150 years, it intends to verify what really occurred in the Brazilian society referring to the process of family formation, economic development and population growth.

Family; Women; Demography; History


L'objectif de l'article est de présenter une analyse comparative de la famille brésilienne de la période coloniale à nos jours en observant les changements et les continuités au cours du temps. En prenant comme base les recensements de population, manuscrits et imprimés des derniers 150 ans, on vérifie ce qui est arrivé réellement dans la société brésilienne dans le processus de formation des familles, le développement économique et la croissance démographique.

Famille; Femmes; Démographie; Histoire


O QUE MUDOU NA FAMÍLIA BRASILEIRA? (DA COLÔNIA À ATUALIDADE)

Eni de Mesquita Samara1 1 Eni de Mesquita Samara é Professora Titular do Departamento de História da Faculdade e Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e Diretora do CEDHAL (Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina). Endereço para correspondência: Rua do Lago. 717 - CEP 05508-900 - São Paulo, SP. Endereço eletrônico: cedhal@edu.usp.br

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP

O artigo tem por objetivo fazer uma análise comparativa da família brasileira do período colonial até a atualidade observando as mudanças e continuidades ao longo do tempo. Tomando como base os recenseamentos da população manuscritos e impressos nos últimos 150 anos, verifica o que realmente ocorreu na sociedade brasileira quanto ao processo de formação de famílias, desenvolvimento econômico e crescimento populacional.

Descritores: Família, Mulheres, Demografia, História.

A família sempre foi pensada na História do Brasil como a instituição que moldou os padrões da colonização e ditou as normas de conduta e de relações sociais desde o período colonial. No entanto, até a algumas décadas atrás ainda pouco conhecíamos sobre o perfil dessa família, predominando na literatura uma imagem vinculada ao modelo patriarcal extraído da obra de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala (Freyre, 1987), escrita no início do século XX. E assim, para várias gerações de estudiosos, esse modelo funcionou como critério e medida de valor para entendermos a vida familiar brasileira ao longo do tempo.2 2 Para entender melhor essa discussão ver Almeida (1987).

No entanto, pesquisas recentes tem tornado evidente que as famílias extensas do tipo patriarcal não foram as predominantes, sendo mais comuns aquelas com estruturas mais simples e menor número de integrantes. Isso significa que a descrição de Freyre (1987) para as áreas de lavoura canavieira do Nordeste, foi impropriamente utilizada e deve ser reelaborada nos estudos de família, a partir de critérios que levem em conta temporalidade, etnias, grupos sociais, contextos econômicos regionais, razão de sexo e movimento da população.

Dada a relevância dessa constatação para entendermos o perfil da família brasileira na atualidade é que julgamos necessário responder a algumas questões de modo a contextualizar melhor as análises relativas à nossa sociedade contemporânea, que vem apontando mudanças importantes na estrutura das famílias e dos domicílios, ou seja: Temos, realmente uma nova família no Brasil, neste momento? Que transformações ocorreram ao longo do tempo e que podem explicar esse panorama? De que modo alterações econômicas, mudanças na razão de sexo e maior participação feminina no mercado de trabalho ajudam a explicar melhor esse quadro? A partir de que parâmetros históricos podemos repensar a família do novo milênio?

Sem dúvida, a natureza e complexidade dessas perguntas exige uma volta ao passado, de modo a visualizarmos o que realmente ocorreu na sociedade brasileira, quanto ao processo de formação de famílias, desenvolvimento econômico e crescimento populacional. E esse é o desafio que pretendemos enfrentar nesse artigo, tomando como base os recenseamentos da população, manuscritos e impressos, nos últimos 150 anos.

Razão de Sexo nas Estatísticas Longitudinais

Do Primeiro Censo Geral do Brasil, realizado durante o Império em 1872, até a última contagem estatística tomada no ano de 1996 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 1997), verificamos uma tendência constante de aumento da população feminina em relação ao total de habitantes (ver gráfico 1). Isso somado ao fato de que a expectativa de vida das brasileiras é superior à dos homens tem tido reflexos no mercado matrimonial, alterando, conseqüentemente, o quadro de organização das famílias e domicílios.


Como se pode observar, no período de 1872 a 1996, a porcentagem de mulheres em relação ao total variou de 48,40% para 50,70%, com um decréscimo do número de homens de 51,60% para 49,30% (ver gráficos 2 e 3). Antes de 1872, fica difícil estabelecer comparações, pois os registros populacionais são esparsos, impossibilitando uma contagem geral dos habitantes.3 3 Antes de 1872 a pesquisa só pode ser feita por localidades em recenseamentos manuscritos que não existem para o Brasil como um todo. No entanto, sabemos por descrições de viajantes e memorialistas, referentes aos séculos XVI, XVII e XVIII, que a situação era inversa, com o predomínio da população masculina. Existem, entretanto, indícios de que o aumento de mulheres brancas é um longo processo que se inicia ao final do período colonial, havendo inclusive dados já computados que apontam pela predominância do sexo feminino em áreas urbanas do sudeste, a partir dessa época.4 4 Esta pesquisa faz parte do Projeto Integrado CNPq Mulheres chefes de família no Brasil, séculos XIX e XX.



Há que se considerar também as diferenças estatísticas regionais em um país de porte continental como o Brasil e a migração populacional, especialmente a masculina para áreas economicamente mais atrativas, fato que ocorreu inúmeras vezes ao longo dos cinco séculos da nossa História. E isso, sem dúvida, nos remete à análise da família a partir de contextos regionais mais específicos e as diferenças existentes nos padrões encontrados nos engenhos do Nordeste no início da colonização, na economia mineradora do século XVIII e nas plantações de café durante o XIX. Somam-se a esse quadro as mudanças advindas da industrialização, do aumento da vida urbana e do fluxo imigratório que também incidem diretamente na estrutura das famílias, como veremos a seguir.

Mudanças econômicas e padrões de família

No início dos séculos XVI e XVII, a economia da Colônia esteve, basicamente, assentada nas plantações de cana localizadas no Nordeste. Nos engenhos do mundo rural, as famílias de elite viviam nas mansões assobradadas, cercadas de escravos e dependentes. Nas uniões legítimas, o papel dos sexos estava bem definido, por costumes e tradições apoiados nas leis. O poder de decisão formal pertencia ao marido, como protetor e provedor da mulher e dos filhos, cabendo à esposa o governo da casa e a assistência moral à família.

O pátrio poder era, portanto, a pedra angular da família e emanava do matrimônio. No Brasil, assim como na sociedade portuguesa até o século XIX, o gênero também exercia influência nas relações jurídicas e a autoridade do chefe da família aparece como legítima na literatura e nos documentos da época, o que não significa que esses papéis, necessariamente, devessem existir dentro da rigidez com que estavam estabelecidos. Sabemos, no entanto, que apesar das variações nos modelos familiares, o dominante era o de famílias extensas baseadas nas relações patriarcais.

Mudanças econômicas que ocorrem a partir dessa época, vão afetar o conjunto da sociedade e provocar alterações no estilo de vida de seus habitantes. A descoberta das minas de ouro na década de 1690, constituiu um polo novo de colonização, deslocando o eixo econômico, antes localizado no Nordeste, para o Sul. Com uma vida urbana mais intensa, a região mineira atraiu pessoas em busca do enriquecimento e da aventura, canalizando o tráfico de escravos durante o século XVIII. A sociedade que aí se formou era uma mescla de raças e origens diversas e mais difícil de ser controlada, apesar das tentativas da Igreja e da Coroa portuguesa. O número de celibatários era alto, proliferavam os concubinatos e a ilegitimidade era comum. Mulheres exerciam atividades econômicas fora do âmbito doméstico e as solteiras com prole natural chefiavam famílias. Nessas paragens, não era fácil para os poderes constituídos, tentar fixar os padrões impostos pela colonização, que não eram seguidos pela maior parte da população.

No século XVIII, a situação era semelhante em áreas mais pobres do Sul, que gravitavam em torno das Minas como a Capitania de São Paulo, com núcleos urbanos em crescimento e uma vida rural mais modesta que a do Nordeste. Nos engenhos de cana paulista, as escravarias eram menores. Assim, na falta do braço escravo, lavradores empobrecidos trabalhavam a terra com suas famílias e aceitavam membros subsidiários para ajudar na faina diária. No meio urbano, pequenos negócios e uma gama variada de serviços ligados ao abastecimento ofereciam oportunidades para a população desvinculada do setor exportador. Isso favoreceu a atuação das mulheres trabalhadoras que estavam presentes por toda a parte e ocupavam os espaços que eram deixados pela migração masculina e a falta de escravos. Tudo isso, sem dúvida, vai alterar o quadro da organização familiar e das relações de gênero.

Visualizar esse processo significa entender que, apesar do menosprezo que existia com relação à produção e o comércio dos gêneros alimentícios, a economia mercantil implantada na colônia necessitava de suporte interno, com a criação de pólos regionais. E, do mesmo modo é importante ressaltar que hierarquias próprias das sociedades escravistas e inerentes aos grupos dominantes, na maioria das vezes eram inatingíveis para as outras categorias sociais, o que gerava uma multiplicidade de modelos familiares e de comportamentos.

Assim, especialmente no meio urbano, os papéis informais, embora não oficialmente reconhecidos e pouco valorizados, integravam a vida cotidiana, servindo também para desmistificar, no sistema patriarcal brasileiro, o papel reservado aos sexos e à rígida divisão de tarefas e incumbências.

Essas mudanças vão se acentuar ao longo do século XIX, com o desenvolvimento econômico no Sul do país provocado pela cafeicultura. Ocorreram, além disso, modificações políticas importantes (Independência em 1822 e República em 1889), alterações no sistema de mão-de-obra com a abolição da escravatura (1888) e a entrada de imigrantes. Os reflexos de tudo isso serão sentidos na distribuição espacial da população brasileira e também no mercado de trabalho.

Ao que tudo indica, especialmente na segunda metade do século XIX, abriram-se novas oportunidades de emprego na indústria nascente e na burocracia, e as mulheres vão ocupar uma fatia desse mercado (Hahner, 1990). No entanto, qual é a representatividade dessa inserção feminina quanto a mudanças efetivas na sua condição, especialmente no que tange a autonomia na gerência de famílias e negócios?

A política desenvolvida pela elite cafeeira paulista estimulando e promovendo intensamente a imigração, em proporções superiores às possibilidades de emprego no campo, favoreceram o crescimento da população urbana. A presença de trabalhadores pobres, imigrantes e nacionais, excedia as necessidades do mercado ocasionando, portanto, formas múltiplas de trabalho domiciliar e temporário. Essas ocupações se expandiram não apenas pela impossibilidade de absorção pelo mercado de trabalho, mas também estiveram ligadas à opção de trabalhadores de não desejarem se incorporar em atividades assalariadas. Essas formas de organização foram também alternativas importantes de emprego para as mulheres por permitir a combinação das atividades domésticas com o trabalho remunerado (Samara & Matos, 1993).

Como se pode perceber, mesmo com a incorporação massiva das mulheres solteiras e jovens no universo fabril, o trabalho domiciliar continuou permitindo que as casadas contribuíssem para a renda familiar sem deixarem de exercer as funções básicas de mãe e de donas de casa para as quais tinham sido socializadas e educadas.

O que se nota, ainda nessa fase, é que, apesar da República e das mudanças que estavam ocorrendo, a vida continuou girando em torno da família e que a legislação reforçou, uma vez mais, o privilégio masculino. O marido continuava, legalmente, com a designação de chefe de família, como no velho Código Filipino (1870), compilado em Portugal em 1603. O Código Civil de 1916 reconheceu e legitimou a supremacia masculina, limitando o acesso feminino ao emprego e à propriedade. As mulheres casadas ainda eram, legalmente, incapacitadas e apenas na ausência do marido podiam assumir a liderança da família.

Alguns sinais de mudança foram sentidos entre as mulheres da elite e das classes médias urbanas. No início do século XX, mulheres profissionais foram aos poucos ocupando espaços, aparecendo algumas atuando na área da Física, do Direito, da Farmácia e da Arquitetura (Hahner, 1990). Entretanto, até 1930, a representação feminina nos cursos superiores foi bastante escassa, concentrando-se sobretudo nas faculdades de Farmácia e em segundo lugar, nas de Medicina e Odontologia. A maior concentração feminina nesses ramos do ensino, notadamente no ramo farmacêutico, pode ser explicada pelo processo de desvalorização social sofrido pela profissão de farmacêutico (Saffioti, 1976, p. 219).

Por outro lado, não podemos esquecer que a expansão do mercado de trabalho industrial brasileiro contou com a partipação significativa da mulher. A maior parte da mão-de-obra da indústria têxtil era feminina. A mulher inicia, portanto, a sua participação na indústria, num nível de trabalho não qualificado e, basicamente, na indústria têxtil. Para a década de 40, por exemplo, a taxa de ocupação da população economicamente ativa, ou seja, das mulheres com mais de 15 anos, estava entre 13% e 20%, segundo os censos realizados nesse período (Blay, 1978, pp. 135-192).

O aumento da participação feminina no mercado de trabalho formal é um processo que, ao longo do século XX vai se acentuando, mas há que se considerar sempre a inserção os setores informais e a importância do trabalho domiciliar que contribui para o orçamento familiar, mas que não aparece contabilizado.

Esse fato reflete-se estatisticamente quando analisamos os dados gerais referentes às profissões nos censos brasileiros, onde a maioria do sexo feminino, por estar no mercado informal ou domiciliar, aparece sem profissão, questão que trataremos a seguir e que deve também ser relacionada às categorias profissionais, que estão incluídas nas estatísticas oficiais e esse é, portanto, ao nosso ver, um outro aspecto a ser considerado para análise.

Segundo a Pesquisa Nacional realizada em 1995, no mercado de trabalho, as mulheres representavam 39,88% do número total de 69.628.608 indivíduos com ocupações formais. Desse total, 27.765.299 mulheres trabalhadoras estavam distribuídas nas seguintes atividades: prestação de serviços (29,83%); agricultura (22,50%) e atividades sociais (16,30%). Nos setores onde a participação feminina era menor, temos o seguinte quadro: transporte e comunicação (0,78%); atividades industriais (0,52%) e indústria de construção (0,37%) (IBGE, 1995, 1997). (gráfico 4)


É importante aqui também ressaltar que, apenas a partir dessas categorias profissionais estabelecidas na Pesquisa Nacional de 1995, fica difícil contabilizar a real participação feminina no atual mercado do trabalho brasileiro, já que grande parte das mulheres ainda ocupa uma fatia do mercado informal (IBGE, 1995).

Por outro lado, a atuação das mulheres no mercado de trabalho, durante o século XX, caracteriza-se sobretudo, pela sua inserção em atividades que não apareciam nos séculos anteriores. Nesse rol encontra-se, então, a prestação de serviços (médicas, advogadas, dentistas, empregadas públicas, entre outras) e várias ocupações em diferentes ramos da indústria.

Nos séculos anteriores, a maioria das mulheres trabalhadoras apareciam nas chamadas atividades femininas tradicionais, marginais ao processo de produção e sendo remuneradas abaixo do padrão de pagamento masculino, na mesma função. O Primeiro Censo Geral do Brasil, realizado no Império em 1872, mostra essa setorização de atividades por gênero, predominando entre as mulheres, as lavradoras, as costureiras e aquelas nos serviços domésticos (ver tabela 1 e Gráfico 6). Pudemos também verificar que entre os artistas, a maioria era do sexo masculino, 36.906 (0,38%) contra 4.297 mulheres (0,04%) e entre os proprietários, 23.140 (0,24%) eram homens e 8.723 (0,09%), mulheres. Igualmente, nas funções de comerciantes, guarda-livros e caixeiros os números variavam de 93.577 (0,96%) para os homens e 8.556 (0,09%) para o sexo feminino. (Ver Tabela 1 e Gráfico 6)


Isso indica que gênero era um fator determinante na ocupação desempenhada, mas que também a presença das mulheres no mercado de trabalho era marcante, se considerados os ramos específicos de atividades e especialmente o setor informal. Soma-se a isso o fato que em 1872, dentre o total de habitantes com ocupações no mercado formal (5.758.364), as mulheres representavam 26,36% da força de trabalho, com números bem próximos aos do sexo masculino 31,62%.

Como se pode perceber, ao final do Império estavam ocorrendo mudanças demográficas e econômicas com a expansão da lavoura cafeeira no Sul, a abolição do tráfico de escravos e a imigração que foram fatores importantes na reconfiguração do mercado de trabalho livre, especialmente após 1850.

Sem dúvida, todas essas mudanças vão incidir diretamente na família brasileira que vai aos poucos se distanciando do modelo descrito por Freyre (1987) para as áreas de lavoura canavieira do Nordeste nos primeiros tempos da colonização. No entanto, ainda é preciso verificar a questão da disseminação desse modelo entre a população de modo geral e as decorrências da sua utilização como sinônimo de família brasileira.

Evidências históricas e família na atualidade

As últimas estatísticas do IBGE (1997) mostram que hoje, no Brasil, predominam as famílias nucleares (75,93%, em 1991), com poucos integrantes, especialmente na áreas urbanas (ver Tabelas 2 e 3)

Esse quadro, no entanto, não apresenta grandes diferenças com os dados disponíveis sobre a família brasileira no passado. As comparações só são possíveis para algumas áreas específicas em alguns anos, onde existem estatísticas com base nos recenseamentos manuscritos e por isso referem-se a localidades específicas.

É o caso da cidade de São Paulo no ano de 1836, onde predominavam as famílias nucleares, 523 (35,4%), e o número médio de habitantes por domicílio era entre 1 e 4 elementos em sua maioria, excetuando-se as famílias "aumentadas" com muitos escravos e maior quantidade de componentes. Isso significa que eram mais comuns as famílias com estruturas mais simples e poucos integrantes.

Compondo um quadro geral da família paulista, constatamos que as "extensas" ou do tipo "patriarcal" eram apenas uma das formas de organização familiar e não chegavam a representar 26% dos domicílios. Nos demais, ou seja, em 74% das casas, predominavam outras formas de composição, o que significa que as famílias "extensas" eram representativas apenas em um segmento da população. (ver Tabela 4)

Isso, sem dúvida, nos mostra que, ao menos quanto à estrutura e número médio de componentes, a família brasileira não apresentou grandes transformações, o que nos leva a perguntar se não estamos concebendo uma imagem nova da família com base em um único modelo familiar para o passado, ou seja, o da família "extensa" do tipo patriarcal.

Analisando ainda a estrutura desses domicílios, a partir das informações censitárias, podemos também estabelecer outras relações importantes e que se referem à posição e papéis dos gêneros na família. Assim, no censo de 1991 verificamos que a liderança dos fogos está majoritariamente nas mãos dos homens (28.440.447 - 81,88%) em relação aos 6.294.268 (18,12%) chefiados por mulheres. Significativa diferença entre essas cifras aparece na faixa etária dos 35 aos 59 anos, onde o sexo masculino detém 41,19% e o feminino, 8,96%. (ver Tabela 5 e Gráfico 7)


No entanto, é surpreendente observar que na segunda metade do século XIX, os dados coletados no Censo de 1872 mostraram que, em geral, nas regiões econômicas examinadas, aproximadamente 30% das mulheres eram chefes de domicílio e mantinham as suas famílias, principalmente entre as idades de 35 e 59 anos. Os homens, por sua vez, continuavam liderando a cifras de chefia dos lares em todas as idades, com maior diferença na faixa etária dos 10 aos 34 anos. (Ver Tabela 6 e Gráfico 8). Isso significa que os resultados encontrados para 1872 (29,84%) são comparáveis, portanto, às estatísticas regionais, levantadas em censos manuscritos, do final do período colonial.


Os índices mais elevados estão em Minas Gerais, onde era marcante a presença de mulheres como chefes de domicílios, sendo responsáveis pelas economias domésticas e por várias atividades na manufatura, especialmente de algodão e tecidos. Em 1804, em Vila Rica, Minas Gerais, 764 mulheres adultas mantinham as suas próprias famílias, correspondendo a 45% dos domicílios na cidade (Ramos, 1990). No entanto, pouco ainda sabemos sobre quem eram essas mulheres quanto a origem, raça e condição, o tipo de família que lideravam e o seu modo de vida.

Para Santiago Maior do Iguape, Bahia, em 1835, temos mais informações. Comparando a variável raça com ocupação no total de domicílios chefiados por mulheres, o quadro era o seguinte: 65% era dos extratos sociais mais baixos e trabalhavam; 11,9% eram do extrato médio, tinham emprego próprio ou comerciavam e somente 1,3% era da elite (Diaz & Stewart, 1991).

Tudo indica, portanto, que ao menos na primeira metade do século XIX, os domicílios de pessoas pobres eram, geralmente, chefiados por mulheres, que contavam com o trabalho da família para a sobrevivência do fogo. E desse modo, crianças, adultos, dependentes e agregados ajudavam a engrossar a renda familiar. As ocupações mudavam freqüentemente, vivendo como podiam e vendendo os excedentes da produção domiciliar para poder sobreviver. Em todos esses lares era comum a liderança feminina, organizando as tarefas, gerenciando os pequenos negócios e exercendo o controle da família, o que, sem dúvida, fugia à regra do modelo patriarcal (Dias, 1984; Samara, 1989).

Na vila de São Paulo, em 1836, por exemplo, 1/3 dos domicílios eram chefiados por mulheres, fato também provocado pela migração masculina para outras áreas em busca de novas terras e oportunidades econômicas. Ali as mulheres tinham presença considerável na manufatura têxtil domiciliar, em pequenos negócios, na venda de produtos e na prestação de serviços à comunidade (Dias, 1984; Samara, 1989).

Também no Nordeste, na segunda metade do século XIX, a divisão de tarefas entre os membros da família não seguia as normas determinadas no modelo patriarcal. Em geral, a estrutura da família, desde que comparada com a do Sul, era mais complexa, mas homens e mulheres dividiam deveres e trabalhavam para a sobrevivência do grupo, conforme dados que encontramos no Censo de Fortaleza, para o ano de 1887.5 5 Arrolamento da cidade de Fortaleza, (mss), 1887, ver: Samara, (1995. pp. 233-242).

No caso das mulheres nordestinas, elas também promoviam a integração de outros adultos, crianças, homens livres, escravos e agregados nas tarefas relativas à economia doméstica, como na manufatura de louça e tecidos. Pequenos negócios e lavoura também não eram incomuns (Samara, 1995).

Atenta a esse panorama, a historiografia brasileira, a partir dos anos 70, passou a incorporar a idéia de múltiplos modelos familiares no Brasil e da existência de um sistema patriarcal modificado, especialmente no Sul do país a partir do início do século XIX. Os estudos também apontaram para uma maior flexibilidade desse modelo por regiões, grupos sociais e etnias o que significa que para melhor entendermos, atualmente, a família no Brasil é necessário partir de outros parâmetros, quanto ao passado (Metcalf, 1992; Nazzari, 1991).

E foi dentro dessa preocupação, que analisamos nesse artigo os censos populacionais nos últimos 150 anos de modo a perceber mudanças e continuidades e de que modo o movimento da população e o desenvolvimento econômico incidiram ou não a estrutura das famílias ao longo do tempo. Cabe no entanto, ainda observar que a simples análise estatística não contempla todas as variáveis que devem ser verificadas para um entendimento mais completo dessa questão especialmente no que tange as mudanças de comportamento e dos papéis de gênero dentro das famílias que não podem ser esquecidos. Por outro lado, as evidências históricas examinadas são enriquecedoras para repensarmos o perfil da nossa família na atualidade e a complexidade de padrões que existiram nos séculos XVIII e XIX nas diferentes regiões, etnias e grupos sócio-econômicos, o que comprova que ao menos numericamente família brasileira não era sinônimo de família extensa.

Samara, E. M. (2002). What Has Changed in Brazilian Families? (From Colony to the Present). Psicologia USP, 13 (2), 27-48.

Abstract: The purpose of the article is to analyze comparatively the Brazilian Family from Colony to nowadays, observing changes and continuities over time. Using manuscripts and published censuses of population in the last 150 years, it intends to verify what really occurred in the Brazilian society referring to the process of family formation, economic development and population growth.

Index terms: Family, Women, Demography, History.

Samara, E. M. (2002). Qu'y a-t-il de Changé Dans la Famille Bresilienne ? (de L'Époque Coloniale à Aujourd'hui). Psicologia USP, 13 (2), 27-48.

Résumé : L'objectif de l'article est de présenter une analyse comparative de la famille brésilienne de la période coloniale à nos jours en observant les changements et les continuités au cours du temps. En prenant comme base les recensements de population, manuscrits et imprimés des derniers 150 ans, on vérifie ce qui est arrivé réellement dans la société brésilienne dans le processus de formation des familles, le développement économique et la croissance démographique.

Mots-clés : Famille. Femmes. Démographie. Histoire.

Recenseamento da população do Império do Brazil para o ano de 1872.

Recebido em 07.06.2002

Aceito em 11.07.2002

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    Eni de Mesquita Samara é Professora Titular do Departamento de História da Faculdade e Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e Diretora do CEDHAL (Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina). Endereço para correspondência: Rua do Lago. 717 - CEP 05508-900 - São Paulo, SP. Endereço eletrônico:
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    Para entender melhor essa discussão ver Almeida (1987).
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    Antes de 1872 a pesquisa só pode ser feita por localidades em recenseamentos manuscritos que não existem para o Brasil como um todo.
  • 4
    Esta pesquisa faz parte do Projeto Integrado CNPq Mulheres chefes de família no Brasil, séculos XIX e XX.
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    Arrolamento da cidade de Fortaleza, (mss), 1887, ver: Samara, (1995. pp. 233-242).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jan 2003
    • Data do Fascículo
      2002

    Histórico

    • Recebido
      07 Jun 2002
    • Aceito
      11 Jul 2002
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