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A afirmação de uma situação sociocomunicativa: desfile de carnaval e tramas da cultura popular urbana carioca

Carnival parade and cultural networks of the urban residents of Rio de Janeiro

Defilé de carnaval et canevas de la culture populaire urbaine carioca

Resumos

Neste artigo, com o objetivo de acompanhar a dinâmica de estilização sociocomunicativa em que se define o gênero lúdico-estético Desfile de Carnaval, no Rio de Janeiro, a argumentação desenvolvida toma por fio condutor a posição do artista-intelectual carnavalesco. Isto, no andamento da diferenciação funcional relativa à ascensão do cargo e como se afirma sua liderança estética nos desfiles das escolas de samba. Recortamos a análise no intervalo entre as décadas de 1950 e 1980, focando, de um lado, o carnavalesco, na figura do intelectual modernista comprometido com um ideário modernizador, na postura do legislador cultural; de outro lado, o lugar do especialista na concepção e produção de imagens visuais no concerto do superestáculo carnavalesco.

Sociologia; Cultura Urbana; Desfile de Carnaval; Comunicação


In this article, with the aim of following the dynamics of the socio-communicative stylization which fits into the definition of the entertainment- esthetic genre of the Rio de Janeiro Carnival Parade, the guiding principle of the argument developed is the point of view of the carnival intellectual-artist. This means the development of the functional differentiation regarding job promotion and how this affects their esthetic leadership in the samba school parades. We will analyze the period from the 1950s to the 1980s, focusing on one hand on the carnival character as a modernist intellectual committed to a set of modernizing ideas, in the position of cultural legislator; on the other hand, focusing on the role of the specialist in the conception and production of visual images in the concert of the carnival super-spectacle.

Sociology; Urban culture; Carnival parade; Communication


Dans le but de suivre la dynamique de stylisation socio-communicative dans laquelle se définit le genre ludique et esthétique "Défilé de Carnaval", à Rio de Janeiro, l'argumentation présentée dans cet article a comme fil conducteur la position de l'artiste-intellectuel carnavalesque. Ceci, dans le cadre d'une différenciation fonctionnelle relative à l'ascension de la tâche et à la manière dont s'affirme son leadership esthétique dans les défilés des écoles de samba. L'analyse se situe dans un intervalle de temps qui va de 1950 à 1980, en mettant l'accent, d'une part, sur le carnavalesque qui se reflète dans la figure de l'intellectuel moderniste engagé dans une idéologie de la modernisation en assumant une posture de législateur culturel et, d'autre part, sur la place du spécialiste en conception et production d'images visuelles, de concert avec le super-spectacle carnavalesque.

Sociologie; Culture urbaine; Défilé de carnaval; Communication


ARTIGOS

A afirmação de uma situação sociocomunicativa: desfile de carnaval e tramas da cultura popular urbana carioca1 1 A realização deste texto se deu no período entre março e julho de 2012, quando estive como pesquisador convidado no Centro de Sociologia do Colégio de México, com bolsa de Estágio Pós-Doutoral (CAPES).

Carnival parade and cultural networks of the urban residents of Rio de Janeiro

Defilé de carnaval et canevas de la culture populaire urbaine carioca

Edson Silva Farias

Doutor em Ciências Sociais. Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília. Pesquisador do CNPq. ICS Norte B, n. 1408. Campus Darci Ribeiro. Asa Norte. Cep: 70910-900. Brasília Distrito Federal Brasil. nilos@uol.com.br

RESUMO

Neste artigo, com o objetivo de acompanhar a dinâmica de estilização sociocomunicativa em que se define o gênero lúdico-estético Desfile de Carnaval, no Rio de Janeiro, a argumentação desenvolvida toma por fio condutor a posição do artista-intelectual carnavalesco. Isto, no andamento da diferenciação funcional relativa à ascensão do cargo e como se afirma sua liderança estética nos desfiles das escolas de samba. Recortamos a análise no intervalo entre as décadas de 1950 e 1980, focando, de um lado, o carnavalesco, na figura do intelectual modernista comprometido com um ideário modernizador, na postura do legislador cultural; de outro lado, o lugar do especialista na concepção e produção de imagens visuais no concerto do superestáculo carnavalesco.

Palavras-chave: Sociologia. Cultura Urbana. Desfile de Carnaval. Comunicação.

ABSTRACT

In this article, with the aim of following the dynamics of the socio-communicative stylization which fits into the definition of the entertainment- esthetic genre of the Rio de Janeiro Carnival Parade, the guiding principle of the argument developed is the point of view of the carnival intellectual-artist. This means the development of the functional differentiation regarding job promotion and how this affects their esthetic leadership in the samba school parades. We will analyze the period from the 1950s to the 1980s, focusing on one hand on the carnival character as a modernist intellectual committed to a set of modernizing ideas, in the position of cultural legislator; on the other hand, focusing on the role of the specialist in the conception and production of visual images in the concert of the carnival super-spectacle.

Key Words: Sociology. Urban culture. Carnival parade. Communication.

RÉSUMÉ

Dans le but de suivre la dynamique de stylisation socio-communicative dans laquelle se définit le genre ludique et esthétique "Défilé de Carnaval", à Rio de Janeiro, l'argumentation présentée dans cet article a comme fil conducteur la position de l'artiste-intellectuel carnavalesque. Ceci, dans le cadre d'une différenciation fonctionnelle relative à l'ascension de la tâche et à la manière dont s'affirme son leadership esthétique dans les défilés des écoles de samba. L'analyse se situe dans un intervalle de temps qui va de 1950 à 1980, en mettant l'accent, d'une part, sur le carnavalesque qui se reflète dans la figure de l'intellectuel moderniste engagé dans une idéologie de la modernisation en assumant une posture de législateur culturel et, d'autre part, sur la place du spécialiste en conception et production d'images visuelles, de concert avec le super-spectacle carnavalesque.

Mots-clés: Sociologie. Culture urbaine. Défilé de carnaval. Communication.

Tanto fontes jornalísticas quanto acadêmicas são categóricas em identificar o Desfile das Escolas de Samba, no Rio de Janeiro, para melhor ou pior, como a manifestação da cultura popular brasileira que mais teria avançado no tocante à mercadorização, mas, igualmente, nos nexos com a ecologia das mídias. Essa percepção tem por suporte a existência de tramas envolvendo comunidades mobilizadoras de matrizes culturais tradicionais, a liderança exercida por círculos de novos endinheirados, aliando mandonismo e contravenção, membros das classes médias atuando como mediadores artísticos na produção dos desfiles ou na posição de consumidores culturais, as mídias e o mercado publicitário, interesses políticos e econômicos de grupos aninhados no Estado. Na contrapartida dessa constelação, estariam os fluxos de recursos financeiros, simbólicos, técnicos e tecnológicos decisivos, quer dizer, a permanente reacomodação do evento nos esquemas concorrenciais do mercado de bens culturais.

Sem dúvida, no âmbito das ciências sociais, o recurso do modelo das mediações culturais serviu para sublinhar o lugar estratégico da circularidade entre os níveis culturais na apreensão dos referidos fluxos, ainda mais quando aplicado na renovação da teoria da ação simbólica voltada para rituais seculares, à maneira do carnaval (Cavalcanti, 1994). Por evitar a substancialização de identidades coletivas, são insofismáveis as contribuições desse viés teórico-analítico no debate sobre culturas populares contemporâneas, alargando o horizonte empírico da pesquisa, já que enfatiza como a multiplicidade de sentidos é produzida e negociada na complexidade metropolitana. Contudo, no instante em que os referidos modelos priorizam, sobretudo, interações face a face em contextos etnográficos precisos, negligenciam um traço marcante dos fluxos atuais, a saber, a natureza desterritorial e desterritorializante e, também, os efeitos de reterritorialização que proporciona, embora as territorialidades geradas muitas das vezes não sejam geográficas e, sim, sociocomunicacionais.

Nessa perspectiva, ao definir por situações sociocomunicativas aquelas de veiculação dos conteúdos simbólicos não redutíveis à copresença das corporalidades isso no que toca aos meios e às formas de expressão (Luhmann, 2005, p. 15-26) , tem-se em conta a natureza assumida pelas atividades humanas mútuas de acordo com a característica das ausências sistêmicas na estruturação das relações sociais na modernidade (Giddens, 1991; Thompson, 1998). Quer dizer, na maneira como os fatores ausentes à imediaticidade das experiências se inserem na produção de subjetividades mediante pautas simbólicas, deflagrando aprendizados viabilizados pela apropriação e transmissão de conhecimentos, nos quais um dos efeitos é facultar a conservação, exclusão e emergência de meios e formatos de expressão. Fatores relativos à interferência abrangente dos sistemas especializados vazando localidades, em particular, a mediação exercida pelos sistemas sociotécnicos de comunicação nos modos de simbolização. Portanto, quando se deixa de lado esses atravessamentos nas interações, perde-se de vista a maneira como as coordenações dos trânsitos comunicacionais se inserem na equalização entre a ecologia das mídias e as elaborações e os consumos de bens culturais em escalas amplas.

O problema da multiplicação dos conteúdos de informação e modos expressivos, postos nas situações de comunicação próprias ao regime de práticas da modernidade, se revela decisivo na atualidade. Isso porque impacta o conjunto dos sistemas sociais e, notadamente, reverbera na centralidade que a diversão e o par comunicações/turismo detêm na territorialização de muitas das manifestações significantes, classificadas como culturais. Neste artigo, observamos a constituição de uma situação sociocomunicativa do ponto de vista, exatamente, da dinâmica histórica em que se tece a cadeia produtiva, de intermediários e recepção intrínseca à formação e do formato cultural do Desfile das Escolas de Samba como gênero expressivo e de comunicação lúdico-artístico de natureza audiovisual. Buscamos compreender as dimensões estéticas e sociológicas dessa especificidade. O gênero corresponde ao conjunto sistemático de regras que formaliza, ao codificar, as expectativas entre emissor e recepção de um bem expressivo, sabendo estarem, ambos os polos, encadeados no contexto de uma mesma situação de comunicação. Propõe-se que, se o gênero inscreve um conjunto específico de disposições, com a finalidade de possibilitar uma estabilidade necessária para o ato expressivo-comunicacional se tornar válido e inteligível, ele abre uma janela de oportunidades para o ajuste previsto dentro do contrato de sentidos com a audiência e requer o permanente entrosamento da criação coletiva com os agenciamentos, uma e outros se confrontam e se complementam de acordo com as vicissitudes históricas que as conformam numa teia de múltiplos relacionamentos inseridos em interdependências sociofuncionais alargadas (Martins-Barbero, 1987, p.239-242).

A aplicação do modelo sociogenético (Elias, 1993) se volta, justamente, às vinculações dos entrelaços de funções mútuas humanas na composição dos encadeamentos intergeracionais de produtores, intermediários e usuários, que vicejam e dão continuidade à dinâmica histórica denominada estilização sociocomunicativa interna à cultura urbana no Rio de Janeiro, processo em que a formatação do Desfile de Carnaval como gênero lúdico-artístico é redefinida como um meio de comunicação, aliando interação e intervenção tecnológica de reprodução simbólico-expressiva de audioimagens na relação entre emissão e recepção. Para isso, iremos considerar a festa carnavalesca carioca à luz dos seus específicos nichos e modos organizacionais, mas em sincronia com o itinerário das interdependências sócio-humanas alargadas, fomentando a consolidação das ausências como eixo estrutural de experiências e sistemas sociais. Nesse sentido, interessa-nos a dinâmica histórica em que o Desfile de Carnaval carioca se afirma como uma das contrapartidas estético-expressivas do regime das práticas na modernidade. A argumentação desenvolvida, ao supormos ser estratégica no entendimento da dinâmica de estilização sociocomunicativa, tomará por fio condutor a posição do artista-intelectual carnavalesco, no andamento da diferenciação funcional relativa à ascensão do cargo e como se afirma sua liderança estética nos desfiles das escolas de samba. Para tanto, iremos recortar a análise no intervalo entre as décadas de 1950 e 1980, focando, de um lado, o carnavalesco, na figura do intelectual modernista comprometido com um ideário modernizador, na postura do legislador cultural; de outro lado, o lugar do especialista na concepção e produção de imagens visuais no concerto do superestáculo carnavalesco.

O LEGISLADOR DO PROJETO MODERNISTA CARNAVALESCO

Devido ao amplo leque das tematizações que o interpela, o intelectual se constitui em um demiurgo de questões intrigantes no desenrolar do pensamento social. A curiosidade se volta, principalmente, à equação entre componentes mais decisivos, que relacionam a formação da compreensão social e a sincronia desta com a diversidade das consciências individuais na normalização de percepções, de orientações comportamentais, ou na reviravolta no prosseguimento de atitudes. Desde aí, mas no contexto histórico particular das sociedades complexas modernas, entre as problematizações possíveis, destaca-se a problemática articulando a diferenciação ocupacional do intelectual com os consequentes efeitos gerados pela sua autonomia como categoria e segmento social, diante da classificação e do acesso ao conhecimento legítimo. Algo assim se torna dramático no tocante às indagações acerca das mediações estabelecidas entre esse grupo, os intelectuais, e as demais facções societárias. Ganha relevo o liame entre os teores e os formatos dos bens simbólicos com os aportes institucionais reguladores dos meios de produção cultural e as maneiras de se realizarem a difusão e usos dos bens culturais. Deixa-se em aberto, então, as funções, características e limites dos diálogos dos elaboradores de artefatos, que informam a compreensão com os ideários e interesses materiais das tantas extrações sociais. Sob esse ponto de vista, nos rastros de Williams (2011, p. 206-207), podemos anotar o quanto se faz estratégico investir na pesquisa das formas artísticas e dos tipos de intelectuais como formações sociais em sua relação de construção, reforço ou alteração de identidades do próprio grupo em meio às pressões provenientes de outros espaços sociais.

À luz desse viés analítico, de que maneira podemos apreender o carnavalesco no escopo dos intelectuais? Em um primeiro momento, merece atenção a denominação mesma de "carnavalesco", pois esta se revela ambígua em relação ao objeto a que designa. De início, faz referência ao folião participante da festa popular, o brincante, a despeito de ser anônimo ou não. Mas, igualmente, nomeia a participação individualizada, devido à posição de artista plástico e diretor de cena, solista, no conjunto sistêmico do desfile das escolas de samba. Nessa segunda acepção, sobressai a classificação de um cargo, disposto entre as ocupações inscritas na divisão técnica dos trabalhos, responsáveis pela preparação dos elementos cenográficos e indumentários em obediência ao eixo temático e dramatúrgico - o "enredo" - que norteia o cortejo de cada concorrente ao título de campeã, no concurso anual entre os grêmios recreativos carnavalescos voltados para o canto e a dança do ritmo musical samba (Urbano, 1987).2 2 O Desfile de Carnaval reúne em concurso 67 escolas de samba, no Rio de Janeiro, divididas em cinco grupos. A partir do grupo principal - denominado de "especial" -, o procedimento de seleção nessa hierarquia implica a elevação das primeiras colocadas ao grupo superior e, na mesma medida, o rebaixamento para o grupo inferior das últimas colocadas. Julgamos que o status gozado de intelectual se manifesta no fato de a distinção do ofício de carnavalesco advir de concentrar as funções de conceber o enredo em sua dupla face literária e plástico-visual (alegorias, adereços e fantasias). Embora divididas as tarefas não manuais com outros profissionais que o auxiliam, cabe-lhe a responsabilidade de projetar o acontecimento do desfile, o que requer dele autonomia de tirocínio e de criação, também comprovação de mérito, no sentido de demonstrar competência de se antecipar e domar as contingências estéticas e comunicacionais envolvendo a exibição da escola de samba sob o seu comando. A liderança exercida se manifesta na antecedência nas escolhas de várias ordens, com direta e fundamental repercussão em todo o conjunto expressivo audiovisual da apresentação. Desse modo, a sua fala se torna a mais autorizada para responder sobre o "carnaval" da agremiação, seja perante a comunidade interna de cada escola de samba, seja frente à sociedade abrangente, pelos meios da comunicação ampliada. Ao lado do casal de mestre-sala e porta-bandeira, do diretor de bateria, do puxador do samba-enredo, do coreógrafo da comissão de frente e, claro, do presidente da escola, o carnavalesco porta uma face diferenciada em meio aos milhares de componentes que cruzam a pista da Passarela do Samba como anônimos, integrantes das alas ou compondo as figurações dos carros alegóricos.3 3 Embora de maneira esquemática, podemos descrever o cortejo das escolas de samba pela articulação entre comissão de frente, os três casais de mestre-sala e porta-bandeira, as alas de enredo, a ala de baianas, a ala de bateria, os carros alegóricos, os puxadores do samba-enredo e os passistas - grupos de bailarinos especializados na dança do samba. Méritos e ônus decorrentes do desempenho da escola poderão lhes ser atribuídos.

Se esse panorama da centralidade artística gozada pela atuação do carnavalesco encontra respaldo empírico nas condições contemporâneas do Desfile das Escolas de Samba, a diferenciação do cargo não resiste ao teste do tempo. Por um lado, mostra-se tardia no que tange ao léxico da língua portuguesa: na consulta a dicionários, só encontramos, por volta dos anos de 1980, no verbete "carnavalesco", a classificação desse artista vinculada às funções de elaboração e produção carnavalesca. De outro, e é isso que agora importa, apenas com a ascensão do laureado Joãozinho Trinta na liderança estética da escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, a partir de 1976, o termo carnavalesco passou a ser publicizado pela imprensa e mídias eletrônicas (rádio e televisão) como designação do ofício exercido por um profissional específico. É esse, também, o período em que, no plano interno mais geral das escolas de samba, o comando estético se desloca do "apito" do diretor de harmonia para a intervenção do carnavalesco. Ou seja, em lugar da orientação voltada para a sincronia no bailado do conjunto entre o canto uníssono das alas e a percussão da bateria, ascendem os desígnios do artífice da visualidade exposta nas indumentárias e nos cenários móveis.

Diante do episódio dessa passagem de comando, não é difícil concluir a respeito do fortalecimento do prestígio concedido à posição de carnavalesco no cerne da sistemática do carnaval das escolas de samba. O mais espinhoso, na análise e interpretação de situações assim, é identificar as propriedades desse prestígio no contexto da concessão, isto é: como estão qualificados os concessores e como se manifesta a relação da sua aquiescência no reconhecimento do diferencial do eleito? Enfim, como se viabiliza a comunicação entre o prestigiado e os valores que dão unidade ao grupo que celebra a raridade da sua singularidade e, com isso, o autoriza ao posto de comandante?

Para excursionar pelo contexto de concessão do prestígio ao carnavalesco, vou recorrer à categoria de cultura urbana proposta por Diana Crane (2011, p. 32-33). Para essa autora, tal "mundo cultural" se constitui em "cenários" compostos por públicos citadinos, tendo seus insumos pessoais e institucionais nas redes de criadores, intermediários e usuários, triângulo este em direta vinculação com organizações, além de pequenas empresas com fins lucrativos. Cosmos detendo padrões próprios de avaliar os bens culturais e determinar os tipos que são exibidos, realizados ou até mesmo comercializados. A perspectiva nos interessa porque contorna os inconvenientes de se partir de polarizações cristalizadas, quando se lança mão da hierarquia entre "alta" e "baixa" culturas artísticas, reiterando esquemas de dominação simbólica. À luz da proposta de Crane (2011), o que está em pauta, neste artigo, é a composição da cultura urbana carnavalesca carioca à época da consagração da liderança estética do carnavalesco. Mas o olhar sobre as coligações das cadeias produtivas locais e seu circuito de públicos e de mediações institucionais, detendo quadro de valores e critérios próprios de aferir bens e práticas, estará atento ao delineamento sistêmico da esfera cultural laica no Rio de Janeiro, o qual foi possibilitado, não somente pelo trânsito de ideias, comportamentos, técnicas e pessoas de fronteiras externas ao perímetro urbano e nacional; principalmente, observando nesse tráfego as injunções sistêmicas de ausências que forneceram subsídios fundamentais à estruturação das atividades inseridas no zoneamento do lazer cultural na cidade. Canais abertos com o desenvolvimento de - entre outras - práticas e instâncias expressivas e comunicacionais relacionadas ao teatro, à imprensa, ao cinema, mais tarde ao rádio e à televisão.

A esse respeito, é bem sugestiva a seguinte sequência de episódios na trajetória de pessoas que detiveram destacado papel no encadeamento de funções internas à cultura carnavalesca carioca, por volta de 1960. De acordo com o relato de Joãozinho Trinta, ele chegou ao Rio de Janeiro em 1952. Na ocasião do desembarque, tinha 18 anos, vindo de São Luiz do Maranhão, no Nordeste brasileiro. Segundo conta, a expectativa era integrar o corpo de baile do Teatro Municipal, no segmento das danças clássicas e, assim, realizar uma aspiração de infância. O desenlace da empreita frustrou a expectativa, porque não se tornou bailarino da prestigiada instituição. Porém, indo ocupar a chefia do departamento de guarda-roupa do setor de ópera do mesmo teatro, Joãozinho Trinta teve a possibilidade de se aproximar do cenógrafo Fernando Pamplona, à época, também professor da Escola Nacional de Belas Artes. Pamplona é oriundo da primeira turma daquela instituição de ensino de artes plásticas e visuais, na década de 1930, que se beneficia do advento do curso de Arte Decorativa o epicentro de transformações importantes no sentido de refutar o apego à convenção como realizada pela academia, sob a atmosfera de propagação dos ideários e conceitos modernistas nas artes no Brasil. Nesse instante, frente à desvalorização da decoratividade, julgada como superficial reprodução de estilos envelhecidos, desenvolvem-se pesquisas plástico-visuais, para as quais a inventividade era o essencial. À busca de alternativas temáticas correspondia a experiência com novos materiais e procura-se repor, nas condições cariocas, o objetivo, reiterado desde a Bauhaus berlinense, de aplicação das tarefas artísticas no movimento do cotidiano das sociedades industrializadas, através da figura dos designers (Campofiorito, 1971; Gropius, 1974; Durand, 1991).

Na metade final dos anos de 1950, já como docente da Escola de Belas Artes, ao lado de outro professor da mesma instituição, Plínio Lopes Cypriano, Pamplona participou da interação entre "arte e sociedade", aproveitando uma das janelas então abertas na cidade: justamente, o carnaval, promovido pelo poder público. Este, já sensibilizado para o potencial de recursos econômicos e ideológicos a ser extraído do festejo. Tal grupo de artistas plásticos (mais pintores, cenógrafos, arquitetos e escultores) detinha o instrumento de servir ao sentimento da festa com formas atualizadas, expressando-o em cenarizações pertinentes ao feixe de segmentos sociais e interesses que passam a tomar parte da brincadeira carioca. São compostos grupos, reunindo equipes responsáveis pela elaboração e montagem de enormes pranchas coloridas, cujas figuras faziam referência à natureza tropical ou à herança do barroco colonial, no alto das principais ruas e avenidas do centro do Rio de Janeiro. É dessa maneira que o ambiente carnavalesco se torna uma importante vitrine para exposição da originalidade do gênio criador, no que toca ao desenvolvimento e à aplicação de novas técnicas de figuração, as quais deveriam ser acessíveis ao "grande público".

Por intermédio das relações estabelecidas com Pamplona, Joãosinho Trinta integrará uma das equipes ocupadas com a decoração das ruas do centro da cidade para o carnaval. E fora, também, por essa oportunidade que se inseriu no âmbito de produção carnavalesca das escolas de samba. Isso, em 1963, no momento em que, no barracão do Grêmio Recreativo Acadêmicos do Salgueiro, tornou-se assistente de decoração de alegorias do igualmente cenógrafo do Teatro Municipal, Arlindo Rodrigues. Seja de acordo com a memória dos seus participantes, seja na consulta à bibliografia especializada, a presença da equipe comandada por Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues na agremiação Acadêmicos do Salgueiro é tomada como inaugural de um novo estágio na evolução estética do Desfile das Escolas de Samba. Com fortes evocações modernistas, conhecido como o "Grupo do Salgueiro", esse círculo cultural funcionou como laboratório de experimentos e soluções à montagem do padrão de espetáculo audiovisual que vem predominando ao longo das últimas décadas no evento. Na continuação do nosso exercício sociogenético, então, vamos esmiuçar melhor a formação do ambiente carnavalesco carioca, em que as cadeias de produção e mediação institucional puderam abrigar esse grupo e conceder sustentáculo às suas elaborações e intervenções artísticas. Sob esse aspecto, acolhemos a percepção do próprio Fernando Pamplona, quando ele afirma que a chamada "revolução estética" viria com ou sem o Grupo do Salgueiro, porque o "Teatro Municipal e a Escola de Belas Artes estavam no caminho do desfile". De fato, desde o século passado, a preparação da festa consistia em um campo de trabalho alternativo para a mão-de-obra constituída por artistas plásticos e visuais. E isso facultou o trânsito de ideias e técnicas cujos resultados alteraram os formatos das expressões no evento. Algo assim acena para certa permeabilidade de instituições comprometidas com o estatuto da arte erudita no que se refere à cultura popular urbana carnavalesca. Sobretudo, incita o olhar sobre a porosidade do ambiente carnavalesco na cidade; é esta a porta pela qual os artistas plásticos e visuais são integrados aos esquemas produtivos da festa.

Aprofundar o último aspecto requer levar-se em conta um tipo de festa popular - doravante denominada de festa-espetáculo - no qual se mesclam produção e celebração coletivas denotadas pelo congraçamento amplamente compartilhado com a lógica da exibição artística4 4 A referência a essa lógica está calcada na concepção de Paves (1987) de que o espetáculo compreende algo realizado para ser observado por determinado público com fins de diversão. . Como um processo social de ritualização da dimensão das expressões humanas, relacionado com determinada questão a ser enfrentada no encadeado das práticas, a festa-espetáculo, sobretudo do gênero Desfile de Carnaval, define-se por uma mesma tipificação de exibição pública em formato de desfile, no qual são encadeados atos e gestos, conteúdos vários, na elaboração de imagens expressivas. Assim, adquire regularidade a ocorrência e reocorrência de condutas homogeneizadas pelo sentido operístico, mas deambulante ao se realizar na rua. Podemos concluir que essa motivação intrínseca à formação sociocultural desse gênero lúdico-artístico forjou, na cidade, um ambiente carnavalesco de encontros entre âmbitos distintos da cultura artística urbana, em especial dos artistas plásticos e visuais aninhados na Escola de Belas Artes e no Teatro Municipal com as escolas de samba. Na sequência da exposição, portanto, vejamos mais de perto como as condições inerentes à cultura carnavalesca carioca e seu ambiente de produção, agenciamentos, mediações e recepção favoreceram a alocação do Grupo do Salgueiro no Desfile de Carnaval.

Queiróz (1992) chama atenção ao fato de as alterações observadas nos festejos carnavalescos cariocas, na passagem do século XIX para o XX, estarem relacionadas com a interseção do predomínio da estrutura urbana com a afirmação dos estilos de vida burgueses (Nedell, 1993). Sob os auspícios desses remanejamentos, conclui Queiroz (1992), o modelo de folia, consolidado na França e Itália, se espraiara por toda Europa, atingindo Lisboa e a Cidade do Porto e, simultaneamente, o Rio de Janeiro. O estilo materializava-se nos bailes de máscaras (à luz dos bailes venezianos) e nos préstitos (desfiles das grandes sociedades e seus grandes carros alegóricos, ainda, os corsos de charretes e, depois, de automóveis). Impõe-se esta como a forma "civilizada" de brincar o carnaval, denominada de "Grande Carnaval", distinguindo atores e expectadores na festa. A autora afirma que, entre o final do século XIX e os anos de 1940, uma clivagem desmembrara a folia carioca em duas dimensões assimétricas: dominante na cena do folguedo, o "Grande Carnaval" passou ao centro dos festejos comemorados pelos burgueses; relegados à marginalidade, os membros das classes desfavorecidas ou tornaram-se meros espectadores do brinquedo dos ricos ou teriam "resistido" no chamado "Pequeno Carnaval". Este último, concretizado nas brincadeiras do entrudo e em todas as manifestações lúdicas das classes populares, identificado, agora, como ato de barbárie e selvageria, restando a perseguição policial e o preconceito veiculado nos jornais da época. O recurso à topologia em que "popular" e "burguês" são tomados como identidades estanques, portanto, resulta em um obstáculo para entender as mediações entre o "grande" e o "pequeno" carnavais como fator crucial no advento e na consolidação de entes como os ranchos, saudados e celebrados vedetes da folia entre as décadas de 1920 e 1940 (Ferreira, 2004, p. 225-307).5 5 Para um debate acerca do panorama bem mais heterogêneo e de deslizamentos entre grupos e classes do que o permitido pela polaridade entre "pequeno" e "grandes" carnavais, ver Cunha (2001, p. 150-304). Ao mesmo tempo, deixa-se em suspenso o trânsito do modelo desfile aos grupos que constituíram as escolas de samba. Em outra oportunidade (Farias, 2006, p. 31-32), optamos por discernir a diferenciação institucional do carnaval-espetáculo carioca dentro de um processo de polimento civilizatório em que a natureza deste se define pela estilização das manifestações no folguedo carnavalesco, classificado como atividade cultural. Cruza-se, nessa dinâmica sociocultural, a relevância obtida por um padrão de civilidade urbana em consonância ao processo de pacificação estatal das relações sociais, na medida em que o ordenamento estatal impõe o monopólio do uso legítimo da violência física. A emergência do modelo Desfile de Carnaval, com suas bases ampliadas entre tantos e diversos grupos, deu-se na interseção de um e outro aspecto; doravante, essa modelagem se firmou como um estruturante e prescreveu, normativamente, as práticas pacíficas lúdico-artísticas de exibição pública, no interior de um campo de interação caracterizado pelo divertimento plebeu.

Se, então, acreditarmos estar, nessa prerrogativa da aliança entre civilidade e polimento lúdico-estético, o imã do espaço de interação do Desfile de Carnaval, mas considerando que palavras como "grande" e "pequeno" carnavais, também "cultura erudita" ou "popular", escondem uma gama formidável de heterogeneidades sociossimbólicas, desde já se colocam em exame as maneiras como certos atributos desses polos coagularam a constelação em que o carnavalesco toma a dianteira estética do desfile das escolas de samba. Com esse intuito, retomo o vínculo entre o ambiente carnavalesco carioca e a dinâmica histórica de modernização cultural na cidade a partir da seguinte triangulação: o esteio institucional ao desenvolvimento da cultura artística ocidental na cidade, o modernismo estético e a intervenção do intelectual-artista na escola de samba.

Importante porto escoador da produção aurífera da região das Minas Gerais, no Centro-Sul do país, no século XVIII e, mais tarde, da produção açucareira e cafeeira, ao mesmo tempo que angariou as vantagens de ser o maior receptáculo do comércio de mão-de-obra escrava de procedência africana, o Rio de Janeiro se tornou um ponto intersticial entre a América portuguesa e a fase em que a sociedade burguesa urbano-industrial se enraizava na Europa ocidental. Desse modo, com a chegada da Família Real portuguesa, em 1808, a cidade se tornou a parte principal do deslocamento do eixo político-econômico do Nordeste para o Sudeste brasileiro, concentrando as principais atividades e instituições ligadas às funções administrativas, financeiras, industriais, culturais e educacionais. Assim, mesmo estando na periferia do sistema internacional e da economia-mundo capitalista, durante o século XIX e a primeira metade do XX, o Rio de Janeiro participa do alargamento das interdependências que ancoraram a introdução, no Brasil, da cultura letrada e livresca ocidental. A adoção de estilos de vida compatíveis com os costumes urbanos burgueses europeus, separando negócios de lazer, ao mesmo tempo que lança as bases para a emergência da economia da diversão, exigiu uma alteração na materialidade para alocar o desenvolvimento da cultura artística orientada pelo princípio da subjetividade do criador e da recepção (Gumbrecht, 1998). Embora distanciados em suas respectivas fundações por quase cem anos, a Escola de Belas Artes e o Teatro Municipal são expoentes dessa longa transformação pela qual a antiga colônia luso-ibérica tanto se tornava uma sociedade-nação, quanto passava a compor a órbita da civilização moderna. Aquelas duas instituições fazem parte do quadro mais amplo do que poderíamos chamar da modernização dos fazeres estéticos no país, incrementado com a presença da missão artística francesa, estando estribada na valoração da intencionalidade artística e no acervo de conhecimentos da cultura letrada e livresca do ocidente. O raio de alcance da influência de ambas no fomento de aprendizados e, assim, no desenho de subjetividades, ajuda a entender por que o jovem Joãozinho Trinta canalizou para o Teatro Municipal suas aspirações de chegar ao estrelato no balé clássico. Também, de ter sido o mesmo Municipal o espaço estratégico para facções saídas da Escola de Belas Artes, com formação modernista e movidas pelo credo na politização da arte e na estetização do cotidiano. E, ainda, de o encontro entre Joãozinho Trinta e Fernando Pamplona, dois especialistas em artes plásticas e visuais, ter ocorrido no mesmo teatro. Ingredientes estes, quando somados, fizeram-se importantes na mudança mais ampla nos modos de expressão e comunicação no carnaval carioca, a partir dos anos de 1960. O que podemos questionar é quais fatores motivaram a decisão desses artistas de rumarem para a escola de samba. Estamos convencidos de que o predomínio da visão modernista entre faixas extensas do campo cultural erudito, tendo respaldo em setores vinculados aos órgãos estatais e, também, com ressonância em instâncias civis, favoreceu o recrutamento e o modo de ingerência de agentes como o Fernando Pamplona nas engrenagens do âmbito popular da cultura urbana carioca.

Nota Williams (2011a, p. 9-25) que as aglomerações urbanas que geraram em andamentos crescente as metrópoles desde o século XIX, correlacionadas, direta ou indiretamente, com a industrialização, tornaram-se nichos para o enlace de instituições e tecnologias com impacto nos caminhos da arte modernista, em especial no advento das vanguardas artísticas. Essas grandes cidades, centros de impérios coloniais à maneira de Londres e Paris, mais tarde, Berlim e Nova Iorque absorveram magotes humanos tão heterogêneos e, com eles, uma miríade de acervos culturais. Como metrópoles coloniais, sagraram-se catalisadoras de disposições intelectuais e estéticas muito diversas. No movimento de triagem e alocação dessas percepções metropolitanas em círculos culturais e instituições, deu-se a soldagem da perspectiva modernista. Enfim, mediante teatros, galerias de arte, museus, academias literárias e de ciência, em sintonia com o surgimento de editoras, jornais, revistas, salas de exibição cinematográficas, emissoras de rádio e de televisão, a visão de mundo modernista e seus critérios procedimentais se inseriram no cotidiano planetário. Nesses mesmos núcleos, compuseram-se retenções de recursos simbólicos e socioeconômicos, facultando a distinção entre "minorias" e "massas", arte de "qualidade" e "popular". Classificações assim penetraram territórios sempre mais vastos, informando produções e posicionamentos em favor da universalidade de certos conceitos estéticos, intelectuais e artísticos, pois estariam nos fundamentos mesmos da condição humana. Com isso, teriam sido estabelecidas hierarquias entre os fazeres artísticos.

Frente aos resultados dessa expansão, mas enquanto uma das feições tomadas pela cultura letrada e livresca do ocidente, de acordo com Néstor García Canclini (1990), o caráter híbrido das formações socioculturais latino-americanas resulta, na atualidade, em parte, do caminho tomado aqui pelo modernismo, desde os primórdios do último século. Ao contrário do seu congênere europeu, diz o autor, nesse continente, o modernismo não se reduziu à pesquisa estética, porque se aliou a um projeto político de modernização mais geral das suas sociedades e de construção de identidades nacionais. Atuaram seus artífices entrecruzando temporalidades a priori antagônicas, nacionalizando a técnica de vanguarda, conformando a cor local em um patamar mais universalizável, moderno no sentido de algo adequado ao curso do tempo histórico (Canclini, 1990, p. 71-80). No Brasil, ao lado de São Paulo, o Rio de Janeiro então capital federal - protagonizou a publicização da mesma perspectiva para o restante do país, na medida em que os grupos culturais, envolvidos com seus princípios, traduziram em questões nacionais seus imperativos cosmopolitas e universais (Gomes, 1999; Vianna, 1995). Inseridos em círculos culturais e ocupando espaços em vários equipamentos e instituições culturais, esses intelectuais lançam mão de temáticas e manifestações identificadas à cultura popular, dão-lhes prioridade nas reflexões e obras. Pelo mesmo caminho, centralizam posições habilitadas a refazer classificações e deliberar novos conceitos de arte, em obediência à prioridade posta na cultura e identidade nacionais modernas (Santiago, 2002). Desse modo, no âmbito mesmo das artes plásticas, a tentativa de modernizar culturalmente o país estava respaldada na aspiração de ser moderno, porém os artistas plásticos tomaram às mãos uma "brasilidade" contestadora da arte acadêmica, então consagrada. Essa cor local, mesmo buscando soluções nas vanguardas europeias, prendia-se à figuração de uma paisagem tropicalmente colorida, mestiça e ondulantemente vivaz no dia-a-dia do povo (Amaral, 1972; Brito, 1983, p. 13-14; Fadel, 2006, p. 34-75).

Algo semelhante se deu no Grupo do Salgueiro. No instante em que ocupam uma peça importante do sistema cultural urbano carioca, a escola de samba, os seus membros conjugam popular e nacional e participam do contexto mais amplo, no qual se travou o debate e se firmaram atitudes em torno da questão da modernidade no Brasil (Faria, 2011). O interesse demonstrado pelos artistas em mesclar a cotidianidade, prenhe dos acervos da tradição popular - a qual já fora recolhida na memória pictórica erudita desde a missão francesa no início do século XIX -, com o cosmopolitismo internacional da técnica, ressoa a perspectiva calcada no ímpeto modernizador de intelectuais e artistas comprometidos com um projeto nacional-popular. Por isso, na postura do Grupo do Salgueiro, o aspecto temático dos enredos torna-se o ponto de partida. De acordo com Pamplona, graças à aproximação entre duas culturas, a popular e a erudita, em lugar das celebrações dos vultos da história oficial brasileira, excitaram o "povo" a narrar seus próprios heróis e episódios encobertos (Pamplona, 1984). Ou seja, a proposta estava em incentivar a cultura popular a ser expressiva de toda a épica dos subalternos no país. A chamada "temática negra" no carnaval floresce nesse solo, com a proposta de realizar o enredo Palmares, em 1960 (Cavalcanti, 1990). A articulação existente entre o interesse estético-artístico e as motivações de fundo ideológico pesaria na escolha do enredo. Fazia-se eco com a prerrogativa de subordinar o artístico à política, o que significava escapar da arte "alienada", descolada da realidade cotidiana e sem impulso para a mobilização popular. Na cabeça dos membros do Grupo do Salgueiro, a rememoração do episódio do Quilombo de Palmares inseria-se perfeitamente no propósito nacional-popular de devolver, ao presente das classes populares dominadas, o fôlego guerreiro dos africanos subjugados como escravos, mas capazes de resistir e erguer uma solidária comunidade autônoma, durante o passado colonial. No imaginário desses intelectuais românticos revolucionários, a luta pela liberdade unificaria um e outro tempo; a pesquisa estético-antropológica das origens do homem brasileiro se moveria pela locomotiva da história e tinha a política como maquinista (Ridenti, 2000). Seria ela responsável pela conciliação entre artistas e classes populares. Logo, comungavam os membros do Grupo do Salgueiro da mesma mentalidade iluminista advinda das gerações modernistas desde a década de 1920, para a qual o intelectual tinha nas mãos a missão de modernizar o país (Martins, 1987, p. 85). O empenho em vencer o atraso estava coligado à tarefa de desalienar as massas.

É preciso, porém, matizar tal ímpeto romântico revolucionário, no tocante à antecedência da política frente à cultura. Isso, na medida em que reconheçamos, na postura desses agentes, um componente da herança modernista advinda mais diretamente das vanguardas artísticas próprias às artes plásticas. Traçamos aqui um breve paralelo com a concepção dos pioneiros centro-europeus da arte modernista. O artista plástico húngaro Lazlo Moholy-Nagy é exemplar. Membro da Bauhaus de Berlim, nos anos de 1920, para ele, a nova humanidade resultaria de novas formas de representação. Propõe uma pedagogia formativa das massas a ser exercida pela educação dos sentidos, pela valorização da visualidade. A cor, a figuração, os ritmos e a direção, afirma, seriam os elementos cruciais dessa revolução, frente ao logocentrismo burguês. Não coincidentemente, veremos, Pamplona e seu grupo recorrem, à maneira de Picasso, à plástica negro-africana no intuito de "revolucionar" o desfile carnavalesco das escolas de samba. Entendia-se que a alteridade reconhecida nos elementos da semiótica nagô-iorubana seria uma ferramenta no desmonte dos cânones da imagem predominante até aquele momento do grande cortejo, mas em consórcio com a tarefa de fazer reencontrar o povo com seu passado, resgatando-os da história da dominação de classe e étnico-racial. Por outro lado, dava-se continuidade, assim, às propostas do modernismo brasileiro de realçar o cotidiano nacional, resgatando, para isso, as raízes culturais do povo-nação. Nesse sentido, para esses agentes, a noção de carnavalesco abarcava outra dimensão semântica: a importância do Grupo do Salgueiro residiria na ausência de uma dominação, mas no exercício pleno de competência, de uma atividade intelectual e técnica, no caso a de elaboração plástico-temática a serviço da potencialização da tradição nacional-popular do samba.

Há evidente intuito pedagógico nessa postura dos membros do Grupo do Salgueiro, que os vai definir como "esclarecedores" e os leva a assumir, por diversas vezes, posturas autoritárias6 6 O propósito fazia eco com as ideias à esquerda sobre a cultura popular. Manoel Tostes Berlinck (1984), por exemplo, observa que o pensamento de Carlos Estevan Martins, ideólogo das experiências de produção cultural do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, naquele mesmo período, tinha por premissa tomar as manifestações populares como "alienadas", urgindo o trabalho esclarecedor das vanguardas políticas e intelectuais junto às massas, reitera a imagem das elites revolucionárias como agentes da emancipação e naturalmente designadas para o comando. . A caracterização do monopólio estético desses agentes é possível, apenas, à luz, não somente da funcionalidade das práticas, mas, também, da posição do evento no âmbito carnavalesco, naquele momento. A classificação dos membros do Grupo como "artistas" possibilita entender a articulação entre os dois planos. Porque dono da prerrogativa modernizadora, o Grupo teria optado em criar novas direções para o Desfile das Escolas de Samba, a meramente reproduzir fórmulas já consagradas. Mesmo enfrentando, como recorda Joãozinho Trinta, a "estrutura fraca, quase folclórica" da escola de samba naquele momento, seus membros se empenharam ao máximo no "retirar da cabeça o que no bolso não há" (na acepção de Pamplona). Precariedade e criatividade são termos recorrentes na descrição do período, já que o investimento no dado extraordinário diferenciador do autor/artista seria o trunfo nas mãos de quem possuía técnica e conhecimento teórico para manipular temáticas e materiais, embora a racionalização administrativa e a comercialização do carnaval carioca e do grande Desfile, em particular, estivessem ainda bastante aquém para dar suporte a uma estrutura eficiente à produção de grandes espetáculos.

A questão do "impacto" visual e temático mobiliza as ações do grupo e repercute junto aos meios e segmentos sociais notabilizados pela formação de opinião, como jornalistas, literatos, artistas e outros. Assim, ao substituírem as figurações baseadas na nobreza da corte imperial brasileira pela nobreza iorubana, introduzem as vestes e cores da África negra, inspiradas nas gravuras de Rugendas e de Debret. Com o deslocamento temático-ideológico, vieram, para o cerne das cenarizações da escola de samba, os folguedos populares estilizados, como a congada, o maracatu e o bumba-meu-boi. Em lugar do uso de lâmpadas artificiais na cabeça dos integrantes das agremiações, alimentadas à bateria, escondida sob as roupas, dificultando-lhes os movimentos, "ensinaram" a usar o espelho para atrair luz e produzir brilho, como já faziam o candomblé e o reisado. Introduziram os plásticos, o verniz, os brocais, a renda, entre outras matérias-primas empregadas nas montagens teatrais e no âmbito televisivo. Formalizam o planejamento do percurso, mediante a definição de organogramas e roteiros, distribuindo, na pista, alas, alegorias, o conjunto de ritmistas, baianas e passistas, segundo posições estratégicas7 7 Informações da professora da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro e carnavalesca (membro do Grupo do Salgueiro), Maria Augusta Rodrigues, recolhidas no depoimento dado ao autor (16/01/1993). Para ela, algo assim ilustraria a relação de "guilda" existente nesse momento de organização da categoria, é o fato de Maria Augusta, recorrentemente, descrever a formação do carnavalesco como "medieval"; seria, diz, nos barracões das escolas (as oficinas) onde os "aprendizes" herdariam o conhecimento acumulado pelas mãos do seu mestre, ao vê-lo trabalhar. Ela foi aluna de Pamplona e se considera discípula dele e de Arlindo Rodrigues; o Salgueiro é, como fala afetuosamente, sua "escola-mãe". . Incluem a novidade dos tripés móveis, sobre os quais são colocadas peças da cenografia; e a adoção dos altos estandartes confere verticalidade ao cortejo, inspirados nas procissões católicas. Para esses agentes, o processo deflagrado significou um resgate da tradição popular colonial, mas concatenada às formulações revolucionárias fundadas no conhecimento produzido no presente. Se a aquisição de um "bom-gosto" seria, então, decorrente do retorno às fórmulas simples encontradas na própria realidade e memória populares, o resgate do folclórico comparece, não em seu dado rústico, mas reelaborado pela mão intencionada do especialista, na tarefa de distribuição da proporção das formas e das cores e, ainda, na combinação de materiais segundo uma programação visual e cênica. Em síntese, imbuídos do princípio que se poderia chamar de didático-culturalista, Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues, juntos com o casal de artistas plásticos Dirceu e Marie Louise Nery - já instalados no Salgueiro desde 1959 -, cimentam a função do carnavalesco, fixando-a como central na concepção e elaboração do Desfile da Escola de Samba; a partir daí, é um verdadeiro laboratório à preparação alquímica do "novo" carnaval que despontava. Isso pela reacomodação de todo artesanato teatral então encontrado no seio do festejo e, agora, redimensionado e sistematizado sob os auspícios da formação erudito-acadêmica dos novos personagens inseridos na escola de samba. Como mestres, Pamplona e Rodrigues abriram o barracão carnavalesco para jovens acadêmicos (alunos do primeiro na Escola de Belas Artes) ou profissionais do universo teatral, já bastante ampliado na cidade. Eis o conjunto que garantiu a primazia da agremiação Acadêmicos do Salgueiro durante 16 anos, período em que, além de conquistar sete títulos, tornou-se o modelo de "modernidade" no carnaval carioca.

O eixo hermenêutico popular da cultura brasileira, quando folclorizado, dava suporte a todo trabalho e visualizava a ideologia culturalista com o propósito de valorizar as mestiçagens de matérias e técnicas, teve incidência na escolha dos enredos (Rodrigues, 1987). Numa sequência dos enredos, teríamos o já referido Palmares (1960), com o intuito de reviver a epopeia do herói negro Zumbi; a história do célebre artesão colonial mineiro, o mestiço Aleijadinho (1961); a também negra Chica da Silva (1963), mítica escrava cujos encantos a transformaram na mais cobiçada dama de Diamantina nas Minas Gerais, no auge do ciclo do ouro, e que proporcionou um cortejo ilustrado, por exemplo, com liteiras, salão de baile onde casais de bailarinos do Teatro Municipal dançavam o minueto; o arguto herói negro Chico Rei (1964), inspirado na obra erudita de Francisco Mignone, estilizando a congada de Ouro Preto no asfalto. Ainda, o metacarnaval de 1965, contando a História do Carnaval Carioca, no retorno aos rituais de embriaguez dedicados ao deus grego Dionísio, à festa medieval, ao entrudo português, ao luxo do carnaval burguês do século XIX, vestindo a bateria de "pierrô", integrada, pioneiramente, no conjunto dramatúrgico do enredo e abrindo a passeata com a notável comissão de frente formada por burrinhas em vime para fundir a história da cidade com a da sua "festa maior"; a epopeia da História da Liberdade no Brasil (1967); a ousadia sensual de Dona Beija (1968); a exaltação do "berço nacional", em Bahia de Todos os Santos (1969), quando uma prateada Iemanjá de papier maché alegórica (cercada de flores e oferendas) e a produção de uma feira popular com todas as frutas, iguarias, peças do artesanato baiano e sinais da fé afro-brasileira causaram frisson na Avenida Presidente Vargas; a homenagem ao próprio samba carioca na encenação de Praça XI, Carioca da Gema (1970). A síntese de toda a mentalidade do Grupo é materializada no enredo Festa Para Um Rei Negro (1971); para esse enredo, a partir da tese de mestrado da então discípula Maria Augusta Rodrigues sobre artes figurativas no Brasil, manejou-se a palha, a estopa, o vime, para recriar a colorida economia semiótica africana, ajudando a compor a visita fictícia de um rei africano a Maurício de Nassau, em Pernambuco, durante a invasão holandesa. A cena traduzia a mestiçagem entre o esplendor da corte europeia e a exuberância exótica da África negra. Mas, sobretudo, acentua-se, aqui, a tendência em curso: o cortejo perde a solenidade didática em favor do caráter de festividade pública para uma variada e anônima plateia, exibindo signos de acessível comunicação, realçando a carnavalidade tropical brasileira. O que comparece, também, na verdadeira festa gastronômica brasileira, montada na pista, quando da apresentação do enredo Do Canim ao Efó Com Moça Branca Branquinha (1977), inaugurando o humor político-social no Desfile das Escolas de Samba, ao trazer frases satíricas aludindo à fome devastadora de milhões de brasileiros.8 8 Para montar a síntese descritiva apresentada neste parágrafo, infelizmente, não contei com fontes, diria, diretas. Isso porque os croquis, desenhos, plantas e argumentos dos enredos citados, a maioria desse material se perdeu ou está disperso. Apenas recentemente tem havido a preocupação de arquivar tão valioso acervo. Recorri, então, aos depoimentos (os de Pamplona, Joãosinho Trinta, Laila e Maria Augusta, foram cruciais), à excelente etnografia de Helenise Guimarães (1990) e às reportagens de alguns periódicos. Privilegiei, entre estes, as revistas Manchete e O Cruzeiro, cujas longas periodicidades de suas edições abarcam os carnavais focalizados aqui e o material fotográfico nelas impresso ofereceu momentos das cenas aludidas acima.

O monopólio do conhecimento fundado na cultura letrada e livresca em sua dimensão artístico-subjetiva se faz condição para o carnavalesco ocupar o topo hierárquico do comando estético da escola de samba. O artista-intelectual é inserido na escola de samba na posição, um tanto isolada do erudito artista-intelectual, capaz de identificar e avaliar as propriedades dessa entidade e das suas apresentações no sentido de incrementá-las. Ao mesmo tempo, exerce o papel do legislador, definindo o que é "próprio" e o que é "espúrio" à cultura popular das escolas, depurando os inconvenientes para ressaltar as virtudes, devido à distância relativa que se encontrava da comunidade natural popular da agremiação. Sem dúvida, um dos efeitos da presença do Grupo do Salgueiro foi potencializar o Desfile de Carnaval das Escolas de Samba como um gênero de expressão e comunicação. Para tomar de empréstimo uma ideia de Bauman (2010, p. 65),9 9 Bauman foca a correlação estabelecida no curso histórico das sociedades nacionais europeias entre as facções ilustradas e outros segmentos dominantes na composição dos espaços de poder. Dessa maneira, executa uma sociogênese do nexo poder/conhecimento. Ou melhor, volta-se à apreensão da dinâmica histórica em que o ponto de vista dos philosophes sai de uma posição marginal e emergencial até se impor como uma ortodoxia. E o que seria próprio a esse ponto de vista? Exatamente a credulidade na competência humana, por intermédio dos seus recursos cognitivos, mentais, de domar os fatores que geravam insegurança. a posição de poder do carnavalesco emerge sob o status do ilustrado modernista, ou seja, celebrado por sua competência cognitiva, capacitando-o ao exercício de se inserir, intencionalmente, no curso dos episódios, impondo um ritmo e domesticando a instabilidade dos acontecimentos, enfim, promovendo a ordem. À maneira do filósofo iluminista, a atitude de projetar ultrapassa o fazer técnico, pois sua intervenção tem o sentido de antecipação frente ao empírico, mediante o esforço sistemático de conceituar, integrando os elementos heteróclitos como partes de um único todo.

Entretanto, a aplicação da prerrogativa sociológica à narrativa desse personagem no escopo da cultura carnavalesca carioca requer destacar as interdependências, com as mudanças culturais e os processos sociais, de um ponto de vista mais abrangente. Assim, desvelar o modo de constituição da posição desse intelectual exige vasculhar o outro setor da cadeia produtiva e institucional do mesmo ambiente, ou seja, a contrapartida oferecida pela escola de samba, no sentido de motivar o ingresso desses agentes como especialistas em produção cultural nas suas fileiras.

O "ARQUITETO" DO SUPERESPETÁCULO

Podemos sugerir que a canalização, para as cadeias produtivas da apresentação das escolas de samba, das ideias e técnicas portadas por facções de artistas plásticos e visuais, com forte ênfase modernista, também esteve em consonância com as lutas, com vistas a assegurar uma visibilidade digna a grupos emergentes na estratificação social, em meio aos deslocamentos nos coeficientes de poder entre os segmentos grupos que conquistavam posições na grande vitrine da folia no Rio de Janeiro. Os passos dados nessa conquista impeliram a ressemantização do lugar do intelectual-artista; do filósofo, acentua-se a compreensão sobre o especialista dotado de recursos técnicos para realizar o modelo do superespetáculo audiovisual de forte apelo entre audiências amplas e heterogêneas.

O Grêmio Acadêmicos do Salgueiro é, mais uma vez, heurístico. Os fatores que contribuem para que as transformações estéticas nas escolas de samba fossem detonadas nessa agremiação estiveram fortemente ligados ao modo como, de um forma geral, no aumento na base social dessas entidades e dos seus desfiles, a questão do gosto do público expectador ascendeu como um ponto estratégico para as suas lideranças. Fundada em 1954, a agremiação não contou com nomes de destaque da geografia cultural que conforma o mundo do samba carioca, a qual relaciona as atualizações de matrizes culturais africanas e coloniais com os caminhos trilhados pelo negócio da diversão popular na cidade e, assim, repercutiu nas tramas radiofônicas e da indústria fonográfica (Bessa, 2010, p. 27-44). Situada no bairro da Tijuca, na época, área majoritariamente habitada por uma população de classe média (profissionais liberais, funcionários públicos), a escola, desde o início, teria atraído moradores da região e intelectuais. O comerciante local Nelson Andrade esteve à frente de parcelas desses moradores que começam a buscar na entidade um espaço de diversão e visibilidade das suas imagens para fins políticos e em busca de dividendos financeiros. Ao chegar à presidência, ao lado do banqueiro do jogo do bicho, Osmar Valença, Nelson Andrade logo introduz o lema: o Salgueiro não era uma Escola "nem melhor, nem pior, apenas diferente". O apelo é à inserção de novidades, mas sob a regulação do planejamento dos cortejos. Entre as ideias postas em prática durante sua administração, a retirada da corda que protegia o grupo de componentes foi a mais sintomática. Ele alegava constituir a corda algo "medieval". Propõe, então, outras maneiras mais "eficientes e modernas" de ocupação dos espaços (Costa, 1984; Alves Filho, 1987). Coube a Nelson Andrade a responsabilidade de bancar a presença dos artistas-intelectuais no Salgueiro. O processo em curso sinalizava que a performance individual do sambista, cujo predomínio do ritmo e da música sobre o conjunto decidia a horizontalidade e, ainda, fomentava o caráter rarefeito da exibição, mostra-se inadequado para atender à demanda de preencher espaços, o que se tornara imperativo à sobrevivência e desenvolvimento das escolas no carnaval da cidade. A imposição, mais tarde, da cronometragem dos desfiles, no momento que estabelece um tempo limite para cada apresentação, sela a transformação; afinal, objetivava-se viabilizar comercialmente o evento.

No início da mesma década de 1960, em meio à necessidade de reorientar a economia local, após a transferência da capital federal para Brasília e a criação do Estado da Guanabara, durante o governo Carlos Lacerda, ocorre a transformação do Departamento de Turismo e Certames em uma autarquia, mais tarde denominada de RIOTUR, com a finalidade de potencializar o Rio de Janeiro como um destino turístico. Opções feitas no quadro macrossociológico de aumento das interdependências funcionais, incluindo a extensão do comércio de diversão e lazer promovidos pelos serviços turísticos, em escala planetária. Desse instante em diante, as articulações entre poder público e comercialização do carnaval, iniciada em meados dos anos de 1920, alcança outro patamar (Farias, 2011, p. 146-195). É executado um conjunto de procedimentos visando montar a infraestrutura por parte do Estado e, com isso, favorecer a implementação do empresariamento cultural privado e estatal, a fim de corresponder, adequadamente, ao fluxo maior de turistas que, a cada ano, elegia o carnaval carioca para "brincar". Algo que remete tanto ao interesse do poder público de gerenciar o evento, assumindo-o como patrimônio simbólico da cidade, capaz de ser convertido em bem econômico e fator estratégico de divulgação, quanto ao perfil de valores dos visitantes, pois a plateia pretendida é referendada em valores como "conforto" e "bem-estar" e tem na atitude contemplativa um parâmetro de inserção participativa. Instaura-se, doravante, uma ação estratégica do poder público, instrumentalizando recursos e esforços nesse sentido, tornando a Avenida do Desfile o grande teatro da festa carioca. A relação entre o Estado e as escolas de samba abandona, rapidamente, o caráter tático e precário. Enfim, ao se tornar o principal "bem público", monumento cultural da cidade, o Desfile de Carnaval consistirá, igualmente, no polo das estratégias que sintonizam a redefinição do Rio na economia capitalista como sítio turístico. Cito alguns pontos expressivos da iniciativa de semiestatização do evento. Em princípio, a substituição dos antigos palanques armados na Avenida Rio Branco, próximos à Igreja da Cinelândia, no centro da cidade, já que estes são julgados acanhados para hospedar a procura crescente de visitantes, sobretudo norte-americanos. Em seu lugar, são montadas arquibancadas, inauguradas em 1962. No ano posterior, o aumento do número de assistentes e de componentes das escolas concorre para decisão de transferir o local de desfiles. Na época, representante dos interesses das agremiações, a Associação das Escolas de Samba ensaia, então, reivindicar um lugar fixo para as apresentações, porém logo é definida a Avenida Presidente Vargas. O mesmo crescimento vertiginoso da oferta e procura de espaços determina a elevação das estruturas metálicas das arquibancadas e, simultaneamente, sua expansão horizontal até atingir a cifra de cem mil lugares, na segunda metade dos anos de 1970. À semelhança do já ocorrido em outras regiões da cidade, vimos, será promovido, a partir de 1963, um concurso público visando à escolha de projetos para a decoração da cidade, no geral, e especialmente do local de desfiles (Araújo, 1987; RIOTUR, 1991). Mais tarde, em 1974, a Avenida dos Desfiles ganha notoriedade pela capacidade do poder local em substituir o improviso pela comodidade, introduzindo o conforto para a constelação de sumidades (empresários, estrelas e astros do cinema, televisão e esporte, entre outros) nela presente. Em 1981, surgem as cadeiras de pista, visando atender uma faixa de consumidores intermediários entre os capazes de comprar camarotes e os frequentadores de arquibancadas, para assistir e participar daquele espaço de diversão tornado, simbolicamente, raro, na medida em que, fisicamente, o acesso vai se restringindo aos públicos consumidores pagantes.

Concomitantemente a essas alterações, os deslocamentos ocorridos no âmbito da contravenção do jogo de bicho,10 10 Criado, no final do século XIX, pelo Barão de Drumond, para sustentar o seu jardim zoológico, no bairro de Vila Isabel, o jogo do bicho consiste em uma bolsa lotérica ilegal, cujas apostas são feitas em números, representando, respectivamente, animais. Popularizado ao longo do século XX, tornou-se alvo de perseguição policial e fonte de emprego para os segmentos mais pobres. Quanto mais se expandiu pela cidade, mais cruzou com as manifestações culturais populares, à maneira da escola de samba (Mattos, 1992; Soares, 1993). tornando o jogo um sistema, cujas zonas em que se divide estão sob a ordem de um número reduzido de banqueiros dominando a loteria, fomentaram uma bem aparelhada estrutura material e administrativa, a qual serviu de modelo ao trabalho desenvolvido nas escolas de samba, no rastro da inserção de membros dessa mesma cúpula de novos ricos no financiamento e comando administrativo de algumas das agremiações. Algo que se realizou porque, na atitude do banqueiro do bicho, esteve combinado clientelismo, generosidade interessada em obter prestígio entre segmentos subalternos, e mesmo junto às classes médias, além da montagem de máquinas eleitorais formando bancadas de vereadores e deputados em seu favor nos parlamentos. Mas, valendo-se, também, do uso da força bruta, na medida em que recrutou membros da polícia em seus corpos de segurança pessoal (Chinelli e Machado; 1992; Cavalcanti, 1997; Misse, 2007) A partir dessa base, e ressaltados como patronos e mecenas da festa popular, em meio à ascendência da escola de samba como um bem cultural e turístico nacional e internacionalmente prestigiado, as lideranças do jogo do bicho inserem montantes monetários para custear alegorias e fantasias no padrão do superespetáculo. Para isso, não apenas contrataram carnavalescos, mas motivaram o surgimento de uma espécie de profissionalização das competências técnicas nas Escolas, impulsionando como especialização a diferenciação funcional existente. A contratação por uma agremiação do casal de mestre-sala e porta-bandeira ou do puxador de samba (cantor) de outra, devido às boas notas conquistadas junto ao júri, condicionou a mudança no relacionamento entre os chamados "sambistas" e as escolas. O vínculo deixa, então, gradualmente, de estar ancorado na identidade comunitária com a instituição, para se valer do relevo dado à função artística individual no interior do sistema carnavalesco. Mas é preciso considerar que a peculiaridade dessa profissionalização consiste na subordinação do artista popular ao patrimônio e na lealdade para com o banqueiro do bicho (Santos, 2006).

É no escopo da ampla transformação em curso nas engrenagens da festa espetáculo, acompanhando a complexificação das suas cadeias produtivas, de intermediação e de recepção que, aos poucos, a eficiência administrativa dos banqueiros do bicho é reconhecida nas performances bem sucedidas das suas agremiações, quase sempre dividindo entre si os melhores lugares na disputa pelo título. A acumulação do prestígio, facultado pela competência demonstrada, levou-os a dominar, também, os destinos mais gerais das escolas e do evento do Desfile de Carnaval. A inauguração da passarela definitiva, em 1984, - chamado popularmente de "Sambódromo" e assinado pelo celebrado arquiteto Oscar Niemayer - foi tanto o divisor de águas na história do Desfile de Carnaval, como a última gota no esgarçar de uma unidade já anêmica, ante a fisionomia delineada pela sua comercialização e inserção no estatuto do consumo cultural. A individualização dos desfiles das "grandes" escolas de samba como superespetáculo popular acionou a lógica privatista. E a relação de forças entre os interesses assume outra proporção, as escolas de samba são, agora, um elemento de peso no enlaçamento com o poder público e mesmo com as agências empresariais da cultura. Algo manifesto com a reunião de esforços da mesma cúpula de contraventores para criar a Liga Independente das Escolas de Samba LIESA. Essa entidade, diferente da Associação das Escolas de Samba, organiza-se como empresa privada sem fins lucrativos, composta pelo pequeno clube de agremiações que a fundou, não aceitando novas filiações e mantendo o direito de voto restrito aos 33 membros fundadores da entidade. Eles escolhem o presidente, que opera, conjuntamente, com o departamento financeiro, a direção executiva e com a assessoria de comunicação e imprensa. A premissa técnico-empresarial da LIESA se manifesta no caráter liberal de seu estatuto. Se lhe cabe promover eventos dedicados ao lazer, cultura e diversão, ela está impedida de se manifestar sobre "[...] assuntos de natureza partidária, nem engajar-se em campanhas de tal teor [...]" (Estatuto da LIESA, 1985).

Para além da substituição da subvenção paga pelo poder público pela participação direta no montante recolhido com a comercialização das dependências do Sambódromo, outra conquista decisiva da LIESA diz respeito à redefinição dos termos contratuais e dos valores monetários referentes à venda, por parte das escolas de samba, do direito de imagem para as redes de televisão comercial que transmitiam os desfiles, desde o início de 1970. As muitas disputas entre as lideranças das escolas de samba e as direções das emissoras comerciais de TV vieram a reboque do fato de que, paulatinamente, a televisão se incorporou ao evento (Farias, 2006, p. 241-265). A construção do local definitivo naturalizará essa conjunção, no instante em que contempla, na arquitetura do espaço, cabines específicas à montagem dos estúdios televisivos, uma torre para instalar tanto antenas de microondas, quanto as câmeras, visando aos planos gerais de frente, além de uma iluminação bem intensa. Ao mesmo tempo, consolida-se uma tendência: de formação de um público-audiência, nacionalmente integrado pela televisão, para o evento. A procura de maior audiência, a introdução de inovações técnicas e o constante aumento da mão-de-obra empregada no trabalho de transmissão dão conta da importância crescente do evento para as emissoras de televisão. No entanto, se a transmissão constitui um fator que se internaliza nas disposições daqueles que produzem mais diretamente o espetáculo, produtos como o Desfile de Carnaval não estão diretamente dependentes da dinâmica interna das emissoras, embora componham as grades de programações, são "extraordinários". Daniel Dayan e Elihu Katz (1984) oferecem sugestões interessantes para refletir o relacionamento entre Desfile e empresas de televisão. Ao fazerem referências a eventos sintonizados com a mídia televisiva, os quais denominam de "acontecimentos mediáticos", tratam de eventos cuja influência da televisão é observável, porém os quais existem independentes dela, embora compartilhem com esta o mesmo "tempo", o mesmo ritmo de exposições dos sinais em fluxo contínuo. Organizam-se esses acontecimentos pelo princípio dos atos "performativos", isto é, a despeito de serem "verdadeiras" ou "falsas", suas ações de linguagem consistem em atos de força capazes de realizar coisas, a partir de enunciações como cena visível. Para ambos os autores, os "perfomativos cerimoniais" decorrem da "[...] contratualidade estabelecida entre as partes organizadoras dos eventos, aquela que os transmite e a que os assiste, constituindo um espaço público vivenciado em torno do televisor domiciliar" (Dayan; Katz, 1984, p. 93).

A curiosidade aqui está, portanto, no fato de o tratamento reservado pela TV encontrar respaldo na própria natureza monumental, estando esta formada pela combinação de diversos planos no Desfile, mas todos obedientes ao compromisso com a diversão. Em outras palavras, é possível falar de uma homologia entre as lógicas de codificação de um e outro elemento, já que ambos se caracterizam pelo mesmo sentido expressivo e comunicacional de fluxo e misturas várias, mas concertado em torno do princípio do entretenimento. Ambos estão voltados para audiências amplas e anônimas e seus sinais caracterizam-se pelo recurso a fontes simultaneamente visuais e sonoras. A simetria se torna palpável no seguinte aspecto: a expansão da parafernália técnica televisiva descrita acima encontra apoio no desenvolvimento quantitativo dos elementos constituintes do espetáculo audiovisual deambulante das escolas de samba. Conjuntamente, a transmissão televisual supõe a interdependência da questão estética à produção cultural vinculada ao consumo de um público cuja relação com o bem simbólico ocorre segundo as condições de divulgação modernas, organizadas por suas agências e mídias de forte apelo visual (jornais, TV, revistas, postais, cartazes, internet). Instâncias estas guardiãs das regras de legitimidade dos rituais da cultura popular de massa, e funda-se sobre o estatuto do lazer e da diversão (Morin, 1990), o qual é delineado no compasso do fortalecimento da sincronia entre as indústrias culturais e o mercado de bens simbólicos ampliados, no país (Ortiz, 1988).

A redefinição, então, de todo o eixo espaço-temporal interno ao evento, segundo pressões cada vez mais em correspondência ao mercado de bens de diversão, seleciona a importância dos personagens no evento e decide o seu viés estético. Tendência esta observada por lideranças das escolas como Nelson Andrade e consolidadas pela cúpula dos banqueiros do jogo do bicho, que não apenas deixara margens para a atuação do especialista, categorizado como carnavalesco, mas viabilizou os recursos para este se consagrar o "arquiteto" da Avenida.11 11 A expressão fez parte do argumento de uma peça publicitária veiculada entre janeiro e março de 1979, em diversas revistas, anunciando a marca da indústria de produtos químicos e petroquímicos Rhodia. Ao lado da foto de Joãosinho Trinta, na época, pentacampeão seguido do carnaval do Rio, um texto sublinha a genialidade do artista e a importância da empresa, que produz materiais capazes de oferecer conforto e embelezar a vida, contribuindo decisivamente para a grandeza plástica do Desfile das Escolas de Samba. Por certo, essa publicidade é um índice do concerto amplo no qual o Desfile então se posicionava. Melhor seria dizer: a centralização da concepção e do elaborar do desfile por este agente explicita a fisionomia assumida pelo Desfile de Carnaval, pois, enquanto profissionais da materialidade plástico-visual, os carnavalescos são os artífices de uma organização da cultura que privilegia o aspecto espetacular, daí porque a sua denominação, vivificam o carnaval moderno, mas não modernista, no sentido de uma visão de mundo. Moderno corresponde à montagem da cena com traços barrocos, especialmente a ênfase nos aportes cenográficos e nos estímulos às novidades como diversão dos sentidos.

Nesse âmbito cultural, tais profissionais das artes visuais situam-se de modo ambíguo. Muito embora sejam aclamados pela genialidade das suas elaborações artísticas, estão estruturalmente subordinados a uma lógica de produção coletiva. Os carnavalescos funcionam como ordenadores e devem atender às determinações emitidas dos escalões superiores que administram as escolas. Além do que, suas elaborações artísticas obedecem ao imperativo de produzir elementos no tempo hábil de apresentá-los no Desfile e cujo produto seja compreensível para o público durante o tempo do consumo. Importa, portanto, que concebam figurações de fácil leitura. Isso é o que os deprecia no panorama das artes plásticas parametradas pelos cânones do intelectualismo modernista, para os quais a técnica de figuração significa o espaço tradicional de representação, ao ter a palavra predomínio sobre a linguagem das formas e da cor (Francastel, 1967, p. 49). Mas, por sua vez, esse é o atributo que os aproxima do Carnaval-Espetáculo. E, diferentemente dos critérios de apreciação da arte acadêmica, na escola de samba, o dado original (a assinatura que autentifica a obra) é classificado como inovação, e compreende o fator necessário no trabalho de confecção das formas capazes de ocupar todo o olhar do espectador, gerando efeitos sensoriais. No instante em que os artistas são introduzidos nessas instituições como alegoristas, o ideário de singularidade é acoplado como um dado estratégico na conquista de uma audiência polimorfa, não soldada por uma visão de mundo única. Estratégia materializada na polissemia das formas visuais, presentes nos carros alegóricos concebidos pelos carnavalescos (Cavalcanti, 1994, p. 153). Em última instância, o modo de simbolização instalado tem por característica o fato de que a mão criativa do carnavalesco possibilita às escolas a comunicação com uma plateia tão ampla quanto heterogênea, à medida que alie o ideário de beleza ao imperativo da diversão, na singularidade da alegoria (capaz de em uma coisa significar muitas outras, na alusão).

A capacidade em adequar as soluções plástico-visuais a temáticas sintonizadas com a classificação do evento como signo de alegria e descontração definiu a consolidação da função de carnavalesco e sua profissionalização como especialista, nos anos setenta. Desde aí, o cargo propaga-se entre várias escolas e se abandona a postura de ideólogo, portanto, altera-se, de maneira profunda, a proposta capitaneada pelas lideranças do Grupo do Salgueiro. Principalmente porque os cenários que passou a arquitetar contribuíram, decididamente, para efetivar a natureza teatral-móvel e operística do Desfile e dimensioná-la em um patamar de exuberante monumentalidade, cujas partes conformam um conjunto de bastante impacto sobre o olhar. A introdução do tempo cronometrado tornou imperativa a preparação mais criteriosa do cortejo, no sentido de percorrer o palco-passarela de rua em tempo hábil, obtendo a comunicação desejada com o público. Em meados da mesma década de 1970, a atuação de Joãozinho Trinta sobressai ao radicalizar as soluções já então geradas, mas redimensionando-as, o que facultou ocupar a pista com formas tão variadas como amplas, afinal, a imperiosidade do fazer-se visto direcionou o caminho estético seguido. Para isso, a aceleração do modo de desfilar foi imprescindível. Já no final dos anos sessenta, os responsáveis pela direção do Salgueiro vão dar relevo ao desfile rápido, evitando o cansaço da plateia, pois, segundo a frase atribuída a Pamplona, seria melhor o "já?!" que o "ainda?!". Para isso, optou-se por uma armação do agrupamento de componentes na pista, enfatizando o perfil compacto do ajuste entre as alas e carros alegóricos. Os chamados "buracos" na harmonia e evolução são quase que eliminados, pois as filas indianas cobrem o espaço da passarela. Obtém-se, assim, maior volume e o conjunto prevalece sobre as individualidades. O tempo e espaço de exibição dos passistas, por exemplo, são agora circunscritos a determinadas regiões de cada apresentação. Percorrendo o mesmo vetor, Joãozinho Trinta propõe, conforme suas palavras, reordenar as "características teatrais e operísticas" já existentes na passeata das escolas, ou seja, as características do gênero Desfile de Carnaval. A preocupação de ocupar o espaço está determinada pela exigência de manter o curso narrativo do tema, a intriga responsável pela costura de todo espetáculo, definido pela sua plasticidade e voltado para alguém que o contempla do alto. Daí porque o vazio irrompe como um problema: à maneira dos espetáculos barrocos, ele denota a ausência de sentido apreendido pelo olhar. Por isso, o carnavalesco priorizara a funcionalidade das partes, calcada sobre o pilar áudio e visual, embora faça prevalecer o segundo aspecto, por lhe proporcionar a multiplicação de elementos capazes de suturar os claros espaciais no cortejo das escolas de samba. Ele próprio retira dessa tendência para o excesso uma inspiração barroca que lhe permite, diz, "rebuscar, criar" formas (Pereira, 1982, p. 189) adequadas ao contexto então verticalizado do espetáculo cronometrado.

A consagração do trabalho desse especialista se dá no momento da diluição do Grupo do Salgueiro, tendo por consequência a pulverização dos seus membros por outras agremiações, nos rastos do início da profissionalização da atividade. Assim, acompanhando a expansão metropolitana das escolas de samba, em 1975, Joãozinho Trinta deixa a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro e se instala na, então, pequena Beija-Flor. Tendo por patrono e mecenas o banqueiro do bicho Aniz Abrão David - um dos principais baluartes da contravenção desde então - e contando com o apoio de um esquema político-eleitoral amplo no município de Nilópolis, na região metropolitana do Rio de Janeiro (Bezerra, 2009, p. 139-150; 2010, p. 01-09). Essa escola de samba proporcionará as bases sociomateriais à realização do tipo de espetáculo intencionado por Joãozinho Trinta. Alvo de celeumas atraindo para si críticas e elogios, vejamos o exemplo do desfile planejado para o ano de 1978, por entendermos ser ele sintético da obra do carnavalesco e marco na afirmação do padrão do superespetáculo. Ao mesmo tempo em que consagrou a escola tricampeã do carnaval carioca e, com ele, Joãozinho Trinta chegou ao seu quinto título consecutivo, esse desfile ganhou notoriedade internacional, tornando-se capa da revista norte-americana Times.

Partindo de um tema não comprometido com qualquer imperativo realístico, mas mitológico - A Criação do Mundo Segundo a Tradição Nagô -, o carnavalesco opta por tratar a narrativa pelo aspecto fantástico e não litúrgico. Técnicas e materiais variados foram mobilizados nessa direção. Tal foi o caso da solução das boias de isopor. Artifício introduzido no carnaval, em 1971, pelo próprio Joãozinho Trinta, o material serviu uma vez mais como representação do marfim, encontrado na cena tribal africana. Adaptado como altos resplendores presos às costas dos componentes, somados aos altos chapéus, o resultado foi um conjunto indumentário verticalizado, unificado pelas combinações entre o fundo branco e as variações em tons prata, azul e dourado. A mesma preocupação de preencher espaços coordena o nexo estabelecido entre imagem e sedução do olhar, um e outro são aspectos umbilicais nessa vertente da cultura popular de massa. E a mesma confluência comparecia, também, no nexo detalhe e conjunto, ainda, naquele desfile de 1978, se observada a dimensão das indumentárias. Para obter um efeito de ondulação a ser visto do alto, Joãozinho Trinta lançou mão de fitas de ráfia, cujo bom caimento facultou um forte efeito de movimento às alas (preso aos penachos, manguitos ou braceletes e perneiras dos componentes) e alegorias. Ou o uso nos figurinos com altas golas elisabetanas decoradas com plumas eretas e tendo volumosas mangas medievais, introduzindo maior volume às alas. Além de facultar ao trajeto matizes de tons, naipes capazes de conferir uma dinâmica de cores à marcha da Escola de Samba. Ou, ainda, a presença de capas feitas em tecido metaloide, valorizadas pela orientação dada ao figurante para movimentar os braços, facilitado pelas roupas acentuadamente cavadas. Joãozinho Trinta alia, assim, o aspecto fisionômico do figurino à escolha de materiais suficientemente leves, capazes de produzir brilho e volume.

PARA CONCLUIR

Ao longo deste artigo, aplicamos o modelo sociogenético com a finalidade de analisar a formação das cadeias de produção, intermediação e recepção dispostas na cultura urbana no Rio de Janeiro, com papel fundamental na montagem e afirmação do Desfile de Carnaval das Escolas de Samba como uma situação sociocomunicativa audiovisual prestigiada no plano nacional e transnacional. O exercício sociogenético sobre a estilização sociocomunicativa do evento obedeceu, então, ao objetivo de observar como o itinerário de extensão das interdependências sociofuncionais participa do movimento em que intervêm os dispositivos das ausências modernas na estruturação das relações sociais e dos agenciamentos humanos, no tocante à viabilização desse encadeamento de agentes e instituições decisivos à festa espetáculo na cidade. Algo assim possibilitou entender a presença do Desfile de Carnaval como um componente dessa rede sociocomunicacional própria ao regime das práticas na modernidade.

Permanecem em aberto as mesmas interdependências escalonadas em raios de tão amplo alcance, no aguardo de desdobramentos analíticos e interpretativos, à maneira como eventos afins concretizam-se. Por outro lado, cabe aprofundar a pesquisa a respeito dos processos sociossimbólicos e das propriedades pelos quais essas concretizações realizam tanto o concerto do ethos diversional do entretenimento como um fator incontornável na coordenação e regulação das relações sociais e, logo, do comportamento humano, com as instâncias privadas comerciais e não comerciais, além das públicas - quanto aos modos e meios pelos quais a elaboração e processamento de informações se impõem como partes da produção contemporânea de subjetividades.

Nossa expectativa, diante dessas possibilidades em aberto, é a da renovação do debate sobre a cultura, de uma maneira geral, e, em particular, a respeito da cultura popular, elemento abrangente e com implicações tão diversas e atualizadas no contexto latino-americano. Entre nós, essa denominação sintetiza um conjunto amplo de modos de simbolização referentes aos cruzamentos civilizatórios por aqui desenrolados, desde o início da conquista europeia. Suas reverberações na história das formações nacionais no continente são multifacetadas e ainda em curso. Ao mesmo tempo, no decorrer do século XX, semelhante multiplicidade se ambientou e deu substância às prerrogativas do regime de práticas da modernidade, em especial a maneira como os zoneamentos de lazer compuseram os tantos tramados das culturas urbanas, nos quais contracenam mais e mais modalidades de expressão e suportes tecnológicos e institucionais orientados pela economia monetária e de mercado. Nesse sentido, investir na pesquisa e reflexão sobre o estabelecimento dessas situações sociocomunicacionais contribui para o conhecimento dos processos de modernização na América Latina. Também, deixa margens para conhecer melhor como os modos de simbolização estão adquirindo vigor, aliando interação e comunicação na dinâmica que leva à interseção de matrizes culturais e sistemas sociotécnicos ancorados na linguagem digital; fatores cuja junção forja uma esfera pública caracterizada pelas imagens de si (FARIAS, 2010). Se o nexo entre produção de subjetividade, objetivação das intenções e mercadorização consiste em um aspecto inalienável desse complexo, assinala-se o quanto a economia simbólica das expressões deve constar na agenda das ciências sociais hoje.

Recebido para publicação em 03 de maio de 2012

Aceito em 04 de setembro de 2012

Edson Silva Farias - Doutor em Ciências Sociais. Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília. Pesquisador do CNPq. Exerce, ainda, a função de professor associado do Mestrado em Memória: Sociedade e Linguagem da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia da Cultura, voltado-se, pincipalmente, para os seguintes temas: teoria sociológica contemporânea e sociologia brasileira, cultura popular, memória, economia simbólica e consumo cultural. Lidera o Grupo de Pesquisa em Cultura, Memória e Desenvolvimento (CMD) e, também, integra o Laboratório de Pesquisa Social em Trabalho, Afeto e Cultura (TAC/SOL/UnB). Neste último, desenvolve o Programa de Pesquisa Economia Simbólica da Afetividade. Coordena o projeto integrado Metrópoles: "estratégias" e "táticas" dos usos do contexto urbano no Distrito Federal. Coordena, ainda, o projeto Agendas de Cultura e Desenvolvimento: figuração da regulação estatal das diferenças sócio-simbólicas. É bolsista do Colégio de México-CAPES de pós-doutorado. Publicações recentes: Ócio e negócio: festas populares e entretenimento-turismo no Brasil. Curitiba: Appris, 2011; O desfile e a cidade: o carnaval-espetáculo carioca. Rio de Janeiro: E-Papers, 2006.

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  • 1
    A realização deste texto se deu no período entre março e julho de 2012, quando estive como pesquisador convidado no Centro de Sociologia do Colégio de México, com bolsa de Estágio Pós-Doutoral (CAPES).
  • 2
    O Desfile de Carnaval reúne em concurso 67 escolas de samba, no Rio de Janeiro, divididas em cinco grupos. A partir do grupo principal - denominado de "especial" -, o procedimento de seleção nessa hierarquia implica a elevação das primeiras colocadas ao grupo superior e, na mesma medida, o rebaixamento para o grupo inferior das últimas colocadas.
  • 3
    Embora de maneira esquemática, podemos descrever o cortejo das escolas de samba pela articulação entre comissão de frente, os três casais de mestre-sala e porta-bandeira, as alas de enredo, a ala de baianas, a ala de bateria, os carros alegóricos, os puxadores do samba-enredo e os passistas - grupos de bailarinos especializados na dança do samba.
  • 4
    A referência a essa lógica está calcada na concepção de Paves (1987) de que o espetáculo compreende algo realizado para ser observado por determinado público com fins de diversão.
  • 5
    Para um debate acerca do panorama bem mais heterogêneo e de deslizamentos entre grupos e classes do que o permitido pela polaridade entre "pequeno" e "grandes" carnavais, ver Cunha (2001, p. 150-304).
  • 6
    O propósito fazia eco com as ideias à esquerda sobre a cultura popular. Manoel Tostes Berlinck (1984), por exemplo, observa que o pensamento de Carlos Estevan Martins, ideólogo das experiências de produção cultural do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, naquele mesmo período, tinha por premissa tomar as manifestações populares como "alienadas", urgindo o trabalho esclarecedor das vanguardas políticas e intelectuais junto às massas, reitera a imagem das elites revolucionárias como agentes da emancipação e naturalmente designadas para o comando.
  • 7
    Informações da professora da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro e carnavalesca (membro do Grupo do Salgueiro), Maria Augusta Rodrigues, recolhidas no depoimento dado ao autor (16/01/1993). Para ela, algo assim ilustraria a relação de "guilda" existente nesse momento de organização da categoria, é o fato de Maria Augusta, recorrentemente, descrever a formação do carnavalesco como "medieval"; seria, diz, nos barracões das escolas (as oficinas) onde os "aprendizes" herdariam o conhecimento acumulado pelas mãos do seu mestre, ao vê-lo trabalhar. Ela foi aluna de Pamplona e se considera discípula dele e de Arlindo Rodrigues; o Salgueiro é, como fala afetuosamente, sua "escola-mãe".
  • 8
    Para montar a síntese descritiva apresentada neste parágrafo, infelizmente, não contei com fontes, diria, diretas. Isso porque os croquis, desenhos, plantas e argumentos dos enredos citados, a maioria desse material se perdeu ou está disperso. Apenas recentemente tem havido a preocupação de arquivar tão valioso acervo. Recorri, então, aos depoimentos (os de Pamplona, Joãosinho Trinta, Laila e Maria Augusta, foram cruciais), à excelente etnografia de Helenise Guimarães (1990) e às reportagens de alguns periódicos. Privilegiei, entre estes, as revistas Manchete e O Cruzeiro, cujas longas periodicidades de suas edições abarcam os carnavais focalizados aqui e o material fotográfico nelas impresso ofereceu momentos das cenas aludidas acima.
  • 9
    Bauman foca a correlação estabelecida no curso histórico das sociedades nacionais europeias entre as facções ilustradas e outros segmentos dominantes na composição dos espaços de poder. Dessa maneira, executa uma sociogênese do nexo poder/conhecimento. Ou melhor, volta-se à apreensão da dinâmica histórica em que o ponto de vista dos philosophes sai de uma posição marginal e emergencial até se impor como uma ortodoxia. E o que seria próprio a esse ponto de vista? Exatamente a credulidade na competência humana, por intermédio dos seus recursos cognitivos, mentais, de domar os fatores que geravam insegurança.
  • 10
    Criado, no final do século XIX, pelo Barão de Drumond, para sustentar o seu jardim zoológico, no bairro de Vila Isabel, o jogo do bicho consiste em uma bolsa lotérica ilegal, cujas apostas são feitas em números, representando, respectivamente, animais. Popularizado ao longo do século XX, tornou-se alvo de perseguição policial e fonte de emprego para os segmentos mais pobres. Quanto mais se expandiu pela cidade, mais cruzou com as manifestações culturais populares, à maneira da escola de samba (Mattos, 1992; Soares, 1993).
  • 11
    A expressão fez parte do argumento de uma peça publicitária veiculada entre janeiro e março de 1979, em diversas revistas, anunciando a marca da indústria de produtos químicos e petroquímicos Rhodia. Ao lado da foto de Joãosinho Trinta, na época, pentacampeão seguido do carnaval do Rio, um texto sublinha a genialidade do artista e a importância da empresa, que produz materiais capazes de oferecer conforto e embelezar a vida, contribuindo decisivamente para a grandeza plástica do Desfile das Escolas de Samba. Por certo, essa publicidade é um índice do concerto amplo no qual o Desfile então se posicionava.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 2013

    Histórico

    • Recebido
      03 Maio 2012
    • Aceito
      04 Set 2012
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