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A infância como acontecimento singular na complexidade dialética da história

Childhood as a singular event in the dialectic complexity of history

Resumos

Tradicionalmente a infância tem sido entendida por concepções universais, desenvolvimentistas, naturalizantes. No complexo cenário da contemporaneidade se impõe novamente a indagação e o debate sobre a infância e as crianças. Entende-se que a compreensão de Jean-Paul Sartre sobre a constituição da infância pode contribuir com esse debate a partir de alguns entendimentos: da infância como um acontecimento histórico, produto de uma complexa dialética do tecido social, diferenciada conforme tal tecido, o que leva à impossibilidade de falar de uma infância, mas de infâncias, rompendo com a noção de naturalização e universalização; de que as crianças forjam o seu ser a partir de um confronto de projetos posto pelo seu contexto familiar e sua rede de relações, constituindo seu projeto de ser como uma realidade nova, rompendo com o determinismo; que as crianças possuem um saber legítimo, não sendo seres puramente passivos, rompendo com a visão adultocêntrica.

infância; confronto de projetos; Jean-Paul Sartre


Childhood has been understood traditionally by universal, developmental, naturalizing concepts. However, Jean-Paul Sartre presents a comprehension about this subject that can help to answer some questions in the contemporary debate. This author looks to childhood like an historical event, influenced and differentiated by the complex dialectic of the social context. So, we cannot speak about only one childhood but we can find so many childhoods like the complexity of the context. This discussion breaks away from the notion of naturalization and universalization. Another understanding of this author about the childhood is: the children forge their being dealing with family projects and their relationships. This conflict makes the rupture with the determinism and creates a new reality and a new being project. Also, Sartre breaks with the adult centered vision because he points that children have a real knowledge. They are not only passive beings.

childhood; confrontation of projects; Jean-Paul Sartre


ARTIGOS

A infância como acontecimento singular na complexidade dialética da história

Childhood as a singular event in the dialectic complexity of history

Zuleica Pretto

Universidade do Sul de Santa Catarina, Florianópolis/SC, Brasil

RESUMO

Tradicionalmente a infância tem sido entendida por concepções universais, desenvolvimentistas, naturalizantes. No complexo cenário da contemporaneidade se impõe novamente a indagação e o debate sobre a infância e as crianças. Entende-se que a compreensão de Jean-Paul Sartre sobre a constituição da infância pode contribuir com esse debate a partir de alguns entendimentos: da infância como um acontecimento histórico, produto de uma complexa dialética do tecido social, diferenciada conforme tal tecido, o que leva à impossibilidade de falar de uma infância, mas de infâncias, rompendo com a noção de naturalização e universalização; de que as crianças forjam o seu ser a partir de um confronto de projetos posto pelo seu contexto familiar e sua rede de relações, constituindo seu projeto de ser como uma realidade nova, rompendo com o determinismo; que as crianças possuem um saber legítimo, não sendo seres puramente passivos, rompendo com a visão adultocêntrica.

Palavras-chave: infância; confronto de projetos; Jean-Paul Sartre.

ABSTRACT

Childhood has been understood traditionally by universal, developmental, naturalizing concepts. However, Jean-Paul Sartre presents a comprehension about this subject that can help to answer some questions in the contemporary debate. This author looks to childhood like an historical event, influenced and differentiated by the complex dialectic of the social context. So, we cannot speak about only one childhood but we can find so many childhoods like the complexity of the context. This discussion breaks away from the notion of naturalization and universalization. Another understanding of this author about the childhood is: the children forge their being dealing with family projects and their relationships. This conflict makes the rupture with the determinism and creates a new reality and a new being project. Also, Sartre breaks with the adult centered vision because he points that children have a real knowledge. They are not only passive beings.

Keywords: childhood; confrontation of projects; Jean-Paul Sartre.

Introdução

Mary Del Priori (1999, 1998) ao discutir as peculiaridades das infâncias brasileiras ao longo dos anos, alerta para que a história universal sobre a infância seja entendida com cautela. Segundo a autora,

A história sobre a criança feita no Brasil, assim como no resto do mundo, vem mostrando que existe uma enorme distância entre o mundo infantil descrito pelas organizações internacionais, pelas não-governamentais ou pelas autoridades, e aqueles no qual a criança encontra-se cotidianamente imersa. O mundo no qual a "criança deveria ser" ou "ter" é diferente daquele onde ela vive, ou no mais das vezes sobrevive. (Del Priori, 1999, p. 8)

Essa reflexão de Del Priori incita a questionar a ideia universal e natural da infância e duvidar de algumas verdades que consideramos certas sobre ela: as etapas evolutivas de desenvolvimento, a aquisição linear de habilidades, competências e condições de aprendizagem - cognitivas, comportamentais, motoras e afetivas. Como contraponto, percebe-se que cada realidade social, econômica, geográfica e cultural oferece diferentes campos para uma criança crescer, o que faz com que as crianças tenham vivências muito díspares e múltiplas que ferem a lógica das etapas universais de desenvolvimento.

Não podemos confundir certo ordenamento na aquisição de aprendizagem entre as crianças ou certa homogeneização no modo das crianças experimentarem suas infâncias, em contextos similares de vida, com a universalização da infância. Essa homogeneização parece ser conquistada mediante densas mediações sociais, governamentais, escolares, familiares, biomédicas, enfim, que buscam uma linear padronização. Além disso, o que deve ser salientado é que esta padronização se dá de modo diverso em cada contexto, ganhando contornos específicos conforme a diversidade racial, étnica, de classe, de gênero, de contexto geográfico, etc. Junto a isso, a singularidade de cada criança e a sua diferença põem por terra as generalizações. Essa constatação nos alerta para o fato de que, no Brasil e fora dele, não podemos mais operar com a lógica universalizante na compreensão do processo de fazer-se criança, bem como fundamentar as práticas dirigidas a elas nessa mesma lógica.

Na busca por teorias que possam dar subsídios para o debate sobre as infâncias como um fenômeno plural e resultado de um complexo movimento dialético, atravessadas pelos contextos concretos e históricos de vida, apresenta-se, neste artigo, um entendimento de infância em Jean-Paul Sartre (1905-1980), conforme análise de alguns de seus escritos. Este autor francês, considerado precursor do existencialismo moderno, com importantes influências fenomenológicas e marxistas, provoca reflexões que podem contribuir para este debate.

O confronto de projetos e a infância como uma realidade nova

Jean-Paul Sartre, apesar de não dedicar-se diretamente à questão da infância, não deixa de reconhecer e destacar sua importância. Na obra Questão de método (1957/2002) ele chama a atenção para esta questão quando discute com o marxismo a relação universal/singular e/ou as mediações concretas na vida de um sujeito:

Os marxistas de hoje se preocupam com os adultos... eles esqueceram sua própria infância e tudo se passa, ao lê-los, como se os homens experimentassem sua alienação e sua reificação, de início, no seu próprio trabalho, quando cada um a vive de início, como criança, no trabalho de seus pais. (Sartre, 1957/2002, p.58)

Desde muito cedo, a criança já vive suas possibilidades de ser a partir dos grupos de que faz parte, em especial a família.

Ponto de inserção do homem em sua classe... a família, com efeito, é constituída no e pelo movimento geral da história e vivida, de outro lado, como um absoluto na profundidade e na opacidade da infância ... atentemos, cada um vive seus primeiros anos no desvario e na fascinação como uma realidade profunda e solitária: a interiorização da exterioridade é aqui um fato irredutível. (Sartre, 1957/2002, p.58)

Sartre reflete, assim, que a criança se faz mediante um movimento em que a universalidade é vivida na particularidade, numa complexidade dialética em que o grupo familiar se apresenta como "realidade vivida e negada pela criança" (Sartre, 1957/2002, p.108). Ou seja, na exata medida em que a criança é produto dele, submetida, ela também dele é produtora, transcende, singulariza o que está posto.

Importante sinalizar que há um atravessamento do contexto social na constituição da criança que se dá para além da família, "a criança não vive somente sua família, ela vive também – em parte através dela, em parte sozinha – a paisagem coletiva que a circunda" (Sartre, 1957/2002, p.69). Isso implica dizer que os aspectos sociais ligados a etnicidade, religião, raça, condição geográfica, preceitos morais, formas de afetividade, entre outros, lhe chegam por todos os lados – vizinhança, mídia, leituras, escola, amigos, brincadeiras, etc.. Ou seja, a criança se faz pelo e no atravessamento de seu contexto antropológico (linguagem, cultura, valores, época, lugar, objetos) e sociológico (grupos em que imediatamente está ligada e que tem importância efetiva e afetiva na constituição de seu ser) e pela apropriação que for capaz de realizar (psicológico), como sintetiza Schneider (2011). Seu pertencimento a um contexto indica um campo de possíveis para construir a história e, ao mesmo tempo, impõe a ela ser um acontecimento singular, na medida em que ela fará alguma coisa do que lhe acontecer.

Fazer alguma coisa com o que lhe acontecer, portanto, implica um complexo movimento marcado pelo desconhecido e, muitas vezes, pelo inesperado. É em uma condição de possibilidades, dos grupos que ditam modos de vida e de viver, que uma criança se faz possível à medida que particulariza de modos múltiplos aquilo que vive. Nas palavras de Sartre (1957/1978, p.138) é "nas violências da domesticação e nos desnorteamentos do domesticado" que a infância como pertinência a um grupo se faz vivida como um acontecimento singular.

De outro modo, pode-se entender a constituição da infância como resultante de um confronto inevitável de projetos: "na criança, os momentos entram em contato, modificam-se reciprocamente na unidade de um mesmo projeto e constituem, por isso mesmo, uma realidade nova" (Sartre, 1957/2002, p.86). Para conhecer um projeto, então, "podemos identificar as instituições primárias e seguir o movimento através do qual o indivíduo se faz, superando-as" (Sartre, 1957/1978, p.142). É pela ação, que implica desdobramentos, consequências, efeitos, produções, que o sujeito, desde a infância, dá contornos ao seu projeto de ser, lançando-se rumo a uma ou outra direção. "O acaso não existe, ou, pelo menos, não como se acredita: a criança torna-se esta ou aquela porque vive o universal como particular" (Sartre, 1957/2002, p.56).

O projeto de ser, portanto, é aberto, aponta para o que ainda não é, posto que aquilo que caracteriza a especificidade do humano é ser desejo, nada, implicado com aquilo que falta, com o futuro (Sartre, 1943/2001), sendo este desejo, desejo de ser (aberto a diferentes possibilidades). Nesse sentido, a noção de projeto nega, pela noção ontológica que o sustenta, a ideia de determinismo biológico, cultural ou psíquico, sendo a constituição do sujeito um produto permanente de sua relação com a materialidade, o tempo, os outros e seu próprio corpo. Nas palavras de Sartre, cada particularidade ou eu é um produto, "uma relação de produção poética... ou, se quiser, de criação" (Sartre, 1936/1994, p.67).

A ideia da infância como acontecimento singular, como uma realidade nova e uma relação de produção, abre espaço para um caráter particular da experiência e para a noção de que a criança é ativa no processo de constituição de si e de seu contexto de vida, mesmo que viva essa participação de modo alienado, uma vez que não tem a habilidade de refletir criticamente sobre o que lhe acontece. Possui, portanto, um saber, para além do que o adulto consegue nela imprimir e uma racionalidade que, em alguma medida, escapa ao olhar adulto. De outro lado, nos primeiros anos de idade, se faz alguém sem condições de reconhecer-se como alguém que está se fazendo pelas suas ações e que é feita pelas ações dos outros, o que marca sua alienação.

A infância a alienação

Um dos aspectos da noção de alienação em Sartre se sustenta no conceito de consciência, que tem por base a Fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938). Entendida como ação, a consciência se define como relação aos objetos, isto é, só se faz visando os objetos. Essa relação, quando posta por uma consciência de primeiro grau, é espontânea, alienada, não posicional de si, irrefletida, configuração em que o sujeito, nas experiências vividas, não aparece como objeto para sua própria consciência, mas é afetado psicofisicamente por essas experiências. Isso ocorre nas experiências mediadas por consciências perceptivas, imaginantes, reflexivas espontâneas e nos processos de emoção, por exemplo. De outro modo, a relação pode ocorrer mediante uma consciência de segundo grau, posicional de si, reflexiva, momento em que a consciência toma como objeto as próprias experiências do sujeito, evidenciando sua constituição e distanciando-se reflexivamente das experiências vividas, antes, na espontaneidade ou alienação.

Conclui-se, a partir dessas definições, a impossibilidade de os sujeitos fugirem das experiências de alienação. No caso das crianças, as experiências de alienação preponderam, posto que a criança não consegue, na maioria das vezes, distanciar-se das experiências vividas para questioná-las e analisá-las. Isso ocorre porque está em construção a condição para refletir criticamente suas vivências, em especial porque, para isso, ela necessita da compreensão de variados elementos que compõem as situações complexas que vive, aos quais tem acessos parciais. Antes, a criança vive o que lhe é apresentado de modo totalizante, como únicas sentenças conhecidas, consequentemente, tomadas como verdades absolutas.

Assim, tal alienação é condição humana e pode ser experimentada singularmente, ao longo de uma vida, como "parcial e temporária" ou "total e definitiva", expõe Sartre (1952/2002). Tanto maior a alienação, quanto maiores as contradições e as pressões exercidas pelo conjunto das relações que a criança estabelece em seu meio. O ser que ela é para outrem, é mais facilmente superado quando não a impossibilitar, à medida que cresce, de ver outros caminhos para seu ser que não aqueles impostos pelos adultos.

Para Sartre (1952/2002), quando a criança inicia o movimento de tomar a si como objeto de consciência reflexiva e passa a se reconhecer com determinadas características, pode ocorrer um processo de estranhamento em relação a si mesmo. Sartre não indica uma idade específica para que isso aconteça, mas destaca que, no caso de Jean Genet, essa apreensão totalizadora de si, se deu por volta dos 10 anos de idade. Nessa oportunidade, a singularidade da criança aparece para ela mesma, via reflexão, algumas vezes com espanto e angústia, o que pode gerar complicações psicológicas, outras com "suavidade", que propicia relações de reciprocidade. Este processo, Sartre marca bem, de um jeito ou de outro, tem relação direta com uma interiorização progressiva da sentença dos adultos e com a forma como a criança se apropriará delas.

Quando o reconhecimento de si ocorre "sem danos", expõe o autor:

A criança brinca sozinha; uma leve mudança na paisagem, um acontecimento, um pensamento fugaz bastam para suscitar essa tomada de consciência que nos revela o nosso ego. E esse ego... ainda não é nada para si mesmo, a não ser a forma vazia e universal da singularidade. Não ser como os outros é ser como todos, já que cada um é diferente de todos e idêntico a si. Se a operação reflexiva se efetua normalmente, longe de impedir as relações de reciprocidade, as produz. (Sartre, 1952/2002, p.34)

Pode ocorrer, contudo, que a visão de si seja vivida com angústia, que se construa um caminho em direção a uma alienação "total". Isso ocorre quando "suas faltas e seus erros se transformam em disposição permanente, isto é, em destino" (Sartre, 1952/2002, p.45). Estes casos podem gerar complicações psicológicas, pois encerram o sujeito na alteridade, ele é diferente do outro e de todos os outros, não se inclui no coletivo. Ao falar da criança Genet, Sartre discorre "é possível traçar, com certa fidelidade, as etapas pelas quais Genet se transforma lentamente, para si mesmo, num estranho. E veremos que se trata... de uma interiorização progressiva da sentença dos adultos" (Sartre, 1952/2002, p.47), as quais ele não consegue questionar, contrapor ou superar. Nessas situações, fazendo-se previsível para os outros e para si, a criança é atravessada pela linguagem "a palavra deixa de ser um indicador, torna-se um ser" (Sartre, 1952/2002, p.52), o ser que vem como uma sentença através do olhar dos adultos, os quais tem um "poder constituinte" que [transforma o sujeito] em "natureza constituída" (1952/2002, p.61). Estes acontecimentos podem levar à experiência psicológica de ser destinado a, de determinação, de fatalismo, da impossibilidade de pensar o seu ser de outras maneiras, diferentes daquelas que estão impostas/expostas e que ele mesmo se impõe/expõe, na sua rede de relações antropológicas e sociológicas.

Nas biografias que elabora, de Genet, em Saint Genet: Ator e Mártir (1952/2002) e de Flaubert, em L’Idiot de Famille (1971), a importância da infância se evidencia em Sartre quando demonstra que os acontecimentos da infância destes sujeitos compuseram o que os outros fizeram deles e o que eles conseguiram fazer de si mesmos. Vale destacar, ainda, que nessas biografias, Sartre inclui nas análises psicológicas dos personagens as diferentes categorias sociais, em especial a dicotomia cidade/campo, classe social, gênero, características da família, condições de trabalho dos pais, condições afetivas dos cuidadores, relações familiares, etc. Dito de outro modo, há sempre uma estrutura da situação posta para e por um sujeito, considerada crucial nas suas escolhas e que envolve, em estreita integração, o que Sartre (1943/2001) chama de o "meu lugar", os "meus arredores", o "meu passado", o "meu próximo" e a "minha morte".

A infância e a estrutura da Situação

O lugar, entendido como o espaço que é habitado por um sujeito, oferece a ele certa ordem dos objetos e, com isso, um certo ordenamento do mundo e de suas possibilidades. O lugar implica uma localização que o aproxima e o distancia de certos objetos e indica sua contingência (Sartre, 1943/2001). Nesse sentido, o lugar subsidia um modo de ser no mundo e o pertencimento do sujeito a um contexto que se mostra pelo que é e, dialeticamente, impõe o seu oposto, ou melhor, aquilo que não é, criando, com isso, determinadas condições para a ação. Essa localização se inicia com o nascimento, pois afirma o autor: "nascer é, entre outras características, ocupar seu lugar, ou melhor, recebê-lo" (Sartre, 1943/2001, p.603). Se num primeiro momento o lugar é recebido passivamente pela criança, num segundo momento ele também é posto pela própria criança conforme for constituindo seu projeto de ser, na medida em que ela, ontologicamente, é liberdade e, por isso, persegue fins que dão sentido ao lugar e à situação que vive. "Quando escolho um fim, escolho ter relações com esses existentes e o fato de que esses existentes tenham relações entre si: escolho o fato de entrarem em combinação de modo a enunciar a mim aquilo que sou" (Sartre, 1943/2001, p.624).

Os arredores, da mesma forma que o lugar e em estreita ligação com ele, constituem a situação, "são coisas e utensílios que me circundam com seus coeficientes próprios de adversidade e utensilidade" (Sartre, 1943/2001, p.619), que podem tanto favorecer o sujeito como dificultar sua trajetória. Quando se ocupa um lugar, se fundamenta a descoberta de arredores, ao modificar o lugar mudam-se também os arredores e vice-versa. "A liberdade, portanto, encerra a existência dos arredores a modificar: obstáculos a transpor, ferramentas a utilizar" (Sartre, 1943/2001, p.622). A criança, dessa maneira, não se faz independente de seu contexto, antes, se projeta mediada pelos instrumentos ou objetos a que tem acesso - espaço físico, brinquedos e livros (ou a falta deles), utensílios disponíveis em sua casa, objetos disponíveis pelo trabalho de seus pais ou responsáveis, mídia, entre outros.

Já o passado de um sujeito, outro aspecto importante na estrutura de uma situação, revela acontecimentos concretos que expressam sua objetivação como sujeito no mundo. O passado

é o que é, fora do alcance, àquilo que nos infesta à distância... se não determina nossas ações, é de tal ordem que não podemos tomar uma nova decisão a não ser a partir dele... em qualquer momento que me assumo e me reconsidero, estou comprometido... o passado aparece como plataforma e ponto de vista (Sartre, 1943/2001, p.610)

É bom lembrar que, para Sartre, não se trata de um determinismo do passado, já que o futuro, aquilo que ainda não é, compartilha com este passado uma importância fundamental e tem peso nas decisões de um sujeito, pois motiva/orienta suas ações para uma ou outra direção, marcando uma dialética temporal. O passado, imutável ontologicamente, pode tornar-se objeto de consciência para o próprio sujeito e, com isso, sua significação ou importância pode ser modificada ao longo de uma vida de acordo com o futuro desejado ou os fins postos por esse sujeito. Ao mesmo tempo em que pode servir a uma complicação psicológica, quando se pode "tropeçar em uma lembrança da infância e esta tornar-se sagrada" (Sartre, 1952/2002, p.15), no sentido de ser tomada como central, experimentada como determinante por um sujeito, ele também pode dar subsídios para a viabilização de uma biografia.

Ao agir, a criança marca o presente, projeta o depois e deixa um "rastro", o passado, que implica a sua história e as histórias dos outros. Quando pequena, ainda não toma seu passado como objeto de consciência reflexiva, mas ele está incorporado, de modo irrefutável em seu projeto. "O momento é um envolvimento recíproco e contraditório do antes pelo depois; somos ainda o que vamos deixar de ser e já somos o que seremos. Vivemos nossa morte, morremos nossa vida" (Sartre, 1957/2002, p.15), o que marca o processo de totalização, retotalização e destotalização de ser. Tem-se com isso, que o passado

é a materialização atualmente revelada do fim que somos; aparece no meio do mundo, para nós e para outro, nunca está só, mas submerge no passado universal e com isso se oferece a apreciação do outro... o que nos indica uma infinidade de condutas a adotar. (Sartre, 1943/2001, p.618)

No movimento de constituição de si, em qualquer momento temporal, não há como escapar da apreciação do outro, pois a relação eu/outro é basal na constituição de todos os sujeitos, é próprio da condição humana: o homem se faz na exata medida em que é feito. Neste processo o "meu próximo" é o centro de referência de minhas significações e outra característica fundamental na situação. "Há significações objetivas que não foram criadas por mim, com as quais me encontro comprometido com um mundo já significante e que me reflete significações não determinadas por mim" (Sartre, 1943/2001, p.627). Este é o outro aspecto que marca a noção de alienação como condição humana em Sartre, baseada no Marxismo, posto que o sujeito não faz a história sozinho, mas se vê enredado na história da humanidade. Ao conviver com o outro é "atravessado" por ele, assim como o "atravessa" é, portanto, produto e produtor da práxis singular e da práxis coletiva (Sartre, 1943/2001, 1957/2002).

A partir do convívio das crianças com os outros ocorre um processo de aprendizagens, explícitas e implícitas, que diz respeito, desde a língua, o dialeto, a palavra, a família, a região, a profissão, a nacionalidade, a moralidade, a afetividade e que irão oferecendo um campo de possíveis para a criança constituir-se. Além disso, a família, antes mesmo do nascimento da criança tem, em relação às suas ações, expectativas, exigências, confirmações ou desconfirmações, o que tem consequências no modo como as características da criança irão se produzir, construindo, com isso, seu projeto de ser, bem como o dos outros que com ela convivem (Castro & Schneider, 1998). Sartre destaca que há uma característica que deve ser assumida pela liberdade: "existência-no-mundo-em-presença-dos-outros" (Sartre, 1943/2001, p.629).

A morte, outro aspecto irremediável que compõe a situação, indica para o sujeito, tal como o nascimento, a própria facticidade. "A morte é puro fato, como o nascimento; chega-nos de fora e nos transforma em lado de fora puro. No fundo, não se distingue do absoluto do nascimento, e é tal identidade entre nascimento e morte que denominamos facticidade" (Sartre, 1943/2001, p.668). No caso da criança, podemos refletir que a morte não seja posta, comumente, por ela mesma, como sua possibilidade, necessariamente, sendo antes, vivida à distância, como uma remota possibilidade humana, marcando, entretanto, uma estrutura de situação na qual está lançada.

Por último, sobre a situação, vale retomar o dizer de Sartre: "a situação é sempre concreta, contém e sustenta estruturas universais e abstratas, mas deve ser entendida como a fisionomia singular que o mundo nos oferece, como nossa oportunidade única e pessoal" (Sartre, 1943/2001, p. 674). Ou seja, não é nem objetiva, nem subjetiva, é o resultado da relação vivida concretamente na história.

Outros subsídios para pensar a infância na concepção de sujeito em Sartre.

A importância da infância, para o autor, fica expressa, ainda, na elaboração do que chamou de Psicanálise existencial1 1 Psicanálise Existencial é o termo escolhido por Sartre, no contexto de sua época, para refletir o campo da Psicologia Clínica numa ótica existencialista. A partir da análise que realiza dos escritos da psicanálise freudiana apresentada no Ser e o Nada (2001), o autor, por um lado, reconhece a importância do método clínico proposto por aquela psicanálise, bem como concorda com alguns aspectos dela, porém, por outro lado, marca as discordâncias e as oposições entre ambas. Essa análise demarca diferentes compreensões e metodologias voltadas ao método clínico entre essas teorias, colocando-as em campos epistemológicos distintos. Assim, a manutenção do termo "psicanálise" se mantém pela referência ao método clínico e o termo acrescido a ele, "existencial", para marcar diferenças. , quando destaca a exigência do método clínico ir às bases, à escolha original do sujeito.

só a psicanálise permite, hoje, estudar a fundo o processo pelo qual uma criança, no escuro, tateante, vai tentar desempenhar, sem compreendê-lo, o personagem social que os adultos lhe impõe, só ela nos mostrará se a criança sufoca em seu papel, se procura fugir dele ou se o assimila inteiramente. (Sartre, 1957/1978, p.138)

Com essa última afirmação, fica claro o princípio básico do existencialismo sartreano, a liberdade. A liberdade não ocorre fora de uma situação e não é possível fugir dela. De acordo com Sartre, "é preciso viver: não somos torrões de argila e o importante não é o que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos com o que fizeram de nós" (1952/2002, p.61), ou seja, é aberta a possibilidade da singularidade, da responsabilidade e da escolha, da condição histórica e, amparadas nisso, as possibilidades de mudanças numa biografia. Essas mudanças não indicam uma liberdade "pura" por parte do sujeito, desprendida de uma situação, haja vista que as novas escolhas são também possíveis apenas mediante condições objetivas dadas nos diferentes contextos de vida, mantendo, inclusive, a dialética entre a objetividade e a subjetividade e sua condição de alienação.

O êxito não importa a liberdade... por seu próprio surgimento denomina-se como um "fazer". Mas fazer pressupõe a nadificação de algo dado. Fazemos alguma coisa de alguma coisa. Assim, a liberdade é falta de ser em relação a um ser dado, e não surgimento de um ser pleno. É um buraco no ser... o nada não pode aparecer em parte alguma senão no âmago do ser. (Sartre, 1943/2001, pp. 597-598)

Encontramos também subsídios para entender a infância e as crianças nas demais obras técnicas de Sartre, voltadas à Psicologia, que tratam da constituição do sujeito. Cita-se A Transcendência do Ego (1936/1994), em que o autor discutiu como ocorre a constituição do eu; O Imaginário (1940/1996) e Esboço para uma Teoria das Emoções (1939/2006), obras em que se deteve a estudar fenomenologicamente como é possível ocorrerem os fenômenos psicológicos, emoção e imaginação, articulados com a constituição do eu; O Ser e o Nada (1943/2001), em que explora a condição ontológica do sujeito e a Crítica a Razão Dialética (1957/2002), em que pretende compreender a organização dos coletivos, dos grupos, e a relação entre a práxis individual e a práxis coletiva.

Nestes escritos evidencia-se a compreensão de Sartre de que o sujeito é, por definição, resultante de suas relações que se dão num espaço e num tempo e mediante um fluxo de consciências pelo qual este sujeito: percebe, imagina, reflete, se emociona, pensa, constrói sentimentos, age no mundo, se organiza em coletivos com diferentes características e constitui, a partir de um movimento de subjetivação e objetivação, a coloração específica ou a singularidade de seu projeto e desejo de ser no mundo. Ou seja, o sujeito é resultante de um movimento dialético, uma subjetividade objetivada e uma objetividade subjetivada, ou, ainda, de um movimento incessante entre a práxis singular e a práxis coletiva impressas no cotidiano (Maheirie & Pretto, 2007). Esse movimento de constituição de si acontece desde a infância e atravessa todas as idades de uma pessoa.

Pensa-se, também, que pode haver uma contribuição da teoria sartreana no que se refere ao aspecto metodológico em pesquisa, que vai de encontro a posições atuais sobre como fazer pesquisas com crianças. Nestas, fica evidente o esforço em reconhecer as crianças como sujeitos de direito, capazes de descrever experiências válidas, incluindo-as como fontes legitimas nas pesquisas. Além disso, tem destaque o cuidado ético, superando práticas de pesquisas, muitas vezes, invasoras e exploradoras junto às crianças. Ferreira (2004), Delgado e Muller (2005) e Sarmento (2005) apontam a etnografia como ideal na pesquisa sobre as infâncias, por se proporem, a partir do próprio contexto das crianças, a legitimar as crianças como detentoras de um saber; a respeitar a realidade pesquisada, que muitas vezes é diferente da de quem pesquisa, além de promover a inserção participante e interativa da/o pesquisador/a no campo, entre outros.

Sartre não se refere diretamente à etnografia, mas fica evidente que compartilha de seus princípios quando, ao refletir sobre a produção do conhecimento, destaca que esta só pode se fundar sobre a verdade da microfísica: "o experimentador faz parte do sistema experimental" (Sartre, 1957/2002, p.37), sendo esta uma condição inevitável na pesquisa. Para o autor, o fundamento da antropologia "é o próprio homem, não como objeto do saber prático, mas como organismo prático produzindo o saber como um momento de sua práxis" (Sartre, 1957/2002, p.132).

Nesse sentido, "a investigação é uma relação viva entre os homens" (Sartre, 1957/2002, p.64) e deve pressupor a inclusão do conhecedor no conhecido, num movimento de negação da realidade recusada em nome da realidade a produzir, na medida em que o sujeito é produto de seu produto e permanece cativo da ação que ilumina e desaparece com ela. Assim, "a realidade humana, na medida em que se faz, escapa ao saber direto, ou seja, o projeto humano não pode definir-se como conceito, mas é sempre compreensível" (Sartre, 1957/1978, p.168). O desafio da pesquisa é justamente que "o pesquisador não pode nunca estar "fora" de um grupo senão na medida em que ele está ‘em’ outro grupo [sendo que] estas diversas perspectivas mostram-lhe bem que a comunidade como tal lhe escapa de todos os lados" (Sartre, 1957/2002, p.67).

No olhar sartreano, o método para produzir conhecimento não terá outro meio senão o "vaivém": determinará progressivamente a biografia (por exemplo), aprofundando a época, e a época, aprofundando a biografia. Longe de procurar logo uma à outra, mantê-las-á separadas até que o envolvimento recíproco se faça por si mesmo e ponha um termo provisório na pesquisa (Sartre, 1957/2002, p.67). Convém, pois, voltar ao objeto e estudar as particularidades de um sujeito ou situação através da grade de instrumentos coletivos. Um caminho interessante, assim, para compreender as infâncias é a partir de contextos específicos, entendendo-as como produções e produtoras do contexto coletivo.

Considerações finais

Para finalizar, entende-se, a partir do exposto, que a teoria sartreana pode contribuir, de modo produtivo, com o debate sobre a infância na contemporaneidade, numa perspectiva histórica dialética. Apesar de este autor não ter se aprofundado nas teses sobre as crianças, cultivou um terreno profícuo para discussões sobre elas.

Assim, podemos destacar algumas considerações centrais sobre a infância nos escritos analisados: a infância como um acontecimento histórico, produto de uma complexa dialética do tecido social, diferenciada conforme tal tecido, o que leva à impossibilidade de falar de uma infância, mas de infâncias, rompendo com a noção de naturalização e universalização; as crianças forjam o seu ser a partir de um confronto de projetos posto pelo seu contexto familiar e sua rede de relações, constituindo seu projeto de ser como uma realidade nova, rompendo com o determinismo; as crianças possuem um saber legítimo, não sendo seres puramente passivos, rompendo com a visão adultocêntrica.

O debate sobre a infância se faz importante em relação às práticas profissionais, pois pode dar subsídios para novas ações e para as práticas de pesquisa, nas quais o interesse recai não somente no olhar institucional que fala da criança, mas desde as próprias crianças, legitimando suas vozes. Finalizando com Del Priori (1998), temos ainda no Brasil a difícil tarefa de reconhecer as crianças como seres autônomos e dignos.

Nota

Agradecimento

Pelo apoio e financiamento da FUMDES.

Recebido em: 06/05/2012

Aceite em: 01/09/2013

Zuleica Pretto é Psicóloga, Mestre em Psicologia pela UFSC, doutoranda do Curso de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC, bolsista do programa FUMDES do governo do estado de Santa Catarina. Atualmente é professora da Universidade do Sul de Santa Catarina e Coordenadora do Curso de Especialização em Psicologia Existencialista Sartreana desta Universidade. Endereço: Av. Campeche, 1157, Campeche, Florianópolis/SC, Brasil. CEP 88063-300. Email: zuleicapretto@yahoo.com.br

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    Psicanálise Existencial é o termo escolhido por Sartre, no contexto de sua época, para refletir o campo da Psicologia Clínica numa ótica existencialista. A partir da análise que realiza dos escritos da psicanálise freudiana apresentada no Ser e o Nada (2001), o autor, por um lado, reconhece a importância do método clínico proposto por aquela psicanálise, bem como concorda com alguns aspectos dela, porém, por outro lado, marca as discordâncias e as oposições entre ambas. Essa análise demarca diferentes compreensões e metodologias voltadas ao método clínico entre essas teorias, colocando-as em campos epistemológicos distintos. Assim, a manutenção do termo "psicanálise" se mantém pela referência ao método clínico e o termo acrescido a ele, "existencial", para marcar diferenças.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      06 Maio 2012
    • Aceito
      01 Set 2013
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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