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Política municipal e acesso a serviços de saúde São Paulo 2001-2012, quando as periferias ganharam mais que o centro1 [1] Este artigo apresenta resultados do projeto "Equidade e Distribuição de Serviços Públicos de Saúde em São Paulo", financiado com recursos do Processo Fapesp 2011/20641-5 e com recursos do CEM associados ao Processo Fapesp 2013/07616-7. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP. 2 [2] Este trabalho foi apresentado no Seminário Internacional do CEM, 2010; na LASA, em 2012, e no Geneva Health Forum, em 2014. Agradecemos os comentários e sugestões de Argelina Figueiredo, Brian Wampler e Monika Christofori-Khadka.

Resumos

O trabalho analisa a distribuição de serviços públicos de saúde na cidade de São Paulo entre 2001 e 2012. Nesse período registraram-se ganhos importantes no acesso a esses serviços a favor dos que vivem nas periferias, principalmente entre aquelas que apresentam os piores indicadores socioeconômicos. Para explicar esses resultados revisitamos as políticas de saúde adotadas pelo município no período e exploramos sua relação com as disputas eleitorais, bem como com a valorização do princípio de acesso universal à saúde por parte de políticos e profissionais que começaram a atuar na política municipal de saúde no final dos anos 1960.

SUS; sistema público de saúde; desigualdades em saúde; acesso universal à saúde; OSS; consultas básicas; internações hospitalares; competição eleitoral e saúde


The study analyses the evolution of the supply and consumption of public healthcare services within the municipality of São Paulo between 2000 and 2012. In the period services offered grew and the disparity between the supply and consumption of public health services across the areas with the best and worst indices of income, education and health decreased. To explain these results we discuss the municipal policies adopted during the period and explore their relation with both electoral competition and the commitment to universal access to health care by a group of politicians and health professionals.

SUS; Brazilian public health care system; health inequalities; universal health care; basic appointments; hospital admissions; electoral competition and health


I. INTRODUÇÃO

O tema das desigualdades na distribuição de serviços e condições de saúde está presente no debate público desde o final dos anos 1970, tendo recebido considerável atenção do Ministério da Saúde desde os primeiros anos da implementação do SUS. As ações do ministério bem como a literatura se concentraram, no entanto, nas desigualdades entre regiões, estados e municípios, não tendo a questão das desigualdades intramunicipais recebido maior atenção (Néri e Soares, 2002; Medici, 2001Medici, A. Financiamiento y gasto público en salud en los años noventa. División de Programas Sociales del Banco Interamericano de Desarrollo, 2001.; Ugá et al., 2003Ugá, M. A. D.; Piola, S. F.; Porto, S. M.; Vianna, S. M. "Descentralização e alocação de recursos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)" . Ciência e Saúde Coletiva, 8(2), 2003, pp. 417-437.; Arretche e Marques, 2002Arretche, M. "Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordenação e autonomia". Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, vol. 18, nº 2, 2004, pp. 17-26.; Arretche, 2007Arretche, M. "Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordenação e autonomia". Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, vol. 18, nº 2, 2004, pp. 17-26.; Souza, 2003; Melamed e Costa, 2003Melamed, C. E. e Costa, N. R. "Inovações no financiamento federal à Atenção Básica". Ciência & Saúde Coletiva, vol. 8, nº 2, 2002, pp. 393-401.).

As desigualdades intramunicipais presentes, particularmente, em grandes cidades e regiões metropolitanas tendem, assim como as acima citadas, a se reproduzir, seja no processo de implementação de novos programas, seja durante a distribuição de novos recursos. Há, nesse sentido, inúmeros testemunhos de como é difícil romper com esse ciclo, mesmo quando há intenção explicita de fazê-lo (World Bank, 2004World Development Report. Making services work for poor people. World Bank, 2004.; Liu, Hotchkiss e Bose, 2007Liu, X., Hotchkiss, D.R. & Bose, S., 2007. "The impact of contracting-out on health system performance: a conceptual framework". Health policy (Amsterdã, Holanda), v.82 (2), 2007, pp. 200-11.; World Health Organization & Unhabitat, 2010).

Neste artigo analisamos o perfil de distribuição de consultas básicas e de internações hospitalares oferecidas pelo SUS, entre 2001 e 2012, entre as 31 subprefeituras que compõem o município de São Paulo. Em 2001, a distribuição de serviços públicos de saúde na cidade era fortemente concentrada nas áreas centrais, as quais apresentavam os melhores indicadores socioeconômicos (Coelho e Pedroso, 2002Coelho, V. S. e Pedroso, M. "Distribuição de serviços públicos de saúde no município de São Paulo". Novos Estudos Cebrap, nº 64, 2002, pp. 141-154.; Coelho e Silva, 2007Coelho, V. S. e Pedroso, M. "Distribuição de serviços públicos de saúde no município de São Paulo". Novos Estudos Cebrap, nº 64, 2002, pp. 141-154.). Durante os anos seguintes, que abarcam três gestões municipais, cujos mandatos foram exercidos por prefeitos ligados, respectivamente, ao PT, PSDB e DEM, esse quadro mudou, tendo a distribuição de serviços se tornado mais equitativa.

Esses resultados nada triviais dificilmente podem ser explicados apenas pela chegada de novos programas e recursos federais ao município, uma vez que a simples implementação desses programas e o uso dos novos recursos seguindo a lógica da distribuição dos equipamentos então disponíveis teriam levado facilmente a um aprofundamento das desigualdades preexistentes. Com o intuito de explicá-los recuperamos as políticas de saúde adotadas pelo município de São Paulo no período. Exploramos, também, o papel da disputa eleitoral e da adesão ao princípio do acesso universal ao SUS, por parte de diferentes atores ligados à política de saúde, na adoção dessas políticas.

As três principais contribuições deste artigo para a literatura são: 1) descrever o perfil distributivo intramunicipal do SUS no município de São Paulo por um período que abarca três gestões completas, o que representa um período de doze anos; 2) analisar esse perfil em termos do seu impacto distributivo, problematizando a questão das desigualdades de acesso aos serviços; e 3) associar dois grupos de estudos: os que tratam do perfil distributivo àqueles que tratam do processo político (Costa et al., 2001Costa, M. C. N.; Azi, P. A.; Paim, J. S.; Silva, L. M. V. "Mortalidade infantil e condições de vida: a reprodução das desigualdades sociais em saúde na década de 90". Cadernos de Saúde Pública, v. 17, nº 3, 2001, pp. 555-567.; Goldani et al., 2001Goldani, M. Z.; Barbieri, M. A.; Bettiol, H.; Barbieri, M. R.; Tomkins, A. "Infant mortality rates according to socioeconomic status in a Brazilian city". Revista de Saúde Pública, v. 35 (3), 2001, pp. 256-261.; Levcovitz et al., 2001Levcovitz, E. , Lima, L. D. e Machado, C. (2001). "Política de saúde nos anos 90: relações intergovernamentais e o papel das Normas Operacionais Básicas". Ciência & Saúde Coletiva, vol. 6, nº 2, 2001, pp. 269-291.; Sawyer, 2002Sawyer, D. O. , Leite, I. C. e Alexandrino, R. "Perfis de utilização de serviços de saúde no Brasil". Ciência & Saúde Coletiva, 7(4), 2002, pp.757-776.; Viana, 2003Viana, A. L. D., Fausto, M. C. R. e Lima, L. D. de. "Política de saúde e equidade". São Paulo em Perspectiva, 17(1), 2003, pp. 58-68.; Holcman et al., 2004Holcman, M. M.; Latorre, M. R. O.; Santos, J. L. "Evolução da mortalidade infantil na região metropolitana de São Paulo, 1980-2000". Revista Saúde Pública, v. 38 (2), 2001, pp. 180-186.; Pessoto et al., 2007Pessoto, U. C.; Heimann, L. S.; Boaretto, R. C.; Castro, I. E. N.; Kayano, J., Ibanhes, L. C.; Junqueira, V.; Rocha, .J L. B.; Cortizo, C. T.; Martins, L. C.; Luiz, O. C. "Desigualdades no acesso e utilização dos serviços de saúde na Região Metropolitana de São Paulo". Ciência e Saúde Coletiva, 12(2), 2007, pp. 351-362.; Vilasbôas, 2008Vilasbôas, A. L. Q. e Paim, J. S. "Práticas de planejamento e implementação de políticas no âmbito municipal". Caderno de Saúde Pública, 24(6), 2002, pp. 1239-1250.; Bousquat et al., 2008Bousquat, A; Cohen, A; Elias, P. E. "Utilization of the Family Health Program in metropolitan regions: a methodological approach". Revista de Saúde Pública, 42 (5):903-6, 2008.; Melo, 2008Melo, M. A. "Unexpected successes, unanticipated failures: social policy from Cardoso to Lula". In: Kingstone, P. R. e Power, T. J. Democratic Brazil revisited. Pittsburg: University of Pittsburg Press, 2008, pp. 161-84.; Dowbor e Houtzager, 2014Dowbor, M. e Houtzager, P.P. "The role of professionals in policy reform: cases from the city level, São Paulo". Latin American Politics and Society, 56:141-162, 2014.).

O artigo está organizado em cinco seções, além desta introdução. Na próxima seção apresentamos a metodologia do estudo. Na terceira seção é feito um histórico sobre as políticas de saúde que incidiram sobre a questão das desigualdades intramunicipais de saúde no período anterior a 2001. Na quarta seção descrevemos inicialmente as principais políticas municipais adotadas entre 2001 e 2012, pelos diferentes partidos políticos que estiveram à frente da prefeitura, e a seguir relacionamos essas políticas ao perfil de distribuição dos equipamentos e serviços de saúde nas 31 subprefeituras. Na quinta seção investigamos a contribuição do processo político para a geração das políticas e dos resultados distributivos descritos na seção anterior. Finalmente, sintetizamos a contribuição desta pesquisa para a compreensão do papel da política em definir políticas que contribuem para alterar os contextos institucionais, ampliando sua capacidade de enfrentar as desigualdades em saúde.

II. METODOLOGIA

As principais questões que o estudo pretendia responder eram: As diferenças no acesso a serviços públicos de saúde entre as subprefeituras com melhores e piores indicadores socioeconômicos diminuíram entre 2001 e 2012? Podemos identificar como as diferentes políticas adotadas pelo governo municipal em cada mandato contribuíram para reduzir ou ampliar essas diferenças? Qual foi o papel desempenhado pela política municipal na adoção dessas políticas?

Para tanto: 1) descrevemos as políticas municipais implementadas em cada uma das três administrações municipais; 2) em paralelo, acompanhamos a distribuição de equipamentos e serviços em todas as subprefeituras entre 2001 e 2012; 3) testamos a plausibilidade da hipótese que relaciona a adoção de políticas que favoreceram a redução das desigualdades em saúde, por um lado, a eleições altamente competitivas para a prefeitura e, por outro lado, à presença de um grupo de atores ligados à política de saúde que defendiam o princípio de acesso universal ao SUS.

As políticas implementadas em cada administração municipal foram sistematizadas a partir de pesquisa qualitativa que incluiu observação participante e realização de entrevistas com perguntas fechadas e semiabertas com gestores da Secretaria Municipal da Saúde, conselheiros de saúde e prestadores de serviço. Também foram coletados documentos oficiais e artigos acadêmicos e publicados na imprensa.

A análise da distribuição de equipamentos e serviços foi possível com a ordenação das 31 subprefeituras a partir dos seus respectivos Índices de Desenvolvimento Municipal (IDH-M) e da utilização de um Sistema de Informações Geográficas (GIS). Para cada subprefeitura, calculamos a porcentagem de usuários do SUS. O cálculo da população SUS foi realizado a partir da proporção de população exclusivamente usuária do SUS calculada pela Coordenação de Epidemiologia e Informação (Ceinfo) da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo3 [3] Estimativa da População Exclusivamente Usuária SUS no Município de São Paulo. Boletim Eletrônico CEInfo, ano 1, nº 1, fevereiro de 2010. Disponível em: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/arquivos/boletimeletronico/n01popsus.pdf . O procedimento consiste na obtenção da proporção da população usuária do SUS, em cada subprefeitura, em cada ano, calculada a partir da projeção da população divulgada pelo IBGE4 [4] Para esse cálculo usamos o crescimento da população de cada subprefeitura no período, informado pelo IBGE - Censos Demográficos e SMDU/Dipro - Retroestimativas e Projeções, entre 2000 e 2012. . Os dados quantitativos sobre a oferta de serviços foram obtidos no sistema on-line do departamento de Informática do SUS (Datasus) disponibilizados pelo Ministério da Saúde e pela Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo. A partir daí calculamos as taxas de oferta de consultas básicas e de consumo de internações hospitalares para a população usuária do SUS em cada subprefeitura. Para facilitar a descrição, agrupamos as subprefeituras em quartis de acordo com seu IDH-M.

Para acompanhar a evolução do perfil distributivo entre 2001 e 2012, descrevemos a evolução da distribuição de equipamentos e serviços entre as áreas com os melhores e os piores indicadores socioeconômicos. A redução das desigualdades foi estimada a partir da diferença entre os resultados descritos para as áreas com melhores e piores indicadores.

Com o intuito de explicar os resultados distributivos aferidos, analisamos concomitantemente as políticas de saúde adotadas pelo município de São Paulo no período e o perfil distributivo presente ao longo de cada um dos três mandatos municipais. Exploramos, ainda, o papel da disputa eleitoral e da adesão ao princípio do acesso universal ao SUS, por parte de diferentes atores ligados à política de saúde, na adoção dessas políticas. Para tanto utilizamos, para além dos dados eleitorais, programas de governo, documentos oficiais e entrevistas. Nessa análise investigamos a relação entre os diferentes mandatos municipais e as políticas de saúde adotadas pelo município olhando para o papel da competição eleitoral em fazer avançar a reorganização da rede de prestação e gestão de serviços. Buscamos entender as motivações que guiaram essas escolhas e, em especial, como foi possível manter a tendência de reverter as desigualdades distributivas em um contexto de alternância partidária.

Cabe ressaltar o caráter exploratório da análise que empreendemos sobre o papel do processo político em engendrar políticas que tiveram impactos distributivos a favor das áreas com piores indicadores socioeconômicos. Essa análise foi construída a partir de um caso único no qual não se testou a significância estatística dos ganhos distributivos indicados, o que limita as pretensões de validade do estudo. Nesse sentido, oferecemos uma explicação plausível sobre a relação entre ganhos distributivos, política e políticas. A questão das relações de causalidade entre esses eventos permanece, no entanto, em aberto. Afinal, variáveis omitidas em nossa análise podem estar mais fortemente associadas a esses ganhos distributivos do que aquelas que aqui analisamos. A possibilidade de replicar esse tipo de estudo em outras grandes cidades certamente permitirá avançar, para além do que foi possível nesse estudo, nosso conhecimento sobre o papel da política municipal em promover a equidade na distribuição de serviços públicos de saúde.

III. UMA BREVE RETROSPECTIVA DO CENÁRIO PRÉ-2001

Nos anos 1930 foi criado por Walter Leser o primeiro curso de saúde preventiva, na Escola Paulista de Medicina. Em 1967, durante a gestão do governador Roberto Costa de Abreu Sodré (1967-1971), ele se tornou secretário da Saúde do estado de São Paulo, cargo que voltou a ocupar em 1976 durante a gestão de Paulo Egydio Martins (1975-1979). Como secretário, Leser implementou um programa que priorizou, além das áreas tradicionais de ação da saúde pública, como o saneamento, a organização de serviços de atenção básica.

Ao longo desses anos assistiu-se a um grande crescimento da periferia urbana da cidade, e já em 1977 um grupo de mulheres de vários bairros da Zona Leste começou a organizar eventos e protestos públicos para pressionar a Secretaria Estadual da Saúde a construir um centro de saúde na região (Neder, 2001Neder, C. A. P. Participação e gestão pública: a experiência dos movimentos populares de saúde no município de São Paulo. Dissertação de mestrado, Campinas: Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, 2002.). O centro foi inaugurado em 1979, e no mesmo ano foi instituído um conselho para monitorá-lo, com membros eleitos por mais de 8 mil moradores da região (Bógus, 1998Bógus, C. M. Participação popular em saúde. São Paulo: Annablume, 1998.). Em 1981, outros dezoito conselhos foram eleitos para monitorar os centros de saúde da Zona Leste. Nesse ano a taxa de mortalidade na periferia da cidade superava em 41% a da região central. Um levantamento feito na época indicou que, enquanto nas regiões centrais da cidade havia uma oferta de 42 leitos por mil habitantes, na periferia essa taxa era de apenas 0,5 leito por mil habitantes (Secretaria Estadual da Saúde, 1982Secretaria Estadual da Saúde (1982). Coordenação do Programa Metropolitano de Saúde. São Paulo, 1982.).

Nesse contexto, o próximo secretário, Adib Jatene, coordenou, durante a gestão de Paulo Salim Maluf no governo do estado (1979-1982), a criação do Plano Metropolitano de Saúde5 [5] Adib Jatene foi professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, tendo sido nomeado ministro da Saúde em 1989, durante o governo Collor, e em 1995, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. . Esse plano procurava enfrentar o déficit de serviços sobretudo nas áreas periféricas da cidade e ampliar a coordenação entre as inúmeras instituições que trabalhavam na região. Entre outras medidas, o plano propunha a construção de 490 unidades básicas de saúde (UBSs) e quarenta hospitais regionais6 [6] Esse plano foi submetido ao Banco Mundial, e esperava-se que fosse financiado pelo banco em conjunto com os governos municipal, estadual e federal. O custo estimado para a implementação do programa era de U$ 121,4 milhões à época. .

Esse plano foi retomado em 1983, na gestão de André Franco Montoro (1983-1987), quando João Yunes esteve à frente da Secretaria Estadual da Saúde7 [7] João Yunes foi professor na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, assessor do ministro da Saúde em 1974, secretário nacional de Programas Especiais em 1976 e secretário de Políticas de Saúde em 1998, além de superintendente do IAMSPE (1978) e representante do Brasil na OPAS e na OMS. . Nessa época foram construídos 67 centros de saúde na região metropolitana e recuperados os leitos públicos dos hospitais do estado. Em dezembro de 1984 foi iniciada a elaboração dos projetos para a construção de 86 UBS e cinco hospitais gerais, e ainda a reforma de 28 UBSs e três hospitais8 [8] Pedro Paulo Branco, entrevista concedida ao projeto em 20/12/2011. .

Durante a gestão de Luiza Erundina (1989-1992) na prefeitura da cidade, Eduardo Jorge, médico sanitarista, assumiu a Secretaria da Saúde buscando reforçar a oferta de serviços nas periferias da cidade9 [9] Eduardo Jorge atuou desde os anos 1970 junto aos movimentos populares de saúde, tendo ajudado a criar os primeiros conselhos de saúde da cidade. . Esse período foi importante para a política municipal de saúde, visto que a prefeitura assume um papel de protagonismo na organização dos serviços de saúde, dirigindo serviços para a periferia da cidade. Até então as iniciativas tomadas no âmbito do Programa Metropolitano de Saúde foram centralizadas pelo governo estadual e envolviam outros municípios periféricos à cidade.

Nessa época, o Movimento de Saúde da Zona Leste procurou intensificar suas conexões com movimentos de saúde de outras regiões da cidade, apoiando a criação de um conselho municipal de saúde. Nesse momento, os militantes do movimento - muitos dos quais funcionários da Secretaria Estadual da Saúde - estavam empenhados na luta por um sistema de saúde universal10 [10] Ibidem. .

Essa longa trajetória foi descontinuada no início dos anos 90, quando Paulo Salim Maluf, que esteve à frente do governo estadual durante a criação do Plano Metropolitano, foi eleito prefeito da cidade (1993-1997) e resolveu romper com o SUS e organizar um sistema municipal próprio, o PAS, que propunha que os médicos se organizassem em cooperativas para prestar serviços públicos de saúde aos moradores da cidade. Ao romper com o SUS, a cidade se distanciou do processo de municipalização e descentralização dos serviços de saúde que estavam em andamento no estado e no restante do país , sendo impedida de receber o repasse de recursos financeiros dos outros níveis governamentais para o sistema de saúde municipal. Esse modelo foi mantido na administração de Celso Pitta (1997-2000).

Vale notar que, em 1995, Adib Jatene, então ministro da Saúde, José da Silva Guedes, da Secretaria Estadual da Saúde11 [11] José da Silva Guedes foi nomeado secretário da Saúde em 1995, na gestão de Mario Covas como governador do estado, tendo permanecido no cargo durante seus dois mandatos. , e Davi Capistrano, médico que havia sido prefeito de Santos, se reuniram para apoiar a implementação de um programa-piloto de saúde da família nas periferias da cidade de São Paulo. O programa recebeu o nome de Qualis e foi implementado com a participação de organizações não governamentais (ONGs)12 [12] O programa foi implementado na Zona Leste pela Casa de Saúde Santa Marcelina, na Zona Norte e na Zona Sudeste pela Fundação Zerbini, e na Zona Sul pela Universidade Santo Amaro e pela Congregação Santa Catarina. . Nesse programa, equipes formadas por médico, enfermeira, auxiliar de enfermagem e quatro agentes comunitários de saúde se responsabilizam por cuidar de até mil famílias (Capistrano Filho, 1999Capistrano, F. D. "O Programa de Saúde da Família em São Paulo". Estudos Avançados, 13 (35), 1999, pp. 89-100.).

Ao final de 1999, o Qualis possuía aproximadamente 140 equipes de saúde da família, que chegaram a atender cerca de 400 mil paulistanos residentes em distritos periféricos13 [13] O programa foi implementado em Vila Nova Cachoeirinha, Vila Brasilândia, Freguesia do Ó, Parque São Lucas, Sapopemba e Itaquera. . Dentro dessa estratégia, treze hospitais foram construídos na região metropolitana no período pelo governo estadual, sendo cinco deles em áreas periféricas14 [14] Esses hospitais foram construídos no Itaim Paulista, Grajaú, Pedreira, Vila Alpina e Sapopemba. . Essas iniciativas retomavam parte dos projetos previstos pelo Programa Metropolitano, destinadas a enfrentar as desigualdades que marcavam a oferta de serviços entre áreas centrais e periféricas, utilizando inclusive recursos congelados que haviam sido cedidos pelo Banco Mundial na década de 1980 (Pessoto et al., 2007Pessoto, U. C.; Heimann, L. S.; Boaretto, R. C.; Castro, I. E. N.; Kayano, J., Ibanhes, L. C.; Junqueira, V.; Rocha, .J L. B.; Cortizo, C. T.; Martins, L. C.; Luiz, O. C. "Desigualdades no acesso e utilização dos serviços de saúde na Região Metropolitana de São Paulo". Ciência e Saúde Coletiva, 12(2), 2007, pp. 351-362.).

Esses esforços testemunham que a oposição à gestão Maluf/Pitta aproximou quadros, ligados a diferentes partidos, que desde os anos 1970 trabalharam para melhorar a distribuição de serviços de saúde e atender as áreas periféricas da cidade. Esse quadro mudou nos anos seguintes, quando as duas principais forças políticas que faziam oposição ao PDS e ao PPB, o PT e o PSDB, passaram a disputar renhidamente as eleições municipais, bem como os conceitos e diretrizes que deveriam estruturar a política municipal de saúde.

IV. POLÍTICAS E DISTRIBUIÇÃO DE SERVIÇOS

Nesta seção introduzimos as principais políticas adotadas por cada uma das três gestões municipais que se seguiram à gestão Pitta e apresentamos um perfil da distribuição de equipamentos e serviços ao longo do período.

2001-2004

Em 2000, Marta Suplicy foi eleita prefeita da cidade de São Paulo pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Em 2001, Eduardo Jorge volta a ocupar o cargo de secretário municipal da Saúde e decide-se aderir ao SUS e expandir o Programa de Saúde da Família (PSF).

Naquele momento, apesar de todos os esforços que haviam sido feitos desde os anos 1980 no sentido de ampliar a oferta de serviços na periferia, o que se via era que, enquanto a população usuária do SUS estava concentrada nas periferias da cidade, a oferta de equipamentos e serviços estava alocada nas regiões mais centrais e antigas da cidade de São Paulo. Ou seja, populações usuárias do SUS vivendo em áreas que apresentavam melhores indicadores socioeconômicos eram privilegiadas pela maior oferta de serviços, quando comparadas com aquelas que viviam nas periferias (Coelho e Pedroso, 2002Coelho, V. S. e Pedroso, M. "Distribuição de serviços públicos de saúde no município de São Paulo". Novos Estudos Cebrap, nº 64, 2002, pp. 141-154.; Coelho e Silva, 2007Coelho, V. S. e Pedroso, M. "Distribuição de serviços públicos de saúde no município de São Paulo". Novos Estudos Cebrap, nº 64, 2002, pp. 141-154.).

A entrada de Eduardo Jorge na secretaria trouxe várias mudanças importantes a esse quadro, a começar pela criação de 41 distritos de saúde, os quais foram incorporados mais tarde às 31 subprefeituras da cidade15 [15] Essas subprefeituras tinham, segundo o Censo de 2000, populações que variavam de 109.116 a 563.922 habitantes. . Em cada distrito foram criados conselhos de unidade de saúde, compostos de usuários (50%), gestores (25%) e prestadores de serviços (25%), que deveriam contribuir para a definição e o monitoramento das políticas de saúde na região, passando a cidade a contar com mais de trezentos conselhos de saúde e 4 mil conselheiros. Também foram criados conselhos distritais e autarquias (Alves Sobrinho e Capucci, 2003Alves Sobrinho, E. J.; Capucci, P. F. "Saúde em São Paulo: aspectos da implantação do SUS no período de 2001-2002". Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n° 48, maio-ago. 2003, pp. 209-227.).

A estrutura da Secretaria Municipal da Saúde foi reforçada pela contratação, entre 2001 e 2002, de mais de 15 mil trabalhadores que realizaram concursos públicos e foram admitidos como estatutários e celetistas. Entre eles, quatrocentos gestores foram capacitados para administrar as unidades básicas, as quais registraram grande expansão no período (ver Tabela 1).

TABELA 1
Equipamentos públicos de saúde, município de São Paulo, 2001-2012

Em paralelo à criação dessa estrutura, Eduardo Jorge investiu na ampliação do PSF. Quando ele assumiu a secretaria, existiam cerca de 180 equipes, e seu plano era multiplicar essas equipes por dez, atingindo em 2004 a casa de 1.700 equipes. Em 2002, o número de equipes já havia mais que dobrado. Para viabilizar essa expansão foram firmados convênios com doze entidades sem fins lucrativos que tinham tradição na prestação de serviços de assistência social e saúde16 [16] Na implantação do PSF em São Paulo, fizeram parcerias com a SMS: 1) Associação Comunitária Monte Azul, 2) Associação Congregação Santa Catarina, 3) Instituto Adventista de Ensino - IAE, 4) Centro de Estudos e Pesquisas "Dr. João Amorim" - Cejam, 5) Fundação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 6) Casa de Saúde Santa Marcelina, 7) Universidade Federal de São Paulo - Unifesp, 8) Associação Saúde da Família, 9) Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, 10) Universidade de Santo Amaro - Unisa, 11) Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Hospital Albert Einstein e 12) Fundação Zerbini. .

Em fevereiro de 2003, cobrado pela prefeita pelo mau desempenho da gestão ante a opinião púbica e por setores do PT e do movimento sanitarista pela contratação de Organizações Sociais de Saúde (OSSs) para capitanear a expansão do PSF no município, Eduardo Jorge deixou o cargo17 [17] Uma reconstituição acurada dos dilemas políticos enfrentados por Eduardo Jorge durante sua gestão é apresentada em Dowbor e Houtzager (2014). . Em seu lugar assumiu Gonzalo Vecina Neto18 [18] Gonzalo Vecina é sanitarista, e entre os cargos que ocupara estavam o de superintendente do Hospital das Clínicas e o de presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no governo FHC. . Na gestão de Vecina cresceu o debate sobre o custo do PSF e se apostou na possibilidade de alcançar resultados satisfatórios com o Programa de Agentes Comunitários (PAC), que mantinha a estrutura da UBS agregando agentes comunitários à equipe tradicional19 [19] Gonzalo Vecina, entrevista concedida ao projeto em 16/11/2011. .

Ao final da gestão Marta, o número de UBSs crescera 70%. O critério adotado para a distribuição desses equipamentos foi "uma para cada 20 mil usuários sendo que a unidade não deve estar a mais de trinta minutos a pé da residência do usuário"20. A prioridade na implantação foi dada às áreas com maior carência de equipamentos e piores indicadores de saúde, educação e renda. A esses critérios técnicos, juntou-se a pressão popular organizada através, sobretudo, do movimento de saúde e dos novos mecanismos participativos, contribuindo para que "quem chorasse mais, levasse"21.

Essas iniciativas contribuíram, como veremos adiante, para dar início a um processo de mudança no perfil de distribuição de serviço na cidade de São Paulo.

2005-2008

José Serra é eleito, em 2004, prefeito pelo PSDB, permanecendo no cargo entre 2005 e 2006, quando se candidata a governador do estado, deixando em seu lugar seu vice, Gilberto Kassab, do DEM.

Em 2005, Claudio Lottenberg é nomeado secretário municipal da Saúde22. Embora tenha deixado o cargo já em maio de 2005, deu início a mudanças no rumo na gestão municipal da saúde, as quais começaram a ganhar força com Maria Cristina Cury e, em seguida, Maria Orsine, que ocupou a pasta até outubro de 2007.

Da perspectiva da rede, seguiu-se investindo no PSF e introduziu-se uma inovação importante, as AMAs (Assistência Médica Ambulatorial), que buscavam equacionar a demanda de urgência e emergência de baixa complexidade, reconhecida como um problema crônico da rede pública, que, sem conseguir dar conta desses casos, acabava por induzi-los a buscar os prontos-socorros e a rede hospitalar.

A implantação das AMAs foi organizada utilizando-se o Índice de Necessidades de Saúde (INS) calculado para os 96 distritos administrativos da cidade. O índice considerava vinte indicadores epidemiológicos agrupados em cinco grupos (crianças e adolescentes, gestantes, adultos, idosos e doenças crônicas). Vale comentar a originalidade do índice, que considera as necessidades em saúde e não a presença de equipamentos ou o tamanho da população usuária do SUS. Entre 2005 e 2010, 131 AMAs foram inauguradas23.

A ampliação da rede foi feita através de duas estratégias: contratação direta de profissionais e, no caso do PSF, contratação indireta, através do estabelecimento de convênios e contratos de gestão com organizações privadas não lucrativas (Organizações Sociais de Saúde - OSSs). Em 2007, quando Orsine deixou o cargo, um hospital, 39 postos de saúde e unidades do Programa Saúde da Família e quatro unidades de AMAs eram geridas por esse tipo de contrato.

Januário Montone assume em novembro de 2007, sendo encarregado por Kassab de expandir o modelo dos contratos de gestão geridos por OSS24. Essa tarefa deveria ser facilitada pelo novo modelo que o governo acabara de conseguir aprovar na Câmara Municipal, o qual flexibilizava os mecanismos de seleção das OSSs, além de reduzir as exigências para que entidades sem fins lucrativos participassem do modelo.

Essas mudanças de rota fizeram com que, entre 2005 e 2008, alterações importantes tivessem lugar no perfil do sistema público de saúde municipal. A cidade assistiu a partir de 2008 a uma forte expansão das AMAs e ao crescimento das consultas de urgência e emergência em todas as regiões. Dois hospitais municipais foram inaugurados na periferia, passando a ser geridos por OSSs.

2009-2012

Em 2008, Gilberto Kassab se elege prefeito de São Paulo pelo DEM. Januário Montone permanece à frente da Secretaria Municipal da Saúde durante todo o mandato.

Durante a gestão de Montone há um aprofundamento dos processos de contratualização e a gestão dá início às parcerias público-privadas (PPPs) com a finalidade de ampliar a infraestrutura, sobretudo, hospitalar. Nas palavras do secretário,

Não conheço nenhum município no Brasil que tenha apostado tanto em parcerias com a iniciativa privada como São Paulo, o que se deve não apenas ao gigantismo da cidade como ao esforço contínuo para desenvolver esse modelo, iniciado em 2001 em nível estadual e adotado em 2005 pela capital25.

As OSSs passaram a ser contratadas para fazer o gerenciamento tanto de equipamentos de saúde como de microrregiões de saúde. Já nas PPPs, os concessionários privados deveriam investir na construção de infraestrutura de saúde, em troca de concessão para exploração de determinados serviços, como, por exemplo, vigilância e limpeza, por tempo determinado26.

Em 2010, a prefeitura de São Paulo lançou edital de licitação da PPP da Saúde Paulistana, que previa a construção, reforma e equipagem de três novos hospitais, quatro novos centros de diagnóstico por imagem, ampliação e substituição dos edifícios de seis unidades hospitalares e reforma total de outros três hospitais. Com isso, a cidade receberia mil novos leitos, passando de 1.226 para 2.152. O plano, embora ambicioso, envolvia investimentos de longo prazo, o que contribuiu para que não tivesse sido implementado até o final da gestão.

A política de investimento em OSSs e PPPs contribuiu para azedar as relações entre o Conselho Municipal de Saúde e o secretário municipal , que chegou, em um determinado momento, a colocar a polícia na porta das reuniões dos conselhos, além de relegar a segundo plano o investimento feito no mandato de Jorge na criação dos conselhos das subprefeituras e de unidades.

A seguir exploraremos os impactos distributivos das políticas descritas acima. Como comentamos anteriormente, em 2001 havia um forte viés distributivo a favor das áreas centrais que apresentavam os melhores indicadores socioeconômicos e epidemiológicos. Abaixo buscamos evidências sobre os impactos das políticas adotadas pelo município, entre 2001 e 2012, sob esse perfil.

Equipamentos

Na Tabela 1 pode-se observar que ao longo do período houve um forte investimento na expansão dos equipamentos de saúde, sobretudo no que se refere à atenção básica.

Na gestão Marta houve forte expansão das Unidades Básicas de Saúde (UBSs); estas sediam o PSF e oferecem atenção primária através de programas prioritários e consultas agendadas. Na gestão Serra/Kassab cresceram as AMAs, as quais ofertam, sobretudo, consultas de urgência e emergência e exames e tratamentos de baixa complexidade. Os novos hospitais foram inaugurados em subprefeituras que apresentavam os piores IDH-M, o que contribuiu para garantir a ampliação de leitos hospitalares na periferia. Assim, enquanto em 2001 as subprefeituras com os piores IDH-M ofereciam 5,75% dos leitos públicos, dez anos depois passaram a oferecer 13,22%27 [27] Os hospitais foram inaugurados no Itaim Paulista, M'Boi Mirim, Cidade Tiradentes e Capela do Socorro. .

O Gráfico 1 mostra a expansão do número de equipes da família entre 2001 e 2012.

GRÁFICO 1
Número de equipes de saúde da família implantadas, município de São Paulo, 2000-201228 [28] Os valores que aparecem no gráfico correspondem à média do número de equipes que operaram ao longo dos doze meses de cada ano. Fonte: Secretaria Municipal de Saúde. Organização: NCSD/CEM/Cebrap.

Como pode ser visto no Gráfico 1, durante a gestão de Marta Suplicy houve o maior incremento no programa: em 2001 havia 185 equipes operando e no final do período esse número estava na casa das seiscentas. As gestões seguintes seguiram expandindo o programa, embora em um ritmo menos intenso. A gestão Serra/Kassab encerra com 840 equipes operando ao longo de 2008, e a gestão Kassab, com 1098 equipes operando ao longo de 2012.

Oferta de serviços

O Gráfico 2 mostra a distribuição de consultas básicas por quartil de subprefeituras ordenadas pelo IDH-M. O primeiro quartil agrega aquelas com os piores indicadores e o quarto quartil, aquelas com os melhores indicadores29 [29] Com relação à produção de consultas básicas, uma vez que não há informações que nos permitam georreferenciar os procedimentos, assumiremos a premissa de que os serviços tendem a ser produzidos descentralizadamente e consumidos localmente, considerando, assim, que as consultas básicas realizadas em uma determinada localidade são recebidas pela população que vive nessa mesma área. .

GRÁFICO 2
Consultas básicas por usuário SUS, por ano, por quartil, de subprefeituras ordenadas por IDH-M - São Paulo, 2001-2012 Fonte: Secretaria Municipal de Saúde. Organizado por NCSD/CEM/Cebrap.

Entre 2001 e 2012 houve um crescimento de 119,5% no número de consultas básicas, tendo a média dessas consultas por usuário SUS/ano passado de 1,28 para 3,2530 [30] Segundo o Ministério da Saúde, o parâmetro para a oferta de consultas básicas pode variar entre duas e três consultas por habitante/ano. Essas consultas devem ser distribuídas entre: consultas de emergência, 12%; consultas básicas, 63%; consultas de emergência que geram internação, 3%; consultas especializadas 22% (Ministério da Saúde, 2001). . No Gráfico 2 pode-se observar que em 2001 apenas o quarto quartil recebia um número de consultas básicas acima do parâmetro de duas consultas por usuário SUS/ano. Ao final da gestão Marta , o primeiro e o segundo quartil se aproximam do parâmetro. No final da gestão Serra/Kassab todos os quartis estão acima do parâmetro, sendo que o primeiro e o terceiro quartil ultrapassam as três consultas por usuário SUS/ano. Esses valores se mantêm relativamente estáveis na gestão Kassab para todos os quartis com exceção do quarto quartil que cai para 1,7 consultas por usuário SUS/ano, ficando pela segunda vez abaixo do parâmetro.

O Gráfico 2 mostra ainda que, acompanhando o crescimento da oferta de consultas básicas, houve redução nas desigualdades na distribuição de consultas básicas na gestão Marta. Na gestão Serra/Kassab, embora o número de consultas continuasse crescendo, houve reversão na tendência à redução das desigualdades, com ganhos expressivos para o terceiro e o primeiro quartis. No final da gestão Kassab há uma correção de rota, as desigualdades voltam a diminuir entre os três primeiros quartis e o crescimento do número de consultas básicas para além do parâmetro é revertido31 [31] Entre 2002 e 2004, o desvio padrão caiu de 0,93 para 0,65. Entre 2005 e 2008 seu valor cresceu de 0,58 para 0,88. Entre 2009 e 2011, ele decresceu passando de 1,19 para 0,92. . A figura destoante é o quarto quartil, que perde serviços durante praticamente todo o período. Uma hipótese para explicar essa queda no consumo de consultas nas subprefeituras localizadas no quarto quartil é que, com a expansão dos equipamentos nas periferias, a população dessas áreas passou a utilizar mais equipamentos locais, em vez daqueles localizados em regiões mais centrais.

A Tabela 2 mostra que no município a proporção de nascidos vivos com sete ou mais consultas de pré-natal aumentou 24,1% entre 2001 e 2012.

TABELA 2
Proporção de nascidos vivos com sete ou mais consultas de pré-natal, por quartil de subprefeituras ordenadas por IDH-M - São Paulo, 2001-2012

As subprefeituras do primeiro e do segundo quartis registraram nesse período um aumento maior que a média do município. Esse aumento acima da média ocorreu, sobretudo, na gestão Marta e, em menor proporção, também na gestão Serra/Kassab. Graças a essa trajetória, no final do período a proporção de nascidos vivos com sete ou mais consultas de pré-natal era bastante semelhante entre os três primeiros quartis.

O Gráfico 3 mostra a distribuição de internações hospitalares no período32 [32] As Autorizações de Internação Hospitalar (AIHs) são os instrumentos por meio dos quais os prestadores de serviços hospitalares SUS são remunerados. Há uma tabela SUS que discrimina os valores a ser pagos por procedimento. Nas AIHs consta o CEP daqueles que usaram o serviço, o que permite georreferenciar as AIHs e mapear o consumo de internações em cada uma das 31 subprefeituras. A partir dos números absolutos disponibilizados pelo Ministério e secretarias de Saúde construímos taxas de hospitalização. Essas taxas indicam o número de AIHs consumido em cada subprefeitura a cada 10 mil residentes que são usuários do SUS. . Como se pode ver, o crescimento da oferta de serviços hospitalares foi modesto se comparado ao que vimos acontecer na atenção básica.

GRÁFICO 3
Internações hospitalares por 10 mil usuários SUS/ano por quartil de subprefeituras ordenadas por IDH-M - São Paulo, 2001-2011 Fonte: Secretaria Municipal de Saúde. Organizado por NCSD/CEM/Cebrap.33 [33] No ano de 2008, houve uma mudança no SIH, com a implementação da tabela unificada de procedimentos (Portaria GM/MS nº 2.848, de 6 de novembro de 2007). Essa transição do sistema de informação gerou alterações que se refletiram em uma queda nas AIHs registradas ao longo desse ano.

O gráfico 3 mostra ainda uma redução importante nas diferenças no consumo de internações hospitalares entre os quartis de subprefeituras ordenadas por IDH-M34 [34] O desvio-padrão entre as taxas médias dos quartis caiu de 219 para 130 no período. . Nesse sentido, todos os quartis, com exceção do quarto, terminaram o período oferecendo entre 825 e 869 internações por 10 mil usuários SUS/ano. Cabe destacar o crescimento geral das taxas de internação na gestão Marta, seguido de um crescimento importante dessas taxas nos três primeiros quartis na gestão Kassab.

A possibilidade, aberta pela adesão do município ao SUS, de a secretaria autorizar ou cancelar o credenciamento de hospitais e determinar tetos para o pagamento de internações realizadas contribuiu de forma decisiva para a sua capacidade de ajustar a distribuição das internações hospitalares e alcançar os resultados distributivos acima descritos.

Finalmente, o Gráfico 4 mostra a queda da mortalidade infantil no município de São Paulo ao longo das três gestões analisadas. As maiores quedas na cidade foram registradas nos quartis mais pobres, isto é, o primeiro e o segundo, sendo mais acentuadas durante a gestão de Marta Suplicy. Ainda assim, essas taxas permanecem altas principalmente no primeiro quartil, que encerra o período com uma taxa de catorze óbitos por mil nascidos vivos.

GRÁFICO 4
Taxa de mortalidade infantil, por quartil de subprefeituras ordenadas por IDH-M- São Paulo, 2001-2012 Fonte: Secretaria Municipal de Saúde. Organizado por NCSD/CEM/Cebrap.

O gráfico acima mostra uma realidade menos promissora do que poderíamos esperar após acompanhar os importantes avanços que aconteceram seja na consolidação do SUS no município de São Paulo, seja no contexto social e econômico brasileiro no período analisado. Com exceção do quarto quartil, as taxas de mortalidade infantil continuavam na casa dos dois dígitos, e, a despeito dos avanços distributivos registrados na oferta de serviços públicos, a ordenação das subprefeituras não mudou. As taxas seguem rigorosamente ordenadas de acordo com a classificação social e econômica das subprefeituras.

Em suma, quando olhamos para o perfil de distribuição de serviços em 2001, entre as subprefeituras ordenadas por quartis de IDH-M, vemos que o quarto quartil está sempre mais bem posicionado, sendo seguido pelo terceiro, segundo e primeiro quartis. Isso se verifica seja em relação às consultas básicas por habitante SUS/ano (2,4; 1,2; 1; 1), seja em relação à proporção de nascidos vivos com sete ou mais consultas de pré-natal (73; 61; 58; 51), seja, ainda, em relação às taxas de internação hospitalar por 10 mil habitantes (789; 692; 650; 498). Já em 2012 o quadro é outro, há uma forte convergência nos valores encontrados para os três primeiros quartis, ficando em quase todos os casos o quarto quartil em desvantagem. Assim, em relação às consultas básicas por habitante SUS/ano, temos 1,7; 3,1; 2,9; 3 e em relação às taxas de internação hospitalar por 10 mil habitantes, 754; 841; 789; 800. A exceção fica por conta da proporção de nascidos vivos com sete ou mais consultas de pré-natal, em que o quarto quartil segue com um valor mais alto: 83; 73; 74; 71.

Esses resultados mostram que no período ocorreu uma importante ampliação na oferta de serviços públicos de saúde para as áreas do município que apresentam piores condições socioeconômicas. A notícia menos alentadora é que esse movimento de convergência nos níveis de oferta de serviços não se verificou em relação ao único indicador de saúde aqui analisado, a mortalidade infantil, a qual é tida como sensível tanto à atenção básica quanto às condições sociais e econômicas, as quais avançaram no país no período.

V. POLÍTICA E POLÍTICAS

Se pensarmos nas dificuldades relatadas por analistas sobre as resistências encontradas nas mais diferentes partes do mundo a reverter desigualdades distributivas, teremos de reconhecer que os resultados apresentados na seção anterior não são triviais (World Bank, 2003; Liu, Hotchkiss e Bose, 2007Liu, X., Hotchkiss, D.R. & Bose, S., 2007. "The impact of contracting-out on health system performance: a conceptual framework". Health policy (Amsterdã, Holanda), v.82 (2), 2007, pp. 200-11.; World Health Organization & Unhabitat, 2010). Nesta seção procuramos explicar esses resultados partindo de duas suposições que dialogam com a literatura sobre instituições e política (Immergut, 1996Immergut, E. M. Health Politics. Cambridge University Press, USA, 1996.; Moe, 1997Moe, T. "The positive theory of public bureaucracy". In: Muller, Dennis C. Perspective on public choice: a handbook. Cambridge e Nova York: Cambridge University Press, 1997.; Hacker e Pierson, 2010Hacker, J. S. e Pierson, P. (2010). "Winner-take-all politics and political science: a response". Politics & Society, 38(2), 2010, pp. 266-282.; Figueiredo e Limongi, 1999Figueiredo, A. e Limongi, F. Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. Rio de Janeiro: FGV, 1999.; Dowbor e Houtzager, 2014Dowbor, M. e Houtzager, P.P. "The role of professionals in policy reform: cases from the city level, São Paulo". Latin American Politics and Society, 56:141-162, 2014.).

Primeira, o papel de um cenário político altamente competitivo em estimular os políticos a buscar tanto políticas de saúde que atendessem o eleitorado, predispondo-o assim a votar a favor do partido, quanto reformas que permitissem criar rapidamente estruturas institucionais capazes de resistir à possível saída do partido do governo no próximo mandato. Segunda, a presença de políticos - que assumiram a prefeitura entre 2001 e 2012 - que defendiam o acesso universal à saúde enquanto um valor moral contribuiu para a adoção de novas políticas, que alteravam o contexto institucional prévio, sem deixar de promover ganhos distributivos ou reforçar aqueles alcançados por gestões anteriores.

A disputa travada entre PT, PSDB e DEM pelo governo municipal fica clara quando olhamos para os resultados eleitorais: nenhum dos três candidatos teve mais que 60% dos votos no segundo turno. Somam-se a isso a importância de São Paulo na política nacional e o valor dado pelos partidos ao seu desempenho eleitoral na cidade. Há também a aspiração dos políticos por gravar uma marca na história da saúde pública do principal centro econômico e cultural do país. A disputa eleitoral e o prestígio de São Paulo não explicam, no entanto, por que cada secretário adotou as políticas que adotou, fazendo escolhas bastante diversas quanto ao grau de descentralização, discrição e participação social na alocação de recursos. Exploramos essas escolhas a seguir. Procuramos mostrar como, diante de um ambiente eleitoral fortemente competitivo, foram sendo feitas escolhas que buscavam atender o eleitor e, também, enraizar novas estruturas institucionais. Essas estruturas deveriam respeitar as concepções das diferentes coalizões e, ao mesmo tempo, garantir sua permanência no interior do sistema público mesmo diante de futuras derrotas eleitorais.

Eduardo Jorge permaneceu pouco tempo à frente da Secretaria Municipal da Saúde; ainda assim, criou uma estrutura nova para operar a política de saúde, a qual, com várias modificações, sobrevive até hoje. A motivação para essa ação rápida, que visava a descentralizar a política e a criar uma estrutura com relativa autonomia em relação à secretaria, pode ser interpretada como uma resposta de Eduardo Jorge ao revés que vivera como secretario da Saúde (1989/1990) no governo de Erundina (1989-1992). Ao criar uma nova estrutura institucional capitaneada por pessoas da sua confiança, em geral com alguma conexão com o movimento sanitarista, ele buscou construir uma estrutura que tivesse maior autonomia em relação à estrutura central da secretaria e menos chances de ser desmontada por seus sucessores.

Para tanto, Eduardo Jorge investiu no fortalecimento das subprefeituras, bem como das instâncias locais responsáveis pela definição e implementação da política de saúde. Ele também apostou fortemente no PSF, uma aposta tanto na atenção básica quanto nos possíveis retornos eleitorais de um programa que poderia ser implementado rapidamente e que atingiria um importante contingente populacional, sobretudo nas regiões mais periféricas da cidade . Para levar esse plano adiante, investiu na ampliação da capacidade instalada, na contratação de servidores públicos, na assinatura de convênios com OSSs. A aposta era criar um arco de apoio a partir da rede pública, da participação social e do planejamento ascendente. Esse projeto perdeu força na própria administração Marta, diante, de um lado, dos seus custos e, de outro lado, das pesquisas de opinião pública, que indicavam que os possíveis dividendos eleitorais dessa estratégia seriam bem menores que os esperados.

Já as gestões Serra e Kassab buscaram recentralizar a política ao reforçar o papel das Supervisões Técnicas (as subprefeituras estão divididas entre cinco dessas supervisões) e da Secretaria da Saúde. Do ponto de vista programático, seguiu-se investindo no PSF, porém o carro-chefe da gestão Serra/Kassab foram as AMAs, centradas no atendimento de urgência e emergência, uma aposta nos retornos eleitorais tanto de descongestionar e racionalizar a rede de serviços, quanto de aproximar o SUS do modelo de atenção praticado pelo setor privado.

O arco de apoio a esse projeto se assentava no planejamento descendente e no reforço da oferta de serviços via OSSs, organizações que em muitos casos contavam com quadros que detinham larga experiência na gestão pública. Na gestão Kassab buscou-se ampliar esse arco com as PPPs e o envolvimento das empresas privadas na política de saúde.

Esses movimentos, ao ampliar a oferta de serviços, oferecendo seja atenção continuada, seja atendimento de urgência e emergência, seja internações hospitalares, buscaram conquistar o eleitor e garantir seu voto. Nesse movimento cada grupo, ao descentralizar ou recentralizar, ao aliar-se à administração direta e à participação social ou às OSSs e às PPPs, expressou suas preferências por diferentes modelos de gestão da saúde e, também, buscou consolidar coalizões políticas no interior do SUS que permitissem sua permanência no sistema de saúde para além do próprio mandato.

A questão seguinte é: como foi possível sustentar um ciclo de redução das desigualdades no acesso aos serviços públicos de saúde diante da alternância no poder de grupos com preferências e políticas por vezes tão diversas?

A ideia de que ambos estavam, com essa política, disputando o eleitorado das periferias é uma explicação possível. Ela não contempla, no entanto, a questão do fôlego ganho pelo terceiro quartil nas gestões Serra e Kassab. Ora, se essas gestões miraram de fato o eleitorado do terceiro quartil, por que e como foi possível alcançar, ao final do período, a convergência entre as taxas de serviço oferecidas nos três primeiros quartis?

Para explicar esses resultados, devemos lembrar que nos três mandatos o gestor municipal assumiu um papel central na distribuição intramunicipal dos recursos disponíveis. Para definir essa distribuição, esses gestores se valeram de diferentes critérios técnicos que contemplavam ora a escassez de oferta, ora a dimensão socioeconômica, ora as necessidades de saúde. Com isso, puderam implementar uma política que levava em conta a dimensão e as necessidades da população usuária do SUS.

Para entender o compromisso desses gestores com critérios técnicos que buscavam identificar as necessidades dos usuários mais carentes, vale a pena retomar o contexto político prévio às disputas que estamos analisando. Como vimos na seção III, a pressão política das periferias e o debate sobre como atender melhor a essas áreas começou a ganhar corpo na cidade de São Paulo já nos anos 1970. Nos anos 1980 já existia um Plano Metropolitano, que buscou equacionar o problema e permitiu começar a ampliar a rede pública presente na periferia e ganhar alguma experiência na gestão de um novo tipo de parceria com o setor privado não lucrativo. Os profissionais que estiveram envolvidos nessa trajetória eram ligados ao PMDB, ao PT e ao PSDB, e, em vários momentos, suas diferenças foram subsumidas, quando vários deles se congregaram na "oposição" que lutava pela ampliação da cidadania.

Identificar o papel dessas ideias no novo contexto político dos anos 2000 é uma tarefa particularmente difícil. Um esforço sistemático nesse sentido requereria uma análise muito mais detalhada sobre o processo decisório do que a que foi possível neste trabalho. No entanto, esquecer a trajetória dessa geração de políticos pode nos levar a omitir o que talvez seja parte importante da explicação do fenômeno que estamos buscando explicar, a busca por contribuir para a redução das desigualdades através da política e das políticas. Afinal, a história aqui analisada envolve projetos políticos, tanto do PT quanto do PSDB, partidos que contavam com quadros que ao longo dos últimos quarenta anos participaram da gestão das políticas municipais, estaduais e federais e que tinham uma visão estruturada sobre o caminho a seguir.

VI. CONCLUSÃO

Neste artigo apresentamos os resultados de um estudo que acompanhou a distribuição de serviços públicos de saúde no município de São Paulo por doze anos. Ao longo deste trabalho buscamos identificar a contribuição da política municipal de saúde para os resultados distributivos identificados. Afinal, se há um debate consolidado sobre as consequências distributivas da politica de saúde federal, ainda sabemos muito pouco sobre como recursos e programas federais, estaduais e municipais são implementados e distribuídos no interior dos municípios.

O trabalho aqui apresentado é exploratório. Explicações plausíveis foram construídas a partir da observação de fenômenos empíricos que relacionam política, políticas e resultados distributivos. Esta análise foi construída, no entanto, a partir de um caso único no qual não se testaram a significância estatística das variações encontradas na distribuição de serviços nem as relações de causalidade entre os eventos descritos, o que limita suas pretensões de validade. Nesse sentido, é um passo inicial dentro de um programa de pesquisa mais amplo no qual estamos buscando construir hipóteses plausíveis que possam ser testadas em estudos futuros.

Como se pôde acompanhar nas seções anteriores, houve, no período, uma expansão importante na estrutura física do SUS, principalmente UBSs e AMAs, bem como um crescimento do volume de consultas básicas e internações oferecidas aos moradores da cidade. Observou-se também uma redução nas desigualdades no acesso a esses serviços, com a convergência das taxas de serviços oferecidas e consumidas pelos três primeiros quartis de subprefeituras agrupadas pelo IDH-M.

Esses resultados dificilmente podem ser explicados apenas pela chegada de novos programas e recursos federais ao município, pois a implementação desses programas e o uso dos novos recursos seguindo a lógica da distribuição dos equipamentos então disponíveis teriam levado facilmente a um aprofundamento das desigualdades preexistentes. Como foi visto na seção IV, não foi isso o que ocorreu.

Esse resultado merece atenção, pois representa um padrão pouco usual. Inúmeros trabalhos sugerem que a descontinuidade eleitoral é seguida pela descontinuidade dos programas e pela perda dos ganhos distributivos. Na seção V sugerimos que os resultados aqui descritos podem ser explicados tanto pela presença de um cenário político altamente competitivo quanto pela adesão moral, por parte dos políticos que assumiram a prefeitura entre 2001 e 2012, ao princípio do acesso universal à saúde. Esses dois mecanismos ajudam a explicar, por um lado, a rapidez com que cada uma das gestões buscou introduzir mudanças institucionais e, por outro lado, como essas mudanças conseguiram consolidar ganhos distributivos.

Nesse sentido, os resultados apresentados neste artigo apontam para a importância de se pensar a articulação das disputas eleitorais com a permanente construção e reconstrução dos arranjos formais (papel da secretaria, das coordenações técnicas e das subprefeituras), dos modelos de gestão (papel da administração direta, das instâncias participativas, das OSSs, das PPPs) e do arco de alianças que sustenta cada gestão. Afinal, são esses processos que permitem entender por que e como as novas políticas foram adotadas e puderam contribuir para as mudanças distributivas analisadas neste artigo. A possibilidade de replicar este estudo em outras cidades de grande e médio porte certamente permitirá avançar o conhecimento sobre o papel da política municipal em promover a equidade na distribuição de serviços públicos de saúde.

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  • Neri, M. e Soares, W. "Desigualdade social e saúde no Brasil". Cadernos de Saúde Pública, vol. 18, 2002, pp. 67-76.
  • Pessoto, U. C.; Heimann, L. S.; Boaretto, R. C.; Castro, I. E. N.; Kayano, J., Ibanhes, L. C.; Junqueira, V.; Rocha, .J L. B.; Cortizo, C. T.; Martins, L. C.; Luiz, O. C. "Desigualdades no acesso e utilização dos serviços de saúde na Região Metropolitana de São Paulo". Ciência e Saúde Coletiva, 12(2), 2007, pp. 351-362.
  • Sawyer, D. O. , Leite, I. C. e Alexandrino, R. "Perfis de utilização de serviços de saúde no Brasil". Ciência & Saúde Coletiva, 7(4), 2002, pp.757-776.
  • Secretaria Estadual da Saúde (1982). Coordenação do Programa Metropolitano de Saúde. São Paulo, 1982.
  • Ugá, M. A. D.; Piola, S. F.; Porto, S. M.; Vianna, S. M. "Descentralização e alocação de recursos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)" . Ciência e Saúde Coletiva, 8(2), 2003, pp. 417-437.
  • Viana, A. L. D., Fausto, M. C. R. e Lima, L. D. de. "Política de saúde e equidade". São Paulo em Perspectiva, 17(1), 2003, pp. 58-68.
  • Vilasbôas, A. L. Q. e Paim, J. S. "Práticas de planejamento e implementação de políticas no âmbito municipal". Caderno de Saúde Pública, 24(6), 2002, pp. 1239-1250.
  • World Development Report. Making services work for poor people. World Bank, 2004.
  • World Health Organization & Unhabitat. Unmasking and overcoming health inequalities in urban settings. Suíça: World Health Organization e UN-Habitat, 2010.
  • [1]
    Este artigo apresenta resultados do projeto "Equidade e Distribuição de Serviços Públicos de Saúde em São Paulo", financiado com recursos do Processo Fapesp 2011/20641-5 e com recursos do CEM associados ao Processo Fapesp 2013/07616-7. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.
  • [2]
    Este trabalho foi apresentado no Seminário Internacional do CEM, 2010; na LASA, em 2012, e no Geneva Health Forum, em 2014. Agradecemos os comentários e sugestões de Argelina Figueiredo, Brian Wampler e Monika Christofori-Khadka.
  • [3]
    Estimativa da População Exclusivamente Usuária SUS no Município de São Paulo. Boletim Eletrônico CEInfo, ano 1, nº 1, fevereiro de 2010. Disponível em: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/arquivos/boletimeletronico/n01popsus.pdf
  • [4]
    Para esse cálculo usamos o crescimento da população de cada subprefeitura no período, informado pelo IBGE - Censos Demográficos e SMDU/Dipro - Retroestimativas e Projeções, entre 2000 e 2012.
  • [5]
    Adib Jatene foi professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, tendo sido nomeado ministro da Saúde em 1989, durante o governo Collor, e em 1995, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.
  • [6]
    Esse plano foi submetido ao Banco Mundial, e esperava-se que fosse financiado pelo banco em conjunto com os governos municipal, estadual e federal. O custo estimado para a implementação do programa era de U$ 121,4 milhões à época.
  • [7]
    João Yunes foi professor na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, assessor do ministro da Saúde em 1974, secretário nacional de Programas Especiais em 1976 e secretário de Políticas de Saúde em 1998, além de superintendente do IAMSPE (1978) e representante do Brasil na OPAS e na OMS.
  • [8]
    Pedro Paulo Branco, entrevista concedida ao projeto em 20/12/2011.
  • [9]
    Eduardo Jorge atuou desde os anos 1970 junto aos movimentos populares de saúde, tendo ajudado a criar os primeiros conselhos de saúde da cidade.
  • [10]

    Ibidem.
  • [11]

    José da Silva Guedes foi nomeado secretário da Saúde em 1995, na gestão de Mario Covas como governador do estado, tendo permanecido no cargo durante seus dois mandatos.
  • [12]

    O programa foi implementado na Zona Leste pela Casa de Saúde Santa Marcelina, na Zona Norte e na Zona Sudeste pela Fundação Zerbini, e na Zona Sul pela Universidade Santo Amaro e pela Congregação Santa Catarina.
  • [13]

    O programa foi implementado em Vila Nova Cachoeirinha, Vila Brasilândia, Freguesia do Ó, Parque São Lucas, Sapopemba e Itaquera.
  • [14]

    Esses hospitais foram construídos no Itaim Paulista, Grajaú, Pedreira, Vila Alpina e Sapopemba.
  • [15]

    Essas subprefeituras tinham, segundo o Censo de 2000, populações que variavam de 109.116 a 563.922 habitantes.
  • [16]

    Na implantação do PSF em São Paulo, fizeram parcerias com a SMS: 1) Associação Comunitária Monte Azul, 2) Associação Congregação Santa Catarina, 3) Instituto Adventista de Ensino - IAE, 4) Centro de Estudos e Pesquisas "Dr. João Amorim" - Cejam, 5) Fundação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 6) Casa de Saúde Santa Marcelina, 7) Universidade Federal de São Paulo - Unifesp, 8) Associação Saúde da Família, 9) Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, 10) Universidade de Santo Amaro - Unisa, 11) Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Hospital Albert Einstein e 12) Fundação Zerbini.
  • [17]

    Uma reconstituição acurada dos dilemas políticos enfrentados por Eduardo Jorge durante sua gestão é apresentada em Dowbor e Houtzager (2014).
  • [18]

    Gonzalo Vecina é sanitarista, e entre os cargos que ocupara estavam o de superintendente do Hospital das Clínicas e o de presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no governo FHC.
  • [19]

    Gonzalo Vecina, entrevista concedida ao projeto em 16/11/2011.
  • [20]

    Gonzalo Vecina, entrevista concedida ao projeto em 16/11/2011.
  • [21]

    Paulo Capucci, entrevista concedida ao projeto em 11/11/2011.
  • [22]

    Lottenberg é médico, executivo com larga experiência e atuação em cargos de direção do Hospital Israelita Albert Einstein.
  • [23]

    Maria Eugênia Fernandes, entrevista concedida ao projeto em 23/11/2011
  • [24]

    Montone foi o primeiro presidente da Agência Nacional de Saúde (ANS), a qual presidiu entre 1999 e 2003, tendo antes disso ocupado cargos públicos na Prefeitura de Campinas, FUNASA e ANVISA.
  • [25]

    <http://saudeweb.com.br/22516/gestao-com-oss-e-ppp-e-modelo-de-sucesso-diz-januario-montone/>
  • [26]

    Joan Castillejo, entrevista concedida ao projeto em 20/1/2012.
  • [27]

    Os hospitais foram inaugurados no Itaim Paulista, M'Boi Mirim, Cidade Tiradentes e Capela do Socorro.
  • [28]

    Os valores que aparecem no gráfico correspondem à média do número de equipes que operaram ao longo dos doze meses de cada ano.
  • [29]

    Com relação à produção de consultas básicas, uma vez que não há informações que nos permitam georreferenciar os procedimentos, assumiremos a premissa de que os serviços tendem a ser produzidos descentralizadamente e consumidos localmente, considerando, assim, que as consultas básicas realizadas em uma determinada localidade são recebidas pela população que vive nessa mesma área.
  • [30]

    Segundo o Ministério da Saúde, o parâmetro para a oferta de consultas básicas pode variar entre duas e três consultas por habitante/ano. Essas consultas devem ser distribuídas entre: consultas de emergência, 12%; consultas básicas, 63%; consultas de emergência que geram internação, 3%; consultas especializadas 22% (Ministério da Saúde, 2001).
  • [31]

    Entre 2002 e 2004, o desvio padrão caiu de 0,93 para 0,65. Entre 2005 e 2008 seu valor cresceu de 0,58 para 0,88. Entre 2009 e 2011, ele decresceu passando de 1,19 para 0,92.
  • [32]

    As Autorizações de Internação Hospitalar (AIHs) são os instrumentos por meio dos quais os prestadores de serviços hospitalares SUS são remunerados. Há uma tabela SUS que discrimina os valores a ser pagos por procedimento. Nas AIHs consta o CEP daqueles que usaram o serviço, o que permite georreferenciar as AIHs e mapear o consumo de internações em cada uma das 31 subprefeituras. A partir dos números absolutos disponibilizados pelo Ministério e secretarias de Saúde construímos taxas de hospitalização. Essas taxas indicam o número de AIHs consumido em cada subprefeitura a cada 10 mil residentes que são usuários do SUS.
  • [33]

    No ano de 2008, houve uma mudança no SIH, com a implementação da tabela unificada de procedimentos (Portaria GM/MS nº 2.848, de 6 de novembro de 2007). Essa transição do sistema de informação gerou alterações que se refletiram em uma queda nas AIHs registradas ao longo desse ano.
  • [34]

    O desvio-padrão entre as taxas médias dos quartis caiu de 219 para 130 no período.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov 2014

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2014
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