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Uma "morte suave": valores religiosos e laicos nos discursos sobre ortotanásia

A "gentle death", religious and lay values in the discourses about orthothanasia

Resumos

Este artigo aborda a controvérsia em torno da gestão do término da vida, a partir da análise da ação civil pública provocada pelo Ministério Público Federal, com o intuito de revogar a Resolução 1805/2006 do Conselho Federal de Medicina sobre a ortotanásia. Consideram-se aqui os argumentos médico e jurídico, em suas articulações com valores religiosos. A reflexão acerca dos discursos no processo judicial, em defesa de cada posicionamento (favorável e contrário à autorização legal da ortotanásia) possibilita uma compreensão das tramas e dos atores sociais envolvidos nos debates contemporâneos sobre os limites da vida, sobre as possibilidades de intervenção médica e acerca dos direitos de autonomia individual, diante da faculdade de tomada de decisões no último período de vida, no caso de pessoa com doença crônico-degenerativa, em fase terminal.

Valores Religiosos; Vida; Tomada de Decisão


This article addresses the controversy surrounding end-of-life management, based on an analysis of the Public Civil Suit, brought by the Federal Prosecutor's Office, which aimed to revoke the Federal Medical Council's Resolution 1805/2006 about orthothanasia. The reflection about the discourses in the judicial proceedings, in defense of each position (for and against the legal authorization of orthothanasia), makes it possible to understand the threads and social actors involved in contemporary debates about the limits of life, the possibilities for medical intervention and the rights to individual autonomy, in face of the decision making process during the last stage of life, in the case of a person suffering the terminal phase of a chronic degenerative disease.

Religious Values; Life; Decision Making


Uma "morte suave": valores religiosos e laicos nos discursos sobre ortotanásia

A "gentle death", religious and lay values in the discourses about orthothanasia

Rachel Aisengart MenezesI; Edlaine de Campos GomesII

IDoutora em Saúde Coletiva (PPGSC/Instituto de Medicina Social/UERJ), Professora Adjunta do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva/UFRJ. Realizou Pós-Doutorado em Antropologia Social no PPGAS/Museu Nacional/UFRJ e é pesquisadora dedicada aos temas: antropologia da religião, do corpo, da saúde/doença, das emoções, e gestão dos limites entre vida/morte pelo aparato médico e jurídico. (raisengartm@terra.com.br)

IIDoutora em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisadora Associada do Núcleo de Antropologia Urbana (USP) e do Núcleo de Estudos da Religião (UERJ). É Professora Adjunta III da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, atuando no Programa de Pós-Graduação em Memória Social. Realizou Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (Museu Nacional/UFRJ) e no Centro de Estudos da Metrópole (CEBRAP). Atualmente é pesquisadora visitante no Centro de Estudos Latinoamericanos (CLAS), Universidade de Cambridge, com bolsa de pós-doutorado CAPES. (edlaineg@gmail.com)

RESUMO

Este artigo aborda a controvérsia em torno da gestão do término da vida, a partir da análise da ação civil pública provocada pelo Ministério Público Federal, com o intuito de revogar a Resolução 1805/2006 do Conselho Federal de Medicina sobre a ortotanásia. Consideram-se aqui os argumentos médico e jurídico, em suas articulações com valores religiosos. A reflexão acerca dos discursos no processo judicial, em defesa de cada posicionamento (favorável e contrário à autorização legal da ortotanásia) possibilita uma compreensão das tramas e dos atores sociais envolvidos nos debates contemporâneos sobre os limites da vida, sobre as possibilidades de intervenção médica e acerca dos direitos de autonomia individual, diante da faculdade de tomada de decisões no último período de vida, no caso de pessoa com doença crônico-degenerativa, em fase terminal.

Palavras-chave: Valores Religiosos, Vida/Morte, Tomada de Decisão.

ABSTRACT

This article addresses the controversy surrounding end-of-life management, based on an analysis of the Public Civil Suit, brought by the Federal Prosecutor's Office, which aimed to revoke the Federal Medical Council's Resolution 1805/2006 about orthothanasia. The reflection about the discourses in the judicial proceedings, in defense of each position (for and against the legal authorization of orthothanasia), makes it possible to understand the threads and social actors involved in contemporary debates about the limits of life, the possibilities for medical intervention and the rights to individual autonomy, in face of the decision making process during the last stage of life, in the case of a person suffering the terminal phase of a chronic degenerative disease.

Keywords: Religious Values, Life/Death, Decision Making.

Um documento da Igreja Católica, datado de maio de 1995, assim considera a questão: 'Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado excesso terapêutico, ou seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionais aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para sua família. Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se em consciência renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida'.

Ministério Público Federal,

processo nº 2007.34.00.014809-3, (p. 302)

Introdução

A epígrafe que escolhemos para iniciar este artigo refere-se à ação movida pelo Ministério Público Federal (MPF), ao requerer a ilegalidade da Resolução nº 1805/20062 2 O texto "Ortotanásia, sofrimento e dignidade: entre valores morais, Medicina e Direito", de Rachel Aisengart Menezes e Miriam Ventura, apresentado no GT "Saúde, emoção e moral", no 35º Encontro Anual da Anpocs, desenvolve uma análise dos posicionamentos ao longo do processo judicial em torno da resolução. , do Conselho Federal de Medicina (CFM). Esta resolução propõe regulamentar a ortotanásia, com o seguinte texto:

Art. 1º: É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamento que prolonguem a vida do doente, em fase terminal de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.

§ 1º: O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.

§ 2º: A decisão [...] deve ser fundamentada e registrada no prontuário.

§ 3º: É assegurado ao doente ou representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.

§ 4º: Em se tratando de doente incapaz, ausente o representante legal, incumbirá ao médico decidir sobre as medidas mencionadas no caput deste artigo.

Art. 2º: O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social, espiritual, inclusive assegurando a ele o direito da alta hospitalar.

Art. 3º: É vedado ao médico manter os procedimentos que asseguravam o funcionamento dos órgãos vitais, quando houver sido diagnosticada a morte encefálica em não doador de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante, nos termos do disposto na Resolução CFM nº 1.489, de 21.08.97, na forma da Lei nº 9.434, de 04.02.97.

Parágrafo único: A decisão mencionada no caput deve ser precedida de comunicação e esclarecimento sobre a morte encefálica ao representante legal do doente.

Art. 4º: Esta resolução entrará em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.

Nos últimos anos, a determinação dos limites da vida (início e término) tem sido tema de nossas pesquisas e publicações3 3 Grande parte desta produção é decorrente de investigação desenvolvida em 2006 e 2007, denominada "Valores religiosos e legislação no Brasil – a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos", coordenada por Luiz Fernando Dias Duarte, com financiamento do Programa de Apoio a Projetos em Sexualidade e Saúde Reprodutiva (Prosare), da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) e do Centro Brasileiro de Planejamento (Cebrap). Nessa pesquisa foram analisados 87 projetos de lei referentes ao aborto, e 99 sobre eutanásia. . Em artigo anterior (Menezes e Gomes 2008) discutimos a emergência do debate em torno da definição de critérios sobre o início e o término da vida, no contexto da tramitação de projetos de lei. Partimos do pressuposto de que a demarcação das fronteiras entre vida e morte extrapola a elaboração puramente formal da legislação, em seu aspecto instrumental. Nesse sentido, não é de se estranhar que processos legais referentes a temas como aborto e eutanásia tornem evidentes os diferentes posicionamentos políticos no espaço público, explicitando os alinhamentos de correntes favoráveis ou contrárias às alterações de leis vigentes, em cada momento histórico. As linhas de força que interagem nessa dinâmica são perpassadas por questões culturais, sociais, religiosas e políticas envolventes, concernentes à definição e gestão da condição de pessoa, em cada contexto.

No exame de outros processos, como no caso da Lei de Biossegurança nº 11.105/2005, que dispõe sobre o uso de células-tronco de embriões humanos em pesquisas e terapia, observa-se (Gomes et al. 2009:39) que os debates entre as duas posições eram dirigidos à determinação da origem da vida humana. Os cientistas contrários ao uso de células-tronco utilizaram argumentos baseados nas ideias de santidade e sacralidade da vida. Portanto, o que estava em jogo era o julgamento moral/religioso do embrião versus os direitos de autonomia do indivíduo que detém a posse do embrião.

Os posicionamentos na controvérsia acerca dos limites da vida representam basicamente dois grupos: de um lado, os religiosos, e, de outro, os movimentos sociais, organizações não governamentais e setores da sociedade, que veiculam valores caros à cultura ocidental contemporânea, como liberdade e autonomia individual (Gomes et al. 2009:40). No processo aqui examinado observa-se justamente o contrário: uma aliança entre médicos (CFM) e o posicionamento católico, o que será objeto desta reflexão.

No julgamento de processos legais, como na tramitação de projetos de lei (Menezes e Gomes 2008; Duarte et al. 2009; Gomes et al. 2009), a justificativa religiosa é, na grande maioria das vezes, utilizada em oposição ao discurso médico-científico. Assim, trata-se do confronto entre uma retórica fundada em valores tradicionais e religiosos, e outra, que reivindica uma contextualização das leis, em função de transformações sociais e culturais, usualmente associadas a mudanças nos valores morais vigentes. De modo geral, este discurso expressa ideias centrais da cosmologia individualista, que rege a sociedade ocidental contemporânea. Não é novidade a presença de discursos religiosos em controvérsias públicas sobre temas morais controversos, como aborto (Gomes 2009a; 2009b, Menezes e Gomes 2008; Luna 2010b), reprodução assistida (Luna 2007), uso de células-tronco embrionárias (Luna 2010a; 2008), identidade sexual (Natividade 2006; 2008), parceria civil homossexual (Natividade 2009), utilização de tecnologia para prolongamento e/ou manutenção da vida (Menezes 2004; 2009a; 2009b; 2011), entre outras questões. O que chama a atenção, no caso do processo da Resolução CFM nº 1805/2006, é o ator que aciona a retórica religiosa em defesa de seu posicionamento: trata-se do CFM, órgão que rege e representa a classe médica.

O discurso religioso – no caso, da Igreja Católica – é utilizado pelo órgão oficial que representa a classe médica. Este dado suscitou nossa curiosidade e interesse: em qual etapa do processo, o CFM optou pelo uso da retórica católica? Quais as reações do MPF, diante da apresentação deste argumento? Como representantes da Igreja Católica se posicionaram, diante da solicitação do juiz? Buscamos problematizar estas – e outras – questões neste artigo, a partir do exame do processo em torno da Resolução da ortotanásia, denominação utilizada por ambas posições e, também, pela mídia.

A resolução da ortotanásia e a ação pública para sua suspensão

As novas tecnologias médicas aplicadas à reprodução assistida, à medicina fetal e, também, as dirigidas à manutenção artificial da vida acrescentam continuamente perspectivas inovadoras em torno da gestão do início e do final da vida, indicando a complexidade das questões que se apresentam. Diferentes posicionamentos emergem – por vezes em conflito, diante de cada caso. Por outro lado, observa-se a existência de entrelaçamentos de concepções religiosas e laicas, no que concerne a temas controversos, como a determinação do início e do término da vida. A partir de cada definição, evidencia-se a possibilidade de distintas formas de gestão da pessoa e de condução do último período de vida.

Neste artigo nos detemos na controvérsia sobre a gestão do término da vida, a partir da análise da Ação Civil Pública desencadeada pelo MPF, com o intuito de revogar a Resolução nº 1805/2006 do CFM sobre a ortotanásia. O exame da recente polêmica possibilita uma compreensão das tramas e dos atores sociais envolvidos nos debates contemporâneos sobre os limites da vida. O procurador do MPF sustentou então que o CFM não possuía o poder regulamentar para estabelecer como conduta ética um procedimento que é tipificado como crime, por entender que a ortotanásia configura crime de homicídio eutanásico. À época, o juiz acatou os argumentos do MPF e determinou a suspensão liminar dos efeitos da resolução. Houve então uma longa discussão judicial, com duração de quatro anos (2006-2010), que contou com a participação de profissionais de saúde e de representantes da sociedade civil. No processo, o CFM defendeu a Resolução, sempre buscando demonstrar que a ortotanásia é uma conduta médica legítima e lícita legalmente.

Por fim, em dezembro de 2010, após a substituição do juiz que tratava do caso, o novo juiz decidiu pela legalidade da resolução do CFM. O MPF não recorreu da decisão judicial.

Cabe aqui esclarecer os conceitos envolvidos no caso em pauta: ortotanásia, distanásia e eutanásia, e a forma como eles são compreendidos pelos diferentes atores sociais envolvidos no processo judicial. A ortotanásia é uma categoria formulada em oposição à distanásia, sinônimo de encarniçamento (ou obstinação) terapêutico, que significa um prolongamento do processo do morrer à custa de sofrimento. De acordo com a classe médica, a ortotanásia é definida como o não prolongamento artificial do processo de morte, além do que seria o processo concebido como "natural". Ainda de acordo com representantes dos médicos brasileiros, em termos ideais este procedimento deve ser praticado pelo médico responsável, quando há autorização do doente ou de seu representante legal. Os defensores da resolução da ortotanásia são, majoritariamente, profissionais de saúde que militam pela implantação dos cuidados paliativos – ou pela causa da "boa morte" (Menezes 2004) –, o que significa atendimento centrado no conforto e controle dos sintomas do paciente. Os cuidados paliativos (CP) consistem em uma proposta de assistência em saúde a doentes diagnosticados como "fora de possibilidades terapêuticas de cura" (FPTC) ou "terminais". Em outros termos, trata-se de uma assistência dirigida à "totalidade bio-psico-social-espiritual" do enfermo e de seus familiares, para propiciar o "morrer bem". O dilema extensão/intensidade da vida (Duarte 1999:21) é atualizado nos debates em torno da gestão do final da vida, sobretudo no caso de doença crônico-degenerativa, como câncer, AIDS e nas demências, entre outras enfermidades. A autonomia individual do doente e a expressão de seus desejos também constituem temas de extrema relevância na recente modalidade de assistência ao último período de vida.

A decisão final do processo pela legalidade da Resolução do CFM constitui um dos indícios das mudanças e transformações nas formas de gestão do morrer no Brasil, em prol dos cuidados paliativos, a exemplo do que ocorreu há algumas décadas em países de língua inglesa.

Gestão do final da vida: normatização e posicionamentos religiosos

A Resolução do CFM instaurou uma polêmica, divulgada pela imprensa. Em matéria do jornal Folha de São Paulo, em 4 de dezembro de 2006, consta a declaração oficial do procurador do MPF, que afirma que "a ortotanásia configura crime de homicídio". Ainda de acordo com a matéria, para a Conferência Nacional de Bispos do Brasil, "a prática da ortotanásia, feita com sério discernimento, representa a aceitação da condição humana diante da morte". Segundo o secretário-geral da instituição, dom Odilo Pedro Scherer, a prática já era aceita pela Igreja desde a década de 1950: "Quando a morte já se anuncia como inevitável, a decisão de renunciar a possíveis excessos terapêuticos que somente dariam um prolongamento precário e penoso pode ser considerada legítima".

Na ementa da citada resolução do CFM consta que: "Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal". O posicionamento suscitou reação do MPF, que se tornou manifesta por meio de uma ação civil pública, iniciada em maio de 2007.

Na abertura da ação civil pública o relator destaca quatro questões, mencionadas sob a forma de epígrafe (Ministério Público Federal 2007:1). A primeira é iniciada por uma afirmação, seguida por uma pergunta: "A chave do bem morrer está no bem viver. Se o Brasil não garante dignidade de pessoa humana a quem vive, como pretende garantir dignidade no morrer?".

Estas frases indicam que o Estado é incompetente na aplicação de garantias referentes à dignidade da pessoa humana. Trata-se da mesma consideração apresentada na conclusão do documento. A segunda questão é apresentada com o formato de afirmação: "Em todo pedido de paciente terminal para morrer está implícito um pedido de socorro".

De acordo com os trechos de abertura da ação civil, cabe ao Estado regular e garantir o direito à vida. Em parágrafo incisivo, representando o terceiro destaque da epígrafe, o relator ressalta o teor jurídico do debate, fundamentando-se em um autor da área:

O direito à vida tem um conteúdo de proteção positiva que impede configurá-lo com um direito de liberdade que inclua o direito à própria morte. O Estado, principalmente por situações fáticas, não pode prever e impedir que alguém disponha de seu direito à vida, suicidando-se ou praticando eutanásia. Isso, porém, não coloca a vida como direito disponível, nem a morte como direito subjetivo do indivíduo. O direito à vida não engloba, portanto, o direito subjetivo de exigir-se a própria morte, no sentido de mobilizar-se o Poder Público para garanti-la, por meio, por exemplo, de legislação que permita a eutanásia ou ainda que forneça meios instrumentais para a prática de suicídios. O ordenamento jurídico-constitucional não autoriza, portanto, nenhuma das espécies de eutanásia, quais sejam, a ativa ou passiva (ortotanásia) (Ministério Público Federal 2007:000003).

Assim, há incompatibilidade entre o que seria direito à vida e o direito a dispor da própria vida, com anuência e intervenção do Estado, por meio da confecção de leis que regulamentem a eutanásia e suas ramificações. O tema que emerge na argumentação não trata apenas da ingerência sobre o morrer pelo Estado, pelo indivíduo ou por alguma instituição, como a médica ou jurídica. A própria morte também pode se apresentar de formas as mais variadas, a partir do pressuposto do procurador, da existência de uma condição universal do morrer humano. Para tanto, o relator lança mão de um trecho do poema "Morte e vida Severina", de João Cabral de Melo Neto:

Morremos de morte igual,

mesma morte severina:

que é a morte de que se morre

de velhice antes dos trinta,

de emboscada antes dos vinte

de fome um pouco por dia

(de fraqueza e de doença

é que a morte severina

ataca em qualquer idade,

e até gente não nascida).

A abertura da ação civil é concluída desta maneira. A leitura do documento evidenciou o grau de complexidade do debate empreendido pelo MPF, representado por um procurador da República. Ele argumentava que o CFM não possui legitimidade para normatizar matéria privativa da lei, inferindo "a impossibilidade de transformar o direito à vida em direito à morte".

As justificativas de sua oposição à Resolução incluíam: o questionamento do poder do médico de decisão para interromper recursos para manutenção da vida; a preocupação com a possibilidade de condutas eugênicas a partir da aprovação da resolução, sobretudo em populações desfavorecidas, como no Brasil; a incapacidade do sistema de assistência em saúde de proporcionar qualidade de vida e, portanto, de prestar atendimento de qualidade no processo do morrer – o que significa, em última instância, levantar dúvidas acerca da qualidade do sistema de assistência em saúde; e o questionamento sobre os critérios para determinação de prognóstico e diagnóstico de iminência da morte. A petição inicial concluía que a ortotanásia significava "homicídio eutanásico", constituindo-se como apologia ao crime. Recomendava, assim, que a resolução fosse revogada.

A leitura do processo judicial indicou a existência de algumas frases do procurador em caixa alta, expressando sua indignação com os termos da resolução do CFM, sobretudo nas páginas 48 e 49. A princípio, os exemplos citados não correspondem ao tema central da petição, mas dão base ao argumento da indisponibilidade da vida: 1) "Não há liberdade quando se escolhe algo que não seja o bem"; 2) "Não há segunda chance para a morte"; e 3) "A vida é indisponível". A primeira frase contém um exemplo religioso, inserido no debate que sugere a licitude da recusa de receber ou oferecer tratamento. O caso utilizado é o posicionamento controverso das Testemunhas de Jeová (TJ), em relação à transfusão de sangue. Contesta a validade da intervenção da religião em assuntos relativos à vida, particularmente no que tange aos considerados socialmente incapazes de defender seus direitos, como as crianças.

Os debates acerca da transfusão de sangue em pacientes que são TJ giram em torno de questões bioéticas, já que estão em jogo implicações religiosas, jurídicas e médicas, inseridas em um constante e complexo processo relacional que envolve diálogos, afastamentos e ressignificações de regras e práticas, como apontado em Gomes (2006:206), há muito instauradas. Os textos produzidos pela instituição evidenciam um intenso debate com a medicina, particularmente, em distintos momentos de sua história. Em relação às intervenções no corpo notam-se rejeições e ressignificações, mesmo ocorrendo conflitos de concepções. Casos como o da vacinação no início do século XX, do transplante de órgãos e tecidos, e da transfusão de sangue, são marcantes para a compreensão dessa dinâmica de múltiplas afetações. As transfusões já foram totalmente proibidas, aceitas ou parcialmente aceitas. As justificativas internas para tais posicionamentos são legitimadas por médicos que também são TJ, especialistas que impõem e entrecruzam em seus discursos saberes que a princípio seriam excludentes. Nesse sentido, não há como analisar essas temáticas considerando isoladamente as instituições e seus posicionamentos. Considera-se que é produtivo para esta análise:

Compreender o religioso nas sociedades modernas não em uma perspectiva nominalista linear, mas no sentido amplo de uma "visão de mundo", uma cosmologia estruturante, na qual se reconhece que o espaço da "religiosidade" abarca hoje muitos valores e comportamentos oficialmente "laicos" ou, ao menos, "não confessionais" (Duarte et al. 2006:16).

O mesmo pode ser dito em relação às trajetórias individuais, que podem incorporar, mesclar, ressignificar ou adequar as orientações religiosas ou laicas. Amplia-se assim o campo de possibilidades de interferência e adesões a práticas médicas adaptadas às crenças. Por exemplo, a transfusão do "sangue total" ainda é tabu, mas é aceita a técnica de "circulação extracorpórea ininterrupta", que não estaria qualificada no âmbito da proibição bíblica do "sangue derramado". Outra intervenção possível é a que adota a aplicação de frações do sangue. De toda forma, porém, não há um consenso ou uma homogeneidade na adoção desses procedimentos (Fonseca 2011).

As controvérsias que envolvem temas como ortotanásia, eutanásia, aborto, transfusão de sangue, transplante de órgãos, além de fazerem emergir posicionamentos contrastantes, evidenciam a necessária presença dos saberes médico, jurídico e religioso, que, muitas vezes, aparecem representados ou articulados nos discursos veiculados pelos atores sociais em questão.

A menção ao caso da transfusão de sangue serviu para fundamentar a versão sobre a predominância do valor da vida, de acordo com uma das perspectivas evidenciadas no embate, que ratificava os motivos para a revogação da Resolução do CFM. A polêmica, no entanto, não é concluída nas 131 páginas do documento, pois prossegue com vigor, nas manifestações dos atores envolvidos. Em novembro do mesmo ano, a resolução do CFM foi suspensa, por liminar. Para o juiz responsável pela concessão da liminar, "a ortotanásia, assim como a eutanásia, parece caracterizar crime de homicídio, nos termos do artigo 121 do atual Código Penal". Ainda segundo o juiz, embora a resolução venha ao encontro dos anseios da classe médica e de outros setores da sociedade, a decisão sobre o assunto deve ser efetuada por meio de lei aprovada pelo poder legislativo. Para o médico corregedor do CFM, a ortotanásia não antecipa o momento da morte, como ocorre na eutanásia, mas permite a morte em seu tempo natural, sem uso de recursos que apenas prolongam o sofrimento do doente e da família. A polêmica tende a se estender, pois distintas interpretações sobre preservação da vida, processo natural de morte – entre tantas outras questões – integram a pauta dos debates.

Em dezembro de 2007, foi publicado no Diário de Justiça da União o indeferimento do recurso de suspensão da liminar, solicitado pelo CFM. Em sua conclusão, o relator do processo afirmava que: "a suspensão da decisão agravada poderia causar resultados irreversíveis, ao contrário de sua manutenção, que é no sentido da preservação da vida. [...] Indefiro o pedido de efeito suspensivo".

Ao analisarmos todos os documentos que integram o processo, verificamos que o procurador, em sua petição inicial, não utilizou qualquer argumento religioso, em seu posicionamento contrário à Resolução do CFM. A menção à religião é efetuada a partir do acionamento do tema da transfusão do sangue em Testemunhas de Jeová (TJ), conforme referido. No entanto, a citação emerge com marcada crítica, por parte do relator, em relação ao posicionamento religioso deste grupo. Em suas palavras, ao ilustrar com o caso de uma criança que faleceu por não ter recebido transfusão, já que seus pais eram TJ: "Não eram livres os pais testemunhas de Jeová. Eram dominados por um sentimento religioso errôneo, que coloca o bem maior, a vida, a serviço de interpretações outras da bíblia" (Ministério Público Federal 2007:51).

O argumento ressalta um caso particular e crítico, recorrentemente acionado como paradigmático, na intrincada articulação entre normatizações religiosas, médicas e jurídicas, que necessariamente envolve a dimensão dos direitos. A crítica ao aspecto religioso que consta do argumento jurídico elaborado pelo procurador não significa sua extinção. Está presente, ainda que seja para legitimar a posição contrária. Por outro lado, o uso de argumentação com base na prescrição católica, pelo órgão que rege as condutas da classe médica, causa estranheza. Seria esperável que suas justificativas se centrassem em questões técnicas e humanitárias, como o tema do sofrimento sem perspectiva de cura. No entanto, na leitura da defesa elaborada pelo CFM essa referência é relevante. É digno de nota que consideramos a existência de uma imprecisão das fronteiras entre o caráter religioso e o não religioso no mundo moderno, conforme analisa Duarte (2006):

É impossível compreender nosso horizonte cultural sem considerar paradoxalmente "religiosa" a adesão aos valores pertinentes à ideologia individualista, no sentido de ser referência à totalidade de sentido em que se assenta o sujeito social o critério régio de reconhecimento da dimensão "religiosa" da vida social (:53).

A defesa do CFM pela normatização da ortotanásia iniciava com a citação de um trecho de um documento da Igreja Católica, de 1995 – o mesmo trecho utilizado como epígrafe deste artigo (não há menção ao título deste documento no processo). Mais adiante, na terceira fase do processo, um padre católico é convocado a depor, como testemunha favorável à resolução, além de cinco médicos. Portanto, o posicionamento religioso em torno das deliberações e possibilidades que se apresentam no final da vida é utilizado pelo órgão que rege a classe e as práticas médicas. Entre os documentos anexados ao processo pelo CFM constam: um artigo acadêmico sobre religião e a relação com o término da vida; e um outro artigo com entrevistas com profissionais e com autoridades religiosas de diferentes instituições (padre católico, rabino, representante evangélico, por exemplo).

A escolha do CFM por referir as posições religiosas evidencia a importância concedida pela classe médica ao lugar da religião no debate em torno do final da vida. Embora a racionalidade biomédica afaste a religião da controvérsia acerca de certos assuntos, no caso da ortotanásia, seu órgão representativo fundamenta os argumentos, concedendo ênfase à concordância da Igreja Católica em relação à ortotanásia, bem como dá lugar a outras vertentes religiosas. Nessa medida, o CFM aciona o posicionamento católico com o intuito de não deixar margem para acusações provenientes de distintos níveis do debate, já que inclui entre seus signatários, no caso específico da ortotanásia, o ator religioso com maior influência no país, a Igreja Católica.

O posicionamento católico apresenta as noções de "morte suave" e "dignidade humana". Em face dos avanços tecnológicos aplicados à assistência em saúde, direcionados ao prolongamento da vida, e das crescentes reivindicações da maior parcela da sociedade em diversos países, em prol do direito de morrer, a Igreja Católica publicou a Declaração sobre a eutanásia, em 1980, com a seguinte justificativa:

Os direitos e valores inerentes à pessoa humana têm um lugar importante na problemática contemporânea. A este propósito, o II Concílio Ecumênico do Vaticano reafirmou solenemente a eminente dignidade da pessoa humana e muito particularmente o seu direito à vida. Por isso, denunciou os crimes contra a vida, como são toda a espécie de homicídio, o genocídio, o aborto, a eutanásia e o próprio suicídio voluntário. Recentemente a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé chamou a atenção para a doutrina católica sobre o aborto provocado. Agora, a mesma Sagrada Congregação julga oportuno apresentar a doutrina da Igreja sobre o problema da eutanásia. Com efeito, embora neste campo continuem sempre válidos os princípios afirmados pelos últimos Sumos Pontífices, os progressos da medicina fizeram aparecer nestes anos mais recentes novos aspectos do problema da eutanásia que reclamam ulteriores esclarecimentos precisos no plano ético. Na sociedade hodierna, onde mesmo os valores fundamentais da vida humana frequentemente são postos em causa, a modificação da cultura influi no modo de considerar o sofrimento e a morte; a medicina aumentou a sua capacidade de curar e de prolongar a vida em condições que, por vezes, levantam problemas de caráter moral. Assim, os homens que vivem num tal clima interrogam-se com angústia sobre o significado da velhice extrema e da morte. E chegam mesmo a perguntar a si mesmos se não terão o direito de procurar, para si e os seus semelhantes, uma "morte suave" que lhes abrevie os sofrimentos e seja, a seus olhos, mais conforme com a dignidade humana (Congregação para a Doutrina da Fé 1980:1).

No que concerne à dor vivenciada pelo doente terminal, a Igreja a considera como um valor cristão, com a ressalva de não ser prudente impor, como norma geral, um comportamento heroico. Ao contrário, a prudência humana e cristã sugere o uso de medicamentos para abreviar ou suprimir a dor. Repetindo a doutrina clássica de Pio XII, a declaração entende ser legítima a administração de sedativos para alívio da dor, ainda que em decorrência deste ato seja possível abreviar a vida do paciente, proporcionando-lhe uma "morte suave". Tal argumentação, utilizada como base retórica pelo CFM, vai de encontro àquela elaborada na petição inicial da ação civil pública. O relator avalia que: "Nesses casos, a liberdade turvada, a vontade eivada dos maiores sofrimentos e depressões, decidirá invalidamente pelo caminho mais fácil: livro-me do problema" (Ministério Público Federal 2007:51).

O direito de morrer no local escolhido pelo doente é abordado nessa Declaração, também nomeada como A encíclica silenciosa, de Karol Wojtyla. O papa decidiu deixar o hospital, onde provavelmente seria submetido a um "tratamento fútil" e esforços terapêuticos seriam empreendidos em vão pela equipe de saúde. Ele decidiu permanecer em casa, com os mais próximos, à espera da morte. Na iminência de uma morte inevitável, apesar dos meios usados, é lícito tomar a decisão de renunciar a tratamentos e procedimentos que propiciariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente neste tipo de caso. Nesse sentido, o médico não teria motivos para se angustiar, pois não se trata de omissão de recursos e de atendimento. Assim, a obstinação (ou encarniçamento ou futilidade) terapêutica é condenada pela instituição religiosa, em favor da dignidade da vida humana, do "direito de morrer" com serenidade. A dignidade humana e cristã é, portanto, defendida, sem que isso signifique uma procura voluntária da própria morte.

Em 13 de abril de 2010, foi publicada a decisão final do longo processo de discussão entre o MPF e o CFM, sobre a Resolução 1805/2006, que dispõe sobre a ortotanásia. A sentença final foi emitida pelo juiz federal encarregado do processo, que considerou que tanto o MPF quanto o CFM pugnaram pela improcedência do pedido inicial da ação. Cabe mencionar que o procurador que abriu o processo havia sido substituído por outro profissional, o que constitui indício da alteração do posicionamento do MPF ao final do processo judicial, em prol da posição do órgão que regulamenta a conduta profissional médica.

Curiosamente, na mesma data da publicação da decisão final do processo passou a vigorar o novo Código de Ética Médica no Brasil, com modificações em relação ao código anterior, de 1988. No novo documento o tema da controvérsia é tratado, apesar de não haver menção explícita ao termo ortotanásia. As mudanças no Código de Ética Médica evidenciam não somente a aceitação dos limites de atuação do profissional de saúde, em face do avanço da enfermidade, como a necessidade de regulamentação acerca do alcance e do poder de escolha dos atores sociais envolvidos no processo de tomada de decisões referente à vida, sofrimento, uso de recursos terapêuticos e o morrer. Este dado aponta a possibilidade de um processo de negociação entre os representantes das duas posições em torno da ortotanásia. Trata-se de uma hipótese que consideramos aqui, para a qual não encontramos quaisquer documentos comprobatórios. O interessante é que, nas novas normas do código não consta a palavra ortotanásia. O princípio fundamental XXII, do capítulo I, contém o seguinte texto: "nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados". No artigo 41, do capítulo V, ("Relação com pacientes e familiares") consta que é vedado ao médico "abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal" e seu parágrafo único explicita que "nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal".

Cabe aqui referir a novidade do acréscimo deste artigo no novo Código de Ética Médica, em comparação com o documento firmado em 1988, no qual consta, em seu artigo 61, do Capítulo V, ("Sobre a relação com pacientes e seus familiares"), que é vedado ao médico "abandonar paciente sob seus cuidados". Seu segundo parágrafo contém o seguinte texto: "salvo por justa causa, comunicada ao paciente ou a seus familiares, o médico não pode abandonar o paciente por este ser portador de moléstia crônica ou incurável, mas deve continuar a assisti-lo ainda que apenas para mitigar o sofrimento físico ou psíquico".

Assim, o novo Código de Ética Médica prescreve uma orientação terapêutica: os cuidados paliativos. Não se trata mais, como citado no código de ética médica que vigorou de 1988 a 2010, de "apenas mitigar o sofrimento", mas da indicação de uma especialidade médica especificamente dirigida a patologias crônicas incuráveis, sem possibilidades terapêuticas de cura. Indo além, trata-se da prescrição e da aceitação de uma nova modalidade de atendimento, direcionada ao último período de vida.

Como compreender a necessidade de inclusão de argumentação baseada em documentos e posicionamentos religiosos, por parte do CFM? À primeira vista, podemos considerar a centralidade de um ethos religioso entre brasileiros. Mas um exame mais atento da defesa do CFM pela Resolução da ortotanásia indica o imbricamento estabelecido entre a classe médica e assistência espiritual. Entre os motivos alegados, consta que a

atuação [do médico] busca a prevenção e o alívio do sofrimento [do doente em fase terminal], através do reconhecimento precoce, de uma avaliação precisa e criteriosa e do tratamento da dor e de outros sintomas, sejam de natureza física, psicossocial ou espiritual.

Trata-se, portanto, da afirmação de uma nova esfera de cuidados, da qual o médico deve se encarregar: a espiritual.

Considerações finais

A morte sempre foi e continua sendo objeto de elaboração coletiva. A produção de sentidos para o término da vida constitui e constituiu objeto de formulações, por parte das instituições religiosas. No que concerne ao cristianismo, George Simmel afirma que:

Um dos maiores paradoxos do cristianismo é o de retirar da morte esta significação apriorística, colocando a vida sob o ângulo da sua própria eternidade. E isto não só porque promete uma continuidade após o último instante de vida na terra; mas também porque coloca o destino eterno da alma sob os conteúdos da vida: cada um mantém ao infinito a sua significação ética como causa determinante do nosso futuro transcendente, quebrando assim a sua própria limitação intrínseca. Nestes termos, a morte parece suplantada: primeiro porque a vida, esta linha que se estende no tempo, ultrapassa o limite formal do seu fim; mas também porque ela nega a morte, que opera através de todos os momentos da vida e os limita do interior; ela a nega precisamente em virtude das consequências eternas desses momentos singulares (Simmel s/d).

Com a secularização da sociedade ocidental moderna, observamos uma crescente atribuição de significados – para vida, morte, sofrimento, pessoa – aos saberes científicos e à instituição médica. No entanto, esse processo não se dá sem tensões. Seja em qual for o país, estado ou região, observamos a recorrência de posicionamentos opostos, acerca das deliberações que envolvem temas morais controversos, como sexualidade, autonomia e, sobretudo, vida e morte. Tem sido assim com o aborto (ou interrupção voluntária da gravidez) e em torno do final da vida, uma vez que a determinação dos limites da vida é – e tende a ser cada vez mais – dependente de definições arbitrárias. Com o contínuo desenvolvimento de recursos tecnológicos aplicados à saúde e à manutenção (ou criação) da vida faz-se necessário repensar, afinal, nos sentidos de vida, de fruição do viver, de dignidade (da vida e da morte) e, por fim, sobre autonomia individual.

Estudos antropológicos sobre o início e o final da vida apontam diferenças e semelhanças, no que concerne ao estatuto de pessoa nos dois casos (Boltanski 2004). Tanto o embrião/feto quanto o doente terminal – mais especificamente, com morte encefálica – podem ser caracterizados por estarem situados em um tempo indeterminado e provisório. Portanto, trata-se de uma condição liminar. No início da vida, há um processo de reconhecimento da condição social da pessoa, ao passo que no período final se dá uma transformação do estatuto – de um ser vivo para outra instância – cadáver, espírito, ancestrais, entre outras possibilidades, segundo o referencial cosmológico. A partir do estabelecimento da nova condição, as relações sociais entre a pessoa (emergente ou em declínio) e o contexto no qual está inserida são reorganizadas.

A "cosmologia moderna" inclui a primazia da escolha pessoal do sujeito, de processos de institucionalização e desinstitucionalização, de trânsito e experiências religiosas. A "subjetivação diferencial", na qual as "identidades devem necessariamente afirmar rumos e sentidos específicos" (Duarte 2011:1) gera tensões entre valores englobantes, assim como destes com disposições individuais, características da sociedade contemporânea. Tais processos emergem em controvérsias públicas, como a que é objeto da análise deste artigo. Saberes médico-científicos, legais e religiosos são convocados por diferentes atores sociais, para conferir legitimidade às suas posições, diante de cada situação e/ou demanda emergente. As reivindicações direcionadas a alterações nas leis que regem o início e o final da vida estão inseridas nesse contexto e geram controvérsias, protagonizadas por determinados discursos "religiosos". A questão põe em evidência, além de posicionamentos discordantes, a heterogeneidade e a necessidade de exposição pública dos argumentos, sejam confessionais ou laicos. Observa-se que as respostas religiosas à regulação dos chamados limites da vida implicam em articulações político-religiosas, que comportam um duplo movimento: por um lado, tende a unir vertentes que, a princípio, apresentam divergências doutrinárias e se confrontam no espaço público; por outro, há posturas religiosas institucionais mais "abertas" ao debate em torno dos temas. Vale referir que os diversos discursos elaborados e publicizados nas controvérsias são proferidos por especialistas dos campos biomédico, jurídico e religioso, que, muitas vezes, estão intrincados em suas identidades. Conforme indicado em artigo anterior:

Os atores dessa interlocução – mesmo que tensa – não estão caracterizados por uma lógica de oposição binária, na qual ou se associam à laicidade ou à religião. Os atravessamentos são evidentes e constantes no grupo filiado às correntes religiosas contrárias à descriminalização. Atores centrais do debate são médicos e juristas; além disso, especialistas das áreas biomédica e jurídica são convocados com o intuito de legitimar ambas as teses (Menezes e Gomes 2008:92).

A polifonia inerente ao espaço público moderno confere complexidade às controvérsias, nas quais podem ser encontrados vários discursos em disputa por legitimação, que, em grande medida, se articulam ou se distanciam dependendo dos arranjos políticos necessários à sua visibilização e aceitação junto à sociedade mais ampla. Ainda assim, não é garantido que determinadas regras sociais ou legislações, por exemplo, "encontrem respaldo ou reconhecimento junto a setores da população", conforme Gonçalves (2005)4 4 O autor utiliza a categoria ressonância, assim definida por Greenblatt (1991): "Por ressonância entendo o poder do objeto exibido de alcançar um mundo maior além de seus limites formais, de evocar em quem o vê as forças culturais complexas e dinâmicas das quais emergiu e das quais pode ser considerado pelo espectador como uma metáfora ou simples sinédoque" (1991:250). .

A noção de ressonância pode auxiliar na reflexão sobre os complexos processos de construção de normas, seu alcance e impacto sobre os grupos sociais. Cabe lembrar que os posicionamentos, ações e reações dos grupos que constituem a esfera pública – a sociedade civil, conforme Habermas (1978) – por si só é heterogênea. A presença de valores religiosos – com efetiva participação de agentes religiosos – nos debates sobre temas controversos, como a regulação dos limites da vida, evoca o que Montero (2006) defende para o caso brasileiro:

O processo de diferenciação das esferas sociais não implicou a erradicação da magia, mas uma forma particular de enquadramento daquilo que era percebido como "magia" naquilo se convencionava chamar de "religião", cujo modelo de referência era o cristianismo [...] tal processo não redundou na retirada das religiões do espaço público: ao contrário, resultou na produção de novas formas religiosas, com expressão pública variável conforme o contexto e as suas formas específicas de organização institucional (Montero 2006:50).

Tal percepção permite analisar a presença de valores religiosos em processos de elaboração de leis, sem que isto signifique uma contradição, considerando a incorporação de valores não confessionais ou laicos nos discursos das instituições religiosas, e vice-versa. No que se refere à temática deste artigo, o ponto central é a preeminência da natureza na ideologia moderna, traduzida na representação do valor da vida (Duarte 2006). A combinação ou dissociação de valores laicos e religiosos na regulação desses limites, na mesma medida, implicam em outra tensão relativa à liberdade religiosa e à autonomia individual. Vida e morte na sociedade moderna são pautados pela tradição judaico-cristã e pela perspectiva científica. As transformações que conformaram novas linhas de força a partir do século XVIII, o processo de secularização (Weber 1992), a crescente medicalização do social, ao menos em termos ideal-típicos, "deslocaram a definição e a determinação dos limites da vida e da morte, da esfera religiosa para o domínio da ciência" (Menezes e Gomes 2008:79; Menezes 2004).

O aborto e a eutanásia cada vez mais se apresentam como questões centrais na contemporaneidade, por indicarem não apenas a delimitação das fronteiras entre vida e morte, mas por constituírem temas que revelam tensões referentes à noção de pessoa no Ocidente e em torno de seus direitos. Uma distinção se faz necessária, no que concerne à possibilidade de escolha: o nascituro é incapaz de se manifestar, de modo que o direito de escolha é atribuído a outro – à mãe, ao Estado ou a instâncias religiosas. No caso do doente terminal, as demandas se relacionam à concessão do direito de escolha em relação aos desígnios da própria morte. No entanto, nota-se que em algumas circunstâncias há uma similaridade no que concerne à autonomia do indivíduo diante da decisão sobre o término de sua própria vida, justamente relacionadas às tensões e limites impostos pelos preceitos legais e religiosos, que podem emergir complexamente interligados e consonantes, ou em contraposição. As implicações dessas variantes no debate público sobre as regulações sociais dos limites da intervenção na vida e na morte podem ser verificadas em documentos em evidência nos últimos anos. O debate é complexo e abrangente, e verificamos apenas algumas – entre tantas outras – possibilidades de entendimento das questões em pauta, ao examinarmos o processo sobre a ortotanásia. Sabemos que perguntas permanecem sem resposta e que outras devem surgir, mas concluímos com a certeza de que a abordagem do tema da delimitação dos limites da vida está intrinsecamente articulada aos valores morais vigentes, em cada contexto, assim como ocorre com a formulação de categorias científicas, por parte de médicos e pesquisadores das ciências básicas.

Referência de Jornal

Notas

Artigo baseado na apresentação das autoras no XX Encontro da ANPOCS, na mesa redonda intitulada "Religião, direitos humanos e espaço público: reflexões sobre temas morais controversos", em 27 de outubro de 2011, em Caxambu. A mesa redonda foi coordenada por Luiz Fernando Dias Duarte e também contou com a participação de Marcelo Natividade e Naara Luna.

Recebido em abril de 2012

Aprovado em novembro de 2012

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  • 2
    O texto "Ortotanásia, sofrimento e dignidade: entre valores morais, Medicina e Direito", de Rachel Aisengart Menezes e Miriam Ventura, apresentado no GT "Saúde, emoção e moral", no 35º Encontro Anual da Anpocs, desenvolve uma análise dos posicionamentos ao longo do processo judicial em torno da resolução.
  • 3
    Grande parte desta produção é decorrente de investigação desenvolvida em 2006 e 2007, denominada "Valores religiosos e legislação no Brasil – a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos", coordenada por Luiz Fernando Dias Duarte, com financiamento do Programa de Apoio a Projetos em Sexualidade e Saúde Reprodutiva (Prosare), da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) e do Centro Brasileiro de Planejamento (Cebrap). Nessa pesquisa foram analisados 87 projetos de lei referentes ao aborto, e 99 sobre eutanásia.
  • 4
    O autor utiliza a categoria ressonância, assim definida por Greenblatt (1991): "Por ressonância entendo o poder do objeto exibido de alcançar um mundo maior além de seus limites formais, de evocar em quem o vê as forças culturais complexas e dinâmicas das quais emergiu e das quais pode ser considerado pelo espectador como uma metáfora ou simples sinédoque" (1991:250).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      Abr 2012
    • Aceito
      Nov 2012
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