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Predicação e extensão conceitual em Kant: problemas

Predication and conceptual extension in Kant: problems

Resumos

O artigo examina a noção de extensão conceitual em Kant, a fim de determinar uma visão de predicação que possa integrar, de forma coerente, compromissos teóricos básicos da lógica geral como ele a concebia e os fundamentos de sua lógica transcendental. Após um breve panorama das diversas caracterizações da noção no corpus kantiano, distingo três modelos interpretativos acerca da mesma na literatura. Tais modelos são criticados e suas perspectivas de integrar os compromissos de Kant de modo inteiramente satisfatório são rejeitadas. Finalmente, esboço um tratamento alternativo da concepção kantiana de extensão conceitual, o qual respeita os critérios de adequação que guiaram o exame dos modelos anteriores. Ele aponta, por sua vez, para uma reavaliação da noção kantiana de conteúdo conceitual.

Kant; Extensão conceitual; Predicação; Lógica geral; Lógica transcendental


The article examines Kant's notion of conceptual extension in order to determine a conception of predication that could integrate, in a coherent fashion, basic theoretical commitments of general logic as he conceived it and the central tenets of his transcendental logic. After a brief overview of the several characterizations of thatnotion in the Kantian corpus, I distinguish three interpretative models concerning it in the literature. Such models are criticized and their prospects of integrating Kant's commitments in a fully satisfactory way are rejected. Finally, I sketch an alternative account of Kant's notion of conceptual extension, which respects the criteria of adequacy that guided the examination of the former models. It points, on its turn, to a revaluation of Kant's notion of conceptual content.

Kant; Conceptual extension; Predication; General logic; Transcendental logic


Predicação e extensão conceitual em Kant: problemas* * Este artigo tem origem em minha tese de doutorado, "O Território do Conceito: Lógica e Estrutura Conceitual na Filosofia Crítica de Kant", aprovada na UFRGS em 2010. Beneficiei-me dos questionamentos de João Carlos Brum Torres, meu orientador; de Sílvia Altmann, arguidora em minha qualificação; e de Paulo Faria, Hans-Christian Klotz, Gerson Louzado e Luciano Codato, arguidores em minha defesa. Beneficiei-me também das valiosas observações críticas dos dois pareceristas anônimos do artigo. Equívocos ou impropriedades remanescentes são, é claro, de minha inteira responsabilidade. 1 Todas as traduções de passagens do corpus kantiano são de minha responsabilidade. A citação dessas passagens, com exceção da Crítica da Razão Pura, são acompanhadas da indicação de volume (em números romanos) e página (em arábicos) da Akademieausgabe von Immanuel Kants Gesammelten Werken, precedida por 'AA'. A Crítica da Razão Pura, como de praxe, é citada com a paginação da primeira ('A') e/ou segunda ('B') edições. Eventualmente, emprego as seguintes abreviações nas citações do corpus kantiano:

Predication and conceptual extension in Kant: problems

Renato Duarte Fonseca

Departamento de Filosofia, Universidade Federal de Santa Maria, Brasil, E-mail: renato.fonseca@ufsm.br

RESUMO

O artigo examina a noção de extensão conceitual em Kant, a fim de determinar uma visão de predicação que possa integrar, de forma coerente, compromissos teóricos básicos da lógica geral como ele a concebia e os fundamentos de sua lógica transcendental. Após um breve panorama das diversas caracterizações da noção no corpus kantiano, distingo três modelos interpretativos acerca da mesma na literatura. Tais modelos são criticados e suas perspectivas de integrar os compromissos de Kant de modo inteiramente satisfatório são rejeitadas. Finalmente, esboço um tratamento alternativo da concepção kantiana de extensão conceitual, o qual respeita os critérios de adequação que guiaram o exame dos modelos anteriores. Ele aponta, por sua vez, para uma reavaliação da noção kantiana de conteúdo conceitual.

Palavras-chave: Kant. Extensão conceitual. Predicação. Lógica geral. Lógica transcendental.

ABSTRACT

The article examines Kant's notion of conceptual extension in order to determine a conception of predication that could integrate, in a coherent fashion, basic theoretical commitments of general logic as he conceived it and the central tenets of his transcendental logic. After a brief overview of the several characterizations of thatnotion in the Kantian corpus, I distinguish three interpretative models concerning it in the literature. Such models are criticized and their prospects of integrating Kant's commitments in a fully satisfactory way are rejected. Finally, I sketch an alternative account of Kant's notion of conceptual extension, which respects the criteria of adequacy that guided the examination of the former models. It points, on its turn, to a revaluation of Kant's notion of conceptual content.

Keywords: Kant. Conceptual extension. Predication. General logic. Transcendental logic.

1. Introdução

Notoriamente, a caracterização kantiana da lógica como "ciência das regras do entendimento em geral" (A52/B76)2 é marcada pela distinção entre dois níveis de reflexão. À lógica geral pura concernem as regras que governam o pensamento per se, abstração da diferença entre seus objetos e independentemente do modo como porventura os conheçamos; ela abstrai, com isso, da origem e do conteúdo de nossos conceitos e juízos, atendo-se unicamente às formas de suas relações recíprocas. A lógica transcendental, em contrapartida, ocupa-se das condições sob as quais seria possível uma cognição ou refe­rência a objetos pura a priori; e na medida em que esta se revela simplesmente uma cognição da forma da experiência possível, ela resulta em uma doutrina das condições da cognição em geral.

Ora, não obstante a lógica geral e a lógica transcendental operem em dois registros de reflexão distintos, seus pressupostos devem mostrar-se mutuamente compatíveis, sob pena de lançar a visão kantiana do entendimento e da razão em um curto-circuito. O presente artigo parte desse truísmo, que deve orientar qualquer interpretação da Crítica, para examinar que espécie de concepção da extensão de conceitos é capaz de satisfazê-lo, tendo em vista a unidade da concepção kantiana do juízo e, em particular, da predicação.

Inicialmente, exponho de maneira breve a concep­ção kantiana da forma lógica do juízo, particularmente do juízo predicativo ou categórico, como forma de subordinação extensional de conceitos; sobre essa base, também breve­mente, apresento a distinção transcen­dental entre juízos analíticos e sintéticos para, com isso, oferecer uma reconstrução do problema dos juízos sintéticos a priori (seção 2). Dada a importância da no­ção de extensão conceitual para a concepção kantiana de pre­dicação, procedo então a um apanhado das caracterizações dessa noção no corpus kantiano, distin­guindo três modelos básicos de interpretação da mesma na lite­ratura (seção 3). Tais mo­delos são posteriormente criticados e rejeitados, por violarem compromissos teóricos importantes de Kant, em especial a possibi­lidade dos juízos sintéticos a priori (seção 4). Finalmente, à guisa de conclusão, apresento o esboço de uma interpretação alterna­tiva da noção de extensão conceitual em Kant - com consequências para a com­preensão de sua concepção de conte­údo conceitual (seção 5).

2. Predicação, Lógica Geral e Lógica Transcendental

Como tarefa preparatória para a discussão de que se ocupará este trabalho, a presente seção expõe de maneira breve a concepção kantiana da forma lógica do juízo - em particular da predicação - como subordinação extensional de conceitos (2.1), para em se­guida apresentar a distinção entre juízos analíticos e sintéticos, bem como o problema transcendental dos juízos sintéticos a priori (2.2).

2.1. Lógica geral e subordinação extensional de conceitos

Na Introdução à Lógica Transcendental da Crítica da Razão Pura, Kant escreve que a "lógica geral abstrai [...] de todo conteúdo da cognição, isto é, de toda referência desta ao objeto, e considera apenas a forma lógica na relação das cognições entre si, isto é, a forma lógica do pensamento em geral" (A55/B79). A passagem contém duas teses sobre a natureza da lógica geral, uma negativa e a outra positiva, sendo estruturada em torno do contraste entre dois tipos de vínculo representacional. Na primeira, afirma-se que a lógica geral não considera o conteúdo de cog­nições - conceitos e juízos -, compreendido como sua referência (Beziehung) a objetos. Trata-se de uma consequência da uni­versalidade da lógica geral: porque ela "contém as regras absolutamente necessárias do pensamento, sem as quais não pode haver nenhum uso do entendimento", ocupa-se do último "independentemente da diferença dos objetos a que ele possa dirigir-se" (A52/B76). Se não pode ignorar, mas deve antes pressupor, a intencionalidade do pen­sar, ela abstrai da pretendida referência de pensamentos particula­res, e de como esta é operada. A segunda tese, em contrapartida, de­termina aquilo de que se ocupa a lógica geral: "a forma lógica na relação (Verhältnis) das cognições entre si". Embora abstraia da relação de representações com objetos, a lógica geral considera a relação entre repre­sentações do entendimento - conceitos e juízos.

Que espécie de relação entre cognições está envolvida aqui? Em anotação da década de 1770, Kant escreve que um "juízo é a relação de subordinação de conceitos um sob o outro" (R3044, AA XVI.629). A posição não é uma relíquia do período pré-crítico, sendo explicitamente reafirmada em reflexões de datação posterior, de um modo que abrange não apenas proposições categóricas como também hipotéticas e disjuntivas. Assim, leremos que um "juízo é a consciência de que um conceito está contido sob o outro, seja como seu predicado ou seu fundamento ou como um membro de sua divisão" (R3053, AA XVI.633). De maneira ainda mais clara, Kant escreverá: "O juízo é a representação da unidade de conceitos dados na medida em um está subordi­nado ao outro, (1) como sob a extensão do outro, (2) como consequên­cia ao funda­mento, (3) como membro da divisão ao conceito dividido" (R3060, AA XVI.635). A nos fiarmos nessas anotações, Longuenesse está certa quando sustenta que as "formas lógicas do juízo de Kant nada mais são do que formas de subordinação de conceitos, e as formas de inferência de que ele se ocupa são meramente os vários modos nos quais a subordinação de conceitos [...] possibilita uma inferência que preserve a verdade" (2005, p. 204).

A natureza dessa subordinação demanda esclarecimento. A consideração da forma ló­gica de um juízo deve contemplar o tipo de relação entre seus constituintes relevante ao seu papel em inferências válidas. Embora Kant reconheça formas de juízo não redutíveis a juízos categóricos ou predicativos, é nestes que se concentra ao ocupar-se das duas espécies de inferência dedutiva acdmitidas por ele - inferências imediatas ou do entendi­mento, e mediatas ou da razão (a saber, inferências silogísticas). Concentro-me, assim, no juízo categórico, em particular na predi­cação universal afirmativa, para tal esclarecimento.

Kant apela aqui explicitamente à noção de extensão (Umfang) ou esfera (Sphäre, sphaera) de um conceito - nominalmente equivalente à totalidade do que "está contido sob" o último - para caracterizar a subordinação em questão. Em um juízo da forma Todo F é G, anota Kant, "o sujeito é pensado sob a sphaera de um predi­cado", entendendo-se com isso que "a sphaera de um conceito [F] é inteira­mente encerrada no interior da sphaera de outro conceito [G]" (R3068, AA XVI.640). Como compreender essa relação de subordinação extensional? Em primeiro lugar, ela deve ser reconhecida como uma relação transitiva: se todo F é G e todo G é H, segue-se que todo F é H. Essa transitividade, com efeito, subjaz ao que Kant qualifica como fundamento de todos os silogismos afirmativos, exibido preci­pua­mente na forma silogística Barbara e articulado no princípio Dictum de omni.3 3 Cf. SF, § 2, AA II.49. Ver tb. A321-2/B378-9. Em se­gundo lugar, embora Todo F é G não implique Todo G é F, é logicamente compatível com este. A relação de subordinação em pauta, se não é si­mé­trica, tampouco é assimétrica, devendo ser reconhecida como antissimétrica - de sorte que, se a extensão de F é subordinada à de G (todo F é G) e a extensão de G é subordi­nada à de F (todo G é F), segue-se que F e G são extensional­mente equivalentes. Em terceiro lugar, porque necessariamente (embora trivialmente) qualquer juízo da forma Todo F é F é verdadeiro, a subordinação extensional sob exame consiste em uma rela­ção reflexiva.

Que a relação de subordinação extensional própria à consideração da forma lógica da predicação universal afirmativa seja uma relação transitiva, antissimétrica e reflexiva é razão para a tomarmos como a relação ser parte de, em contraste com a relação ser parte própria de, de caráter transitivo, assimétrico e irreflexivo. Tal distinção se reve­lará de primeira importância para o argumento do presente trabalho.4 4 Isso, desde já, é razão para não assimilarmos a subordinação extensional de conceitos constitutiva da predicação universal afirmativa à subordinação lógica que caracteriza hierarquias conceituais per genus et differentiam. Sobre isso, ver 4.2 abaixo. De imediato, dire­mos que um juízo da forma Todo F é G a extensão de F é representada como parte da extensão de G.

Por óbvio, que outras formas de predicação devam ser compreendidas em termos da noção de subordinação extensional de conceitos não significa que nelas, igualmente, a extensão do conceito do sujeito seja parte da do predicado. Ao invés disso, trata-se de compreendê-las a partir da relação ser parte de, no que toca às respectivas extensões de seus conceitos constituintes. Assim, um juízo da forma Algum F é G representa que uma parte da extensão de F é parte da extensão de G (o que não implica que a extensão de F, como um todo, seja parte da de G, embora seja compatível com isso: Algum F é G não implica Todo F é G, mas não o exclui). É o que es­creve Kant sobre a diferença en­tre juízos universais e particulares (subentendendo-se, em ambos casos, juízos categóri­cos afirmativos): "No juízo universal a sphaera de um conceito é inteiramente encerrada no interior da sphaera de outro conceito; no juízo particular, uma parte do primeiro é en­cerrada na esfera de outro conceito" (R3068, AA XVI.640). Tomados os devidos cuida­dos e feitas as devidas alterações, as outras formas de juízo reconhecidas por Kant em sua tábua das funções lógicas poderiam igualmente ser analisadas como modos diversos de subordinação extensional de conceitos - quanto a isso, reporto o leitor à literatura relevante sobre o tema.5 5 Deve-se a Longuenesse ter reintroduzir na literatura a necessária atenção à caracterização kantiana da forma lógica da predicação - e do juízo em geral - em termos de subordinação extensional de conceitos. Ver Longuenesse (2001, pp. 81-106; 2005, pp. 81-116). Longuenesse, por sua vez, é devedora do trabalho seminal de Klaus Reich, publicado originalmente em 1932 (ver Reich, 1992). Entre nós, Codato (2004) apresenta um apanhado detalhado das passagens do corpus kantiano que tratam o juízo como subordinação extensional de conceitos. Dado o foco deste trabalho na forma lógica da predicação, especialmente da pre­dicação afirmativa universal, essas breves considerações são suficientes para seus fins.6 6 A par da concepção da forma lógica do juízo em termos de subordinação extensional de conceitos, Longuenesse ocupa-se da caracterização kantiana do juízo como regra (cf. P, § 23, AA IV.305), compreendida como asserção sob uma condição universal (cf. L, § 58, AA IX.121). Tal caracterização informa sua tese de que "[t]odo juízo carrega em seu interior um silogismo potencial" (2001, p. 90, n. 20). De acordo com Longuenesse, todo juízo, enquanto regra, é a premissa maior de uma inferência silogística implícita cuja conclusão afirma a subsunção, sob seu predicado, de objetos aos quais convém o conceito que ocupa a posição de seu sujeito lógico (2001, pp. 90-106; 2004, pp. 81-116). Assim, o juízo Todo corpo é divisível seria a premissa maior de um silogismo possível da forma Todos os corpos são divisíveis; ora, x é um corpo; logo, x é divisível - como em Todos os corpos são divisíveis; ora, metais são corpos; logo, metais são divisíveis. Dessa maneira, segundo Longuenesse, há uma "conexão sistemática entre 'condição' e 'razão'". O conceito F é condição da regra Todo F é G porque justifica (como condição suficiente) a asserção de G com respeito qualquer objeto x: dada, por exemplo, a regra Todo homem é mortal, "[s]ubsumir qualquer objeto x, ou qualquer espécie, sob o conceito 'homem', é formular uma razão para asserir o predicado 'mortal' do objeto ou da espécie" (2001, p. 95, n. 33). Essa noção de condição serve, por sua vez, a um tratamento integrado dos três momentos do título da relação na tábua das funções lógicas do juízo. Enquanto no juízo categórico a condição da regra é interna à mesma (sendo representada por seu sujeito lógico), no juízo hipotético ela lhe é externa. No juízo Se os corpos são compostos, então eles são divisíveis, a condição da asserção do predicado divisível com respeito a corpo, redundando na regra Todos os corpos são divisíveis, é pensada como externa a esta, consistindo no conceito composto: o juízo pode, pois, ser expresso como Todos os corpos, se compostos, são divisíveis (cf. Longuenesse, 2001, p. 103, n. 53). No tocante aos juízos disjuntivos, por sua vez, temos a relação entre um conceito (como condição) e a totalidade do que pode ser conhecido sob ele, submetida ali à divisão de acordo com dois ou mais conceitos. Longuenesse se apressa em dizer, contudo, que o caráter sintético de um juízo repousa no fato de que sua condição última é a intuição dos objetos pensados sob seu sujeito lógico (no caso do juízo categórico). Nos contextos epistemicamente relevantes, segundo ela, "conceitos funcionam como condições apenas na medida em que subsumem intuições sensíveis (a priori ou empíricas), as quais são, em última instância, a verdadeiras condições dos juízos" (2001, p. 97). Esse ponto se mostrará importante na discussão que segue. Desde já, porém, deve-se notar que a caracterização do juízo como regra não substitui sua caracterização em termos de subordinação extensional de conceitos. Como observa Longuenesse, a "relação" relevante na caracterização do juízo como regra "é pensada no contexto do modelo predicativo clássico": "o próprio juízo hipotético é pensado nesse contexto, como a 'relação' de uma predicação com sua condição", condição que é "ela própria expressa na forma de uma predicação" (2001, p. 104). Ora, acrescenta ela, esse "privilégio da predicação explica o lugar predominante, na consideração geral do juízo por Kant, da subordinação de conceitos", enquanto "inclusão da extensão de um conceito na extensão de outro conceito" (2001, p. 104). Ademais, como também repara Longuenesse, a caracterização do juízo como regra vale unicamente para predicações universais - predicações particulares e singulares sendo pensadas como instanciações das mesmas (2001, p. 93, n. 27).

2.2. A predicação desde a perspectiva da lógica transcendental

A par da estética transcendental, a lógica transcendental almeja um saber "que não se ocupa tanto dos objetos, quanto de nosso modo de cognição de objetos, na me­dida em que este seja possível a priori" (B25). Caracterizada por Kant como uma ciên­cia das "regras do pensamento puro de objetos" (A55/B80), ela orienta-se pela questão "como são possíveis os juízos sintéticos a priori?".

A articulação mesma do problema transcendental pressupõe, portanto, o contraste entre juí­zos analíticos e sintéticos. Kant o apresenta partindo da caracterização dos primeiros para, por oposição, caracterizar os segundos. Na Crítica, encontramos quatro formulações distintas da analiticidade. A mais notória apela à noção de inclusão conceitual: diz-se analítico um juízo em que "o predicado B pertence ao sujeito A como algo que está contido (implicitamente) nesse conceito A" (A6/B10). É à luz dessa formulação que devemos entender as restantes. Com efeito, é porque nos juízos analíticos o conceito do predicado está contido no do sujeito que neles "a conexão do predicado com o su­jeito é pen­sada mediante identidade" (A7/B10), podendo-se reconhecer sua verdade "de acordo com o princípio de contradição" (A151/B190); adicionalmente, dado que em tais juízos "o predicado nada acrescenta ao conceito do sujeito", eles devem ser quali­ficados de "explicativos" (A7/B11). Em contrapartida, porque nos juízos sintéticos o predicado "B está fora do conceito [do sujeito] A, embora em ligação com ele" (A6/B10), tal "ligação é pensada sem identidade" (A7/B10); por conseguinte, eles "acrescentam ao conceito do sujeito um predicado que nele não estava pensado", quali­ficando-se como "extensivos" (A7/B11). Uma vez que juízos sintéticos não repousam, nessa medida, sobre o princípio de contradição, cabe esclarecer em que se funda aquela ligação, em especial no caso dos sintéticos a priori.

O critério de inclusão conceitual deve ser interpretado à luz da concepção kantiana do conteúdo de um conceito como uma regra de classificação de objetos formada pela coordenação de notas características, elas próprias conceitos. Desse ponto de vista, é próprio ao conteúdo de um conceito F um critério de distinção entre Fs e não-Fs em geral, critério cujas condições de satisfação podem ser desdobradas, ou analisadas, segundo o mero princípio de não-contradição. Naturalmente, tal análise se faz expressar em um juízo que tem como sujeito lógico o conceito analisado e como predicado uma (ou várias) das condições de satisfação da regra peculiar ao primeiro. Isso explica o privilégio da forma predicativa na exposição kantiana da distinção entre juízos analíticos e sintéticos. De todo modo, é importante notar que os juízos sintéticos a priori sobre os quais Kant concentra sua atenção na Crítica - juízos matemáticos e proposições trans­cendentais - são compreendidos por Kant como juízos categóricos ou predicativos.

Desde já, isso demonstra que a distinção entre juízos analíticos e sintéticos não concerne à forma lógica dos mesmos, mas consiste em "uma distinção entre eles de acordo com o seu conteúdo" (P § 2, AA IV. 266). Não obstante, atentar à concepção kantiana da forma da predicação oferece um quadro em que se pode apreciar a peculiaridade dos segundos (particularmente dos juízos sintéticos a priori) em relação aos primeiros. Com efeito, se o conceito do predicado é parte do conceito do sujeito de um juízo, então a extensão do conceito do sujeito é parte da extensão do predicado - e reside aí funda­mento dos juízos analíticos. Todavia, se são possíveis juízos sintéticos dotados de rigo­rosa universalidade - por conseguinte, se são possíveis juízos sintéticos a priori -, o condicional converso não pode ser aceito.

Em vista disso, o problema dos juízos sintéticos a priori pode ser descrito da seguinte maneira: qual o fundamento da relação entre o sujeito e predicado de tais juízos, em que a extensão do primeiro é parte da extensão do segundo, se as condições que per­fazem a regra de classificação própria ao conteúdo do segundo não pertencem à regra de classificação própria ao conteúdo do primeiro, isto é, se o predicado não está contido no conceito do sujeito?

3. Conceito e Extensão em Kant: mapeamento preliminar

A apreciação da questão acima demanda o esclarecimento da concepção de extensão conceitual em Kant. Nesta seção, ofereço um apanhado de diferentes caracterizações dessa noção no corpus kantiano (2.1); em seguida, apresento diferentes modelos de interpretação da noção na literatura secundária (2.2). Tais modelos serão submetidos a um exame crítico na seção seguinte.

3.1. Uma diversidade de caracterizações

Não são poucas as passagens das Lições de Lógica em que a extensão conceitual é caracterizada como compreendendo a "pluralidade de coisas que está contida sob um con­ceito" (LPh, AA XXIV.554; cf. WL, AA XXIV.911, e LDW, AA XXIV.755). O mesmo tipo de caracterização comparece às Reflexões. Kant anota que "todo conceito enquanto conceito parcial está contido na representação das coisas" e tem, portanto, um conteúdo; por outro lado, "enquanto fundamento cognitivo, i.e., enquanto nota, tais coisas estão contidas sob ele", pos­suindo, desse ponto de vista, uma extensão (R2902, AA XVI.567; cf. L, AA IX.95). Se "o que represento em uma coisa mediante um conceito é a sua nota" (R2277, AA XVI.297; cf. L, AA IX.58), a "nota contém as coisas sob si, e as coisas contêm a nota em si" (R2896, AA XVI.565; cf. L, AA IX.95).

Tais caracterizações, que parecem fazer da extensão de um conceito o conjunto de suas instâncias, aproximando a concepção kantiana de extensão conceitual daquela familiar à tradição analítica, têm igualmente análogos em Leibniz7 7 Nos Novos Ensaios, a extensão ( extension) de uma ideia corresponde aos seus "exemplares", enquanto sua intensão ( intension) corresponde às "formalidades", isto é, aos modos de conceber, que lhes são próprios. Cf. G V.469. e Wolff8 8 Cf. Wolff, 1754, § 27, p. 37. . Elas tampouco são estranhas à primeira Crítica. Tome-se o início do Esquematismo:

Em todas as subsunções de um objeto sob um conceito, as representa­ções do primeiro devem ser homogêneas com o último, isto é, o con­ceito deve conter aquilo que é representado no objeto que há de ser subsumido sob ele, pois é justamente isso que se entende pela expres­são 'um objeto está contido sob um conceito'. (A137/B176)

Subsumir consiste em "discernir [unterscheiden] se algo se encontra ou não sob uma regra dada (casus datae legis)" (A132/B174). Na passagem destacada, Kant des­creve tal discernimento como reconhecimento de que "um objeto está contido sob um con­ceito" (meus itálicos). Ora, a mesma locução é empregada nas Lições de Lógica e nas Reflexões para caracteri­zar a noção de extensão conceitual. Assim, se no início do Esquematismo Kant a emprega como tais textos, parece comprometer-se com a ideia de que a extensão de um conceito concerne aos objetos que o instanciam.

Há momentos, porém, em que Kant parece fazer da extensão de um conceito não simples­mente o con­junto do que de fato o instancia, mas de suas instâncias possíveis (efetivas ou não). Explicando a natureza do juízo infinito, tomando como exemplo A alma é não-mortal, ele escreve:

[V]isto que aquilo que é mortal contém uma parte da inteira extensão dos seres possí­veis [dem ganzen Umfange möglicher Wesen], mas o que não morre a outra, minha proposição nada diz senão que a alma é uma dentre a infinita pluralidade de coi­sas que restam se retiro tudo o que seja mortal. Mas a esfera infinita do possível é, com isso, li­mitada apenas na medida em que o mortal é sepa­rado dela, e alma é posta no espaço restante de sua extensão. (A72/B97-98)

Nessa passagem, Kant apresenta a extensão de um conceito como delimitação da "esfera infinita do possível", o que sugere que ela concerne a tudo o que pode instancia-lo - a "extensão dos seres possíveis" sob o conceito. Aparentemente, é essa a concepção de extensão conceitual envolvida na caracterização da divisão lógica como "determinação de um conceito com respeito a todos os possíveis contidos sob ele [alles Möglichen, was unter ihm enthalten ist]" (L, § 110, AA IX.146).

Mas se há passagens do corpus kantiano que parecem identificar a extensão de um con­ceito ao conjunto de suas instâncias (efetivas ou meramente pos­síveis), há outras em que ela é descrita como um complexo de conceitos. Essa espécie de caracterização, presente em manuais de lógica dos séculos XVII9 9 Cf. Arnauld & Nicole (1992, I.6, p. 52) e XVIII10 10 No manual de lógica empregado por Kant em seu magistério, lemos: "O conjunto de todos os conceitos que estão contidos sob um con­ceito abstrato é a extensão [ Umfang] do mesmo ( sphaera notionis)" (Meier, 1752, § 262, p. 72; XVI: 560). , é igualmente sugerida na Lógica de Kant. Lemos ali que a distinção entre no­tas conceituais coordenadas e subordinadas "concerne à sua conexão uma após ou sob a outra"; diz-se que uma nota está sob ou é subordinada a uma segunda (que é subordi­nada a uma terceira, etc.) quando "representa a coisa apenas mediante a outra", nexo que constitui uma "série" (L, AA IX.59). Semelhante série pode ser considerada em sua direção ascendente ou descendente, con­forme se considere sua formação por abstração ou por determinação lógicas. Através daquela, "emergem conceitos mais e mais supe­riores"; através desta, "conceitos mais e mais inferiores" (L, § 15, AA IX.99). A determinação lógica se dá por síntese de notas características, de sorte que o conceito inferior, se está contido sob o superior, contém em si este último. Como lemos na Lógica, o "conceito inferior não está contido no supe­rior, pois contém mais em si mesmo do que o superior; ele está contido sob o mesmo, pois o superior contém o fun­damento de cognição do inferior" (L, § 13, AA IX: 98). Tal série de subordinação lógica constitui uma hierarquia conceitual per genus et differentiam.

Diferentes caracterizações da extensão conceitual por vezes compartilham o mesmo texto nas Lições de Lógica. Na década de 1770, anota-se que todo "conceptus communis contém sob si todos os conceitos aos quais é comum", para em seguida afirmar-se que ele "é o fundamento de cognição, ou a nota de todas as coisas que estão contidas sob ele" (LB, AA XXIV.257). Já na década seguinte, lemos que um "conceptus communis tem [ ] muitas coisas sob si, i.e., elas podem todas ser repre­sentadas através dele" (LPz, AA XXIV.568), para em seguida lermos que a "relação de con­ceitos subordinados que estão contidos um sob o outro e assim por diante, e que têm sob si o outro e assim por diante, é a sphaera ou extensão de uso [Umfang des Gebrauchs] do conceito" (LPz, AA XXIV.569).

Tais passagens são expressões exemplares da heterogeneidade de descrições da exten­são de conceitos presentes no corpus kantiano. Tal heterogeneidade suscita diver­sos modelos de interpretação da concepção kantiana de extensão conceitual, caracteri­zados abaixo.

3.2. Três modelos interpretativos

Pode-se distinguir na literatura três modelos básicos de interpretação da concepção kantiana de extensão conceitual, os quais denomino objetual (Ob), nocional (N) e híbrido (H). Os dois primeiros privile­giam certo grupo de passagens do corpus kantiano, tendendo a ignorar (ou desqualifi­car) as restantes. O terceiro, por sua vez, pretende abarcar diferentes espécies de carac­terização da extensão de conceitos, fornecendo o que se pretende uma exegese compreensiva da concepção kantiana. Nenhum dos modelos, argumentarei na seção seguinte, é plenamente satisfatório. Na apresentação dos modelos em questão, os associo a diferentes comentadores, disponibilizando evidências textuais para tanto. De fato, na falta de uma análise detalhada de seus textos, tais evidências poderão parecer insuficientes em alguns casos. Não é meu propósito, porém, fornecer uma exegese da literatura kantiana, mas tão-somente construir um mapa de diferentes opções interpretativas e, com isso, organizar a discussão da posição de Kant. Se a despeito das evidências arroladas restar espaço para controvérsia sobre o vínculo de algum comentador a um dos modelos estipulados, ela escapa aos limites deste trabalho.

O que denomino modelo objetual toma a extensão de um conceito como o conjunto dos objetos que o instanciam ou podem instanciá-lo. Ele possui duas variantes. A mais simples é a seguinte:

(Ob1) A extensão de um conceito F equivale ao conjunto dos objetos que efeti­vamente instanciam F, isto é, ao conjunto dos Fs.

É nesses termos que Robinson interpreta a concepção da extensão arti­culada na Lógica, não encontrando dificuldades em atribuir à Crítica a mesma po­sição. De acordo com Kant, escreve, "diz-se dos objetos a que um conceito se refere que eles caem sob o conceito, para formar seu escopo ou esfera (sua extensão); o conteúdo de um con­ceito (intensão) consiste em outros conceitos" (2000, p. 231). Buroker, por sua vez, afirma que "um conceito representa uma característica que tem uma infinidade potencial de instâncias", e aquelas "às quais o conceito efetivamente se aplica são sua extensão, e delas se diz que caem sob o conceito"; por essa razão, a "relação de um predicado com sua extensão é representada na teoria dos conjuntos como a relação entre um conjunto e seus membros" (2006, p. 55).

A segunda variante do modelo objetual consiste na sua ampliação para abarcar não apenas as instâncias efetivas do conceito, mas também suas instâncias meramente possíveis:

(Ob2) A extensão de um conceito F é o conjunto formado pelos Fs efeti­vos e pelos Fs meramente possíveis.

Não encontro na literatura exemplos de autores que subscrevam (Ob2) como a expres­são da concepção kantiana de extensão conceitual. Todavia, há autores associados ao que qualifico de modelo híbrido - analisado abaixo - que veem uma das dimensões da última em termos de (Ob2)

O que chamarei de modelo nocional consiste em tomar a extensão de um conceito exclusivamente em termos dos conceitos que lhe são logicamente subordinados (o que, no caso de Kant, compreende apenas representações gerais):

(N) A extensão de um conceito F equivale ao complexo infinita­mente especificá­vel dos conceitos inferiores a F em uma hierar­quia de subordinação lógica, os quais representam espécies do gênero representado por F.

Na literatura recente, (N) é atribuído a Kant por alguns comentadores importan­tes. Sem considerar as passagens que, vimos, sugerem o contrário, Friedman (1992, p. 68) afirma que a concepção de extensão de um conceito como o conjunto de suas ins­tâncias é "completamente estranha a Kant", pois "a noção de Kant envolve uma relação entre um conceito e outros conceitos - suas espécies, subespécies e assim por diante - ao invés de uma relação entre um conceito e os objetos que caem sob este". Mais recentemente, Allison (2006, p. 345) escreve que "todo conceito, qua conceito, tem tanto uma intensão quanto uma extensão", sendo a primeira "constituída pelas marcas das quais ele é composto" e a segunda "pe­los conceitos que caem sob ele, dos quais ele serve como uma marca". Finalmente, o modelo híbrido. Trata-se, a rigor, de uma família de interpretações motivadas pelo reconhecimento da pluralidade de caracterizações da extensão conceitual no corpus kantiano. Classifico essas interpretações em quatro variantes. A forma mais simples de interpretação híbrida é a seguinte:

(H1) A extensão de um conceito F é composta (i) pelo conjunto das ins­tâncias de F e (ii) pelo complexo dos conceitos inferiores a F em uma hierarquia de subordi­nação lógica.

Essa parece ser a posição de Schulthess, que distingue em Kant duas dimensões da extensão de conceitos, a saber, a "extensão extensional" (extensionalen Extension), como "conjunto de todas as coisas que caem sob um conceito, i.e., que estão contidos sob ele", e a "extensão intensional" (intensionalen Extension), o "conjunto de conceitos que caem sob um conceito" (1981, p. 16). Assim também, Codato afirma que, "do ponto de vista lógico, a relação entre conceitos e coisas, assim como a relação dos conceitos entre si, consiste em uma relação de subordinação (<<conter sob>>)" (2006, p. 129; cf. 2004, p. 149).

A segunda variante a destacar é a seguinte:

(H2) A extensão de um conceito F é composta pelo (i) complexo dos conceitos inferio­res a F em uma hierarquia de subordinação ló­gica e pelo (ii) conjunto das instâncias possíveis (efetivas ou não) de F.

Trata-se, aparentemente, da posição de Prien (2006). Na esteira de Schulthess, ele discerne em Kant dois tipos de extensão conceitual, "extensional" e "intensional"; ao contrário deste, porém, caracteriza a primeira como o "conjunto de objetos possíveis que caem sob um conceito" (p. 83, meus itálicos)11 11 Prien (ibid.) dá a entender que a mesma posição é assumida por Schulthess (1981), o que não é o caso. Agradeço a um(a) dos(as) pareceristas anônimos(as) por chamar-me a atenção para o erro de se classificar Schulthess sob (H 2). . A mesma posição parece ser defendida por Hanna. Empregando 'compreensão' (comprehension) para 'Umfang', ele afirma que "uma compreensão kantiana é uma entidade intensional hí­brida" (2001, p. 136n), composta por (i) "todo conceito mais específico do que aquele conceito" e pelo (ii) "conjunto de todas as coisas atuais ou possíveis que satisfaçam os critérios descritivos da intensão", denominando (i) a "compreensão noci­onal" e (ii) a "compreensão objetual" do conceito (Hanna, 2001, p. 130).

Uma terceira variante do modelo híbrido seria a seguinte:

(H3) A extensão de um conceito F é composta (i) pelo conjunto das ins­tâncias de F, e (ii) pelo complexo dos conceitos inferiores a F em uma hierarquia de subordi­nação lógica, e (iii) pelas repre­sentações singulares das instâncias de F.

Essa parece ser a posição de Longuenesse, quando escreve que "de um ponto de vista estritamente lógico, a noção de extensão em Kant é es­sencialmente herdada de Port-Royal", consistindo "nas representações pensadas sob [o conceito], sejam essas representações universais ou singulares (nos termos de Kant, sejam elas conceitos ou intuições)" (2001, p. 383n), além dos "objetos pensados sob os conceitos combinados em juízos" (2001, p. 87; cf. p. 325).

Todavia, Longuenesse sustenta que a relação entre um conceito e seus inferi­ores concerne exclusivamente à lógica geral, e apenas a ela caberia o título de subordinação; a subsunção, por sua vez, concerne somente à relação entre conceitos e suas instâncias (e as intuições destas), dispondo de estatuto extralógico. Longuenesse afirma que "Kant parece estar confundindo a subordinação de conceitos e a subsunção de objetos sob conceitos", duas relações que "não eram de modo algum distinguidas na lógica do século dezoito, onde a extensão de um con­ceito era indiferentemente os conceitos (espécies) subordinados a um dado conceito ou os in­divíduos subsumidos sob ele"; deveríamos notar, porém, que "ele estava alerta para a diferença entre as duas relações", razão pela qual restringiria "o domínio da lógica que ele conhece a conceitos e subordinação de conceitos" (Longuenesse, 2001, p. 92n).

Essas últimas observações sugerem haver duas concepções distintas de extensão conceitual relevantes à teoria kantiana do juízo. Atribuindo-a a Longuenesse, essa posição é explici­tamente defendida por Anderson (2004), que divisa em Kant um "sentido puramente lógico de extensão", que corresponde à noção de subordinação lógica, e a ideia de "ex­tensões não-lógicas", que compreenderiam "os objetos ou intuições" que, "caem sob um conceito" (Anderson, 2004, p. 512n28). Trata-se aqui de uma quarta variante do que chamei de modelo híbrido da extensão conceitual:

(H4) Um conceito F tem (i) uma extensão lógica, que corresponde ao complexo dos conceitos inferiores a F em uma hierarquia de subordinação lógica, e (ii) uma extensão extralógica, que compre­ende as instâncias de F (ou ainda às represen­tações singulares das mesmas).

Não obstante disponham de certo lastro textual, nenhum dos modelos destacados - em quaisquer de suas variantes - é inteiramente satisfatório. É o que mostro a seguir.

4. Conceito e extensão em Kant: objeções aos modelos destacados

Nenhum dos modelos interpretativos destacados acima é plenamente satisfatório como expressão da concepção kantiana da extensão conceitual, peça fundamental da teoria da predicação pressuposta pela Crítica. Para mostrá-lo, não recorrerei a passagens do corpus kantiano que contenham caracterizações da extensão conceitual refratárias a este ou àquele modelo - a diversidade de caracterizações não recomenda, afinal, esse expediente. Em vez disso, minha estratégia será pautada por um critério de adequação de qual­quer interpretação da concepção kantiana de ex­tensão de conceitos, a saber, sua coerência com compromissos teóricos básicos de Kant - seja da lógica geral como ele a compreendia, seja da lógica transcendental articulada na primeira Crítica. O procedimento, que pressupõe a coerência interna da visão kantiana do juízo, tem caráter nega­tivo: caso certo modelo seja incompatível com algum daqueles compromissos, deve ser rejeitado. Meu exame se ocupará, nesta ordem, de (Ob), (N) e (H).

4.1. Objeções ao modelo objetual (Ob)

Dois princípios da lógica geral assumidos por Kant - com repercussões na lógica trans­cendental - são incompatíveis com (Ob1). O primeiro é o princípio da relação inversa, enunciado da seguinte maneira na Lógica: "O conteúdo e a extensão de um con­ceito se en­contram em uma relação inversa um com o outro. Com efeito, quanto mais um conceito contém sob si, menos contém em si, e con­versamente" (L, § 7, AA IX.95). A atribuição de magni­tude à extensão ou ao conteúdo conceituais só é lícita, claro, com­parativamente: um conceito tem uma extensão ou um conteúdo "maior" do que outro conceito relacionado com ele em uma hierarquia de subordinação lógica (cf. L, § 13, AA IX.98). Eis, por­tanto, o princípio em formulação mais precisa: necessariamente, para quaisquer concei­tos F e G, se F é logica­mente subordinado a G, a ex­tensão de G é mais ampla do que a de F e o conteúdo de F é mais amplo do que o de G. No que toca à magnitude comparativa de conteúdos conceituais, o princípio é facilmente apreendido se entendermos o conteúdo do conceito como coordenação de notas características: se a série descendente na subordina­ção lógica forma-se pela adição de notas ao conceito superior, os inferi­ores comportarão todas as notas deste mais as notas adicionadas. No que toca à magnitude comparativa de extensões, (Ob1) a interpretaria assim: a extensão de G é maior do que a de F se o primeiro tem mais instâncias do que o segundo. Mas é justamente por isso que (Ob1) viola o princípio da relação inversa.

Tome-se, com efeito, dois conceitos F e G, tais que F representa uma espécie do gênero repre­sen­tado por G. Considere-se, então, duas situações possíveis: na primeira, F e G são ins­tanciados exatamente pelos mes­mos objetos; na segunda, F e G são desprovidos de quaisquer instân­cias.12 12 Como exemplo da primeira situação, considere-se os respectivos conjuntos de instâncias atuais dos conceitos homo e homo sapiens; como exemplo da segunda, os respectivos conjuntos de instâncias atuais dos conceitos dinosauria e theropoda. Suponha-se, porém, que se subscreva (Ob1). Nesse caso, em ambas as situações mencionadas as extensões de F e G são rigorosamente idênticas. Essa consequência é incompatível com o princípio da relação inversa, expli­citamente subscrito por Kant. Ele não pode, portanto, aceitar (Ob1).

O segundo princípio, vinculado ao primeiro, é apresentado deste modo na Lógica: "Há um gênero que não pode, por sua vez, ser espécie, mas não há espécie que não seja capaz de, por sua vez, ser um gênero" (L, § 11, IX.97). A tese de que a abstração lógica deve enfim chegar a um conceito su­premo - qualificada na Crítica de "lei lógica dos gêneros" (A653/B681) ou princípio "da homogeneidade" (A658/B686) - é recorrente em Kant. A contrapartida, que exclui que a divisão lógica deva encontrar um termo necessário - recusando a possibilidade de espécies ínfimas - é conse­quência direta da generalidade própria à forma da representação conceitual. Trata-se da "lei lógica das espécies" (A654/B682), ou princípio lógico "da especificação" (A658/B686), que subjaz a um princípio regulativo da razão, de caráter transcendental, que informa a demanda de sis­tematicidade do conhecimento empírico - o princípio da di­versidade das formas natu­rais (A662/B690 passim; KdU, AA V.179-80).

Mas vejamos. A identidade de um conjunto é determinada por seus membros; as­sim, de acordo com (Ob1) a extensão de um con­ceito é constituída por suas instâncias. Todavia, o princípio da especificação prescreve que a exten­são de um conceito seja infinita­mente divisível, o que significa que ela é constituída apenas por extensões menos am­plas, mas não pelos indivíduos que porven­tura o instanciem. Portanto, sob pena de in­consistência, o compromisso de Kant com o princípio - que, embora pertença à lógica geral, tem repercussões na filosofia transcendental - o obriga a rejeitar (Ob1).

Mas consideremos (Ob2), que implica atribuir a Kant um compromisso com a noção de possibilia. Em uma formulação genérica e preliminar, tal compromisso equivale a afirmar que há indivíduos meramente possíveis, isto é, possíveis mas não existentes. Decerto, se isso quer dizer que existem seres que não existem, a afirmação é contraditória. Se excluímos desde já o caminho de um realismo modal - segundo o qual possibilia são perfeitamente existentes, embora não no mundo atual - uma alternativa seria sus­tentar que a formulação mobiliza dois sentidos de 'ser', o mero subsistir na concepção e a existência efetiva do objeto concebido. Dir-se-ia, então, que possi­bilia "são" apenas no primeiro sentido, e que as entidades propriamente existentes formam apenas um sub­conjunto de tudo o que - dotadas de uma propriedade adicional, a existência. Co­mumente associada a Meinong, a ideia subjaz à concepção da exis­tência como "com­plemento da possibilidade" em Wolff (1730, § 174, p. 143).

Nos "Postulados do pensamento empírico em geral", Kant afirma o seguinte sobre tal concepção: "Não reconheço essa adição como possível. Pois aquilo que deveria ser adici­onado ao possível seria impossível" (A231/B284). Opaca, a afirmação pode ser lida como senha de uma reductio. O que se deve adicionar (por hipótese) ao meramente pos­sível para torná-lo efe­tivo é, ele próprio, possível ou impossível. Se impossível, não é algo que possa cumprir o papel destinado. Se possível, ou se trata de algo que não apenas é possível, mas efetivo, ou de algo meramente possível, mas não efetivo. No primeiro caso, trata-se de algo que de­manda, dada a suposição inicial, a complementação do meramente possível - donde se segue circularidade ou regressão ao infinito. No se­gundo caso, aquilo a ser adicionado em nada pode con­tribuir para a conversão do possí­vel em efetivo, por se tratar de mera possibilidade (algo que não existe, mas pode exis­tir).

É na mesma direção que Kant explora, na seção da Dialética dedicada ao argumento ontológico, o exemplo do conceito cem táleres. Kant afirma que "ao pensar o objeto desse conceito como dado em absoluto", isto é, como existente, "nada se pode acrescentar ao conceito, que apenas exprime a possibilidade" (A599/B627). Seu argumento tem novamente a forma de uma reductio. Pois suponha-se que cem táleres efetivos contenham mais do que cem táleres possíveis. Nesse caso, o conceito cem táleres, que "apenas exprime a possibilidade" do objeto, "não expressa­ria o objeto inteiro e, por­tanto, não seria um conceito adequado dele" (ibid.). Embora a existência de cem táleres em meu poder faça diferença para minhas fi­nanças, ela nada acrescenta ao conteúdo do conceito cem táleres. Como escreve Kant, "quando penso uma coisa [...] nada é acres­centado à coisa quando adicionalmente afirmo que essa coisa é. Pois do contrário o que existiria não seria o mesmo que pensara em meu conceito" (A600/B628). Fica evidente, assim, a incompatibilidade de (Ob2) com a concepção kanti­ana de existência.

4.2. Objeções ao modelo nocional (N)

Como vimos, (Ob1) admite a possibilidade de conceitos coextensivos, mas de conteúdo diverso. Dado o modelo nocional, entretanto, se F e G têm a mesma extensão, F e G possuem rigorosamente o mesmo conteúdo - o que equivale a dizer que 'F' e 'G' designam o mesmo conceito. A consequência baseia-se no seguinte. De acordo com o modelo nocional, a extensão de um conceito consiste no complexo de seus inferiores em uma hierarquia de subordinação lógica. Ora, em tal hierarquia, os inferiores de dado conceito o têm necessariamente como parte de seu conteúdo, entendido como o conjunto de suas notas constituintes; em contrapartida, se um conceito é parte do conteúdo de outro, este último é logicamente subordinado a ele. Assim, F* está contido sob F se e somente se F está contido em F*. Dado o modelo nocional, portanto, se F e G possuem a mesma extensão (se os seus respectivos complexos de conceitos inferiores são equivalentes), todo conceito que contém F contém G e vice-versa. Essa uma condição necessária da coextensionalidade (nos termos do modelo em questão) entre conceitos.

Mas suponhamos, por hipótese, que F e G possuam conteúdos diversos - que sejam, a rigor, conceitos diferentes. Se há alguma relação de subordinação lógica entre os dois, obviamente seus respectivos complexos de conceitos inferiores não são equivalentes, de sorte que não possuem a mesma extensão à luz de (N). Se, porém, não há qualquer relação de subordinação lógica entre eles, segue-se o mesmo. Com efeito, tome-se qualquer nota H coordenável com F e com G na determinação lógica de ambos. A coordenação entre F e H resulta no conceito F* logicamente subordinado a F, ao passo que a coordenação entre G e H resulta no conceito G* logicamente subordinado a G. Ora, dada a diferença de conteúdo conceitual entre F e G, assumida por hipótese, os conceitos F* e G* diferirão sob o exato aspecto relativamente ao qual F e G diferem: não será o caso que todo conceito que contém F contém G e vice-versa. Nessa medida, os respectivos complexos de conceitos inferiores de F e G não serão equivalentes. Ora, à luz do modelo nocional isso significa que F e G possuem diferentes extensões.

Uma vez pressuposto o modelo nocional, portanto, se F e G têm conteúdos diferentes, F e G diferem em suas respectivas extensões. Por contraposição, se F e G são coextensivos, coincidem em conteúdo. O modelo nocional compromete-se, pois, com a tese de que identidade de extensão conceitual implica identidade de conteúdo. Resta indagar se Kant está em posição de acolher semelhante tese.

Kant qualifica conceitos coextensivos de "alterná­veis" (Wechselbegriffe) ou "recípro­cos" (reciproci) (L, AA IX.98; WL, AA XXIX.912). A denominação é emprestada de Meier (1752, § 262, p. 72; AA XVI.561), mas o critério subjacente é tributário, ao menos parcialmente, de como Leibniz caracteriza termos ou conceitos "coinciden­tes": "A coincide com B se um pode ser substituído pelo outro preservando a verdade [salva veritate], ou se, ao analisar-se cada um substituindo os termos por seus valores (suas definições), tem-se em ambos o mesmo, no sentido formal da palavra [formaliter]" (C 362). A caracterização leibniziana, pode-se ver, mobiliza dois critérios: de um lado, a intersubstitubilidade salva veritate; de outro, a identidade de defini­ção, por conseguinte de conteúdo. Essa duplicidade talvez possa ser reportada a uma tensão no pensamento de Leibniz, como veremos. Quanto a Kant, é lícito supor que ao qualificar conceitos com mesma extensão de alternáveis ou recíprocos ele tenha em vista, ao menos primari­amente, sua intersubstitubilidade. Como lemos na Logik Blomberg, dado um par de conceitos recíprocos, "cada qual pode tomar o lugar do outro com­pletamente" (LB, AA XXIX.261).

A questão relevante, aqui, é se Kant também vincula a coextensividade de conceitos) à identi­dade de seu conteúdo. A mera consideração dos textos em que ele lança mão da noção de reciproci­dade conceitual não permite, po­rém, determiná-lo com segurança. Com fre­quência, ele dá como exemplos de reciproci­dade termos que naturalmente reputaríamos como expressões de conceitos diferentes13 13 'Validade objetiva' e 'validade universal' ( P, § 19, AA IV.298), ' ens realissimum' e ' ens necessarium' ( R6297, AA XVIII.564; A789/B817), 'contin­gente' e 'finito' ( R2886, AA XVI.561), 'necessário' e 'inalterável' ( LDW, AA XXIV.755). ; em pelo menos um caso, porém, ele parece sustentar que se trata de expressões de um mesmo conceito14 14 "[L]iberdade e autolegislação da vontade são ambas auto­nomia e, por conseguinte, conceitos recíprocos, e [ ] podem quando muito ser usados apenas com o propósito lógico de redu­zir representações apa­rentemente diferentes do mesmo objeto a um único conceito" ( GMS, AA IV.450). . Mais do que colecionar exemplos, devemos identificar compromis­sos teóricos explícitos de Kant, cuja conside­ração acarrete uma resposta à questão em pauta.

Mostrarei que Kant compromete-se explicitamente com a possibilidade de conceitos coextensivos mas de conteúdo diverso e, com isso, não pode aceitar (N). Para esse fim, proponho que consideremos o que ele tem a dizer sobre a relação entre os conceitos figura triangular e figura trilátera. Será oportuno, quanto a isso, comparar sua posição com a de Leibniz. Ambos os autores reco­nhecem que necessariamente toda figura com três ângulos ("triangular") é uma figura com três lados ("trilátera"), de sorte que os dois conceitos são intersubsti­tuíveis salva veritate e, portanto, coexten­sivos. Ademais, ambos reconhecem tais con­ceitos como notas do conceito ordinaria­mente expresso por 'triângulo', vale dizer, o conceito figura trilátera e triangular, que designarei como triângulo* para prevenir con­fusões.15 15 Leibniz usa 'triângulo' para o conceito figura triangular e 'trígono' para o conceito figura trilátera e triangular (o que ordinariamente denominamos 'triângulo'): "O trilátero [ Trilaterum] como tal menciona lados; o triângulo [ triangulum], ângulos. O trígono [ Trigonum], qua triângulo, possui três ângulos iguais a dois retos; qua trilátero, possui dois lados sempre maiores do que o terceiro" ( apud Mates, 1974, p. 108). Nessa passagem, é nítida a distinção entre o conceito figura triangular, designado por 'triangulum', e o conceito triângulo* (observada a estipulação terminológica acima). Quanto a Kant, lemos na Wiener Logik que "um triângulo é uma figura que consiste de 3 lados e 3 ângulos internos" (AA XXIV.853). É com isso em vista que devemos ler esta conhecida passagem da primeira Crítica: "Dê a um filósofo o conceito de um triângulo e deixe que descubra ao seu modo como a soma de seus ângulos se relaciona com um ângulo reto. Ele nada tem senão o conceito de uma figura, a qual é encerrada por três linhas retas, e nela [ in ihr] o conceito de igual número de ângulos" (A716/B744). Naturalmente, o que Kant denomina aqui um 'triângulo' não corresponde simplesmente ao conceito figura triangular, mas ao que estipulamos como o conceito triângulo*. O ponto escapa a Chenet (1994, p. 182), que vê contradição entre a passagem da Crítica e a d' Os Progressos, bem como a Hanna (2001, p. 139), que a emprega como base para sustentar, erroneamente, que Kant toma a proposição Figura triangula est trilatera como analítica. A questão que anima a comparação entre os dois é a seguinte: a par o fato de figura triangular e figura trilátera serem intersubstituíveis salva veritate, e de ambos estarem contidos em triângulo*, qual a relação de conteúdo entre eles?

Nos Novos Ensaios, Leibniz escreve que "ao dizermos O triângulo e o trilátero não são a mesma coisa, en­ganar-nos-íamos, dado que, considerando bem, vê-se que os três lados e os três ângulos vão sempre juntos" (G V.343). Ele sublinha, assim, o caráter coextensivo dos conceitos figura triangular e figura trilátera. Todavia, ele se apressa em reconhecer: "pode-se sempre dizer, em abstrato, que o triângulo não é o trilá­tero, ou que as razões formais do triângulo e do trilátero não são as mesmas [ ]. São relações diferentes de uma e a mesma coisa" (ibid.). Isso significa que a diferença entre os dois conceitos reside, não na matéria da representação, mas na forma de representar - em suas "razões formais" -, de sorte que, embora coextensivos, eles têm intensões ou con­teúdos diversos. Como escreverá Leibniz em anotação sobre uma carta de des Bosses, em 1712: "Termos diferem de Entes, por exem­plo, o Triângulo e o Trilátero são um e o mesmo ente, mas são termos diferentes e dife­rem formalmente [formaliter], não materialmente [materialiter]" (G II.471). À luz desses textos, diremos que para Leibniz a identidade extensional não implica identidade intensional, o que o aparta de (N).

Todavia, há uma notória ambivalência sobre a questão em Leibniz, motivo de controvérsia na literatura. Em um manuscrito não-datado, por exemplo, lemos: "Ser trilá­tero está em triângulo, e ser triângulo está em trilátero. Logo, triângulo e trilátero coin­cidem. Bem como ser onisciente e ser onipotente." (G VII.241). Ora, que F esteja con­tido em G significa que F é parte do conteúdo de G. Dado o caráter antissimétrico da relação ser parte de, se figura triangular está em figura trilátera e figura trilátera está em figura triangular, segue-se que figura triangular e figura trilátera têm o mesmo conteúdo e são, portanto, o mesmo conceito. A passagem sustenta que essa identidade intensional implica a identidade extensional - sem comprometer-se explicitamente, é verdade, com a implicação conversa. Mas tal compromisso é evidente nos Elementa Calculi, de 1679: "Denomino coincidentes dois termos que contêm um o outro e não obstante são iguais. Por exemplo, o conceito de um triângulo coincide, com efeito, com o conceito de um trilátero - isto é, tanto quanto está contido em um está contido no outro" (C 52).

Não obstante o conflito entre os textos, gostaria de frisar o derradeiro compro­misso de Leibniz com a tese de que a identidade extensional implica identidade intensi­onal, dada a doutrina praedicatum inest subjecto, incorporada por Leibniz desde pelo menos o Discurso de Metafísica, de 1686 (bem antes dos Novos Ensaios, dos primeiros anos do século seguinte). De acordo com sua formulação mais famosa, de carta de Leibniz a Arnauld em 1696, "em toda proposição afirmativa verdadeira [ ] o conceito do predicado está sempre de alguma maneira incluído no do sujeito" (G II.56). Ora, se F e G têm a mesma extensão, então todo F é G e todo G é F. À luz da doutrina leibni­zi­ana, porém, se todo F é G, G está contido em F; em contrapartida, se todo G é F, F está contido em G. Mas se G é parte do conteúdo de F e F é parte do conteúdo de G, segue-se que F e G têm o mesmo conteúdo e são, portanto, o mesmo conceito. Dada, pois, a doutrina de Leibniz, a identidade de extensão implica a de conteúdo: esta é condição necessária daquela.

As coisas se passam diferentemente com Kant. Tome-se o que ele escreve sobre a relação entre os conceitos figura triangular e figura trilátera n'Os Progressos da Metafísica:

Juízos sintéticos são os que, através de seu predicado, ultrapassam o conceito do sujeito, na medida em que o primeiro contém algo que não era pensado no conceito do último: por exemplo, <<todos os corpos são pesados>>. Ora, não perguntamos, aqui, se o predicado está ou não sempre ligado ao conceito do sujeito; apenas dizemos que nesse conceito não ocorre pensar se o predicado deve necessaria­mente ser-lhe acrescentado. Assim, por exemplo, a proposição Toda figura trilátera possui três ângulos (figura trilatera est triangula) [é] uma proposição sintética. Embora, com efeito, se penso três linhas en­cerrando um espaço, seja impossível que três ângulos não sejam ali formados, ainda assim não penso, nesse conceito do trilátero, a incli­nação recíproca desses lados, isto é, o conceito de ângulo não é real­mente pensado nele. (AA XX.322-3)

Kant começa por frisar o essencial da noção de juízos sintéticos a priori: porque são a priori, neles o predicado deve necessariamente ser acrescentado ao conceito do sujeito; porque são sintéticos, esse predicado "contém algo que não era pensado no conceito do último". Assim deve ser entendido, segundo Kant, a proposição Toda figura trilátera possui três ângulos, de sorte que a toda figura trilátera convém necessariamente a pro­priedade de possuir três ângulos, embora o conceito triangular não esteja contido em figura trilátera (nos termos propostos anteriormente, a regra de classifica­ção própria ao conteúdo deste não tem aquele entre suas condições de satisfação).

Ora, não há dúvida de que Kant subscreve a conversa da proposição acima, to­mando Toda figura triangular é trilátera igualmente como sintética a priori. De acordo com sua concepção da forma lógica da predicação, proposições da forma Todo F é G representam a extensão de F como parte da extensão de G. Mas se a extensão de F é parte da extensão de G, e a extensão de G é parte da extensão de F, segue-se que as respectivas extensões de F e G são idênticas. Por conseguinte, sua concep­ção da forma predicativa, a par do assentimento às duas proposições em questão, compromete Kant com o ca­ráter coextensivo de figura triangular e figura trilátera.

Em contrapartida, por sustentar o caráter sintético das duas proposições, Kant deve aceitar que figura triangular e figura trilátera têm conteúdos diferentes. Assim, a conjunção entre sua concepção da forma lógica da predicação e sua tese do caráter sintético a priori da geometria acarreta o compromisso de Kant com a possibilidade de conceitos coextensivos mas de conteúdo diverso.16 16 Naturalmente, o caso pode ser generalizado para uma gama de conceitos e proposições da geometria, e parece igualmente emergir da concepção kantiana da aritmética. Quanto ao último ponto, cf. carta de Kant a Johann Schultz em novembro de 1788 (AA X.555). As peculiaridades da teoria transcendental da aritmética escapam, porém, ao escopo deste trabalho. Vimos que (N) importa na negação dessa possi­bilidade. Portanto, Kant deve rejeitar (N).

O resultado pode ser generalizado para além dos limites da filo­sofia kantiana da matemática. Considere-se um juízo qualquer da forma Todo F é G. À luz da concepção kan­tiana da predicação, vimos, Todo F é G representa a subordinação da ex­tensão de F à de G. Em outras palavras, se o juízo é verdadeiro, a extensão de F é parte da esfera de G. De acordo com (N), porém, a extensão de um conceito é o com­plexo de seus inferiores por subordinação lógica, deixando-se representar por uma hie­rarquia per genus et differentiam. Pressuposto (N), pois, tem-se que a extensão de F é o complexo dos infe­riores de F - e analogamente com G. Dada a conjunção entre (N) e a concep­ção kantiana da forma da predicação, portanto, se o juízo é verdadeiro, então o com­plexo dos inferio­res de F, seu sujeito lógico, é parte do complexo dos inferiores de G, seu predicado - e isso significa que o próprio conceito do sujeito é parte da extensão do predicado, sendo-lhe logicamente subordinado.

Ora, se F é logicamente subordinado a G, então G é nota constitutiva de F. Portanto, a conjunção entre (N) e a concepção kantiana da forma predicativa, junto com os princípios constitutivos da subordinação lógica, implica que é condição de verdade de juízos da forma Todo F é G que o conceito do predicado, G, esteja contido no con­ceito do su­jeito, F. Nos termos de Kant isso significa que todo juízo verdadeiro da forma Todo F é G é uma verdade analítica - nos termos de Leibniz, um juízo em que o predicado inere ao sujeito. Obvia­mente, a consequência é incompatível com inteligibilidade mesma do problema trans­cendental, sem contar sua pretendida solução por Kant. Se a acolhêssemos, não haveria espaço sequer para a questão "Como são possí­veis os juízos sintéticos a priori?". Logo, Kant compromete-se com a rejeição de (N). Um corolário importante, deve-se sublinhar, é que a subordi­nação de conceitos que caracteriza a forma predicativa lógica da predicação não deve ser assimilada à subordinação lógica, embora a subordinação lógica de F a G implique que todo F é G.

Talvez se objetasse ao argumento acima da seguinte maneira. Juízos sintéticos da forma Todo F é G, diria o objetor, importam na inclusão G em F a título de nota sintética; incorporado por fim em F, G passaria a valer como sua nota analítica.17 17 Notas analíticas "são conceitos parciais do meu conceito efetivo (notas que já penso nele)", ao passo que notas sintéticas "são conceitos parciais do conceito completo " meramente possível (que devem de antemão advir mediante uma síntese de diversas partes)" ( L, AA IX.59). Portanto, se de início G não é represen­tado como contido no conceito F, ao subordinar a extensão de F à de G o sujeito acaba por representar G em F.18 18 É o que sugere Codato ao dizer que em um juízo sintético da forma Todo S é P "a representação de P, como conceito parcial do conceito S, exige justamente que se vá além de S. Nesse caso, P não se encontraria previamente incluído na intensão de S, mas lhe seria acrescentado com base em uma relação externa" (2004, p. 151). Embora Codato (2004, 2006) subscreva (H 1), é lícito reportar-se a ele aqui, porque (H 1) envolve (N). Presumivelmente, isso reservaria um lugar para juízos sintéticos da forma Todo F é G no interior de um quadro teó­rico que combina (N) com uma concepção da forma lógica da predicação como modo de subordinação extensional de conceitos.

A objeção repousa, porém, sobre uma ambiguidade que oculta o cerne do problema kantiano do sintético a priori, deixando intocado a dificuldade que o argumento anterior representa para a atribuição de (N) a Kant. Mesmo admitindo que um juízo sintético da forma Todo F é G redunda na coordenação de G com as notas que perfazem o conteúdo de F, isso não faz de F um inferior de G, mas tão-somente do conceito que resulta dessa coordenação, digamos H, não importando que F e H venham a ser expressos pela mesma palavra.19 19 É isso, em essência, que diz Schulze na sua recensão (endossada por Kant) do segundo volume do Philosophisches Magazin de Eberhard: "Deixe-se que alguém coloque no conceito do sujeito uma diversidade tal de notas que o predicado que intenta provar do sujeito possa ser derivado de seu conceito mera­mente segundo o princípio de contradição. Esse artifício de nada lhe ajuda. A Crítica concede-lhe tal juízo analítico sem maiores disputas, mas levanta uma ques­tão acerca do próprio conceito do sujeito e pergunta: como se chegou a incluir essa di­versidade de notas no conceito" (AA XX.408-9). Nas palavras da resposta do próprio Kant a Eberhard, em Sobre uma Descoberta, a questão que se põe é "que tipo de fundamento pode haver que, à parte o que é essencialmente próprio ao meu conceito e eu já sabia, me dá a conhecer algo mais, e o faz necessariamente, como um atributo que pertence à coisa, embora não contido em seu conceito" ( ÜE, AA VIII.239). Tal atributo é qualificado por Kant de sintético, em contraste com um atributo analítico de um conceito, vale dizer, uma nota de uma nota do último. "Se é dito", escreve Kant, "de uma proposição que ela tem por predicado um atributo do sujeito, ninguém ainda sabe se ele é analítico ou sintético ( ÜE, AA VIII.230). Dada uma proposição a priori, em que o predicado necessariamente convém ao sujeito, ou o "fundamento de seu predicado deve ser buscado no sujeito de acordo com o princípio de contradição", sendo a proposição analítica, "ou não pode ser derivado do conceito do sujeito por aquele princípio, em cujo caso, unicamente, o atributo é sintético" ( ÜE, AA VIII.241-2).

4.3. Objeções ao modelo híbrido (H)

O exame de (Ob1), (Ob2) e (N) conduziu-me à sua rejeição como expressão da concep­ção de extensão conceitual com que se compromete Kant em seu período crítico. Não teríamos aí uma razão para adotar alguma variante do modelo híbrido? Porque as passagens que motivam os modelos anteriores não devem ser ignoradas - mas os modelos que privilegiam algumas delas devem ser rejeitados -, pode parecer que sim. Não é o caso, porém.

Em (H1), um conceito teria duas relações distintas com itens de sua extensão: alguns desses itens seriam especificações do conceito; outros, instanciações. Isso parece ser um problema, por frustrar o tipo de uniformidade que se espera de uma noção lógica. De todo modo, está claro que (H1) não está imune às dificuldades diagnosticadas em (Ob1) e (N). Pelo contrário, expõe-se às dificuldades de ambos: se um dos modelos tem uma consequência incompatível com compromissos teóricos de Kant, a conjunção do que quer que seja com a noção de extensão conceitual a ele associada preserva essa consequência. Se as posições de Schulthess (1981) e Codato (2004, 2006) podem ser assimiladas a (H1), o argumento recomenda sua rejeição.

Pode-se especular que a motivação de (H2) não seja apenas abarcar a pluralidade de caracterizações da extensão conceitual em Kant. Ao estipular uma das dimensões da extensão de um conceito como o conjunto dos possíveis sob o mesmo, não é improvável que seus defensores tenham em vista as dificuldades de (Ob1). Ainda assim, (H2) não está imune aos problemas de (Ob2). Nessa medida, se (H2) representa as interpretações de Prien (2006) e Hanna (2001), elas devem ser rejeitadas.

(H3) concebe a extensão de um conceito como o conjunto de seus inferiores por subordinação lógica e de suas instâncias e das representações singulares (intuições) das mesmas. Desde já, é pouco claro que representações singulares ou intuições, qua episódios mentais, possam comparecer à extensão de conceitos ao lado dos objetos que representam. Com efeito, isso sujeitaria a extensão conceitual às contingências da representação de objetos particulares por sujeitos particulares em circunstâncias particulares. Independentemente dessa dificuldade, porém, (H3) não está imune aos argumentos contra (N) e (Ob1) - tampouco do argumento contra (Ob2), caso se interprete a noção de instância de um conceito nos termos deste último. Se a posição de Longuenesse equivale a essa variante do modelo híbrido, está sujeita a tais problemas e deve ser rejeitada.

Mas quanto a (H4)? Nesse caso, não se trata de ver na extensão de um conceito um composto de noções e coisas, mas de atribuir uma equivocidade ao uso kantiano de 'Umfang' para designar a extensão conceitual. Da perspectiva da lógica geral, a extensão de F compreenderia o complexo dos conceitos logicamente subordinados a F; da perspectiva da lógica transcendental, ela cobriria todos os Fs. A alternativa é inane, contudo. Os princípios ou pressupostos da lógica geral são válidos para todo pensamento possível, de sorte que (H4) não escapa das dificuldades de (N). Dada a concepção kantiana da forma predicativa como forma de subordinação extensional de conceitos, se do ponto de vista da lógica geral a extensão de um conceito consistisse no conjuntos de seus inferiores, isso seria razão para excluir a possibilidade dos juízos sintéticos a priori. Se, na esteira de Anderson (2004), é lícito vincular a interpretação de Longuenesse (2001) a (H4), isso recomenda sua rejeição.20 20 A favor de Longuenesse, talvez se redarguisse que a rejeição de sua interpretação sob (H 3) ou (H 4) depende de uma leitura parcial da sua obra. Como se notou anteriormente (ver nota 5 acima), deve-se igualmente a Longuenesse ter chamado a atenção para a caracterização kantiana do juízo como regra, oferecendo do mesmo uma visão mais complexa do que sua mera caracterização como subordinação extensional de conceitos. Nesse contexto, é posto em relevo o papel da remissão do juízo sintético à intuição como condição última da asserção do conceito de seu predicado em relação ao conceito de seu sujeito - estabelecendo, com isso, uma ligação extralógica entre suas extensões. Todavia, a consideração do juízo como regra não isenta Longuenesse dos argumentos acima. Como ela mesma sublinha (vide novamente a nota 5 acima), a concepção do juízo como regra não substitui, mas pressupõe, o modelo predicativo clássico - articulado por Kant em termos de subordinação (extensional) de conceitos. Ademais, mesmo quando discute a concepção do juízo como regra, Longuenesse persevera em asserções que a tornam vulnerável às críticas feitas aqui. Com efeito, no curso dessa discussão, ela dirá que o juízo categórico da forma Todo A é B "parte da coisa, a subsume sob o conceito A e, por meio desse conceito A, a subsume sob um conceito B que contém o primeiro conceito sob si" (2001, p. 104). Ora, se é próprio a qualquer juízo da forma Todo A é B afirmar que o predicado contém o primeiro conceito sob si, qualquer juízo verdadeiro dessa forma deve ser reconhecido como analítico - tão logo se reconheça, com Kant, que A está contido sob B se e somente se B está contido em A. Essa é a lição do argumento contra (N). Espero ter mostrado que a inteligibilidade do problema do sintético a priori exige não se assimilar a subordinação de conceitos na predicação universal afirmativa à subordinação lógica em hierarquias per genus et differentiam. A despeito da riqueza e da importância de seu trabalho sobre Kant, não creio que Longuenesse tenha satisfeito a contento tal exigência. Necessitamos de uma reconstrução da noção kantiana de extensão conceitual que seja unívoca, acomode suas diferentes descrições no corpus kantiano e, ademais, se mostre capaz de compatibilizar a possibilidade de juízos sintéticos a priori e a concepção da forma lógica do juízo em geral como subordinação extensional de conceitos. A alternativa a ser esboçada na seção seguinte tem esse propósito.

5. Esboço de uma alternativa, à guisa de conclusão

Distingui acima três modelos de interpretação da noção kantiana de extensão conceitual, situando-os na literatura relevante: (Ob), (N) e (H). Tais modelos - e suas varian­tes, no primeiro e terceiro casos - foram submetidos a um exame crítico que se pautou pela avaliação de sua compatibilidade com compromissos teóricos importantes de Kant, quer aqueles concernentes à sua visão da lógica geral, quer os peculiares ao seu projeto de uma lógica transcendental. Semelhante exame conduziu à rejeição desses modelos para uma exegese adequada da noção em pauta - sob o pressuposto da consistência in­terna da concepção kantiana do entendimento.

Essa rejeição deve ganhar credibilidade com a apresentação de uma alternativa imune aos problemas diagnosticados nas interpretações anteriores, mas capaz de absorver as passagens do corpus kantiano que as motivam. Ao con­cluir o presente artigo, lanço uma hipótese de trabalho nesse sentido. O ponto de partida é o vínculo entre as noções de conceito e possibilidade. No apêndice à Dialética Transcendental, Kant o apresenta mediante a metáfora do horizonte lógico, ao afirmar que se pode considerar cada conceito como um ponto que, como o ponto de vista de um ob­servador, tem seu horizonte, isto é, uma pluralidade de coisas que po­dem ser re­presen­tadas e como que avistadas a par­tir dele" (A658/B687). A passagem sugere uma interpreta­ção da concepção kanti­ana de extensão conceitual distinta das discutidas até aqui. Em uma formulação prelimi­nar, trata-se de tomar a extensão de um con­ceito, não como o conjunto dos objetos que o instanciam ou dos seus inferiores por subordinação lógica - tam­pouco, a propósito, como a união de ambos -, mas como o universo do que é represen­tável por seu intermédio; isto é, do que pode instanciá-lo.

Decerto isso parece evocar a ideia de possibilia e, com ela, (Ob2). Ora, se é ver­dade que Kant a recusa, ele ainda assim insiste em uma relação in­terna entre as no­ções de conceito e possibilidade21 21 Cf. A225/B273, A599/B627, KdU, § 76, AA V.402. . A metáfora do horizonte lógico pode ser vista, justamente, como uma tentativa de elucidar tal relação. Um hori­zonte é constituído por um ponto de vista, independentemente da existirem coisas discerníveis em seu interior - e de, existindo, serem elas discernidas. Assim também, um conceito delimita em seu conteúdo o que é lícito tomar como sua instância, independentemente de ter instâncias e de, no último caso, serem estas reconhecidas como tais.

A possibilidade aqui envolvida tem caráter normativo, dizendo respeito ao âmbito do que vale como correta aplicação do conceito, à parte a questão de sua instanciação ou aplicação efetivas - assim como uma regra legal pres­supõe a tipificação de condutas à qual prescreve certa consequência jurídica, inde­pendente­mente da ocorrência das mesmas. É assim, creio, que devemos compre­ender algumas outras metáforas kanti­anas na caracterização da extensão con­ceitual, descrita como seu "cír­culo de apli­cação" (LDW, AA XXIV.755), ou "extensão de aplicação" (R2872, AA XVI.554). Em vista disso, e considerando a espécie de possibilidade aqui delineada, recomendo que se in­terprete a extensão de um conceito, em Kant, como seu âmbito de aplicação possível. Tal interpretação promete absorver as passagens do corpus kantiano que motivam (Ob) e (N), sem estar exposta às dificuldades dos mesmos - as quais ensejam, por sua vez, (H). Por um lado, passagens que motivam (Ob1), ca­racterizando a extensão de um conceito como a pluralidade de coisas sob este, de­vem ser entendidas como uma remis­são elíptica ao que ora se qualifica como seu âmbito de aplicação possível. Por vezes, tal elipse e sua explicitação encontram-se par a par, como na Logik Pölitz: "O conceptus communis tem, pois, muitas coi­sas sob si, i.e., elas podem todas ser repre­sentadas através dele" (LPz, XXIV: 568; cf. LB, § 261, XXIV: 260). Isso não implica um compromisso com a noção de possibilia, como em (Ob2), se a possibilidade em questão receber a leitura normativa sugerida acima. Por outro lado, o modelo alternativo não requer que se ignore a remissão kantiana, fundamental para (N), a hierarquias conceituais por subordinação lógica na caracterização da extensão de conceitos. Dizer que F é logicamente subordinado a G significa, à luz da alternativa, que seu âmbito de apli­cação possível é parte própria do âmbito de aplicação possível deste porque a regra de classifi­cação própria ao seu conteúdo contém o último como uma de suas condições de satisfação. Isso não significa que os próprios conceitos inferiores de G, entre os quaisF, constituam sua ex­tensão, mas apenas que, ao dividirem a exten­são de G, demarcam regiões de seu âmbito de aplicação. Entende-se, assim, como a divisão lógica redunda na "determinação de um conceito com respeito a todos os possíveis contidos sob ele" (L, § 110, AA IX.146). Expressa por juízos disjunti­vos dicotômicos, tal divisão repre­senta o âmbito de aplicação possível do conceito. Como lemos na Crítica, "em todo juízo disjuntivo, a esfera [...] é represen­tada como um todo divi­dido em partes (os con­ceitos subordinados)" (B112)................. Um conceito H que representa uma espécie do gênero representado por F contém este último como condição de satisfação da regra de classificação que lhe é peculiar (a par do conceito correspondente à sua diferença específica); justamente por essa razão, seu âmbito de aplicação possível é uma circunscrição no interior do âmbito de aplicação possível de F. Nessa medida, pode-se dizer que sua extensão é menor do que a do conceito superior, ao passo que seu conteúdo é maior do que o conteúdo deste, sem neces­sidade de postular dois conjuntos de possibilia em certa relação de magnitude. Ora, a determinação lógica, pela qual conceitos mais específicos são formados pela adição de notas características a conceitos dados, redunda em conceitos com extensões progressi­vamente mais restritas. Todavia, nenhuma síntese de notas discursivas é capaz de cir­cunscrever um único indivíduo, pois - dada a generalidade própria à representação con­ceitual - é logicamente possível que diversos objetos satisfaçam o mesmo conceito. O modelo alternativo mostra-se, nessa medida, compatível com os princípios da relação inversa e da especificação. Agora bem, o problema crucial que emergiu do exame de (N) foi o da compatibilidade entre a concepção da forma lógica da predicação como modo de subordinação ex­tensional de conceitos, de um lado, e a possibilidade de conceitos coextensivos e de juízos sintéticos a priori, de outro. Como a alternativa recomendada - que faz da exten­são de um conceito seu âmbito de aplicação possível, delimitado por seu conteúdo - daria conta dessa dificuldade? A fim de esclarecê-lo, demanda-se um tratamento mais detido das noções de possibilidade e conteúdo em Kant.

Partindo-se do contraste kantiano entre possibilidade lógica e possibilidade real - entre a consistência mútua das notas próprias a um conceito, por um lado, e a satisfação das condições sob as quais é possível reconhecer instâncias particulares do mesmo, por outro -, cumpre distinguir duas dimensões do conteúdo conceitual. A primeira é constituída por uma regra de classificação de objetos sob a forma de uma coordenação de notas características. Pressuposta a consistência mútua destas últimas, tal regra deixa-se explicitar, segundo o mero princípio de não-contradição, por juízos analíticos. A se­gunda dimensão do conteúdo de um conceito, por sua vez, responde pelas condições da possibilidade real de seu objeto - por conseguinte, de sua realidade ou validade obje­tiva. Se no primeiro caso o conteúdo de um conceito F corresponde a um critério de distin­ção entre Fs e não-Fs em geral, ele aqui concerne a um critério de discriminação de algo em particular como F, enquanto distinto de quaisquer outros objetos, sejam Fs ou não-Fs. Trata-se do que se pode chamar de um critério de individuação epistêmica.

Assim como regras de classificação de objetos, critérios de individuação epistêmica são dotados de generalidade - seu domínio credencia o sujeito a discriminar uma diversi­dade indefinida de particulares sob certo conceito. Não obstante, as condi­ções bási­cas a se­rem satisfeitas para que um conceito esteja vinculado a tal critério são as condi­ções sob as quais é possível seu uso singular. Desse modo, além de uma regra de classi­ficação de objetos explicitável por juízos analíticos, Kant dirá que "ao uso de um con­ceito per­tence também uma função do poder de julgar, pela qual um objeto é subsumido sob ele" (A247/B304). Tal função, pressu­posta pela aplicação de um conceito a parti­culares - ancorada em última instância na intuição -, é o esquema do primeiro. É nesses termos que se deve entender a afirmação kantiana de que sem qualquer remissão à intui­ção um conceito "não tem sentido e é inteiramente vazio de conteúdo" (A239/B298; cf. A62-3/B87, A95, A136/B175).22 22 Longuenesse igualmente sublinha o papel do esquematismo em conferir significado próprio, não meramente lógico, aos nossos conceitos (ver especialmente Longuenesse (2001, capts. 8-9)). A consideração de que como ela interpreta esse papel escapa aos limites deste trabalho. De todo modo, a posição aqui esboçada prescinde dos aspectos mais controversos da interpretação de Longuenesse, atinentes ao nexo entre as funções lógicas do juízo, as categorias e seus esquemas. Para uma importante crítica da maneira como Longuenesse vê esse nexo, cf. Allison (2000).

Tome-se, então, o caso de conceitos coextensivos ou recíprocos. Que eles disponham da mesma extensão significa, conforme a interpretação aqui esboçada, que possuem o mesmo âmbito de aplicação possível. Ora, se o âmbito de aplicação possível de um conceito é delimitado por seu conteúdo, atender simplesmente às notas coordenadas nas regras de classificação peculiares a figura triangular e figura trilátera não nos permite discernir por que teriam eles a mesma extensão. Tal discernimento exige que consideremos os critérios de individuação epistêmica a que estão vinculados, vale dizer, seus esquemas - os quais, tratando-se de conceitos matemáticos, informam sua construção na intuição pura. Sob essa consideração, pode-se reconhecer que tudo a que o pri­meiro pode ser aplicado é algo a que pode (e deve) ser aplicado o segundo, e vice-versa.

Tal estratégia vale para a compreensão dos juízos sintéticos a priori. Trata-se, paradig­maticamente, de juízos predicativos da forma Todo F é G. À luz da concepção kantiana da forma da predicação, nos termos da interpretação ora esboçada, tais juízos representam o âmbito de aplicação possível de F como parte do âmbito de aplicação possível de G. Em se tratando de um juízo analítico, essa relação de subordinação extensional tem seu fundamento no conteúdo dos conceitos em questão, entendido como a regra de classificação (sob a forma de uma coordenação de notas características) pecu­liar a cada um. Porque G é uma condição de satisfação da regra de classificação própria a F, o âmbito de aplicação possível de F circunscreve uma região do âmbito de aplica­ção possível de G, de sorte que a subordinação extensional, nesse caso, pode ser assi­milada à subordi­nação lógica. O mesmo não se verifica nos juízos sintéticos - e concentro-me no problema dos juízos sin­téticos a priori, dotados de universalidade estrita.

Ora, se a subordinação extensional tampouco pode ter nesse último caso uma base empírica, é no conteúdo dos conceitos em questão - qua critério de individuação epistêmica peculiar a cada um - que se deve encontrar seu fundamento. Assim, no juízo Toda alteração tem uma causa, por exemplo, não obstante causa não esteja entre as notas que perfazem a regra de classificação própria a altera­ção, só é possível (de acordo com Kant) discriminar uma alteração como tal represen­tando-a como determinada, segundo uma lei causal, por um estado de coisas precedente - embora tal representação não requeira a discriminação desse próprio estado de coisas precedente, tampouco a especificação da lei em questão23 23 Quanto a isso, cf. as esclarecedoras observações de Kant sobre Hume em A764-7/B792-5. . Mas o esquema de causa é articulável, jus­tamente, como "sucessão do múltiplo na medida em que está sujeita a uma regra" (A144/B183). Desse modo, há decerto um nexo de conteúdo conceitual entre alteração e causa, embora ele escape à explicitação por juízos analíticos. É atendendo a essa espécie de nexo que podemos compreender como o âmbito de aplicação possível de alteração pode ser parte do âmbito de aplicação possível de causa - só posso aplicar o primeiro conceito a um particular aplicando-lhe igualmente o segundo. Portanto, a concepção kantiana da forma lógica da predicação mostra-se compatível com a possibilidade dos juízos sintéticos a priori, uma vez que interpretemos as noções kantianas de extensão e conteúdo conceituais como recomendado.

Naturalmente, tal interpretação necessita de um desenvolvimento mais detido, especi­almente no que toca à relação entre conteúdo conceitual e esquematismo, e à diferença entre os esquemas das categorias e dos conceitos matemáticos. Reserva-se para outro trabalho essa tarefa.

Received: 20.06.2011;

Revised: 13.03.2012;

Accepted: 25.04.2012

FM - Welches sind die wirklichen Fortschritte, die die Metaphysik seit Leibnitzens und Wolfs Zeiten in Deutchland gemacht hat?

GM - Grundlegung zur Metaphysik der Sitten

KdU - Kritik der Urteilskraft

L - Logik

LB - Logik Blomberg

LDW - Logik Dohna-Wurdlacken

LPh - Logik Philippi

LPz - Logik Pölitz

P - Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik die als Wissenschaft wird auftreten können

R - Reflexionen

SF - Die falsche Spitzfindigkeit der vier syllogistischen Figuren

ÜE - Über eine Entdeckung, nach der alle neue Kritik der reinen Vernunft durch eine ältere entbehrlich gemacht werden soll

WL - Wiener Logik

Citações de R são acompanhadas pela numeração de Adickes (AA XVI-XIX). Adicionalmente, utilizo as seguintes abreviações para citações de escritos de Leibniz:

C - Opuscules et fragments inédits de Leibniz. Ed. L. Couturat.

G - Die philosophischen Schriften. Ed. C. I. Gerhardt.

Citações de C são acompanhadas da indicação do número de página (em arábidos); de G, da indicação de volume (em números romanos) e página (em arábicos).

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  • ____. Vernünftige Gedancken von den Kräfften des menschlichen Verstandes und ihrem richtigen Gebrauche in Erkänntniss der Wahrheit Frankfurt & Leipzig: Officina Libraria Rengeriana, 1754.
  • *
    Este artigo tem origem em minha tese de doutorado, "O Território do Conceito: Lógica e Estrutura Conceitual na Filosofia Crítica de Kant", aprovada na UFRGS em 2010. Beneficiei-me dos questionamentos de João Carlos Brum Torres, meu orientador; de Sílvia Altmann, arguidora em minha qualificação; e de Paulo Faria, Hans-Christian Klotz, Gerson Louzado e Luciano Codato, arguidores em minha defesa. Beneficiei-me também das valiosas observações críticas dos dois pareceristas anônimos do artigo. Equívocos ou impropriedades remanescentes são, é claro, de minha inteira responsabilidade.
    1 Todas as traduções de passagens do
    corpus kantiano são de minha responsabilidade. A citação dessas passagens, com exceção da
    Crítica da Razão Pura, são acompanhadas da indicação de volume (em números romanos) e página (em arábicos) da
    Akademieausgabe von Immanuel Kants Gesammelten Werken, precedida por 'AA'. A
    Crítica da Razão Pura, como de praxe, é citada com a paginação da primeira ('A') e/ou segunda ('B') edições. Eventualmente, emprego as seguintes abreviações nas citações do
    corpus kantiano:
  • 3
    Cf.
    SF, § 2, AA II.49. Ver tb. A321-2/B378-9.
  • 4
    Isso, desde já, é razão para não assimilarmos a subordinação extensional de conceitos constitutiva da predicação universal afirmativa à subordinação lógica que caracteriza hierarquias conceituais
    per genus et differentiam. Sobre isso, ver 4.2 abaixo.
  • 5
    Deve-se a Longuenesse ter reintroduzir na literatura a necessária atenção à caracterização kantiana da forma lógica da predicação - e do juízo em geral - em termos de subordinação extensional de conceitos. Ver Longuenesse (2001, pp. 81-106; 2005, pp. 81-116). Longuenesse, por sua vez, é devedora do trabalho seminal de Klaus Reich, publicado originalmente em 1932 (ver Reich, 1992). Entre nós, Codato (2004) apresenta um apanhado detalhado das passagens do
    corpus kantiano que tratam o juízo como subordinação extensional de conceitos.
  • 6
    A par da concepção da forma lógica do juízo em termos de subordinação extensional de conceitos, Longuenesse ocupa-se da caracterização kantiana do juízo como
    regra (cf.
    P, § 23, AA IV.305), compreendida como
    asserção sob uma condição universal (cf.
    L, § 58, AA IX.121). Tal caracterização informa sua tese de que "[t]odo juízo carrega em seu interior um silogismo potencial" (2001, p. 90, n. 20). De acordo com Longuenesse, todo juízo, enquanto regra, é a premissa maior de uma inferência silogística implícita cuja conclusão afirma a subsunção, sob seu predicado, de objetos aos quais convém o conceito que ocupa a posição de seu sujeito lógico (2001, pp. 90-106; 2004, pp. 81-116). Assim, o juízo
    Todo corpo é divisível seria a premissa maior de um silogismo possível da forma
    Todos os corpos são divisíveis; ora, x é um corpo; logo, x é divisível - como em
    Todos os corpos são divisíveis; ora, metais são corpos; logo, metais são divisíveis. Dessa maneira, segundo Longuenesse, há uma "conexão sistemática entre 'condição' e 'razão'". O conceito
    F é condição da regra
    Todo F é G porque
    justifica (como condição suficiente) a asserção de
    G com respeito qualquer objeto
    x: dada, por exemplo, a regra
    Todo homem é mortal, "[s]ubsumir qualquer objeto
    x, ou qualquer espécie, sob o conceito 'homem', é formular uma
    razão para asserir o predicado 'mortal' do objeto ou da espécie" (2001, p. 95, n. 33). Essa noção de condição serve, por sua vez, a um tratamento integrado dos três momentos do título da
    relação na tábua das funções lógicas do juízo. Enquanto no juízo categórico a condição da regra é
    interna à mesma (sendo representada por seu sujeito lógico), no juízo hipotético ela lhe é
    externa. No juízo
    Se os corpos são compostos, então eles são divisíveis, a condição da asserção do predicado
    divisível com respeito a
    corpo, redundando na regra
    Todos os corpos são divisíveis, é pensada como externa a esta, consistindo no conceito
    composto: o juízo pode, pois, ser expresso como
    Todos os corpos, se compostos, são divisíveis (cf. Longuenesse, 2001, p. 103, n. 53). No tocante aos juízos disjuntivos, por sua vez, temos a relação entre um conceito (como condição) e a totalidade do que pode ser conhecido sob ele, submetida ali à divisão de acordo com dois ou mais conceitos. Longuenesse se apressa em dizer, contudo, que o caráter sintético de um juízo repousa no fato de que sua condição última é a intuição dos objetos pensados sob seu sujeito lógico (no caso do juízo categórico). Nos contextos epistemicamente relevantes, segundo ela, "conceitos funcionam como condições apenas na medida em que subsumem intuições sensíveis (a priori ou empíricas), as quais são, em última instância, a verdadeiras condições dos juízos" (2001, p. 97). Esse ponto se mostrará importante na discussão que segue. Desde já, porém, deve-se notar que a caracterização do juízo como regra não substitui sua caracterização em termos de subordinação extensional de conceitos. Como observa Longuenesse, a "relação" relevante na caracterização do juízo como regra "é pensada no contexto do modelo predicativo clássico": "o próprio juízo hipotético é pensado nesse contexto, como a 'relação'
    de uma predicação com sua condição", condição que é "ela própria expressa na forma de uma predicação" (2001, p. 104). Ora, acrescenta ela, esse "privilégio da predicação explica o lugar predominante, na consideração geral do juízo por Kant, da subordinação de conceitos", enquanto "inclusão da extensão de um conceito na extensão de outro conceito" (2001, p. 104). Ademais, como também repara Longuenesse, a caracterização do juízo como regra vale unicamente para predicações universais - predicações particulares e singulares sendo pensadas como instanciações das mesmas (2001, p. 93, n. 27).
  • 7
    Nos
    Novos Ensaios, a extensão (
    extension) de uma ideia corresponde aos seus "exemplares", enquanto sua intensão (
    intension) corresponde às "formalidades", isto é, aos modos de conceber, que lhes são próprios. Cf. G V.469.
  • 8
    Cf. Wolff, 1754, § 27, p. 37.
  • 9
    Cf. Arnauld & Nicole (1992, I.6, p. 52)
  • 10
    No manual de lógica empregado por Kant em seu magistério, lemos: "O conjunto de todos os conceitos que estão contidos sob um con­ceito abstrato é a extensão [
    Umfang] do mesmo (
    sphaera notionis)" (Meier, 1752, § 262, p. 72; XVI: 560).
  • 11
    Prien (ibid.) dá a entender que a mesma posição é assumida por Schulthess (1981), o que não é o caso. Agradeço a um(a) dos(as) pareceristas anônimos(as) por chamar-me a atenção para o erro de se classificar Schulthess sob (H
    2).
  • 12
    Como exemplo da primeira situação, considere-se os respectivos conjuntos de instâncias
    atuais dos conceitos
    homo e
    homo sapiens; como exemplo da segunda, os respectivos conjuntos de instâncias
    atuais dos conceitos
    dinosauria e
    theropoda.
  • 13
    'Validade objetiva' e 'validade universal' (
    P, § 19, AA IV.298), '
    ens realissimum' e '
    ens necessarium' (
    R6297, AA XVIII.564; A789/B817), 'contin­gente' e 'finito' (
    R2886, AA XVI.561), 'necessário' e 'inalterável' (
    LDW, AA XXIV.755).
  • 14
    "[L]iberdade e autolegislação da vontade são ambas auto­nomia e, por conseguinte, conceitos recíprocos, e [ ] podem quando muito ser usados apenas com o propósito lógico de redu­zir representações apa­rentemente diferentes do mesmo objeto a um único conceito" (
    GMS, AA IV.450).
  • 15
    Leibniz usa 'triângulo' para o conceito
    figura triangular e 'trígono' para o conceito
    figura trilátera e triangular (o que ordinariamente denominamos 'triângulo'): "O trilátero [
    Trilaterum] como tal menciona lados; o triângulo [
    triangulum], ângulos. O trígono [
    Trigonum],
    qua triângulo, possui três ângulos iguais a dois retos;
    qua trilátero, possui dois lados sempre maiores do que o terceiro" (
    apud Mates, 1974, p. 108). Nessa passagem, é nítida a distinção entre o conceito
    figura triangular, designado por
    'triangulum', e o conceito
    triângulo* (observada a estipulação terminológica acima). Quanto a Kant, lemos na
    Wiener Logik que "um triângulo é uma figura que consiste de 3 lados e 3 ângulos internos" (AA XXIV.853). É com isso em vista que devemos ler esta conhecida passagem da primeira
    Crítica: "Dê a um filósofo o conceito de um triângulo e deixe que descubra ao seu modo como a soma de seus ângulos se relaciona com um ângulo reto. Ele nada tem senão o conceito de uma figura, a qual é encerrada por três linhas retas, e nela [
    in ihr] o conceito de igual número de ângulos" (A716/B744). Naturalmente, o que Kant denomina aqui um 'triângulo' não corresponde simplesmente ao conceito
    figura triangular, mas ao que estipulamos como o conceito
    triângulo*. O ponto escapa a Chenet (1994, p. 182), que vê contradição entre a passagem da
    Crítica e a d'
    Os Progressos, bem como a Hanna (2001, p. 139), que a emprega como base para sustentar, erroneamente, que Kant toma a proposição
    Figura triangula est trilatera como analítica.
  • 16
    Naturalmente, o caso pode ser generalizado para uma gama de conceitos e proposições da geometria, e parece igualmente emergir da concepção kantiana da aritmética. Quanto ao último ponto, cf. carta de Kant a Johann Schultz em novembro de 1788 (AA X.555). As peculiaridades da teoria transcendental da aritmética escapam, porém, ao escopo deste trabalho.
  • 17
    Notas analíticas "são conceitos parciais do meu conceito
    efetivo (notas que já penso nele)", ao passo que notas sintéticas "são conceitos parciais do conceito completo "
    meramente possível (que devem de antemão advir mediante uma síntese de diversas partes)" (
    L, AA IX.59).
  • 18
    É o que sugere Codato ao dizer que em um juízo sintético da forma
    Todo S é P "a representação de P, como conceito parcial do conceito S, exige justamente que se vá além de S. Nesse caso, P não se encontraria previamente incluído na intensão de S, mas lhe seria acrescentado com base em uma relação externa" (2004, p. 151). Embora Codato (2004, 2006) subscreva (H
    1), é lícito reportar-se a ele aqui, porque (H
    1) envolve (N).
  • 19
    É isso, em essência, que diz Schulze na sua recensão (endossada por Kant) do segundo volume do
    Philosophisches Magazin de Eberhard: "Deixe-se que alguém coloque no conceito do sujeito uma diversidade tal de notas que o predicado que intenta provar do sujeito possa ser derivado de seu conceito mera­mente segundo o princípio de contradição. Esse artifício de nada lhe ajuda. A Crítica concede-lhe tal juízo analítico sem maiores disputas, mas levanta uma ques­tão acerca do próprio conceito do sujeito e pergunta: como se chegou a incluir essa di­versidade de notas no conceito" (AA XX.408-9). Nas palavras da resposta do próprio Kant a Eberhard, em
    Sobre uma Descoberta, a questão que se põe é "que tipo de fundamento pode haver que, à parte o que é essencialmente próprio ao meu conceito e eu já sabia, me dá a conhecer algo mais, e o faz necessariamente, como um atributo que pertence à coisa, embora não contido em seu conceito" (
    ÜE, AA VIII.239). Tal atributo é qualificado por Kant de
    sintético, em contraste com um atributo
    analítico de um conceito, vale dizer, uma nota de uma nota do último. "Se é dito", escreve Kant, "de uma proposição que ela tem por predicado um atributo do sujeito, ninguém ainda sabe se ele é analítico ou sintético (
    ÜE, AA VIII.230). Dada uma proposição
    a priori, em que o predicado necessariamente convém ao sujeito, ou o "fundamento de seu predicado deve ser buscado no sujeito de acordo com o princípio de contradição", sendo a proposição analítica, "ou não pode ser derivado do conceito do sujeito por aquele princípio, em cujo caso, unicamente, o atributo é sintético" (
    ÜE, AA VIII.241-2).
  • 20
    A favor de Longuenesse, talvez se redarguisse que a rejeição de sua interpretação sob (H
    3) ou (H
    4) depende de uma leitura parcial da sua obra. Como se notou anteriormente (ver nota 5 acima), deve-se igualmente a Longuenesse ter chamado a atenção para a caracterização kantiana do juízo como
    regra, oferecendo do mesmo uma visão mais complexa do que sua mera caracterização como subordinação extensional de conceitos. Nesse contexto, é posto em relevo o papel da remissão do juízo sintético à intuição como condição última da asserção do conceito de seu predicado em relação ao conceito de seu sujeito - estabelecendo, com isso, uma ligação extralógica entre suas extensões. Todavia, a consideração do juízo como regra não isenta Longuenesse dos argumentos acima. Como ela mesma sublinha (vide novamente a nota 5 acima), a concepção do juízo como regra não substitui, mas pressupõe, o modelo predicativo clássico - articulado por Kant em termos de subordinação (extensional) de conceitos. Ademais, mesmo quando discute a concepção do juízo como regra, Longuenesse persevera em asserções que a tornam vulnerável às críticas feitas aqui. Com efeito, no curso dessa discussão, ela dirá que o juízo categórico da forma
    Todo A é B "parte da
    coisa, a subsume sob o conceito A e, por meio desse conceito A, a subsume sob um conceito B que contém o primeiro conceito sob si" (2001, p. 104). Ora, se é próprio a qualquer juízo da forma
    Todo A é B afirmar que o predicado
    contém o primeiro conceito sob si, qualquer juízo verdadeiro dessa forma deve ser reconhecido como analítico - tão logo se reconheça, com Kant, que
    A está contido sob
    B se e somente se
    B está contido em
    A. Essa é a lição do argumento contra (N). Espero ter mostrado que a inteligibilidade do problema do sintético
    a priori exige não se assimilar a subordinação de conceitos na predicação universal afirmativa à subordinação lógica em hierarquias
    per genus et differentiam. A despeito da riqueza e da importância de seu trabalho sobre Kant, não creio que Longuenesse tenha satisfeito a contento tal exigência. Necessitamos de uma reconstrução da noção kantiana de extensão conceitual que seja unívoca, acomode suas diferentes descrições no
    corpus kantiano e, ademais, se mostre capaz de compatibilizar a possibilidade de juízos sintéticos
    a priori e a concepção da forma lógica do juízo em geral como subordinação extensional de conceitos. A alternativa a ser esboçada na seção seguinte tem esse propósito.
  • 21
    Cf. A225/B273, A599/B627,
    KdU, § 76, AA V.402.
  • 22
    Longuenesse igualmente sublinha o papel do esquematismo em conferir significado próprio, não meramente lógico, aos nossos conceitos (ver especialmente Longuenesse (2001, capts. 8-9)). A consideração de que como ela interpreta esse papel escapa aos limites deste trabalho. De todo modo, a posição aqui esboçada prescinde dos aspectos mais controversos da interpretação de Longuenesse, atinentes ao nexo entre as funções lógicas do juízo, as categorias e seus esquemas. Para uma importante crítica da maneira como Longuenesse vê esse nexo, cf. Allison (2000).
  • 23
    Quanto a isso, cf. as esclarecedoras observações de Kant sobre Hume em A764-7/B792-5.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2012

    Histórico

    • Recebido
      20 Jun 2011
    • Aceito
      25 Abr 2012
    • Revisado
      13 Mar 2012
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