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Critério de obesidade central em população brasileira: impacto sobre a síndrome metabólica

Resumos

OBJETIVO: Identificar e propor os melhores pontos de corte da circunferência da cintura (CCp) para diagnosticar obesidade central numa população brasileira; compará-los àqueles recomendados pelo ATPIII (CC-ATPIII) e estimar diferenças nas prevalências da síndrome metabólica (SM) usando os dois critérios. MÉTODOS: Estudo transversal, realizado em subgrupo populacional de 1.439 adultos, Salvador, Brasil. Foram construídas curvas ROC da circunferência da cintura (CC) para identificar diabete melito (DM) e obesidade. Valores >60% da sensibilidade e da especificidade da curva ROC e mais próximos entre si foram usados para definir o CCp. A prevalência da SM foi estimada pelos CCp e pelos CC-ATPIII. RESULTADOS: As 829 mulheres compuseram 57,7% da amostra. Os CCp selecionados foram 84 cm para mulheres e 88 cm para homens. Esses pontos detectaram DM com sensibilidade de 68,7% e 70%, respectivamente, e especificidade de 66,2% e 68,3%. Para obesidade, a sensibilidade e a especificidade foram 79,8% e 77,6% nas mulheres, e 64,3% e 71,6% nos homens. Pelos CC-ATPIII, 88 cm (mulheres) e 102 para (homens), as sensibilidades foram de 53,3% e 26,5%, para diagnosticar DM. Para obesidade, a sensibilidade foi 66,5% (mulheres) e 28,6% (homens). A prevalência da SM, pelos CCp foi 23,7%, IC 95% (21,6 - 25,9) e pelos CC-ATPIII de 19,0%, IC 95% (17,1- 20,9), 1,2 vezes maior pelo CCP. CONCLUSÃO: As CC-ATPIII foram inapropriados e subestimam a prevalência da SM nessa população, particularmente entre os homens. Sugerimos que os pontos de corte da CC de >84 cm nas mulheres e > 88 cm nos homens sejam testados em outras populações brasileiras.

Obesidade central; circunferência da cintura; síndrome metabólica; população brasileira


OBJECTIVE: To identify and propose the optimal waist circumference cut-off points (WCp) for the diagnosis of central obesity (CO) in a Brazilian population, so as to compare these cut-off points with those recommended by the ATPIII (WC-ATPIII), and to estimate the difference in prevalence rates of metabolic syndrome (MS) using the two criteria. METHODS: Cross-sectional study conducted in a population subgroup of 1439 adults in the city of Salvador, Brazil. ROC curves of waist circumference (WC) were plotted to identify diabetes mellitus (DM) and obesity. ROC curve sensitivity and specificity values >60% and the closest to each other were used to define WCp. The prevalence of MS was estimated using WCp and WC-ATPIII. RESULTS: Eight hundred and twenty nine women comprised 57.7% of the sample. The WCp selected were 84cm for women and 88cm for men. These cut-off points detected DM with a 68.7% and 70% sensitivity, and a 66.2% and 68.3% specificity, respectively. For obesity, sensitivity and specificity were 79.8% and 77.6% in women and 64.3% and 71.6% in men, respectively. Using WC-ATPIII, 88cm (for women) and 102cm (for men), the sensitivity was 53.3% and 26.5%, respectively, to diagnose DM. For obesity, sensitivity was 66.5% (for women) and 28.6% (for men). The prevalence of MS using WCp was 23.7%, 95%CI (21.6 - 25.9), whereas using WC-ATPIII it was 19.0%, 95%CI (17.1- 20.9), 1.2 times higher using WCp. CONCLUSION: WC-ATPIII were inappropriate and underestimated the prevalence of MS in the population studied, particularly among men. We suggest that the WC cut-off points > 84cm for women and > 88cm for men should be tested in other Brazilian populations.

Central obesity; waist circumference; metabolic syndrome; brazilian population


ARTIGO ORIGINAL

Critério de obesidade central em população brasileira: impacto sobre a síndrome metabólica

Paulo José Bastos Barbosa; Ínes Lessa; Naomar de Almeida Filho; Lucélia Batista N. Cunha Magalhães; Jenny Araújo

Universidade Federal da Bahia - Salvador, BA

Correspondência Correspondência: Paulo José Bastos Barbosa Rua Amazonas, 216, Loteamento Pituba Ville 229/M302 41830-380 – Salvador, BA E-mail: paulojbb@cardiol.br

RESUMO

OBJETIVO: Identificar e propor os melhores pontos de corte da circunferência da cintura (CCp) para diagnosticar obesidade central numa população brasileira; compará-los àqueles recomendados pelo ATPIII (CC-ATPIII) e estimar diferenças nas prevalências da síndrome metabólica (SM) usando os dois critérios.

MÉTODOS: Estudo transversal, realizado em subgrupo populacional de 1.439 adultos, Salvador, Brasil. Foram construídas curvas ROC da circunferência da cintura (CC) para identificar diabete melito (DM) e obesidade. Valores >60% da sensibilidade e da especificidade da curva ROC e mais próximos entre si foram usados para definir o CCp. A prevalência da SM foi estimada pelos CCp e pelos CC-ATPIII.

RESULTADOS: As 829 mulheres compuseram 57,7% da amostra. Os CCp selecionados foram 84 cm para mulheres e 88 cm para homens. Esses pontos detectaram DM com sensibilidade de 68,7% e 70%, respectivamente, e especificidade de 66,2% e 68,3%. Para obesidade, a sensibilidade e a especificidade foram 79,8% e 77,6% nas mulheres, e 64,3% e 71,6% nos homens. Pelos CC-ATPIII, 88 cm (mulheres) e 102 para (homens), as sensibilidades foram de 53,3% e 26,5%, para diagnosticar DM. Para obesidade, a sensibilidade foi 66,5% (mulheres) e 28,6% (homens). A prevalência da SM, pelos CCp foi 23,7%, IC 95% (21,6 – 25,9) e pelos CC-ATPIII de 19,0%, IC 95% (17,1- 20,9), 1,2 vezes maior pelo CCP.

CONCLUSÃO: As CC-ATPIII foram inapropriados e subestimam a prevalência da SM nessa população, particularmente entre os homens. Sugerimos que os pontos de corte da CC de >84 cm nas mulheres e > 88 cm nos homens sejam testados em outras populações brasileiras.

Palavras-chave: Obesidade central, circunferência da cintura, síndrome metabólica, população brasileira.

A síndrome metabólica (SM), comum em indivíduos com obesidade central, associa-se a um risco aumentado para o diabete melito tipo 2 (DM)1 e eventos cardiovasculares2. A obesidade central associa-se de modo independente, com plausibilidade biológica, com os componentes da SM e com a resistência insulínica3-6. Comparada às medidas antropométricas tradicionais, a circunferência da cintura abdominal (CC) tem-se mostrado superior ao índice da massa corpórea (IMC) e à relação cintura quadril para identificar adiposidade visceral; por conseguinte, risco cardiovascular7-9.

O Third Report of National Cholesterol Education Program Expert Panel on Detection, Evoluation, and Treatment of High Blood Cholesterol in Adults – Adult Treatment Panel III – (ATP III) propôs uma nova definição para síndrome metabólica (SM), utilizando como critério de obesidade central valores da CC > 102 cm para homens e > 88 cm para mulheres10. Descritos originalmente por Lean e cols. em 199511, esses pontos de corte não têm sido adequados para definir obesidade central em algumas populações12-15. Esse fato foi ressaltado numa revisão dos critério diagnósticos do ATP III, recentemente publicada16.

No Brasil não existem estudos de base populacional sobre síndrome metabólica nem critério de obesidade central específico para nossa população. Pretende-se neste estudo: a) identificar o melhor ponto de corte da CC para diagnosticar obesidade central em população urbana brasileira; b) comparar o desempenho dos pontos de corte obtidos com os propostos pelo ATP III; c) estimar diferenças nas prevalências da SM medida pelos dois critérios de anormalidade da CC.

Métodos

População e métodos - O estudo é de corte transversal, usando a amostra do Projeto Monitoramento das doenças cardiovasculares e do diabete melito em Salvador, MONIT17. Sumariamente, para o MONIT, o tamanho da amostra foi inicialmente estimado em 1.800 adultos com idade > 20 anos, com base em uma prevalência de hipertensão arterial de 25%, nível de confiança de 95% e erro de delineamento de 2%. Previu-se perda de 20% dos domicílios (casa não-residencial, recusa da família, barreiras para acesso aos moradores, entre outras). A amostragem foi realizada em três estágios: 1) os setores censitários de oito das dez bacias hidrográficas da cidade, com características sociodemográficas semelhantes, foram agrupados em 108 "Áreas de Pesquisa", e essas foram classificadas por nível socioeconômico (NSE) alto, misto e baixo. As áreas continham 16.592 domicílios, com cerca de 83.000 habitantes com idade > 20 anos. Proporcionalmente ao número de setores de cada NSE das Áreas, 37 foram sorteadas, probabilisticamente; 2) por amostra sistemática (intervalo=10), foram sorteados 1.540 domicílios, com perda de 18,3% e resposta favorável à participação de 1.258 famílias residentes em 63 setores censitários; 3) no terceiro estágio, foram sorteados os participantes, no máximo dois, por domicílio, um de cada sexo, excluídas as grávidas17.

Em domicílio, todos os integrantes responderam a inquérito sobre fatores de risco cardiovascular e para DM, tiveram seis aferições da pressão arterial e duas da circunferência da cintura CC.

Compareceram ao Serviço de Saúde para coleta de sangue e tiveram os resultados das análises bioquímicas de interesse disponíveis 1.437 indivíduos. Esses compõem a população do presente estudo.

Foram efetuadas seis medidas, usando-se a média das últimas cinco para análise. Para obtenção da CC, o indivíduo permaneceu em posição ereta, respirando suavemente, e a fita inelástica o circundou ao nível da linha natural da cintura (parte mais estreita entre tórax e quadril), sendo a medida aferida em unidade inteira de centímetros (cm). Medidas de altura e de peso para o cálculo do IMC foram realizadas com equipamentos padronizados e a balança foi aferida periodicamente. Os exames bioquímicos, realizados após jejum de 12 horas, foram: glicemia pelo "labtest" no plasma fluoretado, colesterol (método enzimático-Tender), tiglicerídeos (técnica de Soloni modificado e HDL colesterol (Labtest).

Critérios e definições - a) Cor da pele foi autodefinida em uma das categorias: branca, parda (mulatos) e negra (preta); b) Nível socioeconômico (NSE) – critério usado no Brasil pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa Econômica Aplicada e IBGE18. A classificação original dos estratos que vai de A a E foi agrupada para este estudo em A+B (NSE alto), C (NSE médio) e D+E (NSE baixo); c) Escolaridade foi categorizada em: alta (ensino médio completo ou curso superior completo ou incompleto), média (fundamental completo ou médio incompleto) e baixa (analfabeto, fundamental incompleto); d) Síndrome metabólica-1 (SM-1) – utilizou-se o critério revisado do ATP III16 baseando-se na coexistência, em um mesmo indivíduo, de três ou mais dos cinco fatores: 1) Hipertensão arterial (>130/85 mmHg) ou tratamento farmacológico atual para hipertensão arterial; 2) Disglicemia (glicemia de jejum > 100 mg/dl) ou tratamento farmacológico atual para DM (DMsm); 3) CC >88 cm para mulheres ou >102 cm para os homens (CC-ATP III); 4) HDL colesterol (HDL-c) baixo (< 40 mg/dl nos homens e < 50 mg/dl nas mulheres); 5) Hipertrigliceridemia (> 150 mg/dl); e) Síndrome metabólica-2 (SM-2) – o mesmo critério da SM-1, substituindo o ponto de corte da CC pelo proposto (P) neste estudo – CCp.

O projeto foi submetido ao Comitê de Ética Médica do Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia, recebendo sua aprovação, e todos os participantes assinaram Termo de Consentimento Informado.

Análise estatística - As características sociodemográficas, as prevalências de hipertensão arterial e medida da CC na população estudada foram comparadas àquelas da população de referência para identificar possíveis vieses de seleção.

Para a seleção do melhor ponto de corte da CC que identificasse obesidade central (OC) em cada sexo foram construídas curvas ROC (Receiver Operating Characteristic) da CC em razão do diagnóstico de DM e obesidade (IMC > 30). A significância estatística de cada análise foi observada pela área sob a curva ROC e pelo intervalo de confiança a 95% (IC 95%). O critério utilizado para a seleção dos pontos de corte da CC de cada sexo foram os valores com sensibilidade e especificidade mais próximos entre si, não inferiores a 60%, e que, por ordem de prioridade, fossem capazes de: a) diagnosticar, com boa acurácia, indivíduos obesos na população; b) identificar, por meio desse ponto de corte da CC, o DM, desordem metabólica relacionada mais diretamente com resistência insulínica. Esses valores de CC foram utilizados nas análises como pontos de corte da CC propostos para obesidade central (CCp). Foram também construídas curvas ROC da CC para identificar os componentes da SM.

Usando os dois critérios da circunferência da cintura – o CCp e o CC-ATP III – foram calculadas as prevalências e os IC 95% dos demais componentes da síndrome metabólica (SM), segundo a definição do ATP III (DMsm, HASsm, HDL-c baixo hipertrigliceridemia), entre os indivíduos com CC anormal. Também foram calculadas, na amostra, as prevalências da obesidade central e da SM, com seus respectivos IC 95% e estimadas as razões das suas prevalências (RP) obtidas a partir desses dois pontos de corte.

Pelo modelo de regressão logística foram estimados as Odds Ratios (OR) para discriminar indivíduos com maior risco cardiovascular nas faixas de IMC normal e sobrepeso pelos novos pontos de corte da CCp. Confundimento foi definido como uma diferença maior ou igual a 10% entre a OR bruta e ajustada, e a elegibilidade de variáveis confundidoras utilizadas no modelo de regressão logística considerou, também, o conhecimento científico existente na literatura. Interação foi avaliada pelo teste da razão de máxima verossimilhança, considerando um p < 0,05 como nível de significância estatística.

O pacote estatístico STATAtm, versão 7.0 foi utilizado nas análises.

Resultados

A maioria das características dos 1.437 indivíduos estudados é semelhante àquelas da amostra original do MONIT, havendo entre os primeiros maior representação de indivíduos com baixa escolaridade; conseqüentemente, baixo nível sócio-econômico (tab. 1).

Identificação dos pontos de corte da CC - A área sob a curva ROC da CC para identificar DM entre as mulheres foi de 0,73 (IC95% = 0,67-0,78) (fig. 1). O ponto de 84 cm da CC obteve o melhor equilíbrio entre sensibilidade (68,0%) e especificidade (69,5%) para predizer DM e corresponde ao CCp nesse gênero (tab. 2). Entre os homens, a área sob a curva ROC foi de 0,79 (IC95% = 0,71-0,87), e o melhor ponto de corte foi de 88 cm, com uma sensibilidade de 68,7% e especificidade de 68,0% (tab. 2). Esse foi o melhor CCp obtido para os homens. Os dois pontos de corte da CCp identificaram HASsm, HDL-c < 50 mg/dl e hipertrigliceridemia com graus razoáveis de sensibilidade e especificidade (tab. 2).


Os pontos de corte recomendados pelo ATP III de 88 cm para as mulheres e 102 cm para os homens identificaram DM com valores da sensibilidade de 54% e 21,9, respectivamente, taxas significativamente inferiores, do ponto de vista estatístico e epidemiológico, às dos pontos de corte da CCp. Usando-se os pontos de corte do ATP III, notam-se perdas de sensibilidade com aumento da especificidade (tab. 2).

Ainda usando a curva ROC, observa-se que o ponto de corte da CCp de 84 cm para mulheres também foi o que melhor identificou obesidade (IMC > 30 kg/m2) entre as mulheres (tab. 2), com sensibilidade de 79,8% e especificidade de 77,6% (fig. 1). Entre os homens, o melhor ponto de corte para identificar obesidade foi 86 cm, com sensibilidade de 68,4% e especificidade de 66,7%. Todavia, o ponto de corte de 88 cm teve desempenho semelhante (sensibilidade de 64,3% e especificidade de 71,6%) (tab. 2), sendo assumido como o ponto de corte que definiu obesidade central (CCp) entre os homens. Utilizando os pontos de corte definidos pelo ATP III, 88 cm para mulheres e 102 cm para homens, observa-se perda de sensibilidade, particularmente entre os homens (28,6%), e pequeno ganho na especificidade para identificar obesidade (tab. 2).

A prevalência de cada um dos componentes da SM (DMsm , HASsm, HDL-c baixo e triglicérides > 150 mg/dl) nos pontos de corte selecionados para essa população e naqueles recomendados pelo ATP III encontram-se na tabela 3.

Impacto dos pontos de corte da CC sobre a prevalência da SM - Comparando as prevalências de SM e obesidade central pelos dois pontos de corte, observa-se que aquelas estimadas a partir o CCp são significativamente maiores do que as CC-ATP III. A prevalência global da SM, quando calculada a partir dos critérios de anormalidade do CCp, foi 1,2 vez maior do que aquela estimada utilizando-se o CC-ATP III (tab. 4). Observa-se que a prevalência estimada a partir do CCp entre os homens, ajustada pela idade, foi de 22,2% (IC 95% = 19,0-25,4), taxa 1,5 vez maior do que aquela aferida a partir do CC-ATP III, de 14,4% (IC 95%= 11,4-17,7), sendo essa diferença menos marcante no sexo feminino, cerca de 1,1 vez (tab. 4). De modo semelhante, as prevalências de obesidade central definidas a partir desses dois critérios, em ambos os sexos, mostraram-se maiores pelo CCp, principalmente entre os homens (tab. 4).

Avaliando a capacidade de identificar risco cardiovascular entre os não-obesos - Excetuando-se o HDL <40 no sexo masculino, as análises da associação entre obesidade central, definida pelo CCP, e os fatores que compõem a SM em indivíduos na faixa de IMC normal ou sobrepeso demonstram que, mesmo entre os não-obesos, a CCP anormal discriminou indivíduos de maior risco. Mesmo após ajustamento para idade, escolaridade, nível socioeconômico, cor de pele auto-referida, tabagismo, consumo de álcool e atividade física (tab. 5). A obesidade central, definida a partir do CCp, também se associou à presença de dois ou mais fatores componentes da SM num mesmo indivíduo, de modo estatisticamente significante, em ambos os sexos (tab. 5).

Discussão

Por diferentes razões, pode-se admitir que os pontos de corte da CC recomendados pelo ATP III para definição de obesidade central são inapropriados para a população estudada. Utilizando-se esses critérios como marcadores de risco, observa-se uma perda de sensibilidade, com subestimação do diagnóstico de obesidade, disglicemia, HASsm, dislipidemias e, conseqüentemente, de SM, particularmente entre os homens. Considerando ser o DM uma condição com forte correlação com a SM, e que os pontos de corte da CC de 88 cm para o sexo feminino e 102 para o sexo masculino associaram-se a essa condição com uma sensibilidade de apenas 54% e 21,9%, respectivamente, pode-se afirmar que esses pontos de corte subestimam o papel da obesidade abdominal como fator predisponente ao DM. Conseqüentemente, a utilização desse critério pode prejudicar tomadas de decisões, em momentos oportunos, para a prevenção não só da SM e do DM, como também de graves complicações cardiovasculares.

O ponto de corte da CC de 88 cm identificado neste estudo como critério de obesidade central em homens foi o mesmo que Pitanga & Lessa descreveram para identificar risco cardiovascular global nos indivíduos de 30 a 74 anos da amostra do MONIT19. Em mulheres, os pontos de corte foram muito semelhantes (83 cm). Porém, deve-se ressaltar que, no presente estudo, além da inclusão de indivíduos com idade acima de 20 anos, buscou-se identificar a presença de distúrbios metabólicos. Sabe-se que a CC é um excelente índice de obesidade visceral e que esse tipo de obesidade é aquele que se associa mais fortemente a desordens metabólicas. Talvez isso explique por que, apesar de identificar pontos de corte muito semelhantes, no estudo de Pitanga & Lessa a CC mostrou um desempenho moderado, quando comparado ao índice de conicidade e à relação cintura quadril, para identificar risco cardiovascular global, enquanto no presente estudo a acurácia da CC para identificar desordens metabólicas, particularmente disglicemia, foi elevada.

A escolha do critério para definir pontos de corte de variáveis contínuas para classificação de normal e anormal pode variar conforme a natureza do que se está estudando e o estágio do conhecimento sobre resultados de tratamentos e de medidas preventivas. Há uma constante tendência em se reduzir pontos de corte, como periodicamente ocorre com o diagnóstico da hipertensão e das dislipidemias20,21. No contexto do reconhecimento da SM, consideramos que o melhor critério para a escolha do ponto de corte da CC seria o do equilíbrio entre sensibilidade e especificidade. Se, por um lado, a sensibilidade é importante para o reconhecimento do maior número possível de indivíduos sob risco, por outro, uma boa especificidade ajudará na racionalização de recursos diagnósticos e terapêuticos, já que a SM é uma condição de alto risco para DCV e DM. As sensibilidades dos CCp, obtidas neste estudo, foram mais elevadas do que as do ATP III, enquanto essas foram mais específicas. Se a OC e os demais elementos da SM são de diagnóstico fácil, a custo muito baixo, e se todos eles podem ser prevenidos, controlados ou eliminados, consideramos que, nesse caso, é desejável uma boa sensibilidade, ainda que se perca em especificidade. Isso parece racional, considerando, por um lado, que as repercussões da SM são de elevado custo individual e social e, por outro, indivíduos falso-positivos poderiam ter diagnósticos facilmente excluídos em reexames de baixo custo, sem maiores traumas psicológicos.

Os critérios de anormalidade da CC, recomendados pelo ATP III, têm sido aplicados e validados como marcadores de obesidade abdominal e como fator de risco para doenças cardiovasculares e DM, sobretudo em populações de países desenvolvidos do ocidente7,22-4. Todavia, esses critérios não podem ser aplicados a outras populações com componentes étnicos distintos e, portanto, com características antropométricas também diferentes. Assim é que outros pontos de corte da CC têm sido propostos e utilizados para definição de obesidade central em populações fora dos Estados Unidos e da Europa12-15, 25-7.

Pelos critérios de anormalidade da CC propostos pelo ATP III, as prevalências de SM, ajustadas por idade, na população americana, foram de 24,0% para homens e 23,4% em mulheres28. Essas prevalências são muito próximas daquelas calculadas na população deste estudo a partir do CCp (20,5% para homens e 23,1% para mulheres).

Sendo os pontos de corte da CCp inferiores àqueles da CC-ATP III, restaria a preocupação de que, por essa razão, eles não mantivessem uma forte associação com os fatores de risco que compõem a SM, comprometendo o papel da medida de obesidade central como discriminador de risco cardiovascular, superior inclusive ao IMC. Porém, foi observado que, mesmo em indivíduos com IMC normal ou na faixa de sobrepeso, esses pontos de corte mantêm forte associação com os componentes da SM, tanto em mulheres quanto em homens (tab. 5).

Considerando os critérios de anormalidade da CC definidos neste estudo como os mais adequados para definir obesidade central, a utilização do ponto de corte da CC proposto pelo ATP III implicaria uma perda diagnóstica de 25,7% entre as mulheres e de 80,2% entre os homens. Conseqüentemente, a perda diagnóstica da SM seria de 39% entre os homens e de 23,4% entre as mulheres. Do ponto de vista clínico e social, esses valores são expressivos, podendo resultar na falta de ações preventivas específicas e, conseqüentemente, no aumento progressivo de casos de DM tipo 2 e afecções cardiovasculares.

A Sociedade Brasileira de Hipertensão, em conjunto com outras sociedades médicas, elaborou a I Diretriz Brasileira de Diagnóstico e Tratamento da Síndrome Metabólica29. Na ausência de dados nacionais, esse documento recomenda os mesmos pontos de corte de CC originalmente propostos pelo ATP III como critério diagnóstico de obesidade central. O presente estudo poderá trazer novos subsídios tanto para outros estudos populacionais sobre pontos de corte da CC no Brasil, quanto para futuras diretrizes, ajudando a estabelecer critérios diagnósticos de obesidade central mais apropriados para a população brasileira.

Considerando o melhor desempenho dos pontos de corte aqui propostos em relação aos do ATP-III, recomendamos os pontos de corte de CC >84 cm para as mulheres e > 88 cm entre os homens como critérios diagnósticos de obesidade central, e sugerimos que eles sejam testados em outras populações no Brasil.

Limitações do estudo - A perda parcial dos dados de mais de 30% da amostra inicial dos indivíduos que não compareceram para a coleta de sangue em jejum pode ter introduzido um viés de seleção. Perdas maiores ou pouco menores têm sido amplamente observadas na literatura, representando um dos obstáculos à pesquisa epidemiológica. Como as características da população de referência e a da população estudada são semelhantes, particularmente quanto à prevalência de hipertensão arterial e à medida da CC, acreditamos que a perda de dados não tenha prejudicado os nossos resultados.

Financiamento

O banco de dados do estudo foi financiado pelo Ministério da Saúde, e a análise, pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) Proc. 505671/2004-2.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.

Recebido em 16/03/06

Aceito em 11/04/06

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  • Correspondência:

    Paulo José Bastos Barbosa
    Rua Amazonas, 216, Loteamento Pituba Ville 229/M302
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      Out 2006

    Histórico

    • Recebido
      16 Mar 2006
    • Aceito
      11 Abr 2006
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