Acessibilidade / Reportar erro

O processo de criação das telenovelas

The soap opera creation process

Resumos

Gestores das indústrias criativas têm de lidar com a imprevisibilidade e a incerteza em relação à demanda. Essa característica não impede que empresas desse setor procurem se engajar na busca de um conhecimento sobre seus consumidores e, a partir dele, articular o desenvolvimento de novos produtos. O presente trabalho procura investigar como a Rede Globo utiliza as informações que provêm dos telespectadores na elaboração das suas telenovelas. Trata-se de um estudo de caso, que lança seu foco sobre os tipos de informação e os meios pelos quais a empresa obtém feedback de seus consumidores; e sobre a estrutura e dinâmica organizacional que permite o uso dessas informações no desenvolvimento de suas novelas. Os resultados apontam para uma aderência ao modelo improvisacional proposto por Kamoche e Cunha (2001), onde uma estrutura mínima permite coesão e favorece a flexibilidade para incluir modificações a partir da reação da audiência.

Indústrias criativas; Televisão; Telenovelas; Comportamento do consumidor; Improvisação


Managers in the creative industries have to deal with demand unpredictability and uncertainty. This characteristic does not prevent companies in this sector from trying to pursue knowledge about their consumers and, armed with this knowledge, from articulating the development of new products. This work investigates how the Globo Broadcasting network uses information that comes from viewers for preparing its soap operas. This is a case study that focuses on the types of information and the means by which the company gets feedback from its consumers and on the structure and organizational dynamic that allows for the use of this information in developing its soap operas. The results indicate an adherence to the improvisational model proposed by Kamoche and Cunha (2001), where a minimum structure allows for coherence and favors flexibility when it comes to including modifications based on audience reaction.

Creative industries; Television; TV soap operas; Consumer behavior; Improvisation


FÓRUM

O processo de criação das telenovelas

The soap opera creation process

Lúcia Maria Bittencourt OguriI; Marie Agnes ChauvelII; Maribel Carvalho SuarezIII

IProfessora do Departamento de Matemática, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - RJ, Brasil. lumabittencourt@yahoo.com.br

IIProfessora da Escola de Negócios, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - RJ, Brasil. marie@iag.puc-rio.br

IIIProfessora do Instituto de Pós-graduação e Pesquisa em Administração, Universidade Federal do Rio de Janeiro - RJ, Brasil. maribels@coppead.ufrj.br

RESUMO

Gestores das indústrias criativas têm de lidar com a imprevisibilidade e a incerteza em relação à demanda. Essa característica não impede que empresas desse setor procurem se engajar na busca de um conhecimento sobre seus consumidores e, a partir dele, articular o desenvolvimento de novos produtos. O presente trabalho procura investigar como a Rede Globo utiliza as informações que provêm dos telespectadores na elaboração das suas telenovelas. Trata-se de um estudo de caso, que lança seu foco sobre os tipos de informação e os meios pelos quais a empresa obtém feedback de seus consumidores; e sobre a estrutura e dinâmica organizacional que permite o uso dessas informações no desenvolvimento de suas novelas. Os resultados apontam para uma aderência ao modelo improvisacional proposto por Kamoche e Cunha (2001), onde uma estrutura mínima permite coesão e favorece a flexibilidade para incluir modificações a partir da reação da audiência.

Palavras-chave: Indústrias criativas, Televisão, Telenovelas, Comportamento do consumidor, Improvisação.

ABSTRACT

Managers in the creative industries have to deal with demand unpredictability and uncertainty. This characteristic does not prevent companies in this sector from trying to pursue knowledge about their consumers and, armed with this knowledge, from articulating the development of new products. This work investigates how the Globo Broadcasting network uses information that comes from viewers for preparing its soap operas. This is a case study that focuses on the types of information and the means by which the company gets feedback from its consumers and on the structure and organizational dynamic that allows for the use of this information in developing its soap operas. The results indicate an adherence to the improvisational model proposed by Kamoche and Cunha (2001), where a minimum structure allows for coherence and favors flexibility when it comes to including modifications based on audience reaction.

Keywords: Creative industries, Television, TV soap operas, Consumer behavior, Improvisation.

INTRODUÇÃO

O imperativo de entender o comportamento do cliente (GROVER, 2006; ZALTMAN e ZALTMAN, 2008), ouvir sua voz e aprender a partir de suas experiências (ARNOULD e EPP, 2006) parece ganhar contornos mais complexos no contexto das chamadas indústrias criativas. Afinal, o que deseja e espera o público de um produto cultural, como, por exemplo, um quadro de arte, um espetáculo teatral, uma música, um jogo ou uma telenovela? Que elementos são necessários para conquistar a atenção da audiência?

"Ninguém sabe" é a resposta dada por Caves (2000) na sua análise sobre as particularidades dos bens culturais. O autor argumenta que produtores e gestores desses produtos têm de lidar com a imprevisibilidade e a incerteza em relação à demanda: novos produtos culturais não se beneficiam de experiências anteriores, sendo, portanto, limitada a capacidade de prever a reação do público, bem como o sucesso de um novo empreendimento.

Esse alto nível de incerteza, no entanto, não impede que empresas desse setor procurem se engajar na busca de um conhecimento sobre seus consumidores e, a partir dele, articular o desenvolvimento de novos produtos. No Brasil, a Rede Globo de televisão se notabilizou por essa prática na produção de suas novelas. Atingindo diariamente cerca de 40 milhões de espectadores, as telenovelas são um dos maiores fenômenos da cultura de massa brasileira (BORELLI, 2001; BERGAMO, 2006). Diferentemente da maior parte das organizações, a Rede Globo mensura "a compra" de seus produtos em tempo real (através da medição da audiência) e utiliza de forma sistemática as informações sobre clientes no aperfeiçoamento da sua oferta.

O presente trabalho utiliza-se do método de estudo de caso para investigar: 1) os tipos de informação e os meios pelos quais a Rede Globo obtém feedback de seus consumidores; e 2) a estrutura e dinâmica organizacional que permite o uso dessas informações no desenvolvimento de suas novelas. Os dados foram levantados principalmente por meio de entrevistas pessoais com profissionais da empresa (executivos, autores e diretores de novelas) e pesquisa bibliográfica, além de outros meios complementares.

A análise estrutura-se a partir do modelo improvisacional proposto por Kamoche e Cunha (2001). A escolha desse arcabouço conceitual se deve à aderência encontrada entre os elementos nos quais se fundamenta a improvisação jazzística - base do modelo de Kamoche e Cunha (2001) - e o modo de produção de telenovelas da Rede Globo, que, apesar da escala industrial em que opera, permite que a improvisação faça parte do processo da sua criação.

Assim, além de contribuir para reduzir a lacuna de estudos em torno da indústria criativa tanto no Brasil (BENDASSOLLI e WOOD JR., 2007) quanto no mundo (HARTLEY, 2005), o presente trabalho se alinha aos esforços de reflexão sobre o tema da improvisação organizacional. Nesse aspecto, procura avançar um passo nas discussões abstratas e predominantemente teóricas que dominam esse campo emergente (KAMOCHE, CUNHA e CUNHA, 2003) para apresentar como a improvisação se manifesta na prática de uma grande empresa.

O artigo está estruturado da seguinte forma: inicialmente, é apresentada uma revisão de literatura sobre desenvolvimento de novos produtos, com ênfase nos conceitos de improvisação e apresentação do modelo improvisacional. A seguir, a metodologia justifica a escolha pelo método do caso e os procedimentos de coleta e análise dos dados. Em seguida, o caso da Rede Globo é apresentado, juntamente com discussões teóricas relacionadas. Por fim, as considerações finais procuram refletir sobre as principais contribuições do presente trabalho.

CONCEITOS FUNDAMENTAIS

A importância da integração das informações dos clientes no processo de inovação das empresas está prestes a ser incluída no rol das melhores práticas, com amplo suporte teórico e empírico (THOMKE e HIPPEL, 2002; CALLAHAN e LASRY, 2004; ENKEL, PEREZ-FREIJE e GASSMAN, 2005). Tal imperativo faz com que as fronteiras entre produção e consumo tornem-se cada vez menos nítidas e que o consumidor passe, inclusive, a ser entendido como "co-criador" do valor que é oferecido pela empresa (VARGO e LUSCH, 2004; 2008; LUSCH e VARGO, 2006; VARGO, MAGLIO e AKAKA, 2008). O desafio reside, então, no desenvolvimento de reflexão conceitual que ajude a estruturar uma orientação para o mercado, como definido por Kohli e Jaworski (1990), desde a identificação das necessidades dos consumidores, passando pela disseminação dessa informação pelas diferentes áreas funcionais até a sua consequente tradução em ações ajustadas ao desejo do público.

A literatura mais recente da área de desenvolvimento de produtos procura enfatizar, além da necessidade de pesquisas e da participação dos clientes, a importância de processos mais flexíveis, no lugar dos convencionais modelos sequenciais, onde as diferentes etapas se sucedem, de forma organizada e previsível (IANSITI e MACCORMACK, 1997; THOMKE e REINERTSEN, 1998).

Alguns estudos (EISENHARDT e TABRIZI, 1995; THOMKE e REINERTSEN, 1998) chamaram a atenção para a importância do processo de desenvolvimento de produtos acomodar possíveis mudanças nas preferências dos consumidores e nas tecnologias disponíveis, sobretudo em ambientes turbulentos, de intensa competição. Combinando um senso de urgência com a incorporação permanente de novas informações e a troca entre colaboradores no projeto, a proposta flexível procura minimizar o custo econômico de uma mudança no produto em relação a mudanças em variáveis internas ou externas no processo de desenvolvimento (THOMKE e REINERTSEN, 1998). Nesse contexto, a visão tradicional da gestão empresarial como ação planejada e disciplinada, que tem por objetivo evitar a incerteza, tem sido questionada por trabalhos que investigaram sua natureza emergente e não planejada (MINTZBERG e MCHUGH, 1985) e a importância da capacidade de improvisação para as organizações (EISENHARDT e TABRIZI, 1995; CUNHA, CUNHA e KAMOCHE, 1999; KAMOCHE e CUNHA, 2001; CUNHA, 2002).

Kamoche, Cunha e Cunha (2003, p. 2024) definem improvisação como "a concepção da ação à medida que ela se desenvolve, baseada nos recursos cognitivos, afetivos, sociais e materiais disponíveis". Associada, de maneira geral, ao acaso, acidentes ou soluções inesperadas para as situações de crise, a improvisação tem suscitado novas investidas teóricas dada a sua importância para os processos organizacionais relacionados à inovação, criatividade e mudança (KAMOCHE, CUNHA e CUNHA, R. C., 2003).

Dentro desse desafio e dos estudos sobre desenvolvimento de novos produtos, Kamoche e Cunha (2001) propuseram um modelo baseado na improvisação jazzística, cujo objetivo é justamente dar conta de processos de inovação altamente imprevisíveis e incontroláveis. Segundo os autores, ainda que o modo flexível consiga lidar com ambientes em mudança, ele não chega a captar a complexidade e a síntese necessárias entre flexibilidade e estrutura.

Na improvisação jazzística, os autores foram buscar elementos para analisar o que seria uma estrutura mínima ou, como eles mesmos afirmam, "a capacidade de criar tanto a partir de tão pouco" (KAMOCHE e CUNHA, 2001, p. 744). O jazz, o estilo musical americano, caracteriza-se pela transformação estilística permanente, pela valorização da capacidade de improviso ou de recriação dos músicos envolvidos a partir de uma obra existente. O entendimento do que proporciona essa capacidade criativa - uma combinação única de estrutura e liberdade - pode, nas palavras de Cunha (2002, p. 37), "se revelar precioso para alcançar um novo entendimento sobre a essência da estrutura organizacional".

Os autores destacam dois elementos que comporiam a estrutura mínima do jazz que poderiam ser transpostos também para a realidade das empresas: as estruturas sociais e técnicas. As primeiras incluem elementos como normas de comportamento, códigos de comunicação, parcerias autônomas, dinâmicas de solo e acompanhamento, atitudes de abertura ao risco e à experimentação. Já as estruturas técnicas dizem respeito às convenções técnicas, bem como à variedade e combinações de talentos, habilidades e capacidades que cada indivíduo traz para o conjunto.

Objetivo e metodologia

O presente trabalho é um estudo de caso, tendo como unidade de análise o processo gerencial observado em uma organização (YIN, 2001, p. 32). O estudo foi realizado na empresa de televisão Rede Globo e focou o processo de coleta, análise e utilização de dados sobre o telespectador no processo de produção de telenovelas. Seu objetivo é descrever e compreender como a empresa utiliza as informações provenientes de telespectadores na criação de novelas. O modelo que serviu de base à análise é o da "improvisação jazzística", proposto por Kamoche e Cunha (2001).

Como recomenda Yin (2001), foram utilizadas várias fontes de evidências, como entrevistas pessoais com profissionais e consulta aos arquivos da empresa (realizadas entre 2003 e 2004), além da coleta de dados secundários, em livros, documentos, matérias jornalísticas, internet (de 1990 a 2007). A seleção dos entrevistados priorizou informantes em cargos com maior poder de decisão em relação ao produto final (telenovelas). Assim, dentre os autores, foram entrevistados: Edmara Barbosa (por e-mail), Edilene Barbosa (por e-mail), Gilberto Braga (por e-mail), Lucia Abreu, Manoel Carlos, Ricardo Linhares (por e-mail) e Silvio de Abreu. O trabalho de campo incluiu ainda entrevistas com o diretor de novelas Jorge Fernando, o diretor da Central Globo de Qualidade, Mário Lúcio Vaz, a diretora da Divisão de Pesquisa, Eneida Nogueira, a executiva responsável pela Central de Atendimento ao Telespectador, Márcia Clark, e o diretor de produção, Alexandre Ishikawa. Todas as entrevistas pessoais foram integralmente gravadas e transcritas, totalizando cerca de 200 páginas para análise. Também foram feitas visitas à Central Globo de Produção (no Projac), onde são produzidas as telenovelas.

A análise aconteceu em duas etapas distintas. Na primeira delas foram levantadas categorias emergentes, a partir de elementos recorrentes nas falas dos diversos entrevistados. Em um segundo momento, buscou-se reinterpretar tais categorias à luz do modelo improvisacional. O cruzamento dos elementos do modelo com as categorias emergentes permitiu às pesquisadoras aprofundar a compreensão da dinâmica organizacional que permite à Rede Globo integrar as informações sobre os consumidores ao processo de desenvolvimento de suas novelas.

O estudo tem caráter exploratório e qualitativo, o que se justifica dada a escassez de trabalhos acadêmicos sobre o tema e a complexidade do processo investigado. Como é inerente a esse tipo de investigação, seus resultados não podem ser generalizados. Embora se tenha buscado descrever com a maior profundidade possível o processo estudado, este é extremamente complexo e envolve um grande número de profissionais, além de diversas atividades que não puderam ser investigadas em detalhe, mas são também essenciais na produção de novelas. Aspectos técnicos da produção (como figurinos, iluminação, sonoplastia e outros), apesar de serem frequentemente apontados como uma das competências que diferenciam as novelas da Globo, não foram abordados. Os resultados aqui apresentados baseiam-se nos depoimentos colhidos nos setores envolvidos na captação de informações sobre os telespectadores e na sua utilização como elemento para desenvolvimento do produto, podendo não refletir o ponto de vista de todos os profissionais da organização.

REDE GLOBO E AS TELENOVELAS

Em 2008, a TV Globo desponta como a maior rede de televisão brasileira, contabilizando cinco emissoras próprias (situadas no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Brasília) e 131 afiliadas. A empresa, que foi fundada em 1965 por Roberto Marinho e atualmente emprega cerca de 8 mil funcionários, integra as Organizações Globo, o maior conglomerado de mídia, comunicações e entretenimento da América Latina.

Segundo dados fornecidos pela empresa (REDE GLOBO, 2008), a cobertura da Rede Globo em território brasileiro alcançava 98,4% dos municípios do país. Sua abrangência também pode ser medida na comparação com outros países: a empresa detém a segunda maior audiência mundial no horário nobre (atrás apenas da rede norte-americana CBS) e seus produtos são exportados para 130 países.

Cerca de 90% da programação é produzida internamente. Os estúdios da empresa produziram, em 2007, 2.455 horas de programas - o equivalente a mais de 1.200 longas-metragens. Grande parte desse trabalho foi realizado na Central Globo de Produção (CGP), também conhecida como Projac (Projeto Jacarepaguá). Localizado em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio, o Projac foi construído sob as premissas básicas de alcançar maior produtividade, custos de produção mais baixos, melhoria em tecnologia e mais qualidade em ambiente de trabalho. Dessa fábrica televisiva saem programas infantis, de humor, variedades, minisséries e telenovelas, sendo estas últimas o principal produto comercial da empresa.

De acordo com Pallotini (1998, p. 53), telenovela "é uma história contada por meio de imagens televisivas, com diálogos e ação, uma trama principal e muitas subtramas que se desenvolvem, se complicam e se resolvem no decurso da apresentação". Borelli (2001) explica que a telenovela é originária de várias tradições, sendo algumas populares, como as narrativas orais, e outras criadas pelos meios de comunicação de massa, como as radionovelas e as soap operas norte-americanas. Entretanto, no Brasil, desenvolveram-se alguns traços próprios, que a diferenciam da produção latino-americana. Um desses traços seria o "diálogo com a realidade brasileira", que traz para a tela temas que fazem parte do cotidiano dos espectadores, fatos políticos, culturais e sociais da atualidade, incorporando às tramas "um tom de debate crítico sobre as condições históricas e sociais vividas pelos personagens".

A história da telenovela brasileira caminha junto com a da televisão no país. A vida por um fio, o primeiro programa televisivo que se assemelhava a uma novela, foi transmitida em 1950 pela pioneira TV Tupi, dois meses após a sua inauguração. A primeira novela com texto totalmente brasileiro para a televisão foi Ambição, de Ivani Ribeiro, exibida em 1964 pela TV Excelsior. Durante toda a década de 1960, as novelas foram patrocinadas por firmas de sabão e dentifrício. Como a indústria televisiva brasileira não tinha capital suficiente para a produção, as agências de publicidade eram donas dos programas, tendo poder de escolha sobre o enredo e a equipe envolvida, inclusive o diretor e o elenco (ORTIZ, BORELLI e RAMOS, 1991). Como lembra Borelli (2001), na ocasião, as novelas eram produzidas de forma artesanal, com muita improvisação e sem uma divisão de trabalho que definisse as diferentes etapas da produção. Nesse período, não havia um modelo de produção que se preocupasse com a relação entre custo e número de capítulos das novelas, nem um planejamento em relação ao horário em que determinada trama deveria ser transmitida para ter audiência ou mesmo qual público pretendia atingir (ORTIZ, BORELLI e RAMOS, 1991).

No final da década de 1960, a Rede Globo consolidou e industrializou o novo gênero. Segundo Alencar (2002), a rede foi responsável pela forma brasileira da telenovela e pela sua transformação em produto de consumo nacional. A empresa imprimiu uma série de mudanças no processo produtivo da telenovela, instaurando, por exemplo, a divisão do trabalho, com a criação de departamentos responsáveis pelas diferentes etapas da produção (roteiro, direção, figurinos, cenários, iluminação, sonoplastia etc.). A emissora investiu ainda no treinamento e na formação dos profissionais que atuavam nesses departamentos, buscando constituir um corpo de especialistas que soubessem "fazer televisão" e não mais apenas produzir "teatro, cinema, rádio e literatura 'na' televisão".

A construção do produto telenovela

Em capítulos diários, com aproximadamente 45 minutos de história, as telenovelas apenas não são exibidas aos domingos, alcançando, em média, seis meses de exibição. Além da longa duração, o traço distintivo desse produto em relação às minisséries ou aos seriados é que ele é escrito à medida que se produz. Segundo Alexandre Ishikawa, diretor de produção entrevistado nesta pesquisa, a novela estreia com 12-18 capítulos gravados. Depois da estreia, são produzidos e exibidos seis capítulos a cada semana. O executivo chega a fazer uma analogia da produção de telenovelas, com uma produção industrial, no sentido do ritmo de produção:

Todos os dias, fabrica-se um capítulo novo, e transmite-se um novo, aconteça o que acontecer, com todas as rotinas de organização de uma indústria. Porém há duas diferenças básicas: primeiro não sai sempre a mesma coisa; segundo, nossa matéria-prima é o ser humano. Uma chapa feita numa fábrica de automóvel, independentemente de quem quer que faça, resulta sempre na mesma chapa. Aqui só existe um Tony Ramos. Se ele ficar rouco ou doente, tem que esperar ele ficar bom ou encontrar alguma solução.

Apesar do risco exposto por Ishikawa, a Rede Globo, ainda assim, prioriza a dinâmica de produção e exibição quase que simultâneas, possibilitando à equipe de criação fazer pequenas adaptações nas novelas - o que lhe confere maior flexibilidade. Na sua entrevista, o diretor da Central Globo de Qualidade (CGQ), Mário Lúcio Vaz, destaca que a obra é "aberta" por escolha da própria emissora. Há, segundo ele, interesse em relação ao feedback do telespectador: com essa dinâmica, autores, diretores e a produção têm a possibilidade de ajustar e atualizar a obra, com inserções de fatos novos, quase que em "tempo real". Quanto a isso, Kamoche, Cunha e Cunha (2003) afirmam que, na maioria das organizações, a improvisação geralmente não é deliberada, ela ocorre em reação a determinado problema. Esse não é o caso da Rede Globo.

Ao produzir suas telenovelas em compasso com a exibição, a organização incorpora e valoriza a possibilidade de improvisar, de postergar decisões sobre o produto final, preferindo ter a possibilidade de se moldar à reação da audiência. Nesse sentido, é importante considerar as diferenças entre o tipo de improvisação empreendida pela empresa na década de 1960 e aquela praticada hoje. Se no início de sua atividade a improvisação era gerada por seu aspecto quase amador, exigindo de seus profissionais a capacidade de solucionar falhas e imprevistos, atualmente a capacidade de improvisação se constitui em recurso competitivo e é viabilizada pela estrutura profissional alcançada pela empresa.

Para o escritor Ricardo Linhares, um dos entrevistados nessa pesquisa, toda novela necessita de certas correções de rumo ao longo de seu curso, em maior ou menor grau. Linhares afirma que é justamente a troca com o público que torna o trabalho estimulante: a grande motivação de se escrever uma novela.

Essa postura expressa por Linhares e outros autores evidencia que, também no plano individual, os profissionais que assumem a responsabilidade por criar as telenovelas precisam valorizar a improvisação e incorporar competências que Kamoche, Cunha e Cunha (2003) definem como provocativas: não se basear em rotinas, zonas de conforto ou sucessos passados, valorizando a busca de novas alternativas e os limites de seus conhecimentos.

Assumir tal risco parece fazer sentido no caso de produtos culturais, como as telenovelas, na medida em que os consumidores parecem se comportar como consumidores inexperientes, que não conseguem descrever exatamente suas necessidades e interesses até que interajam com a oferta (VON HIPPEL, 1988 apud THOMKE e REINERTSEN, 1998).

A base para improvisação

A elaboração do roteiro de uma novela inicia-se com uma sinopse, que é um resumo da história, onde se apresentam já estruturadas a trama principal e as histórias paralelas. A caracterização das situações é ampla e aberta, e tem por objetivo apresentar os personagens e fornecer uma base sustentável a uma história que será contada por vários meses. O autor terá a tarefa de desenvolver os diálogos e o quadro dramático, ao longo desse tempo, em diversos capítulos. Como um protótipo inicial, a sinopse permite determinar o número de personagens, o tipo de cenografia e de figurino a serem utilizados, proporcionando a primeira estimativa dos custos. Permite prever todos os elementos que compõem a infraestrutura material, organizacional e artística da produção. Mesmo que seu enredo possa sofrer alterações sugeridas pelo público, pela empresa ou pelo próprio autor, é o ponto de partida do processo e é de sua aprovação que depende o início de qualquer novela (ALENCAR, 2002).

Mário Lúcio Vaz (diretor da CGQ) explica na entrevista que as mudanças nas teledramaturgias não são aleatórias: é preciso que se obedeça à coerência da história, pois o autor tem um destino para seus personagens e sua trama. Alguns elementos podem ser mudados, como, por exemplo, um personagem que aumenta ou diminui ou o número de capítulos a serem exibidos. Qualquer alteração que se faça dependerá de vários fatores: se o ator estiver bem ou não no papel, da química entre os casais românticos da novela, entre outros. O diretor observa, entretanto, que a sinopse original não muda, sendo essa ideia uma invenção ou um mito popular. Segundo ele, em 95% dos casos, as sinopses não sofrem alterações.

Nesse sentido, a sinopse parece se aproximar do que seria o modelo básico, o conceito que vai guiar toda a "improvisação" dos diversos profissionais envolvidos no projeto. A partir dessa estrutura técnica, cada um dos envolvidos (diretores, cenógrafos, figurinistas, atores, departamento comercial, de marketing etc.) pode criar uma dinâmica de parcerias, com certa autonomia entre as partes. Justamente por isso, alterar uma sinopse - a estrutura básica sobre a qual todos trabalham - não é tarefa simples e exige a decisão do mais alto escalão da empresa. Manoel Carlos, um dos autores entrevistados, cita o exemplo de Baila comigo. O público escreveu ao autor pedindo para que o personagem interpretado por Fernando Torres não morresse, como estava previsto na trama. Após uma reflexão pessoal, Manoel Carlos conversou com Boni, diretor-geral, na ocasião, que aprovou a decisão de mudar a sinopse. O fato de precisar acionar o mais alto escalão da empresa para tomar essa decisão ilustra a importância dada à sinopse, dentro do projeto de uma telenovela.

Estrutura e fontes de informação

A Globo foi a primeira emissora de televisão a se valer de pesquisas realizadas junto aos telespectadores para planejar e administrar sua grade de programação. A autora Lucia Abreu faz questão de explicitar na sua entrevista que quando se fala em público se quer dizer o público que se manifesta por cartas, pela imprensa, telefonemas para a Central de Atendimento ao Telespectador (CAT), pesquisas qualitativas ou índices de audiência. Sua fala evidencia, assim, o conhecimento dos principais meios formais utilizados pela empresa para a captação de informações sobre os consumidores: as pesquisas de audiência, as pesquisas qualitativas (discussões em grupo) e a CAT. Abreu e outros autores entrevistados demonstram, assim, nas questões relacionadas à pesquisa do consumidor, um dos aspectos citados por Kamoche e Cunha (2001): a consciência dos recursos disponíveis e como eles podem ser utilizados por seus profissionais.

O Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) é a empresa que faz a aferição dos índices de audiência. Os dados são coletados em tempo real e de forma contínua. O Ibope Mídia tem por objetivo fornecer dados sobre a segmentação da população, hábitos de consumo e audiência de mídia. O Painel Nacional de Televisão (PNT), sistema utilizado pela empresa para aferição eletrônica da audiência minuto a minuto, baseia-se na instalação de people meters em uma amostra fixa determinada estatisticamente segundo parâmetros sociodemográficos (painel). O objetivo principal do PNT é oferecer ao mercado uma descrição do consumo de TV no mercado brasileiro traduzida em informações de estado de sintonia, audiência domiciliar e individual, penetração, perfil, alcance e frequência de exposição ao meio. Além de avaliar o volume total da audiência, permite aferir a qualificação ou perfil do público de cada programa. Oferece informações por faixas de horário e programas, apresentando estimativas em percentuais ou números absolutos.

Essa pesquisa também permite identificar um conjunto de telespectadores com características semelhantes e realizar análises separadas de audiência a partir de agrupamentos dos programas em um determinado gênero. Na Rede Globo, esses índices servem como indicadores para o planejamento da grade de programação, alterações, extinção ou sobrevivência de programas e também para monitorar a concorrência. Com base neles, é estabelecido o chamado trilho dos programas, que é um intervalo considerado razoável de oscilação dos índices de audiência. Não é um parâmetro fixo, mas um indicador que considera as características do horário e outros fatores. Uma telenovela que não obtém, depois de certo número de capítulos, um índice satisfatório poderá sofrer ajustes ou ser concluída antes do tempo previsto. Por outro lado, aquela cujo sucesso é revelado pelos seus números, mantém-se e pode ser prolongada pela emissora. A partir da definição do trilho, a Rede Globo parece criar e compartilhar um critério mínimo de desempenho para todos os envolvidos no projeto (KAMOCHE e CUNHA, 2001). Trata-se, assim, de um objetivo claro a ser superado por todos, nas suas diferentes áreas de atuação.

A pesquisa de audiência é a base para avaliar o que está no ar. As pesquisas qualitativas, complementares, são realizadas como forma de controle, verificação ou manutenção dos programas. Essencialmente, consistem em discussões em grupo. Para cada novela, são feitos, pelo menos, dois ou três grupos de foco (usualmente, nos capítulos 18, 36 e 54). Nesses estudos, são investigadas as características de cada personagem, núcleo e história. Pergunta-se sobre a compreensão da trama, os personagens, os casos amorosos, os aspectos morais e estéticos da história, dramaticidade, rejeição a personagens, aspectos de produção e conclusão da história.

A Divisão de Pesquisa da Globo coordena todo esse processo de pesquisa. É ela quem leva às áreas produtoras dos programas as informações sobre o telespectador. Junto com os Institutos de Pesquisas que realizam as discussões em grupo, ela interpreta os resultados e ajuda os profissionais da emissora a utilizá-los nas suas decisões. Mário Lúcio Vaz (diretor da CGQ) observa que, usualmente, os autores não leem os relatórios de pesquisa. Esses são apresentados a eles e discutidos em conjunto quando necessário.

Além dessas formas de representações do público, há ainda a Central de Atendimento ao Telespectador (CAT). A função do setor é atender o telespectador, registrar sua opinião e responder-lhe. Embora a Central não tenha o papel de realizar pesquisas, emite relatórios com o conteúdo organizado de todas as ligações de telespectadores. O volume de comunicados, que é de aproximadamente 50 mil ligações telefônicas mensais, faz com que o setor tenha destaque na empresa. A CAT é citada por autores, profissionais de produção e outros como uma referência sobre o público telespectador.

Na estrutura da empresa, um departamento fundamental na articulação entre as informações sobre os consumidores e os profissionais de criação (autores e diretores) é a Central Globo de Qualidade (CGQ). O setor tem por função fazer a análise dos produtos, verificar e manter o controle dos níveis de audiência, ajustar os programas de acordo com critérios preestabelecidos e decidir sobre sua permanência na grade de programação. É o departamento que recebe e analisa os resultados da Divisão de Pesquisa, bem como os relatórios da CAT, e formula possíveis ações. Ele pode, por exemplo, sugerir aos autores que alonguem ou encurtem determinadas tramas ou, até, a novela como um todo.

A CGC parece, portanto, ter um importante papel de mediação entre a área de negócio da empresa e o delicado processo de criação artística das telenovelas. Valendo-se da metáfora de uma banda de jazz, o departamento age como o líder que precisa conciliar a agenda, os compromissos financeiros, a atuação dos músicos e, é claro, o divertimento da plateia. Realiza seu trabalho promovendo a interação entre os diferentes times de trabalho e o compartilhamento das informações, em "tempo quase real", contribuindo permanentemente para o aperfeiçoamento do produto (KAMOCHE e CUNHA, 2001). A CGQ detém grande poder, mas, assim como o líder da banda de jazz, sabe que o resultado musical está, em última análise, nas mãos de seus músicos. E na Rede Globo, os grandes "solistas" são o diretor da novela e, sobretudo, o autor.

Da informação à ação

Os índices de audiência são o "termômetro" da emissora para avaliar o desempenho de seus programas. É comum que os índices de audiência oscilem. Mas a satisfação do público com os programas de dramaturgia é apenas um dos fatores que provocam essas oscilações. Concorrência, fatos de relevância sociocultural como a Copa do Mundo, acontecimentos de peso, como o 11 de Setembro, trânsito, chuva, horário de verão, afetam esses números.

Dependendo do tipo de oscilação, os canais competentes da empresa e os autores examinam o conteúdo da novela e formulam hipóteses sobre os aspectos que podem interferir na audiência. Se uma novela cai por três dias consecutivos, por exemplo, é possível associar a queda a algum tipo de insatisfação do público, embora essa relação de causa e efeito não seja segura. O inverso também pode ocorrer: associar a elevação dos índices à satisfação com alguns elementos da novela, tais como temáticas, personagens, núcleos ou o capítulo como um todo.

Autores e diretores são unânimes quanto à importância dos índices de audiência, mas nem sempre lhes dão o mesmo peso, principalmente no que diz respeito a mudanças de enredo. Para a roteirista Calza (1996), tudo pode mudar se os índices de audiência apontarem para um desastre. O enredo pode ser transformado, personagens podem ser completamente descaracterizados para evitar um fracasso. Ela salienta que contar uma história é uma façanha, e que os roteiristas têm que lidar com um "antagonista" - o telespectador, seu crítico implacável, que, se não se satisfizer, muda de canal.

Segundo a autora Lucia Abreu, entrevistada na pesquisa, a intensidade da interferência do público nas teledramaturgias varia de autor para autor e depende, também, do momento em que a novela se encontra. O fato de os índices de audiência serem disponibilizados minuto a minuto permite que os autores os relacionem às cenas da novela, assinalando as que não estão funcionando junto ao público. Mas o autor tem uma história para contar e seus personagens têm um destino; não se pode seguir cada modificação que o telespectador quer, do contrário torna-se impossível escrever a história toda. O depoimento de outro entrevistado, Gilberto Braga, vai no mesmo sentido, ao afirmar que "é sempre importante ouvir a opinião do telespectador, pois é para ele que se escreve, mas nem sempre é possível fazer-lhe as vontades".

Para o autor Manoel Carlos, o conhecimento dos índices de audiência a cada minuto é, logo no início, no lançamento da novela, um bom recurso para o monitoramento da sua qualidade. Pode-se fazer um acompanhamento. Por exemplo, se uma cena é muito longa, se está no tamanho certo, se cansou o público, se é muito violenta etc. Por outro lado, o autor sublinha que as pessoas se equivocam quando pensam que os autores são pressionados pela emissora quando a novela não atinge a audiência desejada. Segundo ele, quem exerce a pressão é o próprio autor, e o que existe é um compromisso deste com a audiência ou com o sucesso da novela. O autor ressalta ainda que a emissora nunca lhe telefonou para pedir que mudasse coisa alguma numa novela. O autor Silvio de Abreu, por sua vez, também reforça a importância dos índices de audiência, afinal, se aceitou o contrato de trabalho com a emissora, é obrigado a buscar o sucesso, isto é, audiência.

Segundo Mário Lúcio Vaz, diretor da CGQ, a intervenção do seu departamento é limitada, pois, se há problemas com a audiência, a central procura auxiliar os criadores com informações provenientes das pesquisas que os ajudem a avaliar hipóteses sobre as possíveis causas do mau desempenho. Vaz explica que, ainda assim, alguns autores não gostam de fazer alterações. Preferem, quando os índices não são bons, encurtar a novela.

A autonomia dada aos autores parece apontar para outra característica do modelo improvisacional, sugerido por Kamoche e Cunha (2001), qual seja, a confiança mútua na integridade da performance. A empresa, a partir da CGQ, informa os parâmetros que espera de cada produto. Também procura dar, por resultados da pesquisa, subsídios que ajudem a compreender a causa do desempenho. No entanto, em vez de interferir no processo de criação, prefere confiar no julgamento e na performance do profissional que escalou para conceber o projeto: o autor. Eneida Nogueira (diretora da Divisão de Pesquisa) esclarece a postura da empresa ao apontar que "o autor aqui é rei. Isso é o que faz a diferença: o processo de criação. Quanto menos amarras você der para o criador, melhor. Quando você amarra a criação, você faz um produto burocrático".

Em suma, o que os depoimentos apontam é que os índices de audiência sinalizam à emissora e aos autores, problemas e oportunidades. Eles não ditam decisões. Funcionam como indicadores que precisam ser interpretados, e somente em alguns casos resultam em alterações no produto, que raramente envolvem elementos-chave do enredo. Além disso, fica claro que o projeto inicial, a sinopse, em suas grandes linhas, é o que guia a novela. Em outras palavras, há uma história a ser contada, que pode sofrer alterações, mas deve obedecer a uma lógica. Cabe ao autor, junto com o diretor da telenovela, manter a coerência do conjunto que acaba indo ao ar, o que se tornaria praticamente impossível se fossem introduzidas modificações significativas a cada variação de audiência.

O aprendizado nos grupos de discussão

As pesquisas qualitativas permitem entender e interpretar as oscilações nos índices de audiência. Nem sempre têm papel importante. Segundo Mário Lúcio Vaz (diretor da CGQ), quando a novela vai bem, não há muito com que se preocupar. Chocolate com pimenta foi um exemplo de novela que depois de um determinado momento, com a audiência estabilizada, demandou pouca pesquisa.

O autor Ricardo Linhares diz na sua entrevista que a discussão em grupo permite tirar dúvidas. O autor acompanhou a pesquisa de grupo de discussão encomendada pela emissora para sua novela Agora é que são elas. O resultado das pesquisas indicou o oposto do que diziam as matérias de jornal sobre o sentimento do público. A partir desse feedback, o autor, então, acelerou a trama e juntou os protagonistas bem antes do que previa a sinopse. Essas iniciativas, segundo o autor, trouxeram o resultado esperado, com excelentes índices de audiência.

Outro entrevistado, o autor Manoel Carlos, explica que, quando os resultados das reuniões de grupo revelam problemas com algum personagem, ele apenas escuta e reflete. Se a audiência caísse muito, ele se preocuparia em saber o que estaria acontecendo. Concorda que é para isso que existem as reuniões de grupo. Se tivesse uma crise em uma novela, afirma que pediria imediatamente à emissora que realizasse pesquisa de grupo de foco.

O escritor Gilberto Braga lembra que, na novela O dono do mundo, sentiu necessidade de pesquisas logo na primeira semana por causa da queda na audiência. Conta que a rejeição ao vilão foi tão grande que o obrigou a promover extensas alterações na história. Depois de algumas mudanças, a audiência subiu pouco a pouco.

Entretanto, nem sempre os autores optam por contemplar os desejos dos telespectadores captados pelas pesquisas. O autor Manoel Carlos conta que, em Mulheres apaixonadas, não pôde mudar o destino de um dos personagens de nome Fred. Esse teve que morrer apesar dos apelos do público, pois ele desejava transmitir uma mensagem ao telespectador. Manoel Carlos também observa que deu sobrevida por muitos capítulos à personagem Fernanda, de Mulheres apaixonadas, por um problema de dramaturgia, e não por influência do público, já que, se ela morresse, sua filha ficaria sem densidade dramática. A autora Lucia Abreu conta também que a novela Explode coração não sofreu nenhum tipo de modificação, ainda que o público tenha pedido muito por uma inversão do par romântico.

Às vezes, tais decisões de mudança resultam em fracasso. O diretor Jorge Fernando relata que a novela As filhas da mãe teve problemas de baixa audiência. Foi um exemplo de produto que passou por um processo de mudanças que não chegou a lugar algum. O público rejeitou o formato e a novela terminou no capítulo 130, quando estava programada para terminar com 180 capítulos.

Central de Atendimento ao Telespectador

Segundo Calza (1996, p. 64), os telespectadores se manifestam enviando cartas, dando sua contribuição, na tentativa de ajudar os autores, indicando quem deve ficar com quem, sendo que "uma espécie de TV interativa espontânea ocorre, assim, nos bastidores da produção da novela".

Quando há um número de ligações considerado expressivo, apoiando ou desaprovando um determinado assunto, a CAT faz um envio especial para a CGQ, denominado "alerta" pela coordenadora. A indicação tem a vantagem de ser um retorno rápido e funciona como um aviso de que pode estar ocorrendo algo que deva ser observado pela empresa. Dentre as sugestões feitas pelo telespectador, encontram-se erros de roteiro ou produção (como coerência da ambientação em relação a cenário, figurino), ou relacionados à inadequação na abordagem de temas relativos a associações ou entidades. Esses reports permitem que os erros factuais sejam verificados e corrigidos rapidamente pelos profissionais da criação e produção.

A intuição dos autores e o barulho da "rua"

Os autores de novela entrevistados nesse estudo são quase unânimes na menção a outra fonte de informações sobre o telespectador: os comentários que ouvem na rua, de conhecidos ou desconhecidos. O escritor Manoel Carlos acredita que pode ter uma aferição muito instantânea: ao caminhar nas ruas, enquanto escreve os capítulos, pode perceber o que na sua novela agrada ou não. Ele se vale também da opinião de sua mulher, dos seus filhos, dos empregados que trabalham em sua casa, do porteiro do edifício, das pessoas da livraria a que vai todos os dias. O autor acha significativo quando cinco ou seis pessoas falam a mesma coisa. Se as opiniões começam a coincidir, pode ser um indicador. Ele não concorda que deva se preocupar com as variações do índice de um dia para o outro, a não ser no caso de queda extremamente acentuada. Observa ainda que, algumas vezes, há boatos sobre a existência de pesquisas quando se trata apenas de enquetes que nem são promovidas pela emissora.

O diretor Jorge Fernando, na sua entrevista, lembra da novela Chocolate com pimenta, que inicialmente apresentava quedas de audiência. Numa viagem a São Paulo, conversou com algumas pessoas e ouviu muitas reclamações. A partir desse retorno, foram feitas mudanças, e os índices voltaram a subir. Ele diz que não foi resultado de discussão em grupo, mas uma espécie de termômetro, utilizado pelo autor e pelo diretor.

O autor Ricardo Linhares acredita que há diversas maneiras de ouvir o público. Gosta também de saber a opinião de familiares, amigos, vizinhos, porteiros, desconhecidos na rua, nos restaurantes. Observa que é preciso saber ouvir e separar as opiniões, ficando com as mais úteis para o encaminhamento do trabalho. Gilberto Braga, autor, revela que acata muitos palpites ouvidos na rua. Mas, como sai pouco quando escreve novela, vale-se, sobretudo, dos comentários de empregados, porteiros, parentes e co-autores.

Esse modo informal de interação com o público sugere que, paralelamente ao aparato de captação de informações sobre os telespectadores, subsiste, no trabalho de elaboração e condução de uma novela, uma dimensão "artesanal", um processo de criação baseado na intuição de autores e diretores, na sua compreensão e interpretação individual das reações do público. Parece ocorrer ali também, nas conversas informais entre autores e telespectadores, uma escuta cuidadosa, que se torna possível graças à popularidade das novelas - ao fato de que elas são objeto de conversas que, naturalmente, chegam aos ouvidos dos autores. No modelo de Kamoche e Cunha (2001), essa postura serve de exemplo do que os autores relatam como a aplicação de ferramentas, tecnologias e métodos não usuais. Ilustra, portanto, o fato de os profissionais envolvidos engajarem-se em múltiplas interações e testes, a fim de se aproximar dos desejos do consumidor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na Rede Globo, o desenvolvimento das telenovelas é resultado de um conjunto complexo de interações, que incluem executivos, autores, diretores, artistas e espectadores. Este estudo buscou entender como esse sistema funciona e de que forma a emissora utiliza as informações provenientes dos telespectadores na construção do produto que vai ao ar. A partir desse fio condutor - os inputs dos consumidores - procurou-se entender também a estrutura e dinâmica organizacional que permite à Rede Globo desenvolver, numa escala industrial, novos produtos com considerável grau de sucesso.

O modelo improvisacional de desenvolvimento de novos produtos proposto por Kamoche e Cunha (2001) foi utilizado nesta análise com um duplo intuito. Em primeiro lugar, ampliar o entendimento do processo estudado, possibilitando a compreensão de sua dinâmica e das estruturas em que se apoia. Em segundo lugar, como ressalta Cunha (2002), uma dificuldade com que se confrontam os investigadores e os gestores refere-se à identificação dos equivalentes organizacionais da estrutura mínima presente no jazz. Esse trabalho procurou esboçar tais comparações, transpondo o modelo para a prática de uma empresa real, buscando assim contribuir para enriquecer a reflexão sobre improvisação, tema de crescente interesse nos estudos organizacionais (CUNHA, 2002; KAMOCHE, CUNHA e CAMPOS, 2003).

Nesse aspecto, uma das contribuições do presente estudo de caso é que ele evidencia uma organização onde a improvisação é parte fundamental do seu processo produtivo. Ao longo do tempo, a Rede Globo desenvolveu mecanismos para improvisar de forma deliberada. Assim, não improvisa apenas quando o planejamento falha, mas planeja improvisar para não falhar. Por meio da abertura ao inesperado, ao que não pode ser antecipado, a empresa demonstra uma atitude positiva em relação à experimentação, aprendizado contínuo e recompensa pelo risco - elementos destacados por Kamoche e Cunha (2001) na estrutura mínima do modelo improvisacional. Essa estratégia permite à Rede Globo incorporar as preferências dos telespectadores, as eventuais mudanças no ambiente e, assim, minimizar o alto risco inerente ao lançamento de um novo produto cultural, já que "ninguém sabe" exatamente os elementos que constituem o seu sucesso ou fracasso (CAVES, 2000).

Nesse desafio, dois elementos de estruturação mínima parecem ser fundamentais para a Rede Globo. O primeiro é que a sinopse funciona como o modelo básico, o conceito, o protótipo, a visão que guia e oferece marcos sobre os quais se cria o improviso. O respeito à sinopse parece se justificar pela importância de se conservar um modelo comum sobre o qual todas as áreas da empresa (comercial, pesquisa, criação, técnicos e atores) possam criar suas performances. É essa base que permite a coesão e evita respostas reativas e desarticuladas - riscos consideráveis em sistemas abertos à improvisação.

O segundo elemento é o chamado trilho, intervalo adequado para a audiência, que termina por constituir um critério de desempenho claro e amplamente compartilhado por toda a empresa. A medição contínua e em tempo real dos índices de audiência, as pesquisas qualitativas, as informações provenientes do serviço de atendimento ao consumidor e até a pesquisa informal dos autores e diretores evidenciam o foco no cliente, como filosofia que orienta a empresa. Ao contemplar no seu processo produtivo a possibilidade de se ajustar à reação do consumidor, a empresa reconhece ainda o papel dos espectadores como co-criadores de sua oferta.

Sinopse e trilho alinham e comprometem mutuamente a faceta artística e de negócio existentes na produção de uma telenovela, criando uma base comum para a criação e avaliação de todos os profissionais envolvidos. Na metáfora do jazz, seriam os equivalentes dos domínios da harmonia e do ritmo. Oferecem a sequência de acordes e o esquema métrico que cria um senso de direção e permite o improviso. São como elementos complementares e, em diversas situações, em tensão. De um lado, está a pressão pela coerência imposta pela sinopse, do outro, a atenção à audiência e a abertura para incorporar suas manifestações. Nas entrevistas com os diversos profissionais, esses dois elementos são recorrentes, evidenciando que manter aquilo que é a essência - a concepção original do produto - é tão importante quanto a possibilidade de fazer determinados ajustes em função da reação do público.

Recebido em 28.03.2008.

Aprovado em 13.11.2008.

Avaliado pelo sistema double blind review

Editor Científico: Os organizadores do Fórum

  • ALENCAR, M. A Hollywood brasileira: panorama da telenovela no Brasil. Rio de Janeiro: Senac, 2002.
  • ARNOULD, E. J; EPP, A. Deep engagement with consumer experience. In: GROVER, R.; VRIENS, M. The Handbook of Marketing Research: Uses, Misuses and Future Advances. London: Sage, 2006.
  • BENDASSOLLI, P; WOOD, T. Indústrias criativas e a "Virada Cultural". Disponível em: http://www.pedrobendassolli.com/pesquisa/artigo2.doc Acesso em 16.11.2007.
  • BERGAMO, A. Imitação da ordem - as pesquisas sobre televisão no Brasil. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, v. 18, n. 1, p. 303-328, 2006.
  • BORELLI, S. H. S. Telenovelas brasileiras - balanços e perspectivas. São Paulo em Perspectiva, v. 15, n. 3, p. 29-36, 2001.
  • CALZA, R. O que é telenovela São Paulo: Brasiliense, 1996.
  • CALLAHAN, J; LASRY, E. The importance of customer input in the development of very new products. R&D Management, v. 34, n. 2, p. 107-120, 2004.
  • CAVES, R. Creative industries Harvard: Harvard University Press, 2000.
  • CUNHA, M. P. All that jazz: três aplicações do conceito de improvisação organizacional. RAE - revista de administração de empresas, v. 42, n. 3, p. 36-42, 2002.
  • EISENHARDT, K. M; TABRIZI, B. N. Accelerating adaptive processes: product innovation in the global computer industry. Administrative Science Quarterly, v. 40, p. 84-110, march, 1995.
  • ENKEL, E; PEREZ-FREIJE, J; GASSMANN, O. Minimizing market risks through customer integration in new product development: learning from bad practice. Creativity and Innovation Management, v. 14, n. 4, p. 425-437, 2005.
  • GROVER, R. A. The changing world of marketing research. In: GROVER, R.; VRIENS, M. The Handbook of Marketing Research: uses, misuses and future advances. London: Sage, 2006.
  • HARTLEY, J. Creative industries. In: HARTLEY, J. (Org) Creative industries London: Blackwell, 2005.
  • IANSITI, M; MACCORMACK, A. Developing products on internet time. Harvard Business Review, v. 75 n. 5, p. 108-117, 1997.
  • KAMOCHE, K; CUNHA, M. P. Minimal structures: from jazz improvisation to product innovation. Organization Studies, v. 22, n. 5, p. 733-764, 2001.
  • KAMOCHE, K; CUNHA, M. P; CUNHA, J. V. Towards a theory of organizational improvisation: looking beyond the jazz metaphor. Journal of Management Studies, v. 40, n. 8, p. 2023-2051, 2003.
  • KAMOCHE, K; CUNHA, M. P; CUNHA, R. C. Improvisation in organizations. International Studies of Management & Organization, Spring, v. 33, n. 1, p. 3-9, 2003.
  • KOHLI, A; JAWORSKI, B. Market orientation: the construct, research propositions and managerial implications. Journal of Marketing, v. 54, n. 2, p. 1-18, 1990.
  • LUSCH, R. F; VARGO, S. L. The service-dominant logic of marketing: reactions, reflections, and refinements. Marketing Theory, v. 5, n. 3, p. 281-288, 2006.
  • MINTZBERG, H; MCHUGH, A. Strategy formation in an adhocracy. Administrative Science Quarterly, v. 30, p. 160-197, june, 1985.
  • ORTIZ, R; BORELLI, S. H. S; RAMOS, J. M. O. Telenovela: história e produção. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.
  • REDE GLOBO. TV Dados 2008. Rio de Janeiro, 2008.
  • PALLOTTINI, R. Dramaturgia de televisão São Paulo: Moderna, 1998.
  • THOMKE, S; REINERTSEN, D. Agile product development: managing development flexibility in uncertain environments. California Management Review, v. 41, n. 1, p. 8-30, 1998.
  • VARGO, S. L; LUSCH, R. F. Evolving a new dominant logic for marketing. Journal of Marketing, v. 68, n.1, p. 1-17, 2004.
  • VARGO, S. L; LUSCH, R. F. Service-dominant logic: continuing the evolution. Journal of the Academy of Marketing Science, v. 36, n. 1, p. 1-10, 2008.
  • VARGO, S. L; MAGLIO, P; AKAKA, M. On value and value co-creation: a service systems and service logic perspective. European Management Journal, v. 26, n. 3, p. 145-152, 2008.
  • ZALTMAN, G; ZALTMAN, L. Marketing Metaphoria: what Seven Deep Metaphors Reveal about the Minds of Consumers. Boston: Harvard Business School Publishing, 2008.
  • YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2. ed. Porto Alegre: Bookman, 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2009
  • Data do Fascículo
    Mar 2009

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2008
  • Aceito
    13 Nov 2008
Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rae@fgv.br