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Alterações cognitivas em escolares de classe socio-econômica desfavorecida: resultados de intervenção psicopedagógica

Cognitive function evaluation in school-age children from economically impoverished community: results of enriched education program

Resumos

O objetivo deste estudo é analisar o resultado de intervenções psicopedagógicas no desempenho intelectual e em algumas funções cognitivas específicas em crianças provenientes de famílias de baixa renda, expostas a fatores pessoais e sociais adversos, como desnutrição, stress familiar, ambientes doméstico e de estimulação empobrecidos. Foram examinadas 63 crianças, alunas de escola, gratuita e em regime de semi-internato, que recebe crianças consideradas sob risco pessoal e social. Quarenta e três crianças receberam atividades que objetivam ativação cognitiva, durante período mínimo de 1 ano. Vinte crianças eram recém-admitidas. As técnicas da ativação escolhidas foram: método de aprendizagem ativa, com base em Piaget e método de ativação cognitiva para, através de exercícios psicomotores, desenvolver os pré-requisitos para aprendizagem e prevenção de dificuldades escolares, segundo Lambert. A avaliação das funções cognitivas mostrou: nível intelectual insatisfatório em 30% e médio ou superior em 70% e deficiências cognitivas específicas (noção do esquema corporal, percepção viso-motora, percepção de forma e perseveração) em 74%. Maior prevalência de crianças com inteligência superior (p < 0,05) associou-se a dois fatores: 1º: maior tempo de freqüência à escola (de 1 a 3 anos) e 2º: programas de ativação cognitiva. Não foram observadas diferenças entre os 2 grupos em relação à prevalência de alterações das funções cognitivas específicas examinadas. Os resultados demonstram que a recuperação de crianças com as dificuldades descritas é difícil. Exige investigação sistemática sobre os métodos psicopedagógicas selecionados e possivelmente, grande tempo de permanência da criança na escola, além de admissão mais precoce.

dificuldades de aprendizagem; distúrbios cognitivos; crianças escolares; ensino fundamental; condição socio-econômica


Sixty-three school-age children of low socioeconomic status and exposed to adverse environmental factors (malnutrition, familiar distress and low familiar incomes) were submitted to neuropsychological tests to investigate possible cognitive impairments. Classical neuropsychological test battery was employed (Raven test, Bender Gestalt copy of complex figures, draw-a-man Goodenough test). Low intellectual level was found on 30% and 74% showed higher cognitive disorders (visuoperceptual skills and/or perseverations and/or global shapes perception and/or draw-a-man disturbances). These children attended to a school with semi-boarding regimen which receives children under personnel and social adverse factors. School program was enriched with learning activity program based on Piaget and psychomotor exercises based on Lambert for at least one year. They also had some other activities, as painting, singing, computer training, English and Spanish classes. Twenty children were newly accepted and 43 attended at school for one, two or three years. We found significant correlations (pchi0.05) between superior intellectual performances, bigger periods of attendance at school and methods for cognitive development. There was no association between other brain cognitive functions examined, the attendance to the teaching programs and the years of permanence at school.

learning disabilities; cognitive disturbances; socioeconomic status; teaching; school children


Alterações cognitivas em escolares de classe socio-econômica desfavorecida: resultados de intervenção psicopedagógica

Cognitive function evaluation in school-age children from economically impoverished community: results of enriched education program

Célia Sperandéo MacedoI; Lívia Christina AndreucciII; Terezinha de Cresci Braga MontelliIII

ILivre Docente, Professora Adjunta do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, Botucatu SP, Brasil (UNESP)

IIPedagoga, Especialista em Psicopedagogia e Investigadora do Centro de Investigação, Difusão e Intervenção Educacional Aveiro, Portugal

IIILivre Docente em Neurologia Infantil, Professora Voluntária do Departamento de Neurologia e Psiquiatria da UNESP

RESUMO

O objetivo deste estudo é analisar o resultado de intervenções psicopedagógicas no desempenho intelectual e em algumas funções cognitivas específicas em crianças provenientes de famílias de baixa renda, expostas a fatores pessoais e sociais adversos, como desnutrição, stress familiar, ambientes doméstico e de estimulação empobrecidos. Foram examinadas 63 crianças, alunas de escola, gratuita e em regime de semi-internato, que recebe crianças consideradas sob risco pessoal e social. Quarenta e três crianças receberam atividades que objetivam ativação cognitiva, durante período mínimo de 1 ano. Vinte crianças eram recém-admitidas. As técnicas da ativação escolhidas foram: método de aprendizagem ativa, com base em Piaget e método de ativação cognitiva para, através de exercícios psicomotores, desenvolver os pré-requisitos para aprendizagem e prevenção de dificuldades escolares, segundo Lambert. A avaliação das funções cognitivas mostrou: nível intelectual insatisfatório em 30% e médio ou superior em 70% e deficiências cognitivas específicas (noção do esquema corporal, percepção viso-motora, percepção de forma e perseveração) em 74%. Maior prevalência de crianças com inteligência superior (p < 0,05) associou-se a dois fatores: 1º: maior tempo de freqüência à escola (de 1 a 3 anos) e 2º: programas de ativação cognitiva. Não foram observadas diferenças entre os 2 grupos em relação à prevalência de alterações das funções cognitivas específicas examinadas. Os resultados demonstram que a recuperação de crianças com as dificuldades descritas é difícil. Exige investigação sistemática sobre os métodos psicopedagógicas selecionados e possivelmente, grande tempo de permanência da criança na escola, além de admissão mais precoce.

Palavras-chave: dificuldades de aprendizagem, distúrbios cognitivos, crianças escolares, ensino fundamental, condição socio-econômica.

ABSTRACT

Sixty-three school-age children of low socioeconomic status and exposed to adverse environmental factors (malnutrition, familiar distress and low familiar incomes) were submitted to neuropsychological tests to investigate possible cognitive impairments. Classical neuropsychological test battery was employed (Raven test, Bender Gestalt copy of complex figures, draw-a-man Goodenough test). Low intellectual level was found on 30% and 74% showed higher cognitive disorders (visuoperceptual skills and/or perseverations and/or global shapes perception and/or draw-a-man disturbances). These children attended to a school with semi-boarding regimen which receives children under personnel and social adverse factors. School program was enriched with learning activity program based on Piaget and psychomotor exercises based on Lambert for at least one year. They also had some other activities, as painting, singing, computer training, English and Spanish classes. Twenty children were newly accepted and 43 attended at school for one, two or three years. We found significant correlations (pc0.05) between superior intellectual performances, bigger periods of attendance at school and methods for cognitive development. There was no association between other brain cognitive functions examined, the attendance to the teaching programs and the years of permanence at school.

Key words: learning disabilities, cognitive disturbances, socioeconomic status, teaching, school children.

A escola eficiente é considerada um dos fatores importantes que podem ajudar a proteger as crianças de condições sociais muito adversas. Outros aspectos, quer individuais, quer familiares, também são salientados, como um QI mais alto da criança, ser cuidada por pais competentes e a existência de apego entre a criança e os pais. Quando, à baixa condição econômica se associam problemas familiares como alcoolismo, baixo QI e pais com tendências anti-sociais, a probabilidade de crianças escaparem desse ciclo vicioso de carência urbana se reduz. Configura-se, assim, a existência de crianças mais resistentes ou mais vulneráveis ao estresse ocasionado pelas condições ambientais difíceis. As chances de alguma ascensão social e inclusão à cidadania, dependeriam de um lado do efeito conjunto de estresses decorrentes da baixa condição econômica e cultural e de outro, das competências intelectuais e emocionais que a criança possua1. Nesse contexto se insere a Escola, especialmente dirigida e organizada para enfrentar as conseqüências das condições ambientais adversas onde se situa a criança.

Campana et al. compararam a prevalência da deficiência intelectual em crianças de vários níveis sócio econômicos no Município de Botucatu, SP, em 1973 e 19852,3. Esta mostrou-se significativamente maior nos escolares das classes sócio-econômicas mais desfavorecidas, não apenas nas desnutridas mas também nas crianças com bom estado nutricional. Em 1992, Campana et al.4 reportam estudo realizado em 1766 escolares, também no Município de Botucatu, com teste Psicométrico de Raven e avaliação da condição nutricional. Ao nível intelectual superior correspondem maior proporção de escolares eutróficos e desnutridos agudos e ao nível intelectual deficiente, maiores proporções de escolares com desnutrição pregressa. Entretanto, nem todas as crianças desnutridas crônicas ou com desnutrição pregressa são deficientes intelectuais. Apesar de todos os problemas ambientais e nutricionais, cerca de 70% ainda conseguem preservar seu potencial intelectual. Os autores concluem que o " ensino básico deve ser diferenciado, porque mesmo crianças desnutridas crônicas possuem potencial intelectual que pode ser desenvolvido. O atendimento global e principalmente, os métodos pedagógicos a serem empregados para a educação dessas crianças carentes, desnutridas ou não, devem levar em consideração suas peculiaridades ambientais" .

Guardiola et al5. relatam que crianças em idade escolar que apresentaram índices altura para a idade e peso para a idade mais baixos, mostraram associação com distúrbios de função cortical cerebral, mais especificamente em relação a equilíbrio estático e dinâmico, coordenação apendicular, gnosias e linguagem.

Realizamos, no ano 2000, avaliações de algumas funções cognitivas em 44 crianças que apresentavam dificuldades de aprendizagem. Estas crianças freqüentavam em Botucatu, escola que se destina a educar crianças de classe social empobrecida, sob risco pessoal e social. As alterações cognitivas diagnosticadas neste grupo de crianças demonstraram que em apenas 20% havia desempenho intelectual insatisfatório. Entretanto, em 48% delas constatamos dificuldades em funções cognitivas específicas, como na percepção viso-motora, no esquema corporal, na percepção da forma e na presença de perseveração. O transtorno do déficit de atenção foi identificado em 2%, e a dificuldade específica para o aprendizado da leitura (dislexia) em 5%. O resultado dos testes foi normal em 20%. O exame das funções cognitivas salientou a importância dessas alterações específicas, mesmo em crianças com níveis intelectuais normais ou superiores. A aprendizagem, o treinamento e a estimulação comportamental atuam na plasticidade cortical, modificando a sinaptogênese, durante o desenvolvimento e também no cérebro do adulto6. Métodos psicopedagógicos, estratégias e técnicas de estimulação que minimizem as deficiências cognitivas ocasionadas pelas condições adversas, devem ser encontradas para possibilitar às crianças oportunidade de aprendizagem escolar satisfatória e inclusão social.

Os objetivos deste estudo são: descrever as alterações de algumas funções cognitivas cerebrais e analisar o resultado de intervenções pedagógicas nessas funções, em crianças provenientes de famílias de baixa renda, expostas a fatores pessoais e sociais muito adversos como: desnutrição, stress familiar e estimulação deficiente.

MÉTODO

Sujeitos - Foram estudadas 63 crianças de ambos os sexos que freqüentavam a Escola de Ensino Fundamental " Eurípedes Barsanulfo" , localizada na periferia do Município de Botucatu. Trata-se de escola gratuita, em regime de semi-internato, que recebe crianças e adolescentes de 4 a 14 anos, provindas de famílias de baixa renda e consideradas sob risco social e pessoal. As idades variaram de 6 a 11 anos com mediana de 7 anos e 7 meses. As crianças foram selecionadas segundo dois critérios: 1º) Admissão recente no Educandário, sem terem sido treinadas pelos métodos psicopedagógicos escolhidos e admitidas para o pré, primeiro ou segundo anos, Vinte crianças foram classificadas neste grupo; 2º) quarenta e três crianças que freqüentavam os 1º e 2º anos do ensino fundamental há 1 ano ou mais, as quais receberam treinamento com os métodos de estimulação cognitiva.

Descrição do ambiente escolar - As crianças permanecem 10 horas na escola, onde recebem 3 refeições de excelente qualidade nutricional: café da manhã, almoço e lanche da tarde. Além das atividades de aulas de ensino fundamental, são ministradas aulas de pintura, história da arte, canto e coral, computação, xadrez, aulas de piano, teclado, inglês e espanhol. Recebem também assistência pediátrica sob responsabilidade da 1ª autora, odontológica e oftalmológica.

Avaliação nutricional - Das 63 crianças, 43 são eutróficas, 11 apresentam desnutrição crônica, 6 desnutrição pregressa e 3 desnutrição atual, segundo critério de Waterloo, modificado por Batista7.

Descrição da avaliação neuropsicológica

Função intelectual - Para a avaliação da capacidade intelectual utilizou-se o teste de Matrizes Progressivas de J.C. Raven, escala especial, forma individual e em caderno8.

Imagem corporal - A representação da imagem corporal foi estudada pelo teste da figura humana de Goodenough9. Consideramos que houve alteração de imagem corporal quando a contagem de pontos foi inferior a 4, em relação ao esperado para a idade cronológica da criança, na tabela de referência do teste e equivalente a 1 ano de defasagem.

Percepção viso-motora - Foi estudada pela prova gráfica de organização perceptiva, segundo o teste de L. Bender, padronizado por Santucci e Galifret-Granjon10. Consideramos que houve alteração da percepção viso-motora quando a contagem de pontos foi inferior à do primeiro quartil (Q1), para a idade, na tabela de padronização normal do teste.

Percepção da forma - Foi realizada por análise qualitativa do desenho espontâneo de uma paisagem, observando-se se a criança constroi uma representação global e coerente ou se ao contrário, elementos dispersos e isolados. Também se utiliza interpretação qualitativa do Teste de Percepção Viso-motora de Bender(10), observando-se se as figuras compostas por dois elementos ou mais são copiadas respeitando o tangenciamento e a forma global, ou se elas são decompostas em seus vários elementos, e representadas isoladamente.

Perseveração - É avaliada por dois procedimentos: pelo desenho espontâneo de paisagem, quando a criança repete inúmeras vezes um mesmo desenho (ex: estrelas, flores iguais, etc) e pelo Teste de Percepção Viso-motora de Bender, quando a criança copia sucessivamente um mesmo modelo.

Métodos pedagógicos de estimulação cognitiva

Todas as 43 crianças do 2º grupo tiveram 2 técnicas de estimulação psicopedagógica por período de 1 ano no mínimo. Constou de: 1) método de aprendizagem ativa com base em Piaget, por 2 horas diariamente com objetivo de ativação do raciocínio, segundo Hohmann et al.11 e; 2) método elaborado por Marie-José Laval-Lambert, em 197212, com proposta de consistir em um repertório de atividades requeridas para a aprendizagem e consolidação de atitudes, visando a prevenção de dificuldades escolares. Consta de exercícios que foram realizados diariamente, por 30 minutos, pelas professoras do Educandário, treinadas pela 2ª autora. Esta técnica de educação psicomotora compreende exercícios bem padronizados e facilmente reprodutíveis, visando estimulação de noção de esquema corporal, lateralidade, orientação espacial, temporal e linguagem. Para a estimulação da linguagem, as técnicas consistem em ritmos e movimentos amplos (24 exercícios), movimentos finos para a pré-escrita (56 exercícios), discriminação auditiva (37 exercícios) e visual (48 exercícios) e linguagem expressiva (64 exercícios). Para treinamento de movimentos finos para pré-escrita utiliza-se massa para modelar, corda, papel, objetos pequenos, balas, entre outras. O objetivo é desenvolver destreza manual e independência dos dedos. Discriminação auditiva: saber escutar, prestar atenção e diferenciar sons. Exemplos: reconhecer papel amarrotado, rasgado, cortado, sons graves e agudos, notas musicais e ritmo. Discriminação visual: discriminar formas com palitos e desenhos, noção do espaço gráfico da esquerda para a direita e de cima para baixo. A atenção e a memória visual são ativadas com reconhecimento de formas, e noções de orientação espacial simples e complexas. Compreende também parte da técnica de Borel-Maisony citada por Cuba-Santos para ensino da dislexia13. Linguagem expressiva: exercícios verbais como contar histórias com marionetes e fantoches, correção de pronúncia e reproduzir enredo de filmes. Estimula a expressão da linguagem e sua correção.

Os exercícios para o desenvolvimento da lateralidade, em número de 24 utilizam estímulos visual, táctil e auditivo, com materiais diversos como fita, bola, papel, sacos de areia, bambolês, tijolos, etc., elaborados para apresentarem dificuldades progressivas. A criança segue trajetos com a corda, por exemplo, bate bola do lado direito e esquerdo do corpo, etc. O objetivo é desenvolver conhecimento dos lados direito e esquerdo do corpo.

Para orientação espacial, o corpo da criança é o ponto de referência e a concentração e a memória visual são essenciais. Os materiais utilizados são similares aos do item anterior. A criança aprende: frente, longe, muito longe, sobre, sob, dentro, ao lado, em cima e embaixo. Posiciona-se em relação a objetos fixos, contorna obstáculos com o corpo todo ou com partes do corpo, sem poder esbarrar nos obstáculos. Também deve ultrapassar objetos em movimento. Os exercícios finais são de grande complexidade, envolvendo percepção de espaço e tempo.

Para desenvolvimento do esquema corporal utiliza-se estimulação motora, auditiva, visual e principalmente tátil. Compreende o reconhecimento de partes do corpo, marcha, corrida só ou em grupo, imitação de animais com o próprio corpo. Também reproduz movimentos simples ou complexos, anda descalça em superfícies variadas, para frente, para traz, em plano inclinado, etc. As estimulações são combinadas, por exemplo: tátil-visual, tátil-auditiva, etc.

Os autores tem aprovação da Comissão de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu, do Conselho Diretor do Centro de Atendimento Comunitário e do Educandário " Professor Eurípedes Barsanulfo" para a realização e divulgação desta pesquisa.

Análise - A análise estatística para a comparação das freqüências entre os grupos foi realizada segundo o método do qui quadrado, admitindo-se a = 0,05 e o teste da probabilidade exata de Fisher.

RESULTADOS

Nossos resultados demonstram que as alterações cognitivas neste grupo de 63 crianças são bastante prevalentes: 30% ou 19 delas, apresentaram nível intelectual insatisfatório, 52% ou 33, deficiências cognitivas específicas com desempenho intelectual médio ou superior.

A maioria das crianças apresentou alterações cognitivas específicas (perseveração e/ou alterações de percepção da forma e/ou deficiências de esquema corporal e/ou de percepção visomotora) e desempenho intelectual médio ou superior. Inteligência superior, com percentis no teste de Raven superiores a 90, foi constatada em 14 crianças ou 22%. Apenas 11 crianças, ou 17%, mostraram resultados normais em todas as funções cerebrais examinadas.

Portanto, 52 crianças ou 82% mostraram deficiências cognitivas importantes.

Houve associação entre a proporção de crianças com inteligência superior e o tempo de permanência na escola, de 1 a 3 anos (p<0,05). A introdução, no ensino, de metodologias pedagógicas que visam ativação cognitiva e de raciocínio lógico também mostrou-se associada à maior prevalência de níveis intelectuais superiores (p<0,05). A Figura 1 mostra a distribuição dos pacientes no teste de Raven e o tempo de permanência na escola. A Figura 2 mostra a distribuição desses percentis, segundo a administração da programação psicopedagógica.



Chama a atenção a alta incidência de alterações cognitivas específicas: a perserveração foi constatada em 43 crianças (74%), alterações da percepção da forma em 28 (45%), da percepção visomotora em 24 (40%) e do esquema corporal em 24 (40%). A maioria das crianças apresentou combinações dessas deficiências. Não houve qualquer associação significativa entre as prevalências dessas alterações, quer em relação ao tempo de permanência no Educandário quer à administração das técnicas de ativação cognitiva (Tabelas 1 e 2).

DISCUSSÃO

A inteligência geral foi avaliada pelo teste de Raven. Investigações que utilizaram tomografia por emissão de positrons, durante exercícios intelectuais da natureza deste teste, mostraram ativações em regiões mais restritas do que se esperava, ou seja, apenas no cortex lateral pré-frontal, em um ou nos dois hemisférios14. Chama a atenção, o percentual de 30% de nível intelectual insatisfatório, quando na população geral no Brasil a prevalência de deficiência mental é de 10%15. Campana et al.2 estudando 536 crianças escolares em Botucatu em duas escolas públicas, uma do centro e outra da periferia, constatou prevalência de nível intelectual insatisfatório de 17,53% considerando-se as duas escolas e de 28,99% considerando apenas a escola da periferia. Entre essas crianças selecionadas como intelectualmente deficientes, a quase totalidade pertencia a nível sócio-econômico mais baixo. Nossa estimativa foi semelhante a essas cifras anteriormente observadas.

Nossos resultados demonstraram que houve associação entre os programas de estimulação, o maior tempo de permanência no ambiente escolar e o número de crianças com inteligência superior. Entretanto, apenas estudos longitudinais poderão responder se a plasticidade neural permitirá aceleração intelectual em ambiente escolar rico em estimulação e atenção e que propicia também recuperação nutricional.

Os mecanismos neurais que medeiam a percepção da forma permanecem em grande parte desconhecidos. Estudos com fRM demonstram que são ativadas regiões do cortex de associação occipital e temporal e também áreas visuais primárias. As respostas nessas regiões tornam-se mais intensas quando são apresentados contornos e formas globais e coerentes16. A percepção da forma mostrou-se alterada em 45% das crianças (28/62). Não houve associação entre a prevalência desta alteração nos dois grupos de crianças, tanto em relação aos programas de ativação cognitiva como ao tempo de permanência na escola. Esta deficiência pode ocasionar dificuldades na aprendizagem da leitura, pois a capacidade de apreender letras e palavras como configurações é afetada (Gestalt-Blind). Cerca de 10% das crianças com dislexia apresentam esta deficiência de percepção visual17.

O esquema corporal tem sido considerado um elemento indispensável para a formação da personalidade da criança, de sua capacidade de adaptar-se ao meio e de saber enfrentar problemas e situações. Consiste na representação cerebral global e diferenciada do modelo que a criança tem de seu próprio corpo. Ela se sentirá bem, terá satisfação em correr, brincar, competir e manusear, na medida em que conhece seu corpo e sabe movimentar-se para agir. Em nosso estudo, 38% (24/63) das crianças apresentaram percepção do esquema corporal deficiente. A prevalência desta alteração não se associou aos programas de ativação ou aos anos de permanência na escola.

A presença de perseveração é atribuída a disfunções pré-frontais, mais especificamente ao cortex dorsolateral18. Neste grupo de crianças, foi a alteração mais freqüente, com 74% (43/58) de incidência. As razões dessa alta prevalência de perseveração nas condições sociais adversas são desconhecidas, assim como sua evolução com a maturação cerebral e estimulação ambiental.

A cópia de figuras geométricas permite avaliar algumas funções cognitivas, como percepção visual, habilidade motora manual e organização temporal - espacial; 43% das crianças (27/60) apresentaram escores inferiores aos esperados para a idade, sem que se constatasse associação com os programas de ativação cognitiva e com os anos de escolaridade.

Apesar das condições sócio-econômicas serem bastante desfavoráveis, a maioria é eutrófica (68%); 31% apresentavam desnutrição. Estudos em crianças desnutridas demonstram melhora significativa da inteligência quando se associaram cuidados de saúde, nutricionais e estimulação adequada19. Outros trabalhos confirmam o papel das condições socio-econômicas da família no desenvolvimento cognitivo das crianças. Duncan et al.20 estudaram crianças aos 5 anos de idade, levando em conta a baixa renda familiar, a duração das privações e a escolaridade materna. Esta exerceu efeito benéfico, quando de melhor nível, enquanto que a baixa renda e sua duração, efeito negativo significativo. Winick et al.21, e Lien et al.22, demonstraram, em estudos realizados com crianças coreanas desnutridas, adotadas em lares americanos, que há desenvolvimento satisfatório com o enriquecimento ambiental, desde que este seja de longa duração e que a intervenção seja precoce, anterior aos 2 anos de idade.

Guardiola et al.23 avaliando a aprendizagem e funções cognitivas em 484 crianças da 1ª série do ensino fundamental em Porto Alegre, referem que no exame neurológico evolutivo de Lefèvre os itens de sensibilidade e gnosias mostraram-se alterados em 38%. Em subtestes da escala de Wisk registraram alta prevalência (71,5%) de desempenho insatisfatório. A associação entre esses resultados e dificuldades de aprendizagem ocorreu em apenas 16,9% das crianças examinadas. Bandeira e Hutz24, no Rio Grande do Sul, estudaram a sensibilidade dos testes da figura humana, Bender e Raven, na predição do desempenho escolar em alunos de escolas públicas. Seus resultados mostraram que os três testes apresentaram correlações muito significativas com o rendimento escolar.

Nossos resultados são semelhantes. As deficiências cognitivas detectadas por estes testes explicam as dificuldades de aprendizagem em 82% das crianças examinadas.

Estas observações e nossos resultados sugerem que a recuperação de crianças com as dificuldades observadas é difícil. Exige investigação sistemática sobre eficiência dos métodos psicopedagógicos selecionados, provavelmente maior tempo de escolaridade e admissão precoce.

Agradecimentos - A Prof. Dra. Lídia Raquel de Carvalho do Departamento de Estatística do Instituto de Biociências de Botucatu - UNESP A Prof. Dra. Maria de Lurdes Cró - Diretora Regional do Ensino da Região Centro de Portugal, pela indicação dos métodos de ativação cognitiva.

Recebido 24 Novembro 2003, recebido na forma final 17 Março 2004. Aceito 5 Maio 2004.

Dra Célia Sperandéo Macedo - Departamento de Pediatria Faculdade de Medicina de Botucatu-UNESP - 18618-970 Botucatu SP - Brasil. E-mail: pediatri@fmb.unesp.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Out 2004
  • Data do Fascículo
    Set 2004

Histórico

  • Aceito
    05 Maio 2004
  • Revisado
    17 Mar 2004
  • Recebido
    24 Nov 2003
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