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"So, are we going to treat cancer now?"

EDITORIAL

"So, are we going to treat cancer now?"

Claudio E. Kater

Professor Adjunto de Medicina, Disciplina de Endocrinologia, Departamento de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, SP. Editor-Chefe, ABE&M

JÁ FAZ CERTAMENTE UNS 20 anos quando experimentei uma efêmera mas curiosa incursão na indústria farmacêutica. Por um período de quase três anos fui, nos bastidores, o diretor médico e assessor científico de uma empresa que estava então iniciando suas atividades no Brasil. Por alguma razão queriam para a vaga alguém com uma formação científica respeitável, que estivesse e permanecesse ligado a uma instituição de ensino e pesquisa, que falasse outra língua com fluência e que, se possível, tivesse morado fora do país por um tempo. Acredito que meu curriculum tenha impressionado bastante bem a diretoria na ocasião, pois fui contratado prontamente. Vale salientar que, como nunca desistimos de determinados sonhos, a recompensa financeira era um atrativo a mais em adição ao desafio das obrigações e deveres dessa nova função. Embora não venha ao caso, posso adiantar e resumir que foi uma experiência diferente e interessante, mas definitiva.

Numa das reuniões anuais dos diretores médico-científicos das várias sucursais dessa empresa multinacional ao redor do mundo — ocorrida numa cidadezinha charmosa dos arredores de Roma, da qual eu já nem lembro mais o nome —, fomos recebidos pelo presidente da empresa em sua casa de campo!

Durante as apresentações de relatórios, pesquisas e projeções pelos vários colegas, um deles destacou-se, não apenas pela verborragia, como também por algumas colocações instigantes. Trabalhava na empresa já tinha algum tempo, na capital de um dos nossos países vizinhos, onde vinha sendo pesquisado e desenvolvido um produto aparentemente promissor, extraído do timo de bezerros. Denominado preliminarmente de timoestimulina, já que o princípio ativo ainda não havia sido identificado e caracterizado, este produto — de provável estrutura protéica — vinha sendo prescrito e recomendado, como fora dito, para a melhora clínica dos "estados de relativa deficiência imunológica", como em casos de gripes e resfriados e outras afecções comuns! Não custava barato, pelo que me lembro. Tampouco parecia efetivo, uma vez que administrado per os. Lembro de um médico daqui comentando que aquilo era pura "confeitaria".

Entretanto, um extrato melhor purificado para aplicação parenteral estava sendo desenvolvido e testado em animais de laboratório com determinados tipos de câncer, "com resultados promissores". Nosso colega, no seu inglês carregado, e progressivamente empolgado pela perspectiva de ter lançado pela sua filial um produto que poderia ser um breakthrough da indústria farmacêutica, e que pudesse atingir vendas na cifra dos milhões de dólares, propôs um estudo clínico multicêntrico colaborativo, de fase III-IV, envolvendo os vários grupos participantes. Foi quando se levantou um colega europeu (se não londrino, pelo menos de comportamento britânico), mais experiente e menos impulsivo, membro do conselho científico da empresa, e disse a todos: "So, are we going to treat cancer now?".

A discussão então pegou fogo. Uma conversa babeliana entre os que sabiam realmente das limitadas possibilidades terapêuticas do pretenso produto e aqueles que tinham, mais que tudo, cintilantes cifrões no olhar. E a conversa continuou durante o serviço de almoço, um risotto alla milanese preparado para os 20 e tantos presentes, pessoalmente pelo presidente da empresa, cujo outro hobby, além de colecionar Ferraris, era a cozinha.

Parece-me, uma vez que eu não mais acompanhei o desenrolar do "projeto", que timoestimulina is now history!

Naquela época, como atualmente e, com certeza, também daqui a 30 anos, a introdução de qualquer palestra ou conversa oncológica vale-se do famoso jargão: "agora que conhecemos melhor os mecanismos fisiopatológicos da oncogênese, estamos melhor habilitados a desenvolver e aplicar uma terapêutica mais específica e mais bem direcionada".

Claro que hoje em dia tratamos mais tipos de câncer do que ontem e com melhores perspectivas terapêutica e prognóstica. Desde que não extremamente agressivo e/ou disseminado por ocasião do diagnóstico, boa parte dos cânceres — e aqui, no caso, os de origem endócrina — podem ser melhor tratados, uma vez que seus mecanismos continuam a ser sistematicamente desvendados e elucidados e a fármaco-genômica está de prontidão. Se o Criador não estiver querendo pregar uma peça em suas criaturas para que se apercebam permanentemente da dimensão da sua insignificância, poderemos talvez, já na próxima década, estar muito perto de desvendar muitos dos segredos remanescentes do ciclo celular e de suas alterações por mecanismos genéticos e da tumorigênese.

Nesta edição especial de 26 artigos, um volume "de peso" como o leitor pode constatar, os vários especialistas convidados abordam aspectos moleculares da oncogênese, apresentam dados epidemiológicos de certos tumores, procedimentos e intervenções diagnósticas e novas possibilidades terapêuticas em oncologia endócrina. Este conjunto de informações talvez seja a nata do conhecimento nacional e, quero crer, mesmo do conhecimento internacional na atualidade, mas também torço para que, sem nenhum demérito, estejam ultrapassados dentro em breve, não só para comprovarmos o fato de que agora sabemos tudo, mas não sabemos nada, como pela perspectiva de podermos fazer uma nova edição revista e atualizada. C’est la vie!

Maurinho A. Czepielewski, amigo e confidente de muitos anos, desde seus tempos paulistanos, quando a contra-gosto era obrigado a trocar um churrasco de costela por um virado à paulista, e manuseava como ninguém um computador pré-histórico da disciplina cujo software de processamento de texto (chamado WordStar, que funcionava por "transdução eletro-mecânica", como costumava dizer o Julio Abucham) produzia uma série indecifrável de hieróglifos na tela de fósforo verde do computador, além de fazer o papel do xerifão do freezer, onde sua soroteca contendo milhões de amostras de sangue de todos os acromegálicos do Brasil era vigiada pelo próprio Cérbero, é hoje um nome amplamente conhecido no cenário da neuroendocrinologia nacional e internacional.

Junto com Jorge Gross, outra inegável preferência nacional e internacional, e possivelmente entre churrascos, chulas e mates, compuseram esta magnífica seleção de autores e de trabalhos em oncologia endócrina que, com certeza, agradará a todos os leitores e colocará mais esta edição especial entre as favoritas dos ABE&M.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jan 2006
  • Data do Fascículo
    Out 2005
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