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Princípio bioético da autonomia na atenção à saúde indígena

Resumo

Neste artigo busca-se caracterizar o respeito ao princípio da autonomia no atendimento a populações indígenas em território brasileiro, tendo por base relatos de experiência e uma revisão bibliográfica. Concluiu-se que esse princípio deve ser especialmente consolidado nas ações práticas de cuidado à saúde desenvolvidas com as populações de culturas diferenciadas, como é o caso das comunidades indígenas.

Bioética; População indígena; Autonomia; Saúde de populações indígenas

Abstract

This article seeks to characterize the respect to the principle of autonomy in the care to indigenous peoples in the Brazilian territory, based on reports on experiences and a bibliographic review. It concluded that this principle must be specially consolidated in the practical actions of health care developed alongside peoples of different cultures, as is the case of indigenous communities.

Bioethics; Population Groups; Autonomy; Health of Indigenous peoples

Resumen

Este artículo busca caracterizar el respeto en el principio de autonomía en la atención a las poblaciones indígenas en territorio brasileño a partir de informes de experiencia y revisión de la literatura. Se concluyó que este principio debe consolidarse especialmente en las acciones prácticas de asistencia sanitaria dirigidas a las poblaciones de diferentes culturas, como las comunidades indígenas.

Bioética; Grupos de Población; Autonomía; Salud de poblaciones indígenas

A saúde indígena, para aqueles que não fazem parte desta população, é uma questão que permeia a história do continente americano. Ao longo do tempo, múltiplas ações ensejaram um conjunto complexo de atitudes da sociedade quanto à saúde das populações ameríndias tradicionais, ações como as formuladas e executadas por missões religiosas ou pelas forças armadas, que estão sempre integradas às políticas públicas conduzidas na maioria das vezes por órgãos governamentais. As instituições de assistência, ensino e pesquisa desenvolvem projetos frequentemente desvinculados dos aspectos essenciais para o desempenho adequado de sua missão.

Dessa forma, os conceitos de vida, cosmologia e ontogênese, concepções diversas do processo saúde-doença, devem estar no cerne dessas ações, com o princípio bioético basilar da autonomia se projetando, mais do que nunca, em um espaço difuso, coletivo e comunitário, não restrito apenas ao indivíduo. Assim, a partir de uma breve revisão literária e das experiências de profissionais de saúde no atendimento às populações indígenas, pretende-se caracterizar neste artigo o respeito à autonomia dos pacientes indígenas inseridos em sua própria cultura, de maneira tal que o enfoque no diagnóstico e na terapêutica, reduzindo-se ao seu componente baseado unicamente no modelo biomédico, deve ser relativizado.

Atualmente a assistência à saúde indígena no Brasil está vinculada ao Sistema Único de Saúde (SUS), estruturado por meio do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS), criado em 1999 graças à participação indígena na reforma sanitária. A partir de então as políticas tornaram-se descentralizadas e passaram a ser coordenadas pelos Departamentos de Saúde Indígena (Dasi), organizados em polos distribuídos em cidades estratégicas. Proporcionar controle social aos próprios envolvidos é uma das características do modelo, cujo pilar é a formação e integração dos agentes indígenas de saúde. Estabeleceu-se, além disso, que o modelo biomédico, centrado na doença, não seria o ideal, e a cultura e os valores coletivos precisariam ser destacados 11. Pontes ALM, Machado FRS, Santos RV, Brito CAG. Diálogos entre indigenismo e reforma sanitária: bases discursivas da criação do subsistema de saúde indígena. Saúde Debate [Internet]. 2020 [acesso 18 fev 2022];43:146-59. DOI: 10.1590/0103-11042019S811 , 22. Scalco N, Nunes JA, Louvison M. Controle social no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena: uma estrutura silenciada. Saúde Soc [Internet]. 2020 [acesso 18 fev 2022];29(3):e200400. DOI: 10.1590/S0104-12902020200400
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Método

Trata-se de estudo descritivo e qualitativo, com relatos de experiência e revisão bibliográfica feita por meio das bases de dados PubMED e SciELO, envolvendo o período de 2008 a 2018. Com o uso de um operador booleano “ and” , sem filtro de tempo, os descritores escolhidos foram: “bioética”, “populações indígenas” e “autonomia”.

Resultados e discussão

Entendendo o principialismo: princípio da autonomia e sua importância na saúde

As propostas dos diversos códigos de ética profissional variam de acordo com o país, e a maioria baseia-se nos mesmos princípios: autonomia, beneficência, não maleficência e justiça. Esses princípios derivam da divulgação do Relatório Belmont , em 1978, um esforço concentrado para unificar as práticas da ética médica na pesquisa e no tratamento de seres humanos após uma série de abusos ser constatada 33. Ribeiro DC. Autonomia: viver a própria vida e morrer a própria morte. Cad Saúde Pública [Internet]. 2006 [acesso 18 fev 2022];22(8):1749-54. DOI: 10.1590/S0102-311X2006000800024 . Dentre esses princípios, a autonomia é o mais controverso, pois engendra debates frequentes ao abordar temas polêmicos, como obrigatoriedade do consentimento informado, eutanásia e diretivas antecipadas.

Considerada por muitos o principal pilar da bioética, a autonomia pode ser definida como direito inerente ao paciente de decidir ativamente sobre os procedimentos diagnósticos e terapêuticos aos quais eventualmente será submetido. Embora esse assunto tenha despertado interesse progressivo da literatura médica, poucas vezes a decisão do paciente é considerada a mais importante no planejamento dos tratamentos 44. Ugarte ON, Acioly MA. O princípio da autonomia no Brasil: discutir é preciso… Rev Col Bras Cir [Internet]. 2014 [acesso 18 fev 2022];41(5):374-7. DOI: 10.1590/0100-69912014005013 . Esse aspecto é um componente relevante da ética médica moderna e vem sensibilizando a academia e a sociedade, embora essa discussão não tenha resultado em mudanças práticas, em razão da influência de valores culturais e governamentais bem estabelecidos e frequentemente intransigentes 55. Miguel LF. Autonomia, paternalismo e dominação na formação das preferências. Opin Publica [Internet]. 2015 [acesso 18 fev 2022];21(3):601-25. DOI: 10.1590/1807-01912015213601 .

Um indivíduo autônomo é aquele com capacidade para tomar as decisões relativas à sua própria vida, com base em seus próprios conceitos, critérios e liberdade, e, por conseguinte, capaz de assumir a responsabilidade decorrente de suas escolhas 55. Miguel LF. Autonomia, paternalismo e dominação na formação das preferências. Opin Publica [Internet]. 2015 [acesso 18 fev 2022];21(3):601-25. DOI: 10.1590/1807-01912015213601 . De forma mais ampla, a autonomia seria a capacidade de governar a si mesmo, de forma que o indivíduo não deveria cumprir regras estabelecidas por outrem, mas tomar atitudes e realizar ações de acordo com sua própria intenção 44. Ugarte ON, Acioly MA. O princípio da autonomia no Brasil: discutir é preciso… Rev Col Bras Cir [Internet]. 2014 [acesso 18 fev 2022];41(5):374-7. DOI: 10.1590/0100-69912014005013 . Assim sendo, para que a autonomia seja exercida, é necessário certo nível de liberdade individual, além da garantia desse direito 55. Miguel LF. Autonomia, paternalismo e dominação na formação das preferências. Opin Publica [Internet]. 2015 [acesso 18 fev 2022];21(3):601-25. DOI: 10.1590/1807-01912015213601 .

Desde que o sujeito seja capaz de discernir entre as opções e fazer sua própria escolha, deve-se incentivá-lo a participar do complexo processo que é seu tratamento. Para que isso ocorra é necessário que o médico lhe ofereça subsídios para tal decisão, de forma clara e sem induzi-lo. Essa junção entre informação oferecida e oportunidade de decidir forma o modelo participativo de tratamento, considerado por muitos como o eticamente ideal 44. Ugarte ON, Acioly MA. O princípio da autonomia no Brasil: discutir é preciso… Rev Col Bras Cir [Internet]. 2014 [acesso 18 fev 2022];41(5):374-7. DOI: 10.1590/0100-69912014005013 .

Nesse sentido, o médico deixa de ser “a chave que abre a porta” para se tornar um conselheiro técnico, orientando quanto às várias opções e as possíveis consequências de cada uma delas e incentivando o paciente a tomar uma decisão. Uma das barreiras para consolidar essa nova forma de relacionamento médico-paciente é o tradicional senso de poder que se confere à figura do médico. No exercício lógico e automático de suas atividades, o médico muitas vezes menospreza a capacidade cognitiva de seu paciente ao interpretar que ele não tem condições de analisar os fatos e as alternativas.

O padrão participativo vai de encontro ao modelo paternalista de assistência, que vigora em grande parte do mundo e é majoritariamente gerenciado pelos próprios governos. Nesse modelo a base organizacional ainda é centrada em questões de manutenção do poder de decidir do indivíduo e da comunidade. Isso caracteriza o paternalismo público, no qual o Estado confere a si mesmo o direito de decidir ou direcionar as escolhas que considera as mais acertadas 55. Miguel LF. Autonomia, paternalismo e dominação na formação das preferências. Opin Publica [Internet]. 2015 [acesso 18 fev 2022];21(3):601-25. DOI: 10.1590/1807-01912015213601 .

O paternalismo público se opõe claramente à formação autônoma de preferências, o que não deixa de ser uma forma de “dominação”, pois restringe a autonomia individual. Ao regulamentar os tipos de escolha mais adequados e minimizar a participação de cada um, esse modelo sufoca as opções individuais. Além disso, em alguns casos o Estado não delibera por si só, mas determina a criação de preferências que lhe são satisfatórias, interferindo de maneira mais sutil e lenta nas decisões 55. Miguel LF. Autonomia, paternalismo e dominação na formação das preferências. Opin Publica [Internet]. 2015 [acesso 18 fev 2022];21(3):601-25. DOI: 10.1590/1807-01912015213601 . Dessa forma, baseado em suas preferências, resolve o que seria melhor para a coletividade e impõe suas escolhas como parte da rotina da comunidade, criando uma opinião comunitária favorável que solidifica cada vez mais o processo de assimetria.

Principialismo nas relações de saúde dos povos indígenas: “ética colonialista”

A dominação das escolhas e das preferências, além da coerção da autonomia, elementos centrais do modelo assistencial paternalista, dão ensejo de maneira massificada às questões relacionadas às políticas públicas de saúde implantadas. No entanto, isso não contempla uma prévia compreensão dos componentes culturais de cada indivíduo ou grupo 55. Miguel LF. Autonomia, paternalismo e dominação na formação das preferências. Opin Publica [Internet]. 2015 [acesso 18 fev 2022];21(3):601-25. DOI: 10.1590/1807-01912015213601 . Essa problematização se torna ainda mais evidente ao tratar de saúde indígena, pois é notória a assimetria no poder de decisão quanto às estratégias oferecidas, já que há um claro conflito em relação à autonomia dos indígenas, visto que a suposta proteção às culturas minoritárias produz certo isolamento contra as influências externas, reduzindo as opções.

O principialismo, de origem anglo-americana, baseava-se inicialmente nos princípios de Belmont – respeito às pessoas, à beneficência e à justiça. Posteriormente, após estudos dos filósofos Beauchamp e Childress, evoluiu para os quatro alicerces até agora reconhecidos: justiça, respeito à autonomia, beneficência e não maleficência. Esses princípios visam sempre o bem-estar e a preservação do indivíduo 66. Meza Salcedo G. Ética de la investigación desde el pensamiento indígena: derechos colectivos y el principio de la comunalidad. Rev Bioét Derecho [Internet]. 2017 [acesso 18 fev 2022];41:141-59. Disponível: https://bit.ly/3hunhsa
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No entanto, esses princípios por si só provavelmente não são capazes de garantir a integridade bioética dos povos indígenas e das minorias étnicas e tribais espalhadas pelos vários continentes. Isso ocorre porque em muitos desses povos o individualismo é substituído pela identidade comunitária: os povos indígenas e tribais têm modos peculiares de ver, viver e relacionar-se com o mundo. Muitos deles conservam tradições, crenças e costumes baseados em uma sabedoria milenar pouco compreendida pelas demais culturas, situação em que a identidade comunitária supera a individual 66. Meza Salcedo G. Ética de la investigación desde el pensamiento indígena: derechos colectivos y el principio de la comunalidad. Rev Bioét Derecho [Internet]. 2017 [acesso 18 fev 2022];41:141-59. Disponível: https://bit.ly/3hunhsa
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A verdade é que o pensamento ameríndio, de maneira geral, sempre foi subvalorizado pelas culturas consideradas dominantes, que minimizam ou ignoram suas práticas agrárias, alimentares, religiosas e de cuidados aos problemas de saúde 66. Meza Salcedo G. Ética de la investigación desde el pensamiento indígena: derechos colectivos y el principio de la comunalidad. Rev Bioét Derecho [Internet]. 2017 [acesso 18 fev 2022];41:141-59. Disponível: https://bit.ly/3hunhsa
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. Construiu-se assim uma verdadeira “ética colonialista”, que pressupõe que os povos dominados são cognitivamente inferiores e incapazes de decidir acerca de suas vidas, seu futuro e seus problemas, cabendo ao dominador tomar essas decisões.

Os europeus, por exemplo, começaram a invadir as terras indígenas no século XVI e impuseram que “seria melhor” para os índios trabalhar nas lavouras, nas guerras, em serviços manuais, no garimpo. Além disso, forçaram-nos a ser evangelizados, menosprezando claramente sua capacidade de autossustento e suas crenças e culturas religiosas. A partir daí a autonomia desses povos foi constantemente cerceada, com a justificativa de uma suposta inferioridade – é a infantilização de todo um povo ou de uma etnia inteira, apoiada em uma teoria de racionalidade limitada 55. Miguel LF. Autonomia, paternalismo e dominação na formação das preferências. Opin Publica [Internet]. 2015 [acesso 18 fev 2022];21(3):601-25. DOI: 10.1590/1807-01912015213601 .

Em sua própria definição, o princípio de autonomia baseia-se na capacidade do indivíduo de escolher, considerando que cada um tem seu próprio conceito de vida, doença e morte, assim como suas crenças e culturas e que todos esses elementos influenciam suas escolhas 44. Ugarte ON, Acioly MA. O princípio da autonomia no Brasil: discutir é preciso… Rev Col Bras Cir [Internet]. 2014 [acesso 18 fev 2022];41(5):374-7. DOI: 10.1590/0100-69912014005013 . A contraposição ao princípio da autonomia na forma de lidar com os povos indígenas não se restringe ao passado. Pelo contrário, ainda hoje mantém-se a formatação colonialista, mesmo após 500 anos. Desvaloriza-se o fato de que a opção por qualquer modo de vida é legítima desde que seja fruto da livre escolha do indivíduo 44. Ugarte ON, Acioly MA. O princípio da autonomia no Brasil: discutir é preciso… Rev Col Bras Cir [Internet]. 2014 [acesso 18 fev 2022];41(5):374-7. DOI: 10.1590/0100-69912014005013 .

Exemplo disso é a comunidade Rapanui, de origem polinésia, que habita a Ilha de Páscoa, território chileno no oceano Pacífico: em 2003 uma universidade americana, com autorização das instituições chilenas, colheu material para análise de DNA e investigação de degeneração macular, supostamente com o intuito de oferecer lentes. Contudo, utilizou-se um termo de consentimento em espanhol, ou seja, de compreensão inacessível aos envolvidos 77. Fajreldin V. Problemas bioéticos de la investigación biomédica con pueblos indígenas de Chile. Acta Bioeth [Internet]. 2010 [acesso 18 fev 2022];16(2):191-7. DOI: 10.4067/S1726-569X2010000200012 . Tais fatos mostram que os indígenas se enquadram nos grupos vulneráveis, isto é, aqueles que que são discriminados devido a uma característica não escolhida por eles, mas que lhes foi atribuída e estigmatizada 88. Segre M. Reflections on bioethics: consolidation of the principle of autonomy and legal aspects. Cad Saúde Pública [Internet]. 1999 [acesso 18 fev 2022];15(supl 1):S91-8. DOI: 10.1590/S0102-311X1999000500010 . No caso, o “civilizado” utiliza-se do poder científico e econômico para se autodenominar superior, atribuindo a si mesmo um valor decorrente das teorias do evolucionismo cultural.

Dizer que um grupo é socialmente vulnerável é admitir a incompetência do Estado em impedir que se perpetue o contexto de fragilidade, desamparo e falta de proteção desses sujeitos ou comunidades 99. Sanches MA, Mannes M, Cunha TR. Vulnerabilidade moral: leitura das exclusões no contexto da bioética. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2018 [acesso 18 fev 2022];26(1):39-46. DOI: 10.1590/1983-80422018261224 .

Práticas de saúde indígena no Brasil: respeito ao princípio da autonomia

Existem aproximadamente 820 povos indígenas espalhados pelos países da América Latina, que falam cerca de 653 línguas e somam uma população de quase 45 milhões de pessoas, representando 8% da população do continente americano 66. Meza Salcedo G. Ética de la investigación desde el pensamiento indígena: derechos colectivos y el principio de la comunalidad. Rev Bioét Derecho [Internet]. 2017 [acesso 18 fev 2022];41:141-59. Disponível: https://bit.ly/3hunhsa
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. No Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há cerca de 305 povos indígenas dispersos em todo o território nacional, com os mais diversos graus de contato ou isolamento em relação à população não indígena. Muitas delas já habitam periferias de grandes cidades, mas outras ainda estão geograficamente isoladas em remotos locais da Amazônia, por exemplo 1010. Souza KL, Apontes SA. Conversando sobre novas práticas para quebrar preconceitos em relação aos povos indígenas. Muiraquitã [Internet]. 2020 [acesso 18 fev 2022];8(2):304-9. DOI: 10.29327/210932.8.2-25 , 1111. Ricardo F, organizador. Terras indígenas e unidades de conservação da natureza: o desafio das sobreposições [Internet]. São Paulo: Instituto Socioambiental; 2004 [acesso 18 fev 2022]. Disponível: https://bit.ly/3vyjlyB
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Há décadas o governo brasileiro demonstra interesse em oferecer condições de saúde mais adequadas aos povos indígenas. Ao mesmo tempo, há constantes transformações na forma de tratar a temática, em vista das mudanças progressivas nos perfis epidemiológicos dessas populações. Além disso, existe uma diversidade cultural entre as várias nações indígenas, e cada uma delas está em uma situação diferente quanto a determinadas questões, como a urbanização ou periurbanização e a perda ou a agressão contra sua identidade cultural 1111. Ricardo F, organizador. Terras indígenas e unidades de conservação da natureza: o desafio das sobreposições [Internet]. São Paulo: Instituto Socioambiental; 2004 [acesso 18 fev 2022]. Disponível: https://bit.ly/3vyjlyB
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, 1212. Garnelo L, Pontes AL, organizadoras. Saúde indígena: uma introdução ao tema [Internet]. Brasília: MEC; 2012 [acesso 18 fev 2022]. Disponível: https://bit.ly/348Agg7
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A partir de 1999, com a criação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), melhorou em todos os estados do Brasil a organização do planejamento das ações de saúde a serem oferecidas a esses povos. Isso teve impacto positivo na preservação das condições sanitárias, mas sempre com o desafio de enfrentar as dificuldades inerentes a cada região e, ao mesmo tempo, atenuar o processo de desgaste das culturas originais de cada nação ou etnia 99. Sanches MA, Mannes M, Cunha TR. Vulnerabilidade moral: leitura das exclusões no contexto da bioética. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2018 [acesso 18 fev 2022];26(1):39-46. DOI: 10.1590/1983-80422018261224 .

Se antes as comunidades indígenas sofriam primordialmente de moléstias infectocontagiosas, que eram as maiores responsáveis pela redução e pelo sofrimento populacional, recentemente há cada vez mais doenças crônico-degenerativas e metabólicas, como diabetes, hipertensão arterial e doença cardiovascular, decorrentes das mudanças nos hábitos alimentares e do sedentarismo. Observa-se ainda o crescimento nos números ligados ao alcoolismo e aos transtornos mentais, antes inexistentes 1313. Santos RV, Coimbra CEA Jr. Cenários e tendências da saúde e da epidemiologia dos povos indígenas no Brasil. In: Coimbra CEA Jr, Santos RV, Escobar AL, organizadores. Epidemiologia e saúde dos povos indígenas no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003 [acesso 18 fev 2022]. p. 13-47. Disponível: https://bit.ly/3ICia4R
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. Tudo isso tornou maior o desafio de levar a essas populações assistência de forma igualitária, conforme os princípios que regem o SUS.

Certamente predomina o modelo paternalista de assistência, uma vez que foram impostos aos indígenas os mesmos programas de saúde oferecidos ao povo brasileiro em geral: programa de controle de endemias, programa de incentivo ao aleitamento materno, programa de crescimento e desenvolvimento infantil e programa de controle de hipertensão e diabetes.

Especulou-se que esse modelo seria mais adequado e superior, mas não há estudos que comprovem que esses métodos e programas seriam realmente exequíveis e ideais para as populações em questão e, menos ainda, se a forma tradicional como esses povos cuidam de alguns desses problemas não seria tão ou mais eficaz do que o modelo acadêmico pautado em conhecimentos e teorias científicas. Não há estudos que comprovem se o aleitamento materno exclusivo até seis meses é superior à dieta oferecida pelos indígenas de alguns povos aos seus lactentes, por exemplo. Sabe-se que, entre os Kakriabá em Minas Gerais e os Wari´ em Rondônia, metade das crianças é exposta antes de dois meses de vida ao consumo de chás, enquanto os Yamanaua, do Acre, oferecem até bebidas à base de fórmulas lácteas, banana e mandioca 1414. Sírio MAO, Freitas SN, Figueiredo AM, Gouvêa GDR, Pena JL, Machado-Coelho GLL. Tempo de aleitamento materno entre indígenas Xakriabá aldeados em Minas Gerais, Sudeste do Brasil. Rev Nutr [Internet]. 2015 [acesso 18 fev 2022];28(3):241-52. DOI: 10.1590/1415-52732015000300002 .

Há que se refletir ainda acerca do fato de que, para muitos povos indígenas, os processos de saúde, doença e morte não apresentam os mesmos significados que têm para os não indígenas.

Relatos de vivências no tratamento de indígenas: o desafio da interculturalidade

Ainda em construção, o conceito de interculturalidade representa um avanço em relação ao multiculturalismo no sentido mais amplo, ou seja, no convívio de culturas distintas em um mesmo lugar e na mesma sociedade sem que haja relações conflitivas entre elas. A complexidade dessa ideia sugere que uma interação saudável e proveitosa entre várias culturas pode ser benéfica, complementar, inclusiva e articulada 1515. Pedrana L, Trad LAB, Pereira MLG, Torrenté MON, Mota SEC. Análise crítica da interculturalidade na Política Nacional de Atenção às Populações Indígenas no Brasil. Rev Panam Salud Pública [Internet]. 2018 [acesso 18 fev 2022];42:e178. DOI: 10.26633/RPSP.2018.178 .

O respeito às culturas indígenas tem sido um desafio para as equipes de saúde indígena, pois abordar e oferecer serviços pode significar uma verdadeira agressão à coletividade indígena. No entanto, algumas experiências com povos com os quais se estabeleceu contato recentemente demonstram que atitudes menos invasivas, centradas no indivíduo e considerando as particularidades éticas e as tradições de cada povo podem ser mais assertivas 1616. Simões ELJ, Pinto SB, Pena SF. Plano de ação da equipe de saúde para o programa Zo’é. Rev Bras Linguist Antropol [Internet]. 2016 [acesso 10 fev 2022];8(2):121-32. DOI: 10.26512/rbla.v8i2.16303 . Assim, acredita-se que é possível elaborar práticas assistenciais com base em evidências científicas, mas pautadas em uma bioética multicultural, o que exige uma visão ampliada e desprovida de preconceitos, na qual a antropologia e as práticas de saúde devem estar em conformidade com as necessidades da coletividade, e não somente responder aos interesses de um sistema de saúde inflexível 1717. Lorenzo CFG. Desafios para uma bioética clínica interétnica: reflexões a partir da política nacional de saúde indígena. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2011 [acesso 18 fev 2022];19(2):329-42. Disponível: https://bit.ly/3tuMkRj
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Enfoque bioético em relação à autonomia

Um dos autores desse texto tem experiência de mais de 17 anos no atendimento no interior da Amazônia a pacientes indígenas com epilepsia e outras doenças neurológicas crônicas. Assim, observou-se que alguns indivíduos apresentam dificuldade em compreender o conceito biomédico de doença e a necessidade do tratamento continuado, muitas vezes por tempo indeterminado.

“Algumas vezes presenciamos durante o atendimento crianças sofrendo de incontáveis crises convulsivas ao longo de quase todos os dias, sem despertar nenhuma sensação aparente de desespero ou desconforto nos pais, diferentemente daquilo que vemos no dia a dia da neurologia” (HM).

Esse fenômeno baseia-se em crenças da cultura dos povos indígenas que habitam vários países do continente americano. Muitos autores estudaram esse fato e descobriram que diversas etnias atribuem os fenômenos convulsivos e epilépticos ao desequilíbrio entre o espírito humano e o espírito animal que existem em cada indivíduo. Na América Central, por exemplo, os descendentes dos maias acreditam que há uma diferença entre os animais que habitam pessoas de castas sociais mais elevadas (um puma ou gavião) e de castas inferiores (ovelhas ou cervos). Assim, para eles não faz sentido tomar um medicamento para resolver um desequilíbrio entre elementos cuja natureza faz parte da identidade cultural popular 1818. Carod-Artad FJ, Vázquez-Cabrera CB. Pensamiento mágico y epilepsia en la medicina tradicional indígena. Rev Neurol [Internet]. 1998 [acesso 18 fev 2022];26:1064-8. DOI: 10.33588/rn.26154.98049 .

Indígenas argentinos, paraguaios e bolivianos também creem que a epilepsia é um conflito entre a “alma humana” e a “alma animal”, desencadeado por influência de um inimigo que teria lançado alguma espécie de magia sobre o indivíduo. O pajé teria então a função de resolver esse conflito, contrapondo-se ao poder da magia inimiga, o que é feito diante de toda a aldeia, usando plantas alucinógenas 1818. Carod-Artad FJ, Vázquez-Cabrera CB. Pensamiento mágico y epilepsia en la medicina tradicional indígena. Rev Neurol [Internet]. 1998 [acesso 18 fev 2022];26:1064-8. DOI: 10.33588/rn.26154.98049 . Os índios Guarani, por sua vez, pensam que esse desequilíbrio entre os espíritos do indivíduo epiléptico deve ser cuidado com a associação de conhecidas raízes e folhas, que são usadas há séculos sob a forma de infusões, chás e rituais 1818. Carod-Artad FJ, Vázquez-Cabrera CB. Pensamiento mágico y epilepsia en la medicina tradicional indígena. Rev Neurol [Internet]. 1998 [acesso 18 fev 2022];26:1064-8. DOI: 10.33588/rn.26154.98049 .

No Peru era comum tratar a epilepsia com sangue de condor, coração de puma ou testículos de outros animais, geralmente friccionados em pedras específicas que liberariam energias espirituais a serem infundidas no doente 1919. Sal y Rosas F. La concepción mágica de la epilepsia en los indígenas peruanos. An Salud Ment [Internet]. 1991 [acesso 18 fev 2022];7(1):130-50. Disponível: https://bit.ly/3MtyWWc
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. Por sua vez, os índios mexicanos de origem asteca acreditam que as síndromes epilépticas decorrem da possessão por perigosas divindades, o que seria uma forma de castigo pelos pecados, causando contorção da cabeça e movimentos dos braços e pernas, como relatos de manuscritos do século XVI. Desde aquela época recomendava-se para os afetados isolamento em uma temazcalli , construção em madeira com uma cúpula e muros, onde eram submetidos a banhos e infusões de plantas variadas, tais como alcachofra, ambrosia, fedegoso, magnólia etc. 2020. Ruíz-López I, Morales-Heinen D. Tratamiento de lãs enfermedades neurológicas y psiquiátricas enla medicina del México antiguo. Arch Neurocien Mex [Internet]. 1998 [acesso 18 fev 2022];3(1):47-52. Disponível: https://bit.ly/3vIVKvk
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Os índios brasileiros têm uma variedade de interpretações quanto à origem da epilepsia, sendo bem conhecida a visão dos Kamayurá, da região do Xingu, que acreditam que a enfermidade se deve à vingança do espírito do tatu morto pelo arco e flecha do caçador. O tratamento da “doença do tatu” seria então administrado com plantas típicas da região, tsimó e wewurú 2121. Palacios E, Hernández L, Solano Peláez R. Percepción de la epilepsia por grupos indígenas: conceptualizaciones clínicas. Repert Med Cir [Internet]. 2014 [acesso 18 fev 2022];23:18-27. DOI: 10.31260/RepertMedCir.v23.n1.2014.737 .

Estudos comprovam que alguns povos já adquiriram a capacidade de associar seus métodos e tratamentos tradicionais à medicina ocidental. Isso ficou claro em um trabalho realizado em aldeias Potiguara no litoral da Paraíba: 66% dos indígenas entrevistados afirmaram que os medicamentos modernos já fazem parte da rotina da aldeia, mas 30% relataram que usam tanto drogas sintéticas como plantas medicinais e tratamentos recomendados por ancestrais 2222. Vasconcelos GPSS, Cunha EVL. Levantamento de plantas medicinais utilizadas por indígenas potiguaras da Aldeia São Francisco (Litoral Norte da Paraíba). Gaia Scientia [Internet]. 2015 [acesso 18 fev 2022]. Disponível: https://bit.ly/3Clbmqi
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. O processo e os rituais que envolvem a doença e a morte de idosos nas sociedades indígenas em que a transmissão do conhecimento ocorre de formas diversas da escrita constitui também uma situação na qual os princípios bioéticos necessitam ser destacados. Outro autor deste artigo recorda o seguinte episódio:

“Em uma das comunidades indígenas que visitei como médico, atendia um senhor idoso que morava em uma comunidade distante cerca de um dia de barco até um centro hospitalar. O paciente era considerado um dos últimos pajés do grupo. Seu estado de saúde era bem debilitado. Ele já tinha sido conduzido em ocasião anterior a um hospital missionário e do exército, porém os tratamentos não haviam surtido efeito. Muitos membros da comunidade pediram que o pajé não fosse mais removido, pois era importante que suas últimas conversas com as autoridades da comunidade e com idosos das redondezas pudessem ser realizadas, pois havia importantes conhecimentos a serem transmitidos ou esclarecidos. Em uma breve conversa com o paciente (com tradução) ele solicitou que permanecesse em sua aldeia. Havia um grande temor na comunidade, pois em muitos casos pacientes idosos foram retirados da aldeia contra a sua vontade e não mais regressaram. Assim, permaneci na região por cerca de sete dias, até que o velho pajé viesse a óbito. Assisti às manifestações de tristeza em várias comunidades, pois o sentimento unânime (assim ao menos me pareceu) era de que uma grande parte do conhecimento daqueles povos havia irreversivelmente desaparecido. Um pedaço importante de uma cultura se desvanecia, e não apenas um velho havia terminado sua existência” (NPO).

Considerações finais

Diante da grande complexidade em relação à interculturalidade, propõe-se uma visão mais reflexiva sobre o tema deste artigo, e para isso é necessário se desarmar dos pensamentos historicamente dominantes quanto à saúde.

Vários questionamentos bioéticos podem surgir dessa reflexão:

  1. É justificado o direito de aplicar a visão tecnicista da doença e do tratamento? Ao agir assim, não se está colaborando significativamente para a perda da identidade cultural e das tradições indígenas? Considerando a realidade da saúde dos povos indígenas e seu direito indiscutível à autonomia sobre sua vida, como se pode atendê-los de modo culturalmente sensível, com uma posição ou proposta dialógica que não seja mera imposição?

  2. Está-se ou não infringindo o princípio da autonomia ao prescrever um medicamento sem compreender a ótica do indivíduo e da comunidade indígena acerca de uma enfermidade?

  3. Nas práticas assistenciais, preza-se pela difusão do conhecimento de forma a tornar os indígenas mais esclarecidos e empoderados sobre o processo nosológico ou simplesmente busca-se impor o ponto de vista biomédico e reducionista?

Diante dessa polêmica, há quase duas décadas, Lolas 2323. Lolas F. Psychiatry and human rights in Latin America: ethical dilemmas and the future. Int Rev Psychiatry [Internet]. 2010 [acesso 18 fev 2022];22(4):325-9. DOI: 10.3109/09540261.2010.500864 comentava que os países latino-americanos tinham características culturais e institucionais que impunham reorganizar e adequar o campo da bioética, visando um enfoque que valorizasse mais as práticas religiosas, comunitárias e os saberes da medicina tradicional ancestral dos povos indígenas, aceitando-as como complementariedade terapêutica, incluindo seus rituais e o uso de plantas que lhe são típicos, integrando esses elementos às práticas da medicina ocidental. Torna-se necessário perguntar: “proteger a autonomia de quem? Do indivíduo? Da comunidade?”.

Com isso, sugere-se a criação de uma “bioética latino-americana” 1616. Simões ELJ, Pinto SB, Pena SF. Plano de ação da equipe de saúde para o programa Zo’é. Rev Bras Linguist Antropol [Internet]. 2016 [acesso 10 fev 2022];8(2):121-32. DOI: 10.26512/rbla.v8i2.16303 , proposta na qual questões indígenas e instituições do Estado se organizariam num trabalho sistemático para engendrar novos contextos jurídicos e administrativos mais adequados aos desafios atuais. Além disso, essa proposta visa planejar, regulamentar e atuar de forma a garantir os direitos dos povos, protegendo seu patrimônio genético e cultural, incluindo suas práticas de saúde 2424. Santos ACG, Iamarino APM, Silva JB, Zollner ACR, Santos ACG, Constantino CF. Considerações bioéticas sobre a relação médico-paciente indígena. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2017 [acesso 18 fev 2022];25:603-10. DOI: 10.1590/1983-80422017253217 .

Quando da criação do plano de Políticas Públicas de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas ocorreu um pequeno avanço nessa inclusão, tornando obrigatória a presença de agentes indígenas de saúde nas equipes multiprofissionais que atendem as comunidades. Esse seria um primeiro elo, embora ainda fraco, para unir o sistema de saúde tradicionalmente paternalista/dominador e a população assistida, tentando dar-lhe alguma voz nas questões sanitárias coletivas e individuais 2525. Brasil. Fundação Nacional de Saúde. Política nacional de atenção à saúde dos povos indígenas [Internet]. 2ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2002 [acesso 18 fev 2022]. p. 40. Disponível: https://bit.ly/3MthdOU
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Como propunha a própria normatização do programa e como sugerem Santos e Pereira, os profissionais, especialmente os médicos, devem buscar integrar suas práticas ao apoio do pajé e valorizar os conhecimentos resultantes de culturas milenares, conferindo-lhes respeito e promovendo maior efetividade em suas práticas de saúde 2424. Santos ACG, Iamarino APM, Silva JB, Zollner ACR, Santos ACG, Constantino CF. Considerações bioéticas sobre a relação médico-paciente indígena. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2017 [acesso 18 fev 2022];25:603-10. DOI: 10.1590/1983-80422017253217

25. Brasil. Fundação Nacional de Saúde. Política nacional de atenção à saúde dos povos indígenas [Internet]. 2ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2002 [acesso 18 fev 2022]. p. 40. Disponível: https://bit.ly/3MthdOU
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- 2626. Pereira ÉR, Biruel EP, Oliveira LSS, Rodrigues DA. A experiência de um serviço de saúde especializado no atendimento a pacientes indígenas. Saúde Soc [Internet]. 2014 [acesso 18 fev 2022];23(3):1077-90. DOI: 10.1590/S0104-12902014000300027 .

Esses temas e relatos configuram situações em que o princípio bioético da autonomia individual se confunde com o princípio da autonomia cultural coletiva. Além disso, reforçam a necessidade de o atendimento de saúde para populações culturalmente diferenciadas considerar não apenas o contexto biomédico e epidemiológico, mas também o horizonte transcultural, a fim de que ações de saúde não promovam traumas étnicos e sejam coletivamente teratogênicas. Os estudos revisados que se debruçam sobre aspectos da cultura dos indígenas realçam as diferenças culturais desses povos sobre vida e morte, saúde e doença, estar e ser no mundo. Essas diferenças do ponto de vista bioético precisam ser consideradas nas ações de saúde, pois o princípio da autonomia deve balizar e guiar os demais.

Tendo por base a literatura e as problematizações expostas nas experiências individuais relatadas, conclui-se que o princípio da autonomia deve ser sempre considerado e ampliado nas relações de todos os níveis com as populações indígenas, em especial no planejamento e na execução de ações de saúde. Isso somente é possível se as atitudes e propostas forem culturalmente sensíveis e adaptadas para que sejam eficientes em melhorar as condições de vida e saúde dos povos indígenas.

Além disso, cabe ao Estado brasileiro assegurar políticas públicas que garantam o exercício da interculturalidade na elaboração e execução das políticas de saúde direcionadas aos povos indígenas. Para isso, é primordial que eles sejam envolvidos, consultados e escutados quando da criação dessas políticas, ou seja, que participem ativamente do controle social.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2020
  • Revisado
    23 Nov 2021
  • Aceito
    18 Fev 2022
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