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Análise normativa sobre a voz da criança na legislação brasileira de proteção à infância

Analise normativa de voice del niño en la legislación brasileña de protección a la infancia

RESUMO

Objetivo

Identificar e analisar, no discurso normativo de proteção à infância no Brasil, marcas das vozes da criança na tomada de decisão sobre seus cuidados em saúde.

Método

Análise normativa da legislação de proteção à infância no Brasil (1988-2012), operacionalizada pela análise de conteúdo de nove textos, no ano de 2015.

Resultados

A legislação destaca a voz da criança no processo decisório, tanto na pesquisa como nos cuidados em saúde. O reconhecimento do direito a dignidade e liberdade, informação e proteção depende do julgamento do adulto sobre a capacidade de discernimento da criança e se a situação a isenta de danos para si mesma.

Conclusões

O discurso normativo de proteção à infância confere voz à criança, mas com restrição e sob a tutela do adulto.

Criança; Defesa da criança e do adolescente; Participação do paciente; Tomada de decisões

RESUMEN

Objetivo

identificar y analizar en el discurso normativo de protección a la infancia en Brasil, marcas de las voces de los niños en la toma de decisiones sobre su atención de salud.

Método

Analisis normativa de la legislación de protección a la infancia en Brasil (1988-2012), operacionalizados por el análisis de contenido de nueve textos, en el año de 2015.

Resultados

La legislación destaca la voz del niño en el proceso de toma de decisiones, tanto en la investigación como en el cuidado de la salud. El reconocimiento del derecho a la dignidad y a la libertad, a la información y a la protección depende del juicio del adulto sobre la capacidad de un niño para el discernimiento y si la situación es libre de daño a sí mismo.

Conclusiones

el discurso normativo de protección a infancia reconoce la voz de los niños, preo con restricción y con supervisión de un adulto.

Niño; Defensa del niño; Participación del paciente; Toma de decisiones

ABSTRACT

Objective

to identify and analyse children’s voices in healthcare decision making in the discourse of Brazil’s child protection laws.

Method

Documentary normative analysis of Brazil’s child protection legislation (1988-2012) based on the content analysis of nine texts, conducted in 2015.

Results

The legislation acknowledges and stresses the voice of children in the decision-making process in research and healthcare. Any recognition of the right to dignity, liberty, information, and protection depends on what the adult decision-maker (with parental authority) believes is the child’s capacity for discernment and whether the situation will cause self-harm.

Conclusions

the normative child protection discourse grants children a voice, although with restrictions and under the authority of the adult with parental authority.

Child; Child advocacy; Patient participation; Decision making

INTRODUÇÃO

Observa-se na prática clínica que a tomada de decisão sobre cuidados à criança cabe aos seus responsáveis legais (pais ou tutores) e os profissionais de saúde, como as enfermeiras e os enfermeiros, por exemplos. Aparentemente, em função das características jurídicas da infância no Brasil, a criança não tem espaço para opinar ou participar nessa tomada de decisão sobre seus cuidados em saúde e os procedimentos que lhes são realizados, mesmo aqueles que são específicos da enfermagem(11. Coa TF, Pettengill MAM. Autonomia da criança hospitalizada frente aos procedimentos: crenças da enfermeira pediatra. Acta Paul Enferm. 2006;19(4):433-8.-22. Melo EMOP, Ferreira PL, Lima RAG, Mello DF. The involvement of parents in the healthcare provided to hospitalzed children. Rev Latino-Am Enfermagem. 2014;22(3):432-9.). Entre esses procedimentos podem ser citados, o banho no leito, o curativo, o brinquedo terapêutico, a punção venosa, quanto ao desejo e possibilidades da criança para que seja realizado em que momentos do dia, por qual profissional da equipe de enfermagem, em que região anatômica do corpo etc. Na clínica de cuidados em geral, observa-se mais o cumprimento de uma rotina de trabalho do que a individualização dos cuidados mediados pela participação da criança na tomada de decisão.

A dependência da criança do familiar tomar a decisão por si só tem se fundamentado no princípio do melhor interesse, pois ela não tem autodeterminação legal nem autonomia plena antes de completar 18 anos de idade à luz das normas jurídicas(33. Nunes SRT. Privacidade e sigilo em deontologia profissional: uma perspectiva no cuidar pediátrico. Nascer Crescer. 2011;20(1):40-4.). Possivelmente, essa concepção se estende a todos os setores da vida da criança produzindo um efeito de silenciamento de sua voz, mesmo naqueles temas que somente elas poderiam se manifestar e contribuir para o seu bem-estar no cuidado em saúde.

Países com sistemas universais de saúde cujo acesso aos serviços implica em ampla extensão de cobertura, como no Brasil, Inglaterra e Canadá, nos mobilizam a pensar sobre a voz da criança no processo de tomada de decisão como um direito de cidadania. Isto se opera não somente quando de sua participação na pesquisa, mas também sobre seus cuidados de saúde, nele se incluindo os cuidados de enfermagem, independente de idade, raça/etnia, crença ou classe social.

Há, nos três países mencionados, uma série de dispositivos legais que regulamentam a saúde como um direito universal, transferindo para o Estado a responsabilidade em prover condições materiais, políticas públicas e programas de atenção à saúde por meio de acesso universal à prevenção, proteção, promoção e recuperação da saúde. Esses dispositivos prevêem a existência de instituições e serviços específicos para crianças, garantia de acessibilidade, proteção à infância e participação nos processos decisórios de saúde de acordo com a idade.

Entretanto, nas experiências da Inglaterra e Canadá, a participação da criança na tomada de decisão sobre sua saúde e tratamento possui normas éticas e legais que reconhecem a voz da criança nas decisões referentes à sua própria saúde. No entanto, questões dilemáticas entrecruzam a ética e a moral com intensos debates ultrapassando os campos da clínica, chegando aos tribunais e à sociedade em geral. Além disso, orientações programáticas e pragmáticas têm contribuído para aumentar o poder da voz da criança no processo decisório sobre seus cuidados de saúde.

Na Inglaterra, o movimento de reconhecimento da competência da criança em tomar decisões acerca de sua saúde ocorreu na década de 1980, quando o direito da criança participar nos processos decisórios sobre sua saúde foi incorporado nas matrizes legais britânicas. Essa participação ocorre por um parâmetro intitulado Gillick Competence, que consiste em reconhecer que todas as pessoas, independente da idade, têm direito à confidencialidade de suas informações de acordo seu desenvolvimento moral e cognitivo(44. Griffith R, Tengnah C. Assessing children’s competence to consent to treatment. Br J Community Nurs. 2012;17(2):87-90.).

Integrante da Commonwealth, a base legislativa de nove das dez províncias que integram o país. No entanto, a província de Quebec dispõe de jurídico misto, que combina o Direito Comum e o Direito Estatutário, dispondo, como no Brasil, de um Código Civil. Nele, a criança canadense, a partir de 14 anos de idade, é considerada capaz de tomar decisões e consentir tratamentos e procedimentos sem a notificação parental em situações que não envolvam a hospitalização por mais de 12 horas(55. Carnevale F. Considerações éticas em enfermagem pediátrica. Rev Soc Bras Enferm Ped. 2012;12(1):37-47.).

No ano de 2015, o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro celebrou 25 anos de sua regulamentação cuja Lei (Nº 8.080, de 1990) é objeto dessa análise normativa. Entretanto, o debate sobre a voz da criança na tomada de decisão sobre seus cuidados em saúde permanece tímido e há pouco espaço nos estudos e pesquisas sobre o tema no Brasil(66. Fare M, Machado FV, Carvalho ICM. Breve revisão sobre regulação da ética em pesquisa: subsídios para pensar a pesquisa em educação no Brasil. Prax Educ. 2014;9(1):247-83.

7. Bubadué RM. Cuidado de advocacia no preparo de famílias de crianças HIV/AIDS: (im)possibilidade no fazer da enfermeira [dissertação]. Rio de Janeiro (RJ): Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Enfermagem Anna Nery; 2015.
-88. Ribeiro AM. Autonomia e assentimento como direito da criança de participar na tomada de decisão em saúde. Rev Saúde Criança Adolesc. 2011;3(2):17-23.) .

Nesse sentido, os objetivos do estudo - identificar e analisar, no discurso normativo de proteção à infância no Brasil, marcas das vozes da criança na tomada de decisão sobre seus cuidados em saúde – visam responder a seguinte questão de pesquisa: Quais são os limites e possibilidades da participação da criança na tomada de decisão sobre seus cuidados de saúde na perspectiva dos textos normativos e regulatórios de proteção à infância?

MÉTODO

Este estudo integra dois projetos de pesquisae e um subprojeto oriundo de uma dissertação de mestrado(77. Bubadué RM. Cuidado de advocacia no preparo de famílias de crianças HIV/AIDS: (im)possibilidade no fazer da enfermeira [dissertação]. Rio de Janeiro (RJ): Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Enfermagem Anna Nery; 2015.)

Para o desenvolvimento da pesquisa documental realizou-se uma análise normativa qualitativa cuja fonte primária de dados constituiu-se de textos normativos da legislação de proteção à infância no Brasil. Dois movimentos de análise foram operacionalizados: a de conteúdo(99. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011.) como técnica de condução da pesquisa e a análise normativa de Bayles(1010. Zanotti R, Chiffi D. A normative analysis of nursing knowledge. Nurs Inq. 2016;23(1):4-11. doi: http://dx.doi.org.10.1111/nin.12108.
http://dx.doi.org.10.1111/nin.12108...
) na leitura e significação das unidades de contexto extraídas dos documentos. Na análise de conteúdo, as fontes documentais foram organizadas em três fases, conforme recomendado por Bardin(99. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011.): a pré-análise, a exploração do material e tratamento dos resultados, e a inferência e interpretação.

A escolha dos documentos para a composição do corpus textual de análise orientou-se pelos seguintes princípios da análise de conteúdo(99. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011.): exaustividade (não se deixou de fora nenhum elemento textual relacionado a voz da criança), representatividade (recorte de uma amostragem textual que expressasse o conteúdo sobre a voz da criança), homogeneidade (os documentos normativos faziam parte de uma cadeia interna de referência ao direito de a criança expressar-se), pertinência (adequação dos documentos normativos para responder ao objetivo do estudo).

Portanto, na pré-análise, procedeu-se a uma seleção preliminar de documentos normativos com abrangência nacional, que atenderam os seguintes critérios de inclusão: artigos sobre saúde e direitos da criança na Constituição Federal (Seção II – da Saúde, artigos 196-200 e Capítulo VII, artigos 227-229, da Constituição Federal), leis e decretos que tratam dos direitos da criança (Código Civil, Estatuto da Criança e do Adolescente), resoluções expedidas pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), Conselho Nacional de Saúde (CNS), Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e Conselho Federal de Medicina (CFM) que incorporassem a voz da criança nos cuidados em saúde, declarações com poder de formar opinião junto aos profissionais de saúde, resultando na seleção de nove documentos listados no Quadro 1.

Quadro 1
– Textos normativos incluídos no corpus textual de análise. Brasil, 1988-2012

Dentro do temporal de 1988-2012, identificou-se 12 documentos, sendo que nove (Quadro 1) representaram o quadro documental objeto da análise e três foram excluídos (Quadro 2), porque não mencionavam, direta (“criança”) ou indiretamente (“todos”), a participação da criança em qualquer etapa do processo de tomada de decisão em saúde. Nesse sentido, o movimento de composição do corpus textual de análise se deu a partir da explicitação formal do direito de a criança participar na decisão sobre sua saúde e bem-estar.

Quadro 2
– Textos normativos excluídos do corpus textual de análise. Brasil, 1988-2012

Por sua vez, esse mesmo processo de leitura culminou na organização do corpus textual de análise, correspondendo a segunda fase do método da análise documental - a exploração do material. Os textos foram codificados em unidades de registro (UR) para constituir núcleos de sentido das unidades de significação (US) ou contexto (UC).

Na última fase, os núcleos de sentidos foram submetidos a inferência e interpretação segundo os preceitos da análise normativa, que resultaram em duas categorias e cinco subcategorias – 1. voz da criança na pesquisa científica; 1.1. direito à dignidade e liberdade, 1.2. direito à informação; 2. voz da criança nos cuidados em saúde; 2.1. direito à dignidade, 2.2. direito à informação, direito à proteção.

Na análise normativa, interpreta-se fontes legais específicas cujo caráter pode ser descritivo ou prescritivo, sempre a partir de um fenômeno contextualizado. Nas fontes legais com caráter descritivo, ao descrever seu conteúdo jurídico, o movimento de análise determina a extensão da lei e justifica o princípio ético adotado em uma conduta já estabelecida. O caráter prescritivo se propõe articular princípios legais com o fenômeno, tal como ele acontece na prática, e como tais princípios podem ser incorporados nessa prática(1111. Bayles MD. Principles of law. Dordrecht: D. Reidel Publishing Company; 1987.).

A título de exemplificação, tem-se princípios legais prescritivos de condutas legais a serem incorporadas nos cuidados em saúde. Do mesmo, há princípios legais descritivos, que aplicam-se às questões dos cuidados em saúde, particularmente em sistemas universais de saúde cujos direitos de cidadania são extensivos a Todos e Todas as pessoas. Portanto, implica-se em uma análise de princípios que podem ser incorporados no tratamento do fenômeno estudado, a partir das normas vigentes de um dado país. Nesse processo de análise, o objetivo não é confrontar leis existentes, mas esclarecer como um fenômeno do campo legal pode ser aplicado na prática dos cuidados em saúde.

Portanto, a aplicação da análise normativa para o contexto do estudo em tela, buscou proceder uma análise das normas ou leis, e não uma normatização de algo a ser defendido como ideal a ser seguido por todos.

A análise normativa nos estudos do campo da saúde ainda é pouco utilizada como construto teórico. No entanto, sua aplicabilidade e relevância pode ser destacada em dois estudos(1010. Zanotti R, Chiffi D. A normative analysis of nursing knowledge. Nurs Inq. 2016;23(1):4-11. doi: http://dx.doi.org.10.1111/nin.12108.
http://dx.doi.org.10.1111/nin.12108...

11. Bayles MD. Principles of law. Dordrecht: D. Reidel Publishing Company; 1987.
-1212. Stanford EA, Chambers CT, Craig KD. A normative analysis of the development of pain-related vocabulary in children. Pain. 2005;114(1-2):278-84.) que a adotaram para tratar de questões e verdade e éticas na saúde. No primeiro, a reflexão sobre o valor da ciência e seu caráter epistêmico ou não centra-se na objetividade e na finalidade de se produzir uma “verdade científica”; considerando que aspectos sociais, culturais ou políticos estão envolvidos na tradução de conhecimento. No segundo, procedeu-se a análise normativa de estudos publicados que tratavam do número e tipo de expressões usadas por crianças para comunicar a dor. A análise normativa indicou a implicação de uma escuta de auto-relato da dor baseada na capacidade de comunicação social da criança.

Já no contexto desse estudo, a análise normativa determinou, nas fontes legais de caráter prescritivo, quais princípios e regras legais vigentes no país, podem ser consideradas justificáveis ou desejáveis para que a voz da criança seja reconhecida como um direito de participação na tomada de decisão na pesquisa e no cuidado em saúde da criança.

RESULTADOS

A voz da criança na pesquisa científica

Na situação da pesquisa, o princípio da liberdade e dignidade da criança é reconhecido como direito a liberdade e dignidade, por meio do Termo de Assentimento Livre e Esclarecido, que é regulado por uma norma prescritiva: a Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Na prática, princípios da bioética autonomia e a voluntariedade são exercitados de direito e de fato, pois, ao expressar sua anuência para participar em um estudo, a criança manifesta sua concordância livre de vícios (simulação, fraude ou erro), sem dependência e subordinação para fazê-lo. Mesmo que o responsável legal pela criança concorde com a participação dela na pesquisa, sem o assentimento formal dela própria o pesquisador não pode interagir em uma relação adulto-criança no ambiente da pesquisa. De outra feita, é obrigatório que o Termo de Assentimento seja acompanhado do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, provido pelo responsável legal.

[...] assentimento livre e esclarecido - anuência do participante da pesquisa, criança (...) livre de vícios (simulação, fraude ou erro), dependência, subordinação ou intimidação; exercendo sua liberdade e autonomia (Item II.2 da Resolução do Conselho Nacional de Saúde, nº 466, 2012; artigos 16, 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990; artigo 101 do Código de Ética Medica, 2009).

A Resolução Nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde, é um texto normativo brasileiro de caráter prescritivo amplamente divulgado e aceito por pesquisadores e a comunidade científica em geral, sob a vigilância de Comitês de Ética em Pesquisa. Na pesquisa, o assentimento está relacionado à precisão, clareza, e objetividade da informação que é prestada à criança para que ela própria possa tomar suas decisões. Portanto, o direito de acesso a informação é uma forma de empoderamento no processo decisório, em que a criança passa, a partir dela, a exercer a sua liberdade e autonomia de maneira mais efetiva.

Assentimento livre e esclarecido – [...] a criança (...). deve ser esclarecida sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa lhes acarretar, na medida de sua compreensão e respeitados em suas singularidades. (Item II.2 da Resolução do Conselho Nacional de Saúde, nº 466, 2012).

Entretanto, o direito à informação está assegurado a todas as pessoas, incluindo as crianças, desde que o sigilo da fonte seja resguardado. Nesse sentido, o pesquisador deve preservar a criança durante todas as etapas da pesquisa, desde sua primeira abordagem até a publicação dos resultados, construindo dispositivos que tornem sua participação não identificável e seus dados confidenciais. Esses dispositivos podem envolver tanto a maneira e o local que a criança é abordada, preservando sua privacidade no cenário da pesquisa; quanto o tratamento, análise e publicação dos dados, resguardando sua imagem na sociedade.

A Constituição da República Federativa do Brasil (1988) e o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (1990) são normas de abrangência nacional que fundamentam o direito à liberdade e à dignidade da criança é inviolável. Ambos os textos enfatizam que a criança é livre para opinar, expressar seus valores e ideias, para brincar, praticar esportes e divertir-se. Em seu direito a liberdade de expressão, ela pode manifestar suas crenças, para além do frequentar cultos religiosos, garantindo-se a todos a inviolabilidade de seus direitos.

[...] brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade [...] que compreende os seguintes aspectos:... opinião e expressão; crença e culto religioso e brincar, praticar esportes e divertir-se (Artigos 5 e 6 da Constituição Federal do Brasil, 1988; artigos 3, 15-17, 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990)

O respeito à dignidade, como um princípio, envolve reconhecer as crianças como pessoas em desenvolvimento que têm direitos constitucionais e civis de preservação da liberdade, autonomia, privacidade e integridade física, psíquica e moral sem nenhum tipo de discriminação.

A criança [...] goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, em condições de liberdade e de dignidade. [...] direito [...] ao respeito [...] como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis; que consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança [...] abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças [...] sem distinção de qualquer natureza [...](Artigos 5 e 6 da Constituição Federativa do Brasil, 1988; artigos 3, 15-17, 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990)

Nesse sentido, a voz da criança na pesquisa é um direito inviolável à liberdade e dignidade e de acesso a informação, assegurado por meio da Resolução do Conselho Nacional de Saúde, Nº 466 de 12 de dezembro de 2012. Trata-se de um direito que deve ser aceito e respeitado pela comunidade científica, sob a vigilância dos Comitês de Ética. De fato, observa-se uma tendência favorável à sua aplicabilidade no campo da pesquisa em saúde, sendo justificável o seu caráter prescritivo e preservado o melhor interesse da criança.

A voz da criança nos cuidados em saúde

O direito à dignidade da criança requer reconhecer a capacidade de discernimento que ela possui e o julgamento de se a situação não traz danos para ela. Com base nesses dois aspectos fundamentais, os Códigos de Ética de Enfermagem e o Código de Ética Médica proíbem seus profissionais da revelação de sigilo profissional, sempre que crianças e adolescentes expressarem seus desejos. Portanto, é um dever dos profissionais de saúde ouvir e guardar sigilo das revelações trazidas por elas, em todo o processo de interação terapêutica, seja na comunidade ou no hospital. Nesse sentido, o direito à dignidade humana implica, de um lado, conferir poder a criança para expressar seus desejos e, de outro, aos profissionais o respeito ao sigilo e à confidencialidade.

É vedado ao enfermeiro e ao médico revelar sigilo profissional relacionado a paciente menor de idade, inclusive a seus pais ou representantes legais, desde que o menor tenha capacidade de discernimento, salvo quando a não revelação possa acarretar dano ao paciente (Artigos 81 e 82 do Código de Ética de Enfermagem, 2007; artigos 73-75 do Código de Ética Medica, 2009)

Na cenário hospitalar, a dignidade da criança é incorporada como uma das diretrizes específicas da Resolução Nº 41, de 13 de outubro de 1995, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA). Nela está explícito que a criança em situação de hospitalização goza de todos os direitos Constitucionais e civis, devendo haver respeito, sem quaisquer tipos de distinção.

Direito a ter seus direitos Constitucionais e os contidos no Estatuto da Criança e do Adolescente, respeitados pelos hospitais integralmente, [...] sem distinção de classe social, condição econômica, raça ou crença religiosa (Item 19 da Resolução nº 41 do CONANDA, 1995).

O respeito à dignidade envolve o direito de ir e vir (liberdade) nos serviços de saúde, pois mantê-la desnecessariamente hospitalizada consiste em uma violação ao seu direito, uma vez que está sendo privada de sua liberdade. Nesse sentido, cabe ao Estado criar condições para que a criança conviva e interaja socialmente, e na ausência de condições da família para atendê-la, provendo lares substitutos ou alternativos.

Direito a ser hospitalizado quando for necessário ao seu tratamento, [...] e a não ser ou permanecer hospitalizado desnecessariamente por qualquer razão alheia ao melhor tratamento da sua enfermidade (Itens 2 e 3 da Resolução CONANDA, nº 41, 1995).

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes [...] à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. [Art. 4 do ECA, 1990)

[...]ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado; programas de prevenção e atendimento especializado à criança, [...] (Artigo 227 §1º da Constituição Federativa do Brasil, 1988).

Quando hospitalizada, a criança tem direito de movimentar-se no cenário hospitalar conforme sua necessidade e disposição, assegurar-se da presença de um familiar, podendo desfrutar de alguma forma de recreação, programas de educação em saúde, acompanhamento em classe escolar hospitalar e receber apoio espiritual e religioso conforme prática de sua família.

Direito a ser acompanhado por sua mãe, pai ou responsável, durante todo o período de sua hospitalização, bem como receber visitas, [...] a desfrutar de alguma forma de recreação, programas de educação para a saúde, acompanhamento do currículo escolar e de receber apoio espiritual e religioso conforme prática de sua família durante sua permanência hospitalar (Itens 4, 9 e 11 da Resolução 41 do CONANDA, 1995).

O direito à informação sobre sua saúde é assegurado na Lei Orgânica da Saúde a todas as pessoas, incluindo crianças, em todos os segmentos de atenção à saúde, sendo resguardado o sigilo profissional.

As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS) obedecem ao princípio do direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde; [...] ao acesso à informação contida em registros ou documentos, produzidos ou acumulados por seus órgãos ou entidades, recolhidos ou não a arquivos públicos; [...] sendo mantido o sigilo das informações pela equipe de enfermagem e pelo médico. (Artigo 7º da Lei nº 8.080, 1990)

O Código de Ética Médica explicita deveres e proibições ao exercício de seus profissionais, estando implícito o direito de resguardar informações às crianças, mesmo se houver insistência parental, excetuando-se aquelas situações em que há previsibilidade de risco à integridade e segurança da criança.

É proibido ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente [...](Capítulos 1 XI, artigos 36, 53, 54, 73-77, 112 do Código de Ética Medica, 2009).

A equipe de enfermagem fornece informações sobre a assistência de enfermagem que é prestada a criança, explicitando seus direitos, os riscos e benefícios resultantes dessa assistência, bem como as intercorrências que podem advir dela. É um dever da equipe informar a criança e sua família, o que implica em um direito dela obter a informação.

A equipe de enfermagem deve prestar adequadas informações à pessoa, família e coletividade a respeito dos direitos, riscos, benefícios e intercorrências acerca da assistência de enfermagem. (Artigo 17, 81-83 do Código de Ética de Enfermagem, 2007)

Especificamente no cenário hospitalar, tem-se explícito o direito de conhecer sua enfermidade, cuidados terapêuticos e diagnósticos a serem utilizados, do prognóstico, respeitando sua fase cognitiva, além de receber amparo psicológico, quando se fizer necessário. No entanto, o direito à participar do processo decisório sobre a saúde da criança está aparece por meio de seus pais ou responsáveis.

Direito a ter conhecimento adequado de sua enfermidade, dos cuidados terapêuticos e diagnósticos a serem utilizados, do prognóstico, respeitando sua fase cognitiva, além de receber amparo psicológico, quando se fizer necessário. Direito a que seus pais ou responsáveis participam ativamente do seu diagnóstico, tratamento e prognóstico, recebendo informações sobre os procedimentos a que será submetido. (Itens 8 e 10 da Resolução nº 41 do CONANDA, 1995).

A proteção à infância consiste em um direito social que deve ser assegurado pelo Estado, sociedade e família com prioridade.

São direitos sociais a vida, educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a [...] cultura, dignidade, respeito, liberdade, a proteção [...] à infância, convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, [...] sendo dever da família, da sociedade e do Estado assegurá-los com absoluta prioridade à criança. (Artigos 6 e 277 da Constituição Federativa do Brasil, 1988) .

No âmbito dos Estados, essa proteção engloba a aplicação de recursos públicos destinados à saúde para criação de programas de assistência integral à saúde da criança que promovam a inclusão social de crianças com deficiência e incentivos fiscais.

O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, [...] mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos: aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil; criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, [...] e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei [...] (Artigo 227 § 1º da Constituição Federativa do Brasil, 1988).

Em termos comunitários e sociais, o exercício dessa proteção se dá por meio da participação popular em que organizações representativas de âmbito federal, estadual e municipal; manutenção de fundos nacional, estaduais e municipais vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança; de modo a ampliar a responsabilização em ser a porta voz da criança ao familiar e o direito de expressar-se acerca das medidas de promoção dos seus direitos e sua proteção.

As ações governamentais na área da assistência social serão [...] organizadas com base participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis [...] (Artigos 204 da Constituição Federativa; artigos 88 e 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990; artigo 7 da Lei Nº 8.080, 1990).

A Constituição Federal assegura o direito da criança ser ouvida e participar nos atos e na definição daquelas medidas que visam a promoção dos direitos e proteção quando estende a operacionalização da assistência social à criança. A voz da criança pode ser manifestada por ela mesma na própria participação e na possibilidade de indicar a pessoa que a melhor represente, sendo prescrito que é dever das autoridades ouvi-las.

A criança [...], em separado ou na companhia dos pais, de responsável ou de pessoa por si indicada, bem como os seus pais ou responsável, têm direito a ser ouvidos e a participar nos atos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção, sendo sua opinião devidamente considerada pela autoridade judiciária competente (Artigos 204 e 227 da Constituição Federativa, 1998; artigos 88 e 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990; artigo 7 da Lei nº 8.080, 1990)

O direito à proteção da criança estende-se a sua família para que tanto o pai quanto a mãe exerçam o poder familiar conjuntamente em condições de igualdade, recorrendo à autoridade judiciária para resolver divergência.

É dever da família [...] assegurar à criança os direitos fundamentais da criança, exercer o poder familiar regulado de acordo com o interesse superior da criança nas formas de lei, sendo passível de perda desse poder (Capítulo V do Código Civil, 2002; artigos 227 e 229 da Constituição Federativa do Brasil, 1988; Artigos 4, 21-24, 86, 100 do Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990).

Nesse espectro, os responsáveis legais da criança atuam como seus porta vozes primando pelo processo decisório baseado no interesse superior da criança; as decisões devem ser tomadas em benefício à criança e seus desejos, mesmo que estes sejam contraditórios ao desejo parental.

DISCUSSÃO

A voz da criança na pesquisa encontrou sustentação nos textos normativos preservando o direito dela participar no processo decisório, ao reconhecer o direito a liberdade e dignidade ao expressar suas ideias e opiniões. Ambos os direitos implicam no direito de acesso a informação e no dever do pesquisador em respeitar a sua autonomia e o caráter voluntário de sua participação na pesquisa. No campo da análise normativa, a voz da criança é reconhecida, tanto em seu caráter prescritivo como no descritivo. No primeiro, a norma infra legal da Resolução sobre a ética em pesquisa com seres humanos, por meio do Termo de Assentimento Livre e Esclarecido, reconhece essa voz entre aquelas crianças com capacidade de discernimento e cognição. No segundo, as legislações supralegais – Constituição Federal e o ECA – fundamentam as condutas legais no campo da pesquisa, preservando-se, sempre, o melhor interesse da criança.

A voluntariedade é um princípio ético que está relacionado à dignidade e à liberdade de escolha, operacionalizada, na pesquisa com crianças, por meio do assentimento, uma vez que elas não possuem autodeterminação, isto é, reconhecimento legal para tomar decisões sem consentimento de seu responsável. Para que a criança exerça sua autonomia, é preciso que ela reúna informações compreensíveis para o estágio de desenvolvimento que se encontra, sendo o marco cronológico de sete anos de idade o aspecto comum entre os estudos publicados, quando tratam da solicitação desse termo(55. Carnevale F. Considerações éticas em enfermagem pediátrica. Rev Soc Bras Enferm Ped. 2012;12(1):37-47.). Além da linguagem adequada, recursos visuais lúdicos (desenhos, fantoches etc.) e a inclusão dos pais podem auxiliar nesse processo, que é, também, educativo. Em pesquisa desenvolvida com crianças de sete a 10 anos de idade, a estratégia utilizada foi reunir os pais dos possíveis participantes da pesquisa em grupo para obter o consentimento livre e esclarecido e instrumentalizá-los com um modelo de narrativa para explicar a atividade de pesquisa para seu filho em casa e, assim, obter seu assentimento por escrito em um termo que dialogava com a capacidade moral e cognitiva dessas crianças(55. Carnevale F. Considerações éticas em enfermagem pediátrica. Rev Soc Bras Enferm Ped. 2012;12(1):37-47.,1212. Stanford EA, Chambers CT, Craig KD. A normative analysis of the development of pain-related vocabulary in children. Pain. 2005;114(1-2):278-84.).

Sobre a voz da criança no campo dos cuidados em saúde em cenários da comunidade e do hospital, constam nos textos normativos o direito à dignidade. A dignidade está relacionada ao direito de sigilo e confidencialidade das informações, implicitamente previsto nas normas infralegais – Códigos de Ética de Enfermagem e Medicina - no campo do dever profissional e explicitamente na Lei Orgânica da Saúde (norma supralegal) a qual estende o direito de informação a todas as pessoas. No cenário hospitalar, o direito à dignidade refere-se à garantia de todos os direitos previstos em lei para a criança hospitalizada, sendo o direito de movimentar-se nos serviços de saúde sem e o direito à informação explicitamente prescritos na Resolução que dispõe dos direitos da criança hospitalizada (norma infralegal).

O sigilo profissional envolve uma relação ética contratual estabelecida nos encontros terapêuticos, em que as informações, sejam elas discutidas ou fotográficas, assumem um caráter confidencial, isto é, legalmente, são tratadas como segredos assegurados. O dever de respeitar a confidencialidade pressupõe o direito da criança em falar e ser ouvida nos espaços de saúde de acordo com sua fase de desenvolvimento. Estudos evidenciam que as crianças indicam capacidade de discernimento, isto é, capacidade de distinguir, de compreender e interpretar conceitos que envolvem definições de certo e errado, justo e injusto, bom e ruim(1313. Wickremesooriya SF. A right to speak and a right to be heard. Can J Action Res. 2015;16(1):3-21.

14. Nunes SRT. Privacidade e sigilo em deontologia profissional: uma perspectiva no cuidar pediátrico. Nascer Crescer. 2011;20(1):40-4.
-1515. Andrade RF, Santos JS, Pina JC, Furtado MCC, Mello DF. Integrality of actions among professionals and services: a necessity for child’s right to health. Esc Anna Nery. 2013;17(4):772-80.).

Apesar das evidências e dos profissionais de saúde brasileiros conhecerem os direitos da criança, na prática, a criança ainda está a margem nos processos de cuidado a sua própria saúde, permanecendo passiva especialmente no cenário hospitalar. Estudos apontam(1616. Singh I. Not robots: children’s perspectives on authenticity, moral agency and stimulant drug treatments. J Med Ethics. 2013;39(6):359-66.

17. Barbosa MM, Guedert JM, Grosseman S. Problemas éticos relatados por internos com ênfase na saúde da criança. Rev Bras Educ Med. 2013;37(1):21-31.
-1818. Souza LF, Misko MD, Silva L, Poles K, Santos MR, Bousso RS. Morte digna da criança: percepção de enfermeiros de uma unidade de oncologia. Rev Esc Enferm USP. 2013;47(1): 30-7.) que durante esse período, as crianças estão susceptíveis a regular sua voz a partir do comportamento dos profissionais com quem convivem, que podem desencorajá-la ou encorajá-la a participar dessas decisões. No entanto, a abordagem que prevalece é a assistencial e paternalista no sentido em apenas proporcionar um espaço emocional, uma vez que o processo decisório ainda está centrado no que a família considera melhor para o seu filho, podendo essa decisão ser ou não o melhor interesse da criança(1616. Singh I. Not robots: children’s perspectives on authenticity, moral agency and stimulant drug treatments. J Med Ethics. 2013;39(6):359-66.

17. Barbosa MM, Guedert JM, Grosseman S. Problemas éticos relatados por internos com ênfase na saúde da criança. Rev Bras Educ Med. 2013;37(1):21-31.
-1818. Souza LF, Misko MD, Silva L, Poles K, Santos MR, Bousso RS. Morte digna da criança: percepção de enfermeiros de uma unidade de oncologia. Rev Esc Enferm USP. 2013;47(1): 30-7.).

O princípio do melhor interesse pode estar relacionado ao direito à proteção, cuja análise normativa indicou que está situado no campo do dever do Estado, sociedade e família, pois refere-se a como a voz da criança é incorporada por seus representantes morais nos espaços que lhes competem defender os direitos da criança.

No que concerne à participação social, tanto no âmbito federal, estadual e municipal, os Conselhos de Saúde, Conselho dos Direitos da Criança, Infância e Juventude, Conselho Tutelar etc. contribuem para a proteção dos direitos da criança, por meio da voz dos adultos, fazendo pouca escuta da voz da criança.

Entretanto, países como o Canadá e Inglaterra, algumas instâncias incluem a própria criança nesses órgãos representativos, dando visibilidade a voz da criança a partir de sua fonte primária e não de um porta-voz(55. Carnevale F. Considerações éticas em enfermagem pediátrica. Rev Soc Bras Enferm Ped. 2012;12(1):37-47.). Nesse sentido, é necessário que as legislações que envolvem questões éticas sejam estruturadas como um processo de interação entre o legislativo e a sociedade, ou setores relevantes da sociedade, para que o desenvolvimento de uma nova norma moral e de novas normas legais possam se fortalecer em sua aplicabilidade no cotidiano(1919. Gomes GC, Erdmann AL, Oliveira PK, Xavier DM, Santos SSC, Farias DHR. The family living the time during the hospitalization of the child: contributions for nursing. Esc Anna Nery. 2014;18(2):234-40-2020. Van der Berg W, Brom FW. Legislation on ethical issues: towards an interactive paradigm. Ethical Theory Moral Pract. 2000;3(1):57-75.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora não fosse propósito do estudo confrontar leis existentes, buscou-se esclarecer como a voz da criança é reconhecida no campo legal antecipando possíveis condutas a serem executadas pelos profissionais de saúde. Há clareza na normativa que regula a pesquisa com crianças, pois nela está assegurado o direito da criança opinar sobre sua participação na pesquisa, fundada no princípio da dignidade e do direito de acesso à informação, com o assentimento da criança para participar de estudos. Pode haver tensões relacionadas à precisão da informação, já que adulto e da criança podem ter compreensões diferentes para as mesmas palavras. Do discurso normativo dos textos regulatórios de proteção à infância destacaram-se que o respeito ao direito de expressar-se e de ter acesso a informação como possibilidades no campo da pesquisa com a criança, por meio do Termo de Assentimento Livre e Esclarecido.

Entretanto, o mesmo não se observou em relação aos cuidados em saúde cujos limites são superiores às suas possibilidades. A participação da criança na tomada de decisão sobre seus cuidados de saúde é um direito fundamental, mas o tema ainda é bastante controverso, sendo que a voz da criança na normativa brasileira tem caráter protetor, centrada no campo dos direitos sociais sendo dever do Estado, sociedade e família protegê-la. No campo do cuidado em saúde, a legislação brasileira trata o direito da criança na perspectiva dos direitos sociais e a partir da narrativa dos deveres dos profissionais de saúde. O cenário hospitalar tem campos específicos que envolvem o direito de ir e vir. No entanto, a legislação apresenta algumas contradições, pois o respeito à liberdade e dignidade incorpora a liberdade de expressão espiritual da criança na constituição, mas a normativa hospitalar centra a liberdade religiosa na família; o direito à informação é tratado no sentido da criança conhecer sua condição de saúde na condição passiva, pois traz a família como única participante no processo decisório no cenário hospitalar. Contudo, ainda hoje, a permanência do familiar nesses espaços é, muitas vezes, modulada e regulada por horários e espaços estipulados nas rotinas hospitalares, interferindo no direito de a criança ter seu porta-voz.

Na análise normativa da legislação de proteção a infância no Brasil, constatou-se o reconhecimento da voz criança na pesquisa; entretanto, no campo dos cuidados em saúde ainda precisa ganhar espaço nas discussões e nas práticas, dada sua relevância e legitimidade.

Nesse sentido, é preciso introduzir um novo pensar sobre o fazer da enfermagem pediátrica em uma perspectiva de cidadania e de inclusão da criança como participante ativa de seus cuidados. No campo da formação e da educação permanente, é necessário repensar o lugar social da criança nos cuidados em saúde, considerando seus direitos de participação e ter voz nos cuidados em saúde.

No campo da pesquisa, aponta-se a necessidade de investigações sobre a voz da criança nos espaços do cuidado, tendo como participantes criança, profissionais e/ou familiares a fim de certificar-se sobre como os deveres legais estão sendo traduzidos na prática.

Como limite do estudo, aponta-se que foram examinadas normativas infralegais reguladoras da atuação profissional da enfermagem e medicina, de modo que os códigos de éticas de outras profissões da área da saúde não foram fonte de coleta de dados e nem procedeu-se uma comparação entre os marcos legais brasileiros com os de outros países.

REFERÊNCIAS

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    “Transferência de saberes de enfermagem no cuidado familiar às crianças com necessidades especiais”, Edital Universal CNPq 2012-2015, coordenado pela Dra Ivone Evangelista Cabral, e “Interdisciplinary studies of childhood ethics: developing a new field of inquiry”, coordenado pelo Dr Franco Carnevale, McGill University.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2015
  • Aceito
    19 Ago 2016
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