Acessibilidade / Reportar erro

Direito e ética como formas sociais capitalistas: delimitação teórica e complementaridade prática

Law and ethics as capitalist social forms: theoretical delimitation and practical complementarity

Resumo

Este artigo oferece uma abordagem marxista sobre o direito e a ética baseada na categoria das formas sociais e inspirada pelas contribuições de Evgeny Pachukanis. Ao se considerar a moderna subjetividade como o núcleo das formas jurídica e ética, e ao se tomar o pensamento kantiano como uma referência nesse assunto (tal como fez Pachukanis), é possível ver como essas categorias histórias são continuamente delimitadas pela teoria jurídica e de algum modo insistentemente conectadas na prática jurídica, ao menos de acordo com os juristas mais influentes, tanto positivistas como pós-positivistas, cada um à sua própria maneira. Essa percepção fortalece a argumentação pachukaniana sobre as diferenças entre a forma jurídica e a forma ética, apesar da complementaridade social e prática que elas apresentam na dinâmica do sujeito de direito, que é o moderno indivíduo abstrato do capitalismo.

Palavras-chave:
Direito; Ética; Moral; Forma Jurídica; Pachukanis

Abstract

This article offers a marxist approach on law and ethics based on the category of social forms and inspired by Evgeny Pashukanis’ contributions. By considering modern subjectivity as the core of legal and ethic forms, and by taking kantian thinking as a reference on the matter (such as Pashukanis did), it is possible to see how these historical categories are continuosly delimited by legal theory and somehow insistently connected to legal practice, at least according to the most influent jurists, both positivists and postpositivists, each one in his own way. This perception strenghtens pashukanian argumentation on the differences between legal form and ethical form despite the social and practical complementarity that they present in legal subject’s dynamics, whic is the modern abstract individual from capitalism.

Keywords:
Law; Ethics; Morals; Legal form; Pashukanis

Introdução

O direito e a ética, em suas respectivas áreas de investigação, comungam de um mesmo destino: na imensa maioria das análises, um tratamento teórico que contempla diferentes conteúdos normativos e valorativos, mas que jamais cuida da especificidade histórica e social da sua forma de manifestação. Não faltam obras para cotejar o “direito” da antiguidade ou do medievo com o chamado direito moderno, e o mesmo se passa com a ética, tomada como uma reflexão moral que atravessa os tempos. O pensamento moral de autores como Aristóteles e de São Tomás de Aquino seria pertencente ao domínio ético da mesma maneira que o pensamento de Kant, havendo aí um contraste apenas no teor das proposições morais e no embasamento filosófico das teorias. Quanto ao direito, também se entende amplamente que Ulpiano e Santo Agostinho seriam tão “juristas” quanto Kelsen, cada um se ocupando do mesmo objeto em diferentes épocas históricas.

Esse modo de ver o direito e a ética, que soa tão natural e evidente, que se faz presente em autores das mais diferentes filiações teóricas, só pode ser problematizado pela teoria marxista, ou ainda, se quisermos, por uma determinada leitura do marxismo, orientada pelos apontamentos marxianos da maturidade, em particular pela problemática inaugurada n’O capital e esboçada em obras como os Grundrisse. Referimo-nos, aqui, a uma abordagem que privilegia o conceito de formas sociais, e que foi adaptada com maestria, da crítica da economia política à crítica do direito, por Evgeni Pachukanis.

Na contramão das abordagens que veem no direito um poder normativo com conteúdo de classe historicamente variável (feudal, burguês, proletário etc.), a teoria de Pachukanis, ao tomar o sujeito de direito como ponto de partida, como a categoria mais simples e abstrata do fenômeno jurídico, diretamente alinhada à produção mercantil generalizada, promoveu uma reviravolta na crítica marxista do direito. Foi possível, a partir de então, perceber o direito como um objeto socialmente circunscrito no campo das determinações do modo de produção capitalista, semelhante ao que se dá, na economia, com as figuras do capital e do trabalho assalariado. A própria ética, por sua vez, poderia ser pensada separadamente da moral em geral, ou melhor, como uma expressão autenticamente moderna - capitalista - da valoração moral, adotando como centro de referência, outrossim, um sujeito individualizado e abstrato.

Foi somente a modernidade capitalista, portanto, que produziu o direito e a ética no sentido rigoroso do termo, sentido este que só pode ser concebido a partir do sujeito de direito, que contém em si a chave da individualidade ético-jurídica. Veremos, assim, como a forma jurídica e a forma ética são categorias que se afirmam no modo de produção burguês, mantendo um estatuto próprio, mas sempre vinculadas na prática jurídica (é dizer, na prática do sujeito de direito, ou ainda, na prática que o pressupõe como destinatário).

A forma jurídica e a forma ética segundo Evgeni Pachukanis

Pachukanis procura delimitar o que seria o “elemento jurídico”, isto é, a substância social que define o direito como uma categoria específica, irredutível às normatividades de todos os tipos. Essa delimitação é dada pela inconfundível figura do sujeito de direito, oriunda da generalização do intercâmbio mercantil, a qual depende, por sua vez, do desenvolvimento do assalariamento e se aprofunda com a transformação capitalista do processo de trabalho, que intensifica a abstração social do valor que se realiza no mercado. Como sintetiza o jurista soviético, “ao mesmo tempo em que o produto do trabalho adquire a qualidade de mercadoria e se torna portador do valor, o homem adquire a qualidade de sujeito jurídico e se torna portador do direito” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo e Ensaios escolhidos (1921-1929). Coordenação de Marcus Orione Gonçalves Correia. Tradução de Lucas Simone. São Paulo: Instituto José Luis e Rosa Sundermann, 2017., p. 141).

É o sujeito de direito que demarca a especificidade da forma jurídica, que a diferencia de outras esferas normativas, como é o caso dos costumes, da religião, da técnica, da estética, da moral etc. Uma norma só será jurídica se tomar como destinatários os sujeitos de direito, da mesma maneira que uma relação social só será jurídica se envolver os participantes como indivíduos dotados de direitos e deveres recíprocos. E nisso não há nenhuma redundância, já que as condições objetivas para a aparição do elemento jurídico são dadas pelas relações de produção capitalistas, figurando mesmo como um envoltório geral das relações sociais no capitalismo.

O mercado capitalista, afirma Bernard Edelman, (1976EDELMAN, B. O direito captado pela fotografia: elementos para uma teoria marxista do direito. Tradução de Soveral Martins e Pires de Carvalho. Coimbra: Centelha, 1976., p. 129), “é o lugar onde o homem realiza a sua natureza trinitária; ele afirma-se proprietário, portanto livre, portanto igual a qualquer outro proprietário”. Ora, o sujeito de direito é essa entidade que carrega consigo os traços formais da liberdade, da igualdade e da propriedade. Ele é livre enquanto agente econômico desvinculado de estruturas estamentais e apto a fazer circular as mercadorias que possui, inclusive sua força de trabalho, se for assalariado; ele é igual aos demais, na medida em que o intercâmbio mercantil abstrai as diferenças de classe, reduzindo os indivíduos a meros contratantes portadores de vontade; ele é proprietário, pois a venda de mercadorias pressupõe que os vendedores são donos daquilo que vendem, o que significa, para o proletário, a condição de “autopropriedade”: contrariamente ao que se tinha na escravidão e na servidão, o produtor é dono de sua própria pessoa, mas apenas para que possa se entregar “voluntariamente” ao capitalista no processo de produção, submetendo-se não à violência política e direta da classe proprietária, mas antes à compulsão econômica impessoal do modo de produção capitalista1 1 “A organização do processo capitalista de produção plenamente constituído quebra toda a resistência, a constante produção de uma superpopulação mantém a lei da oferta e da procura de trabalho e, portanto, o salário em trilhos adequados às necessidades de valorização do capital, e a muda coação das condições econômicas sela odomínio do capitalista sobre o trabalhador. Violência extra-econômica direta é ainda, é verdade, empregada, mas apenas excepcionalmente. Para o curso usual das coisas, o trabalhador pode ser confiado às ‘leis naturais da produção’, isto é, à sua dependência do capital que se origina das próprias condições de produção, e por elas é garantida e perpetuada” (MARX, 1996, p. 358-359). .

Essa compulsão econômica e impessoal, decorrente da situação de separação entre os trabalhadores e os meios de produção - razão pela qual precisam vender sua força de trabalho no mercado -, é mediada por uma ideologia própria do direito, que faz o sujeito exaltar a liberdade, a igualdade e a propriedade que o capitalismo lhe provê, sem se dar conta de que a aparência jurídica dessas categorias carrega como contrapartida material, no caso dos trabalhadores, a subjugação ao poder do capital, a desigualdade de classe e a despossessão dos bens de produção. As encantadoras bandeiras do sujeito de direito transmutam-se no seu contrário para os assalariados, e esse é um mecanismo necessário nos termos das formas sociais de reprodução do capitalismo.

Tal ideologia jurídica, própria do sujeito moderno, é completada pela ética, ou, mais precisamente, pela conformação de um dever de cunho moral que assume a forma de um dever interno (uma obrigação de foro íntimo) e universal, capaz de fazer com que o agente se mova por si mesmo no mercado, aceitando a suposta naturalidade da ordem social e acatando seus desígnios espontaneamente, sem que haja a necessidade de uma coerção militar constante contra os indivíduos encarregados de movimentar as engrenagens do capital. É por isso que os membros das classes dominadas, em sua vida cotidiana, “parecem ‘funcionar’ por si mesmos, reproduzindo as condições de seu próprio subjugamento ao capital, sem que seja necessário o uso da violência direta, sem a intervenção imediata e permanente dos aparelhos repressivos do Estado” (NAVES, 2014NAVES, M. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões; Dobra, 2014., p. 90).

Não obstante a constância de valoração moral na história, há de se perceber que apenas no capitalismo foi formulada a noção de um tipo específico de dever moral que se diferencia por sua forma, que é tomado como uma obrigação que o indivíduo deve em primeiro lugar a si mesmo, e que lhe cabe apreciar o cumprimento não como membro de um estamento determinado ou de uma comunidade, mas antes como um sujeito ético com liberdade de escolha e aptidão para responder por seus atos2 2 “Do mesmo modo que a forma jurídica pressupõe um sujeito livre, igual e proprietário, a forma ética pressupõe o igual valor moral das pessoas, e por isso ela rejeita a desigualdade estamental presente em formações sociais ancoradas na escravidão, na servidão e em quaisquer outras modalidades de trabalho compulsório. Somente o “livre” trabalho assalariado do capitalismo pode produzir a abstração do indivíduo puro, que é indissociável da abstração do valor na forma mercantil generalizada pelo assalariamento” (BIONDI, 2018, p. 2704). . E segundo Pachukanis, a doutrina moral de Kant formulou pela primeira vez esse sujeito ético, base da ética geral, e que age - ou melhor, que deve agir - movido por uma obrigação universal que ele dá a si mesmo. “A ética kantiana é a ética típica da sociedade produtora de mercadorias, mas ao mesmo tempo ela constitui a forma mais pura e acabada da ética em geral”, sendo que “Kant conferiu um aspecto logicamente acabado à forma que a sociedade burguesa atomizada tentou encarnar na realidade, libertando o indivíduo dos laços orgânicos da época patriarcal e feudal” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo e Ensaios escolhidos (1921-1929). Coordenação de Marcus Orione Gonçalves Correia. Tradução de Lucas Simone. São Paulo: Instituto José Luis e Rosa Sundermann, 2017., p. 186-187).

É certo que o par “liberdade-responsabilidade” também está presente no direito. No entanto, tem-se que, na seara jurídica, a liberdade do sujeito implica uma responsabilidade relacionada a um dever que lhe é externo, que está previsto nas leis aplicáveis às relações jurídicas, e que dá ensejo a consequências que são imputadas pelo Estado - e aqui o direito aparece (veja-se, apenas “aparece”) como monopólio organizado da força. Mas essa aparência, que é enganosa ao deixar em segundo plano o sujeito de direito, ressalta a face externa desse sujeito, pela qual ele entra em contato com os outros indivíduos e com a sociedade, submetendose aos resultados desse intercâmbio. Por outro lado, esse mesmo sujeito é também um personagem ético, no sentido de que é dotado de um senso interno de dever que o habilita a uma “auto-obrigação”. O chicote da sanção estatal não precisa entrar em cena quando a autodisciplina moral dos indivíduos funciona normalmente, quando o agente é contido por seu “juiz interior” ou por seu “policial interior”.

Daí se verifica que a forma jurídica e a forma ética, embora repousem sobre a mesma subjetividade moderna e capitalista, sobre o mesmo terreno da produção de mercadorias e dos agentes que personificam a dinâmica do valor, atuam de maneiras distintas, ainda que funcionalmente complementares. O dever externo jurídico supre a falha do dever interno ético. Contudo, essa realidade coloca problemas para o direito, que vê hipertrofiada a sua face de comando externo sem um respaldo valorativo determinado, sobretudo com o advento da concepção juspositivista. Abriu-se aí toda uma sequência de grandes contradições na teoria jurídica:

Mas precisamente essa clareza da delimitação da esfera moral e da esfera jurídica serve de fonte das contradições mais insolúveis para a filosofia burguesa do direito. Se o dever jurídico não possui nada em comum com o dever moral “interno”, então a submissão ao direito de modo nenhum pode distinguir-se da submissão à força como tal. Mas se, por outro lado, é admitido como traço essencial no direito o elemento do dever, mesmo que ele tenha a mais fraca nuance subjetiva, rapidamente se perde o sentido do direito como mínimo socialmente necessário. A filosofia burguesa do direito se esgota nessa contradição fundamental, nessa luta infinita com suas próprias premissas (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo e Ensaios escolhidos (1921-1929). Coordenação de Marcus Orione Gonçalves Correia. Tradução de Lucas Simone. São Paulo: Instituto José Luis e Rosa Sundermann, 2017., p. 196).

Essa dissociação entre um dever jurídico externo e um dever moral interno nada tem de casual. Tratase de uma implicação incontornável da forma jurídica, e que, não por acaso, foi exposta filosoficamente na aurora da modernidade, conforme se constata no pensamento de Immanuel Kant.

A delimitação entre direito e ética em Kant

Talvez o principal representante da aurora da modernidade, Kant propôs uma metafísica dos costumes que viria a se desdobrar em noções gerais de legalidade e moralidade. Para o filósofo iluminista, a razão humana é capaz de indicar regras de conduta universais para todos os seres pensantes, independentemente das paixões individuais, do contexto e das tradições regionais. Tais regras conformam, portanto, um conjunto de deveres universais baseados numa racionalidade universal e metafísica, que se propõe justamente a transcender os particularismos e as contingências empíricas3 3 “Tudo portanto o que é empírico é, como acrescento ao princípio da moralidade, não só inútil mas também altamente prejudicial à própria pureza dos costumes; pois o que constitui o valor particular de uma vontade absolutamente boa, valor superior a todo o preço, é que o princípio da ação seja livre de todas as influências de motivos contingentes que só a experiência pode fornecer” (KANT, 1960, p. 65). Como reforça Norberto Bobbio (2000, p. 84) em relação a Kant, a metafísica dos costumes assume a incumbência de encontrar o princípio da obrigação na conduta humana não na existência física do homem ou nas circunstâncias em que ele é situado no mundo, mas sim nos conceitos da razão pura. .

Com isso, Kant afirma a existência de leis racionais oriundas da liberdade humana, da capacidade do homem de agir livremente em relação a seus impulsos naturais, é dizer, de não ceder a eles mecanicamente, como se dá entre os animais e os objetos submetidos às leis da natureza. Tais leis são próprias de um domínio moral de livre-arbítrio que se opõe ao domínio natural do determinismo, da ação mecânica, sendo que elas podem ser jurídicas, se aplicadas apenas às ações exteriores, ou éticas, se forem tomadas como o fundamento da própria ação (KANT, 2013KANT, I. Metafísica dos costumes. Tradução de Clélia Aparecida Martins, Bruno Nadai, Diego Kosbiau e Monique Hulshof. Petrópolis: Vozes, 2013., p. 22).

Na visão kantiana, o homem consagra-se como ser moral na medida em que sua vontade pode, livremente, coincidir com uma lei a priori de moralidade, seja ela jurídica ou ética (MORRISON, 2006MORRISON, W. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 164). É esse elemento que torna a ação humana passível de louvor ou de condenação moral, ou ainda, de aprovação ou reprovação jurídica. Por maiores que sejam os constrangimentos concretos, a razão segue totalmente livre, o que implica a necessidade de imputação ética e jurídica do indivíduo.

Essa imputação sempre ocorre de acordo com um dever prescrito por algum tipo de lei, mas varia o modo como essa lei governa a ação dos indivíduos. Na esfera ética, o agente toma o dever como um móbil para a ação, encarando sua própria conduta como aquilo que é moralmente exigível para todos os seres racionais, quaisquer que sejam as consequências. Já na esfera jurídica, admite-se um móvel distinto da ideia do dever, pois basta que o agente cumpra a obrigação exterior prevista na legislação estatal, por mais que ele o faça apenas por temer a sanção ou por qualquer outro motivo diferente do respeito ao dever como um fim em si mesmo. Portanto, ética e direito diferenciam-se, em Kant, não na natureza do dever, mas no modo como ele é imposto, se internamente ou externamente.

Disso se infere que todos os deveres, simplesmente por serem deveres, pertencem à ética, mas nem por isso sua legislação está sempre contida na ética, estando antes a de muitos deles fora da mesma. Assim, a ética ordena que eu cumpra o compromisso assumido em um contrato, mesmo que a outra parte não pudesse forçar-me a isso: ela apenas toma como dada a lei (pacta sunt servanda) e o dever correspondente a ela da doutrina do direito. Portanto, a legislação segundo a qual as promessas feitas devem ser cumpridas não se encontra na ética, e sim no Ius. A ética ensina somente o seguinte: se é também suprimido o móbil que a legislação jurídica une com aquele dever, a saber, a coerção externa, a ideia do dever sozinha já é suficiente como móbil. Pois se não fosse assim, se a legislação mesma não fosse jurídica, se o dever que dela nasce não fosse propriamente, portanto, um dever jurídico (à diferença do dever de virtude), então o cumprimento da fidelidade (conforme sua promessa em um contrato), as ações de benevolência e a obrigação em relação a elas se colocariam em uma mesma classe, o que de modo algum deve ocorrer. Manter sua promessa não é dever de virtude, e sim um dever jurídico a cujo cumprimento se pode ser coagido. Cumpri-lo também quando nenhuma coerção precisa ser temida, contudo, é uma ação virtuosa (prova de virtude). A doutrina do direito e a doutrina da virtude não se distinguem tanto por seus diferentes deveres, mas, antes, pela diferença da legislação, que liga um ou outro móbil à lei (KANT, 2013KANT, I. Metafísica dos costumes. Tradução de Clélia Aparecida Martins, Bruno Nadai, Diego Kosbiau e Monique Hulshof. Petrópolis: Vozes, 2013., p. 26-27).

Eis a razão pela qual Pachukanis (2017PACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo e Ensaios escolhidos (1921-1929). Coordenação de Marcus Orione Gonçalves Correia. Tradução de Lucas Simone. São Paulo: Instituto José Luis e Rosa Sundermann, 2017.a, p. 187) postula que “o ser moral [“ético”4 4 É preciso reconhecer que, em Pachukanis, há um uso pouco rigoroso dos termos “ética” e “moral”, o que não impede a compreensão daquilo que é central em sua proposta, e que nos parece absolutamente correto: a ética kantiana é a forma “mais pura e acabada” da ética em geral, da mesma maneira que o direito que surge na modernidade é a forma definitiva do direito, encontrando nas formas antediluvianas nada mais do que uma sombra imperfeita e categorialmente incompatível com ela. Assim, a moral dos antigos e dos medievais difere da moral dos modernos não apenas no conteúdo, mas também na forma, a qual, para os modernos, apresenta-se como uma forma ética, voltada para um sujeito universal que jamais poderia estar presente nas clivagens sociais do escravismo antigo e na segmentação social própria do feudalismo. ] é o complemento necessário do ser jurídico: tanto um como o outro são meios de conexão entre os produtores de mercadorias”, e que “todo o pathos do imperativo categórico kantiano resume-se ao fato de que o homem faz ‘livremente’, ou seja, de acordo com uma convicção interna, aquilo a que ele seria forçado no plano do direito”.

A delimitação positivista entre direito e moral

Ao introduzir uma nítida separação entre legalidade e moralidade, Kant possibilitou uma das problemáticas mais caras ao positivismo jurídico, a saber, a separação entre direito e moral. Essa separação, do ponto de vista dos juristas, foi apresentada pela primeira vez com John Austin e depois reforçada, com maior nitidez e sofisticação, pelas teorias de Hans Kelsen e Herbert Hart.

Austin inaugura essa problemática no pensamento jurídico ao separar as leis positivas, que seriam o objeto particular da teoria jurídica, das leis divinas e das chamadas regras da moralidade positiva. Para o autor, as leis positivas seriam regras criadas pelo homem para serem aplicadas sobre o homem, observando, para tanto, a estrutura de um comando, isto é, de uma norma emanada de um ente superior no nível político, que atua como um soberano em face dos súditos (AUSTIN, 1998AUSTIN, J. The province of jurisprudence determined and the uses of the study of jurisprudence. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1998., p. 11). Na ausência desse poder soberano, não poderia haver uma regra propriamente jurídica. As regras postas como costumes sociais (regras ligadas à honra, aos jogos, à etiqueta, por exemplo), apesar de serem positivas (objetivamente postas na sociedade), não decorrem de uma autoridade soberana, mas antes da opinião pública e da inércia dos hábitos.

A concepção austiniana do direito positivo, com efeito, carrega consigo três elementos fundamentais do positivismo jurídico: i) a concepção da teoria do direito como estudo da norma posta (e não da norma ideal, desejável) ii) a concepção imperativista do direito, que trata a norma jurídica como um comando aplicável mediante sanção; iii) a concepção estatal do direito, que toma o Estado como fonte soberana do poder e como expressão da comunidade política organizada (BOBBIO, 1995BOBBIO, N. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995., p. 108). Poder-se-ia, no entanto, agregar como quarto elemento a distinção nítida entre direito e moral no pensamento de Austin, já que o positivismo jurídico adota a pretensão de expurgar da teoria jurídica os elementos tidos como extrajurídicos, como é o caso da própria moral.

Tal pretensão foi adotada por Kelsen como uma condição fundamental para que o direito pudesse ser concebido como uma ciência. Para se consagrar como ciência, a teoria jurídica deveria delimitar seu objeto com rigor, impedindo que ele viesse a se confundir, em algum instante, com os objetos de outras áreas do saber. A pureza metodológica do direito, segundo o jurista austríaco, corre perigo quando se pretende que a teoria jurídica abarque também as normas produzidas por autoridades morais ou pela força do costume. Daí a necessidade incontornável, no raciocínio kelseniano, de se diferenciar os dois tipos de normatividade:

Uma distinção entre o Direito e a Moral não pode encontrar-se naquilo que as duas ordens sociais prescrevem ou proíbem, mas no como elas prescrevem ou proíbem uma determinada conduta humana. O Direito só pode ser distinguido essencialmente da Moral quando - como já mostramos - se concebe como uma ordem de coação, isto é, como uma ordem normativa que procura obter uma determinada conduta humana ligando à conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado, enquanto a Moral é uma ordem social que não estatui quaisquer sanções desse tipo, visto que as suas sanções apenas consistem na aprovação da conduta conforme às normas e na desaprovação da conduta contrária às normas, nela não entrando sequer em linha de conta, portanto, o emprego da força física (KELSEN, 2003KELSEN, H. A teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 71).

Nota-se que, mesmo sem lançar a figura da moralidade como um dever interno, Kelsen repete o trajeto kantiano ao caracterizar o direito a partir de sua força coercitiva, em contraste com a ausência de uma coerção centralizada no domínio moral. Isso é suficiente para que o juspositivista declare a teoria jurídica e a ética como campos de estudo totalmente distintos, inconfundíveis entre si, a tal ponto que as apreciações morais seriam elementos externos ao fenômeno jurídico. Para Kelsen, o valor que é relevante para o direito é aquele contido nas normas jurídicas, mas mesmo esse valor deve ser tomado objetivamente pelo estudioso. O jurista científico, na concepção kelseniana, não se identifica com nenhum valor, nem mesmo com o valor jurídico que ele descreve. Isso porque não caberia à dogmática justificar moralmente o direito, seja alegando uma valoração moral relativa, seja propondo uma moral absoluta. A única coisa que compete ao jurista é conhecer e descrever seu objeto (KELSEN, 2003KELSEN, H. A teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 77-78).

Não obstante, o célebre jusfilósofo admite que a valoração moral necessariamente estará presente no instante da aplicação do direito, é dizer, no momento da interpretação das normas jurídicas. As possibilidades hermenêuticas, na medida em que são abertas a juízos de moral e de justiça, ultrapassam o campo do direito positivo. Isso leva Kelsen (2003KELSEN, H. A teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 393) a dizer que o direito positivo nada tem a dizer sobre a verificabilidade e validade desses juízos, que seriam essencialmente externos à teoria jurídica.

Ainda que com mais sofisticação, Herbert Hart reproduziu a mesma concepção, reiterando o que seria uma distinção necessária entre direito e moral. Segundo o jurista inglês, direito e moral diferenciam-se em quatro temas fundamentais: i) em primeiro lugar, o senso de importância que a coletividade atribui à norma moral é imprescindível para a sua própria existência, ao passo que a norma jurídica pode seguir existindo mesmo quando ela não for socialmente reconhecida como justa, necessária ou conveniente; ii) em segundo lugar, a norma moral é imune à mudança deliberada, ao passo que a norma jurídica sujeita-se a processos deliberativos organizados; iii) em terceiro lugar, os chamados “delitos morais” só se caracterizam como tal quando houver intenção do agente, ao passo que o direito comporta formas de responsabilização que não dependem da disposição interna do indivíduo; iv) finalmente, a pressão moral difere da ameaça de sanção jurídica, funcionando mais como um dever que o indivíduo assume do que como uma coerção exterior. “Relativamente à moral”, sustenta Hart (1994, p. 195), “a forma típica de pressão consiste em apelos ao respeito pelas regras como realidades importantes em si mesmas”, e por isso ela é exercida, na maioria dos casos, “não através de ameaças ou de apelos ao medo ou ao interesse, mas sim através da lembrança da natureza moral da ação encarada e das exigências da moral”, o que pressupõe o surgimento, na consciência dos destinatários da norma, de um sentimento de culpa ou de vergonha que os punirá.

Com isso, vê-se como Hart repete a formulação kantiana que opõe legalidade e moralidade como deveres externos e internos, respectivamente. Em acréscimo, seria possível dizer ainda que o autor inglês reforça tacitamente a tese de Kelsen sobre a permeabilidade do direito a certas convicções morais na esfera da interpretação. Isso porque, na visão hartiana, tanto o precedente judicial quanto a legislação podem se apresentar ao operador do direito como uma textura aberta, que admite uma margem de interpretações possíveis em função das incertezas inerentes à linguagem (HART, 1994HART, H. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994., p. 143). Em todo caso, temse aí, novamente, o esforço de demarcação entre o território jurídico e o território moral, sendo que o primeiro sofreria influência maior ou menor do segundo a depender do nível de incerteza dos seus próprios instrumentos de comunicação: em alguns casos, a subsunção do fato à norma realiza-se quase que imediatamente; em outros, há uma dificuldade maior que inaugura a problemática dos hard cases, o que abriria o caminho para as leituras pós-positivistas.

A complementaridade pós-positivista entre direito e moral

Em autores como Ronald Dworkin e Robert Alexy, verifica-se uma preocupação típica daquilo que se convencionou chamar de “pós-positivismo”. Haveria um movimento de superação dos paradigmas positivistas a partir de incursões teóricas mais profundas no campo hermenêutico, de modo a se minar a separação rígida entre direito e moral que tanto foi sustentada pelas doutrinas juspositivistas. Seria como se estivéssemos diante de um movimento de retorno da moral ao direito, mas que, rejeitando as premissas jusnaturalistas, finca suas raízes na abertura textual das normas e na releitura da atividade interpretativa do jurista. Nesse empreendimento, destacou-se a proposta de Dworkin (2006, p. 34-35), que trata o direito como um “departamento da moralidade”, no sentido de que, em todos os momentos (na análise semântica, jurisprudencial, doutrinária e adjudicativa), o jurista se utiliza de alguma valoração moral ou política que é decisiva no seu modo de pensar e agir. Não se poderia extirpar a moralidade do direito, e toda teoria que o pretenda não faz mais do que negar as demais noções morais e afirmar a sua própria como a única válida, ainda que o faça tacitamente. No mesmo diapasão, Alexy salientou o que seria uma conexão necessária entre direito e moral, invocando três teses básicas: i) a ideia de que todo sistema jurídico desenvolvido contém princípios, e que esses princípios, pertencendo ao mesmo tempo à esfera jurídica e à esfera moral, encontramse incorporados ao direito posto; ii) a ideia de que, em função dessa incorporação, as decisões jurídicas utilizam razões jurídicas em sua forma, mas também razões morais em seu conteúdo; iii) a ideia de que as decisões judiciais trazem consigo uma pretensão de correção moral (ALEXY, 2009ALEXY, R. Conceito e validade do direito. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. , p. 93-94), isto é, pretendem ser justas, não se limitam a uma apreciação unicamente técnica dos problemas que enfrentam.

As doutrinas pós-positivistas insurgem-se contra a vacuidade moral do juspositivismo clássico, alegando que a melhor justificação e legitimação do direito exige não a recusa do discurso moral, mas antes a sua assunção nos processos decisórios, partindo-se da premissa de que os princípios que embasam as decisões seriam normas comuns à legalidade e à moralidade. Mais do que isso, a própria realização dos princípios mediante práticas de sopesamento implicaria a realização de valores (ALEXY, 2008ALEXY, R. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008., p. 144), de tal sorte que o êxito das concepções axiológicas é inseparável do triunfo de certas concepções deônticas.

Entretanto, os pós-positivistas não pretendem diluir o direito na moral ou a moral no direito. À sua própria maneira, também prestam tributo à autonomia da forma jurídica e da forma ética ao fazer distinções que dizem respeito à divisão em legalidade e moralidade. Não por acaso, Alexy (2008ALEXY, R. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008., p. 146) pontua que enquanto os princípios são “mandamentos de um determinado tipo, a saber, mandamentos de otimização”, razão pela qual pertencem “ao âmbito deontológico”, os valores, “por sua vez, fazem parte do nível axiológico”. Portanto, as múltiplas concepções morais sobre o bem não poder ser inteiramente assimiladas como dever-ser principiológico, restando-lhes subsistir externamente ao dever jurídico5 5 A técnica de sopesamento aplicável aos princípios seria, para seus defensores, uma porta de entrada do mundo no direito, uma maneira de tornálo mais permeável à realidade e à própria valoração moral. Mas como observa Marcus Orione (2015, p. 192-193), tal ponderação é um procedimento puramente lógico que deixa de lado a complexidade das relações materiais e históricas, como que as filtrando por meio das categorias da forma jurídica, o que faz com que prevaleça sempre a conciliação de classes na atividade jurisdicional. Assim é porque não há cotejo real entre os direitos do trabalhador e o direito de propriedade. Em cada disputa, o direito de propriedade não faz senão prevalecer mediante diferentes resultados concretos, enquanto que as pretensões dos assalariados são sempre aniquiladas, ainda que formalmente preservadas (como nas decisões que “asseguram” o direito de greve, mas com a condição de que a categoria mantenha a normalidade do trabalho em períodos cruciais). . Já Dworkin, a seu tempo, mostra-se capaz de identificar separadamente, nos processos judiciais, as questões de fato, as questões de direito e as questões de moralidade6 6 “Os processos judiciais sempre suscitam, pelo menos em princípio, três diferentes tipos de questões: questões de fato, questões de direito e as questões interligadas de moralidade política e fidelidade. Em primeiro lugar, o que aconteceu? O homem que trabalhava no torno mecânico realmente deixou cair uma chave inglesa no pé de seu companheiro de trabalho? Em segundo lugar, qual é a lei pertinente? A lei permite que um operário assim ferido obtenha indenização de seu patrão? Por último, se a lei negar o ressarcimento, será injusto? Se for injusto, devem os juízes ignorar a lei e assegurar a indenização de qualquer modo?” (DWORKIN, 1999, p. 5-6). , o que revela a permanência, ainda que bastante matizada, da visão de um direito que logra se diferenciar formalmente da esfera moral.

No mais, pode-se agregar que a grande tese do pós-positivismo não é de todo incompatível com o entendimento positivista tradicional. É verdade que, para Kelsen, o direito pode - ou melhor, deve - ser conhecido de maneira independente em relação aos valores morais do observador, e nisso há um choque com a teoria de Dworkin. Ainda assim, a teoria kelseniana não afasta a moralidade da atividade interpretativa do jurista, antes a pressupõe, embora isto lhe sirva como um indicativo de que a ciência do direito não teria muito a dizer acerca das possibilidades de “escolha” do sentido da norma no ato interpretativo. A diferença é que, para Kelsen, a doutrina do direito legitima-se apesar dessa circunstância - mantendo-se aí a autoridade científica da “teoria pura do direito”, ao passo que, para Dworkin, ela se legitima em função da presença do elemento moral - enaltecendo-se aí a autoridade ética de julgamentos embasados em princípios, de modo a se prestigiar certos juízos valorativos que se transformam em pretensões de validade e buscam reconhecimento nas decisões judiciais.

De maneira quase que irresistível, e por decorrência da estrutura objetiva das formas sociais, direito e ética seguem sempre existindo como categorias que, mesmo sem se confundirem, também não conseguem se isolar na vida prática do direito, sendo que tanto os positivistas quanto os pós-positivistas, cada um a seu modo, deparam-se com esta situação de delimitação teórica e complementaridade prática. Por trás dessa dificuldade da teoria jurídica, esconde-se a figura do sujeito moderno, que é um portador universal de direitos e deveres no contexto da ordem jurídica, mas também um agente que toma para si determinados deveres, perfazendo um movimento ético de auto-obrigação. Daí porque o jurista se vê às voltas com obrigações jurídicas e morais, enfrentando dilemas relacionados à sua especificação e à sua fundamentação.

Considerações finais

Mesmo portando uma identidade própria, socialmente inconfundível, o direito e a ética são vetores complementares na vida prática do sujeito moderno, isto é, do indivíduo constituído em sujeito ético-jurídico pelas relações capitalistas de produção. Pachukanis demonstra não apenas que o direito e a ética correspondem a formas sociais determinadas, mas também que essas formas operam conjuntamente, moldando externa e internamente a práxis do sujeito. A ideologia jurídica surge como um ponto de contato entre a influência jurídica exterior e o impulso ético interior, reunindo os atributos de um sujeito que sujeita a si próprio, que “livremente” se entrega aos expedientes de reprodução da ordem social burguesa.

Por óbvio, a dogmática jurídica não compartilha do diagnóstico proporcionado pela leitura pachukaniana. Ainda assim, ela dá um testemunho importante (“insuspeito”, aliás) a respeito da delimitação e da complementaridade que a forma jurídica e a forma ética mantêm entre si. O direito parece estar condenado a afirmar sua independência categorial em face da ética em todos os momentos, mas não pode fazê-lo sem reconhecer a sua dependência prática da valoração moral. “O sujeito egoísta, o sujeito de direito e a pessoa moral”, afirma Pachukanis (2017PACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo e Ensaios escolhidos (1921-1929). Coordenação de Marcus Orione Gonçalves Correia. Tradução de Lucas Simone. São Paulo: Instituto José Luis e Rosa Sundermann, 2017., p. 185), “são as três principais máscaras sob as quais o homem atua na sociedade produtora de mercadorias”, sendo que essas máscaras se completam na sua diferenciação.

Nessa relação contraditória (complementação-diferenciação), os juristas oscilam entre certas concepções jurídicas mais ligadas a critérios éticos (pós-positivismo) e outras que privilegiam a autonomia do direito como objeto de estudo e como fenômeno social (positivismo). Segundo a teoria pachukaniana, como foi visto, essa é uma contradição que persegue os juristas há muito tempo, e que não pode ser solucionada. “O dever jurídico não é capaz de encontrar para si um significado autônomo e oscila eternamente entre duas fronteiras extremas: a coerção exterior e o dever moral ‘livre’” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo e Ensaios escolhidos (1921-1929). Coordenação de Marcus Orione Gonçalves Correia. Tradução de Lucas Simone. São Paulo: Instituto José Luis e Rosa Sundermann, 2017., p. 197). A pretensa cientificidade da doutrina jurídica dá-se ao custo de um vazio moral, e toda tentativa de preenchimento desse vazio coloca essa doutrina em crise de paradigmas (como distinguir direito e moral satisfatoriamente?). Inversamente, a invocação de uma moralidade inerente ao direito enfraquece as aspirações de autoridade científica universal que são nutridas pela dogmática dos juristas (como manter a integridade das fronteiras do direito diante da moral?). Eis aí uma contradição dada pela compleição jurídica e ideológica da sociedade burguesa.

Agradecimentos

Não se aplica.

Referências

  • ALEXY, R. Conceito e validade do direito. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
  • ALEXY, R. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
  • AUSTIN, J. The province of jurisprudence determined and the uses of the study of jurisprudence. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1998.
  • BIONDI, P. Formas antediluvianas da ética em Aristóteles: moral e justiça na Antiguidade clássica sob uma perspectiva marxista. Revista Quaestio Iuris, Rio de Janeiro, n. 4, v. 11, p. 2684-2707, 2018.
  • BOBBIO, N. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Tradução de Alfredo Fait. São Paulo: Mandarim, 2000.
  • BOBBIO, N. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.
  • DWORKIN, R. Império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
  • DWORKIN, R. Justice in robes. Cambridge: Harvard University Press, 2006.
  • EDELMAN, B. O direito captado pela fotografia: elementos para uma teoria marxista do direito. Tradução de Soveral Martins e Pires de Carvalho. Coimbra: Centelha, 1976.
  • HART, H. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
  • KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1960.
  • KANT, I. Metafísica dos costumes. Tradução de Clélia Aparecida Martins, Bruno Nadai, Diego Kosbiau e Monique Hulshof. Petrópolis: Vozes, 2013.
  • KELSEN, H. A teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • MARX, K. O capital: crítica da economia política, v. I, t. II. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
  • MORRISON, W. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
  • NAVES, M. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões; Dobra, 2014.
  • ORIONE, M. Dogmática jurídica: um olhar marxista. In: KASHIURA JUNIOR, C.; AKAMINE JUNIOR, O.; MELO, T. (org.) Para a crítica do direito: reflexões sobre teorias e práticas jurídicas. São Paulo: Outras Expressões; Dobra, 2015.
  • PACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo e Ensaios escolhidos (1921-1929). Coordenação de Marcus Orione Gonçalves Correia. Tradução de Lucas Simone. São Paulo: Instituto José Luis e Rosa Sundermann, 2017.

Notas

  • 1
    “A organização do processo capitalista de produção plenamente constituído quebra toda a resistência, a constante produção de uma superpopulação mantém a lei da oferta e da procura de trabalho e, portanto, o salário em trilhos adequados às necessidades de valorização do capital, e a muda coação das condições econômicas sela odomínio do capitalista sobre o trabalhador. Violência extra-econômica direta é ainda, é verdade, empregada, mas apenas excepcionalmente. Para o curso usual das coisas, o trabalhador pode ser confiado às ‘leis naturais da produção’, isto é, à sua dependência do capital que se origina das próprias condições de produção, e por elas é garantida e perpetuada” (MARX, 1996, p. 358-359).
  • 2
    “Do mesmo modo que a forma jurídica pressupõe um sujeito livre, igual e proprietário, a forma ética pressupõe o igual valor moral das pessoas, e por isso ela rejeita a desigualdade estamental presente em formações sociais ancoradas na escravidão, na servidão e em quaisquer outras modalidades de trabalho compulsório. Somente o “livre” trabalho assalariado do capitalismo pode produzir a abstração do indivíduo puro, que é indissociável da abstração do valor na forma mercantil generalizada pelo assalariamento” (BIONDI, 2018, p. 2704).
  • 3
    “Tudo portanto o que é empírico é, como acrescento ao princípio da moralidade, não só inútil mas também altamente prejudicial à própria pureza dos costumes; pois o que constitui o valor particular de uma vontade absolutamente boa, valor superior a todo o preço, é que o princípio da ação seja livre de todas as influências de motivos contingentes que só a experiência pode fornecer” (KANT, 1960, p. 65). Como reforça Norberto Bobbio (2000, p. 84) em relação a Kant, a metafísica dos costumes assume a incumbência de encontrar o princípio da obrigação na conduta humana não na existência física do homem ou nas circunstâncias em que ele é situado no mundo, mas sim nos conceitos da razão pura.
  • 4
    É preciso reconhecer que, em Pachukanis, há um uso pouco rigoroso dos termos “ética” e “moral”, o que não impede a compreensão daquilo que é central em sua proposta, e que nos parece absolutamente correto: a ética kantiana é a forma “mais pura e acabada” da ética em geral, da mesma maneira que o direito que surge na modernidade é a forma definitiva do direito, encontrando nas formas antediluvianas nada mais do que uma sombra imperfeita e categorialmente incompatível com ela. Assim, a moral dos antigos e dos medievais difere da moral dos modernos não apenas no conteúdo, mas também na forma, a qual, para os modernos, apresenta-se como uma forma ética, voltada para um sujeito universal que jamais poderia estar presente nas clivagens sociais do escravismo antigo e na segmentação social própria do feudalismo.
  • 5
    A técnica de sopesamento aplicável aos princípios seria, para seus defensores, uma porta de entrada do mundo no direito, uma maneira de tornálo mais permeável à realidade e à própria valoração moral. Mas como observa Marcus Orione (2015, p. 192-193), tal ponderação é um procedimento puramente lógico que deixa de lado a complexidade das relações materiais e históricas, como que as filtrando por meio das categorias da forma jurídica, o que faz com que prevaleça sempre a conciliação de classes na atividade jurisdicional. Assim é porque não há cotejo real entre os direitos do trabalhador e o direito de propriedade. Em cada disputa, o direito de propriedade não faz senão prevalecer mediante diferentes resultados concretos, enquanto que as pretensões dos assalariados são sempre aniquiladas, ainda que formalmente preservadas (como nas decisões que “asseguram” o direito de greve, mas com a condição de que a categoria mantenha a normalidade do trabalho em períodos cruciais).
  • 6
    “Os processos judiciais sempre suscitam, pelo menos em princípio, três diferentes tipos de questões: questões de fato, questões de direito e as questões interligadas de moralidade política e fidelidade. Em primeiro lugar, o que aconteceu? O homem que trabalhava no torno mecânico realmente deixou cair uma chave inglesa no pé de seu companheiro de trabalho? Em segundo lugar, qual é a lei pertinente? A lei permite que um operário assim ferido obtenha indenização de seu patrão? Por último, se a lei negar o ressarcimento, será injusto? Se for injusto, devem os juízes ignorar a lei e assegurar a indenização de qualquer modo?” (DWORKIN, 1999, p. 5-6).
  • Agência financiadora

    Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação

    Não se aplica.
  • Consentimento para publicação

    Consentimento do autor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2019
  • Aceito
    11 Fev 2020
  • Revisado
    30 Mar 2020
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina , Centro Socioeconômico , Curso de Graduação em Serviço Social , Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima, 88040-900 - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil, Tel. +55 48 3721 6524 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: revistakatalysis@gmail.com