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O BRINCAR E O ESPAÇO POTENCIAL NO AMBIENTE VIRTUAL

PLAYING AND POTENTIAL SPACE IN THE VIRTUAL ENVIRONMENT

Resumo:

Este artigo analisa os impactos subjetivos advindos das novas formas de interação permitidas pelos avanços tecnológicos no campo virtual. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com seis participantes adultos que possuíam um personagem em jogos online com um complexo mundo virtual. A estratégia metodológica para análise das entrevistas seguiu a análise temática do seu conteúdo e interpretações psicanalíticas winicottianas. Pôde-se constatar que a atividade criativa inserida nesses jogos permite uma interação particular entre o sujeito e o personagem pertencente ao universo virtual, se estabelecendo como potência para a constituição de um espaço potencial e para a emergência de novos processos de subjetivação.

Palavras-chave:
espaço potencial; identificação; virtual; brincar; jogos na internet

Abstract:

This article analyzes the subjective impacts from new forms of interaction allowed by technological advances in the field of virtuality. Semi-structured interviews were conducted with six adults participants who had a character in online games with a complex virtual world. The methodology for the analysis of the interviews followed the thematic analysis of its content and winicottian psychoanalytic interpretations. It was found that creative activity inserted in these games allows a particular interaction between the subject and the character belonging to the virtual world, establishing itself as potency to constitute a potential space and the emergence of new processes of subjectivity.

Keywords:
potential space; identification; virtual; play; internet games

Introdução

Pesquisas tentam delimitar uma dependência patológica de jogos eletrônicos, relacionando o uso abusivo destes com o transtorno do controle dos impulsos ou de dependência química (LEMOS; SANTANA, 2012LEMOS, I. L.; SANTANA, S. D. M. Dependência de jogos eletrônicos: a possibilidade de um novo diagnóstico psiquiátrico. Revista psiquiatria clínica (São Paulo), n. 39(1), 2012, p.28-33.; YOUNG, 1998YOUNG, K. S. Internet addiction: the emergence of a new clinical disorder. Cyber Psychology and Behavior, n. 1(3), 1998, p. 237-244.; ABREU et al., 2008ABREU, C. N. D.; et al. Dependência de Internet e de jogos eletrônicos: uma revisão. Revista Brasileira de psiquiatria, n. 30(2), 2008, p. 156-167.; YOUNG; ABREU, 2010YOUNG, K. S.; ABREU, N. Internet addiction: a handbook and guide for evaluation and treatment. New York: John Wiley and Sons, 2010.; KUSS, 2013KUSS, D. J. Internet gaming addiction: current perspectives. Psychology research and behavior management, 6, 2013, p. 125-137.). Entretanto, o principal consenso destas pesquisas está na exigência de novas investigações para que seja possível determinar se esse uso abusivo de internet e de jogos eletrônicos pode ou não ser compreendido como uma das mais novas classificações psiquiátricas do século XXI (ABREU et al., 2008ABREU, C. N. D.; et al. Dependência de Internet e de jogos eletrônicos: uma revisão. Revista Brasileira de psiquiatria, n. 30(2), 2008, p. 156-167.). Contudo, atribuir critérios nosológicos objetivos para adição à internet é negar as crescentes potencialidades e disposições desta. A internet tomou rumos outros do que a mera informação e hoje está inserida em todas as áreas de atuação humana, como, por exemplo, o trabalho, o lúdico, o comunicacional, o sexual etc. Não basta somente olhar o uso da internet, mas o que se utiliza dentre as imensas possibilidades e o sentido desta interação para a constituição da pessoa.

Para Sherry Turkle (1997TURKLE, S. Life on the screen: identity in the age of the Internet. New York: Touchstone, 1997.), a internet como um todo é um laboratório social para experimentação de construções e reconstruções do eu que caracterizam a vida pós-moderna, e faz com que as velhas fronteiras sejam renegociadas. Mais do que se perguntar o que o mundo online providencia ao seu usuário e como isso se relaciona ao mundo fora dele, o dito “mundo real”, devemos nos perguntar que atividade está acontecendo quando o sujeito está envolvido em um ambiente virtual, pensando no plano psíquico (BLINKA; SMAHEL, 2011BLINKA L.; SMAHEL, D. Addiction to online role-playing games. In: Young, K. S.; Abreu, C. N., editors. Internet addiction: a handbook and guide to evaluation and treatment. New Jersey: Wiley, 2011, p. 73-90.).

Assim, se o intuito for estudar a relação dos sujeitos com o virtual, a complexidade dos fenômenos envolvidos nesta interação demanda o reconhecimento dos aspectos subjetivos aqui presentes. Aspectos estes que pertencem a um plano de análise para além da dimensão escopofílica, situando-se no âmbito da dimensão virtual em relação com a subjetividade do sujeito. Caso contrário, corre-se o risco de viver o famoso conto de Machado de Assis, O alienista (1882/1971), onde o médico Simão Bacamarte internou uma cidade inteira e depois, sabiamente, percebeu que, por ser o único a não apresentar patologias, somente ele deveria ser internado. Esse risco existe justamente porque o conceito de dependência de internet parte de um pressuposto conceito de saudável que precisa se atualizar frente às diferentes inserções da web na vida de seus usuários. Ou seja, o pressuposto conceito de saudável deve acompanhar o zeitgest de nossa época e o ritmo desenfreado das mudanças tecnológicas, assim como cada sujeito se utiliza deste “universo virtual”. Neste sentido, Tapscott (1997TAPSCOTT, D. Growing up digital: the rise of the Net Generation. New York: McGraw-Hill, 1997.) e Nicolaci-da-Costa (2002) relacionam a emergência de uma categoria patológica de dependência de internet ao preconceito e à dificuldade em reconhecer novos modos de subjetivação emergentes de um novo espaço de vida.

Uma vez que cerca de um bilhão, cento e quarenta e dois milhões de pessoas em todo mundo estão conectadas 24 horas por dia pela tecnologia 3G, falar em dependência de internet é algo muito vago e questionável, mesmo que se atribua diversos critérios para o diagnóstico nosológico (MEEKER, 2012MEEKER, M. Internet Trends Report. New York: Kleiner Perkins Caufield & Byers, 2012.). Estamos lidando, então, com algo que exige um questionamento, semelhante ao de Simão Bacamarte, acerca da normalidade e do devir em tempos cibernéticos.

Leitão e Nicolaci-da-Costa (2005LEITÃO, C. F.; NICOLACI-DA-COSTA, A. Impactos da internet sobre pacientes: a visão de psicoterapeutas. Psicologia em estudo, n. 10(3), 2005, p. 441-450.) realizaram uma pesquisa entrevistando psicoterapeutas, psicanalistas e gestalt-terapeutas, que atendem pessoas com problemáticas circunscritas ao mundo virtual da internet. O primeiro resultado que os autores apontaram foi o reconhecimento do desconhecimento frente a esse “novo mundo virtual” que se atualiza constantemente, além do uso da rede como um espaço alternativo de vida, onde os pacientes habitam o espaço virtual e nele sentem, brincam, brigam, amam e odeiam.

Os psicoterapeutas constataram que seus pacientes sentem-se onipotentes no espaço virtual; mudam a forma de perceberem seus corpos, seja por meio da invenção de um corpo virtual, seja pela sensação de expansão de seu corpo real; expõem-se a vários tipos de excessos, por desbravarem um espaço ainda muito novo e sem limites claros; tentam transformar um grande volume de informações dispersas em conhecimento pessoal e coerente; buscam administrar o tempo que passam nos espaços real e virtual; e, finalmente, defendem e expõem sua intimidade no mundo da internet (LEITÃO; NICOLACI-DA-COSTA, 2005LEITÃO, C. F.; NICOLACI-DA-COSTA, A. Impactos da internet sobre pacientes: a visão de psicoterapeutas. Psicologia em estudo, n. 10(3), 2005, p. 441-450.).

Estas são constatações sobre mudanças subjetivas, evidenciando que, da cibernética e das novas formas de organização social, emergiram novos espaços de vida, os quais geraram profundas alterações nos estilos de agir e de ser de seus contemporâneos. Assim como aconteceu na Revolução Industrial, acontece na Revolução da Internet (NICOLACI-DA-COSTA, 2002NICOLACI-DA-COSTA, A. M. Quem disse que é proibido ter prazer online? Identificando o positivo no quadro de mudanças atual. Psicologia: Ciência e Profissão, n. 22(2), 2002, p. 12-21.). Mas agora com a particularidade de inserir o sujeito no campo da virtualidade.

O objetivo deste artigo é ir além da análise corriqueira dos benefícios e malefícios deste “devir tecnológico”. É, justamente, pensar nessas novas formas de interações virtuais e suas consequências, reconhecendo seus novos desdobramentos. Mais especificamente, o enfoque residiu na discussão da hipótese da construção de um espaço potencial a partir de um ambiente virtual.

É possível relacionar o uso de jogos a uma fuga da realidade, como uma forma de entretenimento. Mas, muito mais que uma simples fuga lúdica - o que podemos pensar que acontece também ao assistir filmes, novelas etc. -, os jogos permitem ao seu usuário uma posição ativa nesse mundo virtual. Vorderer e Bryant (2012VORDERER, P.; BRYANT, J. Playing video games: motives, responses, and consequences. New York: Routledge, 2012. ) teorizam que uma das coisas buscadas no jogo é o sentimento de controle, de que suas ações possuem uma repercussão. Sentimento este que Winnicott (1975WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.) já havia elaborado acerca do brincar das crianças, do objeto transicional e do espaço potencial.

Segundo Winnicott, inicialmente o bebê não se difere do seio materno, ele é o seio materno. Há uma colagem no corpo do outro, um sentimento de controle mágico (onipotência), pois o que é externo ainda é visto como interno. Favorecido pelo que Winnicott delimita como a mãe suficientemente boa, o bebê entra em um processo em direção a uma diferenciação eu-outro, que Winnicott delimitou como transicional. Este conceito serve de suporte para o embate entre a realidade objetivamente percebida e a subjetividade concebida pelo indivíduo.

A transicionalidade é, talvez, a originalidade winnicottiana mais marcante, e também um dos seus maiores paradoxos. Vista como um período de hesitação, esse espaço favorece a emergência de uma criação, uma invenção, um pensamento. Esta possui uma linguagem muda, exatamente por ser um espaço dentro e fora, real e ilusório, entre dois. É o espaço no qual nos descobrimos separados, mas ainda podendo nos imaginar sermos um só por alguns instantes. A transicionalidade é a área de repouso do ser humano, o playground necessário para que possamos lidar com a realidade externa e também com nossa realidade interna (MAIA, 2007MAIA, M. V. M. Rios sem discurso: reflexões sobre a agressividade da infância na contemporaneidade. São Paulo: Vetor, 2007. ).

O objeto transicional ou o fenômeno transicional representam uma área intermediária da experiência, entre o dedo e o brinquedo, entre o erotismo oral e a verdadeira relação de objeto, entre a primeira atividade criativa e a projeção do que foi introjetado. Trata-se de um objeto que representa o seio materno ou o objeto da primeira relação na qual a criança passa de um controle mágico onipotente para o controle por manipulação, que envolve um erotismo muscular e prazer pela coordenação. Assim, o objeto transicional não é um objeto interno (controlado magicamente), tão quanto um objeto externo como a mãe (fora de seu controle).

Dessa forma, “o objeto transicional e os fenômenos transicionais oferecem a todos os seres humanos algo que sempre será importante para eles: uma área neutra de experiência que não será contestada” (WINNICOTT, 1975WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975., p. 28). A esta área, damos o nome de espaço potencial. Um lugar subjetivo que se situa entre a realidade externa e o mundo interno, não sendo nem uma coisa nem outra, adquirindo a capacidade momentânea de estar livre destas tensões, das exigências da realidade, sem, ao mesmo tempo, estar sob o total controle do mundo interno. No prefácio da edição francesa do livro no qual Winnicott elabora esses conceitos, Playing and reality, Laplanche afirma que o espaço potencial é um terreno de jogo, de fronteiras indeterminadas, que faz nossa realidade.

Após a primeira função do espaço potencial estar cumprida, ou seja, após a separação mãe-bebê, esse espaço não desaparece. Ao contrário, ele permanece como uma área importante para o sujeito por toda vida, existindo como uma área de repouso. O espaço potencial é o lugar onde se dá não somente o jogo criativo dos primórdios da existência, mas também o uso de símbolos, a mediação pela linguagem e tudo o que constitui a vida cultural. Espaço de ilusão ou de crença, ele se estende a todo o campo da cultura, podendo tornar-se uma área infinita de separação, se preenchida continuamente através da atividade criativa. Para Winnicott (1975WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.), a aceitação de uma realidade interna e externa é proporcionada pela experiência de uma área intermediária, que está em continuidade direta com a área do brincar da criança e, mais tarde, com as experiências culturais, como as artes e a religião.

A partir dos avanços tecnológicos, o brincar e as artes puderam adentrar o virtual cibernético. Romão-Dias e Nicolaci-da-Costa (2012)ROMÃO-DIAS, D.; NICOLACI-DA-COSTA, A. M. O brincar e a realidade virtual. Cadernos de Psicanálise (Rio de Janeiro), n. 34(26), 2012, p. 85-101. conduziram uma pesquisa com pessoas inseridas de forma ativa no mundo virtual. Elas constataram que a internet, para seus entrevistados, parece confiável e neutra suficiente para que se expressem mais do que no contato social. Aqui, o mundo virtual pôde produzir um alívio de tensão que se assemelha ao alívio de tensão experimentado no espaço potencial. Dessa forma, o mundo virtual poderia ser um lugar para esse brincar descrito por Winnicott.

O mundo virtual dos jogos distancia seus usuários das constantes exigências do mundo físico, concreto. Coloca-se mais do que uma barreira física no contato com o outro. O usuário é inserido em um espaço com novas regras e disposições. Esta noção se assemelha ao que Winnicott descreveu como neutralidade do espaço potencial, que se aplica ao brincar de crianças e de adultos.

O que quer que se diga sobre o brincar de crianças aplica-se também aos adultos; apenas, a descrição torna-se mais difícil quando o material do paciente aparece principalmente em termos de comunicação verbal. Sugiro que devemos encontrar o brincar tão em evidência nas análises de adultos quanto o é no caso de nosso trabalho com crianças. (WINNICOTT, 1975WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975., p. 61)

Nesta afirmação, Winnicott difere das ideias originais de Freud, que atribuía o brincar principalmente às crianças e o fantasiar aos adultos. Segundo Freud (1908FREUD, S. Escritores criativos e devaneios (1908) Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras completas, 9)./2006), a atividade mais intensa e mais querida da criança é a brincadeira ou os jogos. Ele compara esta atividade com a de um escritor criativo, uma vez que ambos criam um mundo próprio, reajustando elementos de seu mundo de uma nova forma que lhes agrade. O brincar, nesse caso, é considerado uma atividade referente às crianças. Para Freud, ao crescer, as pessoas param de brincar, supostamente renunciando ao prazer que obtinham com isso. Entretanto, tal renúncia é meramente ilusória, pois abdicar de uma satisfação de que outrora desfrutou é uma atividade extremamente penosa para qualquer sujeito. Por trás da suposta renúncia, há uma troca, uma formação de um substituto ou sub-rogado. Sendo assim, quando a criança em crescimento para de brincar, ela só abdica do elo com os objetos reais. Em vez de brincar, ela fantasia. “Constrói castelos no ar e cria o que chamamos de devaneios” (FREUD, 1908FREUD, S. Escritores criativos e devaneios (1908) Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras completas, 9)./2006, p. 136).

Essa fantasia que substituiu o brincar se diferencia deste justamente pela perda do objeto concreto que serve de base para o mundo criado no brincar. Fantasiar, aqui, está se referindo a um processo da mesma natureza do brincar, mas adaptado às exigências de ser adulto. O que Freud está querendo dizer é que tanto o brincar quanto a fantasia são motivados por desejos insatisfeitos. Ele delimita um desejo primordial para o brincar da criança, que é tornar-se adulto, enquanto que, para o fantasiar, o desejo aparece das mais diversas formas de acordo com o sexo, o caráter e a história de vida da pessoa que fantasia.

Podemos presumir, destas ideias de Freud, que, no adulto, são as exigências que lhe são impostas que marcam a passagem do brincar ao fantasiar. Seria por este motivo que “o adulto envergonha-se de suas fantasias por serem infantis e proibidas” (FREUD, 1908FREUD, S. Escritores criativos e devaneios (1908) Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras completas, 9)./2006, p. 136). Recorre-se, portanto, a um processo muito mais intrapsíquico que o brincar. Um processo mais reservado, menos compartilhado.

Já o brincar, como descreve Winnicott, situa-se em outro espaço: o espaço potencial. Este que não é situado dentro, tampouco fora, da subjetividade do sujeito. É neste espaço que a criança e o adulto introduzem objetos ou fenômenos oriundos da realidade externa, usando-os a serviço de alguma amostra derivada da realidade interna ou pessoal. “Sem alucinar, a criança põe para fora uma amostra do potencial onírico e vive com essa amostra num ambiente escolhido de fragmentos oriundos da realidade externa” (WINNICOTT, 1975WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975., p. 76).

O brincar nos adultos, como descreve Winnicott, inverte o caminho originalmente descrito por Freud: do brincar ao fantasiar. Permitindo ao sujeito ir à direção contrária do recalque que fez a criança parar de brincar e passar a “brincar dentro de sua cabeça”, sendo impedida de exercer a atividade criativa necessária para buscar seu verdadeiro self. Sendo assim, a evolução que Winnicott sugere é a dos fenômenos transicionais para o brincar, do brincar para o brincar compartilhado, e deste para as experiências culturais.

Portanto, chegamos à hipótese de que o jogo no espaço virtual, na medida em que se constitui como um brincar, também pode ser considerado um espaço potencial. Justamente porque o virtual pode fazer uma função semelhante ao do espaço potencial, por ser um espaço não de controle absoluto, nem fora do controle, nem externo, nem interno.

Para discutir esse tema, recorreu-se aos jogadores virtuais inseridos em um “mundo ficcional”, em jogos do estilo MMORPG (Massive Multiplayer Online Role-Playing Game) e RPG (Role-Playing Game) que possuem um complexo mundo virtual. Os MMORPG surgiram a partir de jogos role-playing de tabuleiros, como o Dungeons & Dragons (GYGAX; ARNESON, 1974GYGAX, G.; ARNESON, D. Dungeons & Dragons (v. 19). Lake Geneva: Tactical Studies Rules, 1974.). Mas os precursores mais próximos dos MMORPG foram os chamados multiuser dungeons (MUDs), que inspiraram uma literatura sobre mundos virtuais (KENDALL, 2002KENDALL, L. Hanging out in the virtual pub: Masculinities and relationships online. Berkeley: University of California Press, 2002.; TURKLE, 1997TURKLE, S. Life on the screen: identity in the age of the Internet. New York: Touchstone, 1997., 2005TURKLE, S. The second self: computers and the human spirit (20th anniversary ed.). Cambridge: MIT Press, 2005.). Os MMORPGs, no entanto, são jogados por um número muito maior de jogadores hoje do que jamais foram os MUDs (BLINKA; SMAHEL, 2011BLINKA L.; SMAHEL, D. Addiction to online role-playing games. In: Young, K. S.; Abreu, C. N., editors. Internet addiction: a handbook and guide to evaluation and treatment. New Jersey: Wiley, 2011, p. 73-90.).

O MMORPG é mais que um jogo; é um complexo mundo virtual que pode ser acessado a qualquer hora pela internet. Neste mundo, o jogador se depara com personagens criados pelo desenvolvedor do jogo para exercer um papel específico no enredo de seu mundo virtual, com personagens controlados por outros jogadores; cenários e itens caracterizados pelas mais diversas propriedades; missões e eventos; entre outros elementos. Dessa forma, é comum a emergência de uma complexa estrutura social, sistemas de reputação e uma economia própria (VORDERER; BRYANT, 2012VORDERER, P.; BRYANT, J. Playing video games: motives, responses, and consequences. New York: Routledge, 2012. ).

Como esses jogos colocam seus jogadores de frente com outra realidade, torna-se imprescindível analisar não somente o jogo em si, mas a atividade subjetiva que subjaz nessa interação inserida no âmbito da virtualidade.

Método

O método utilizado nessa pesquisa buscou apreender os fenômenos observados valorizando a complexidade destes. Trata-se de uma pesquisa com abordagem qualitativa que enfoca os aspectos subjetivos, ou seja, os significados que uma pessoa em particular atribui aos fenômenos da natureza que lhe dizem respeito (BAUER; GASKELL, 2002BAUER, M.; GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2002.). O foco reside em conhecer as qualidades dos fenômenos pesquisados, para formular conhecimentos sobre as propriedades que lhe são inerentes.

Inicialmente, a pesquisa foi divulgada em interfaces virtuais de comunicação, como fóruns virtuais e páginas de redes sociais referentes a jogos do estilo MMORPG e RPG. Neste contexto, foi realizado um convite para os jogadores participarem da pesquisa. Em seguida, foram escolhidas seis pessoas adultas (idade acima de 18 anos) que possuíam um personagem em algum jogo do estilo MMORPG e histórico de proximidade com o MMORPG e o RPG, utilizando-se deste por, no mínimo, 15 horas semanais, em momentos de sua história de vida. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, demonstrando estarem cientes dos procedimentos legais e éticos desta pesquisa (Protocolo - 568.007).

Logo após, foram realizadas entrevistas semiestruturadas que tiveram o áudio gravado e, posteriormente, foram transcritas. Sua temática teve como enfoque a inserção no mundo virtual; a autoimagem; as aspirações; as angústias; as fantasias; a imagem do mundo real e o virtual; e o corpo, entre outros aspectos relacionados à configuração do funcionamento social e psíquico. Estas entrevistas foram realizadas em uma clínica escola e tiveram em média uma hora de duração. A estratégia metodológica para análise dos dados foi sistematizada seguindo a análise temática do seu conteúdo, interpretando-os qualitativamente através da utilização do arcabouço teórico da psicanálise. As falas foram analisadas a partir de modelos qualitativos, privilegiando-se a interpretação psicanalítica (MEZAN, 1985MEZAN, R. Freud, pensador da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.; BIRMAN, 1994BIRMAN, J. Psicanálise, ciência e cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.; ROSA, 2004ROSA, M. D. A pesquisa psicanalítica dos fenômenos sociais e políticos: metodologia e fundamentação teórica. Revista Mal Estar e Subjetividade, n. 4(2), 2004, p. 329-348.). Todos os nomes dos entrevistados relatados nesta pesquisa são fictícios.

Resultados e discussões

Iniciamos a análise das entrevistas perguntando o que leva uma pessoa a recorrer a um mundo completamente diferente daquele em que ela se encontra concretamente? O que há no jogo que instiga o jogador a adentrar, participar e compartilhar dessa nova dimensão da existência humana? Uma das falas dos entrevistados esboça uma resposta para esse dilema:

Na minha opinião, o RPG se torna tão fantástico, tão divertido. O jogo não tem limites. O que isso quer dizer? Lógico, o jogo tem o seu universo, mas, dentro daquele universo, você vai para onde você quiser, é diferente desses joguinhos tradicionais que você só tem um caminho a seguir. (Marcos)

O jogo, visto a partir de sua programação e das regras formuladas por seu criador, é extremamente limitado. Onde tudo que pode acontecer está previamente escrito na programação do jogo. Logo, a interação dos sujeitos no mundo virtual por meio de seus personagens se daria a partir da realização de algo previamente estabelecido. Contudo, como podemos ver na fala de Marcos, sua inserção neste universo é que é ilimitada. Nessa inserção, é possível realizar uma ação que não estava contida previamente no enunciado. Uma criação, uma invenção, um produto da atividade criativa. Uma segunda fala de Marcos confirma esta afirmação:

O RPG não tem o limite, você começa delinear, eu não vou fazer isso eu quero fazer aquilo. [...] você é um mestre, você tá descrevendo uma cena, que nós estamos entrando em um salão todo dourado, tem tapeçaria... Bicho, eu não vou entrar no salão, tô dando meia curva e tô indo para trás, ah, então você tá indo para trás o cara tem que inventar na hora o que tá acontecendo. O universo não tem limites. (Marcos)

Assim, podemos confirmar o potencial criativo desse tipo de jogo. Não nos surpreende, portanto, que, de forma unânime, todos os entrevistados justificaram sua inserção no mundo virtual do RPG pelo fato de que este os concede algo que não encontram fora dele.

É um escape do mundo real que não tem dragões e magia, essas coisas. No jogo há inúmeras possibilidades, tudo que você imaginar, pode existir. (Mateus)

Assim, podemos ver que o RPG tem a propriedade de atribuir uma existência subjetiva a algo que não possuía esta qualidade, inserindo seus jogadores em um universo regido por leis determinadas por seu criador. Justamente porque a propriedade característica da transicionalidade é poder vivenciar outra realidade mantendo a coerência do eu. Onde ser um outro e estar em outro lugar adquirem status de realidade sem precisar romper definitivamente com o que está previamente constituído. Sobre esse aspecto, a fala de uma entrevistada é ilustrativa:

Eu prefiro jogar RPGs sozinha. Eu consigo me afundar mais na quest (aventura), na história. Não tem outras pessoas me lembrando que isso não é real. Perde um pouco da magia. [...] Uma das magias é você poder ser o que você quiser. Adentrar vários universos e ainda continuar sendo eu, Yara. (Yara)

Podemos perceber nesta fala de Yara que sua imersão no jogo não ameaça seu eu. Justamente porque a propriedade característica da transicionalidade é poder vivenciar outra realidade mantendo a coerência do eu. Ser um outro é seguro o suficiente para ser desejado e possível, uma vez que mantém a coerência e a integridade do que está previamente constituído. Assim, o RPG e o MMORPG são vivenciados a partir da fantasia ou pelo brincar, em que sua narrativa representa um universo extraordinário que se junta ao real sem destruir sua coerência. A narrativa da ficção pode ser vivenciada como real, mas de forma simulada, em outro plano. As características desse plano de neutralidade fornecem a segurança necessária para conseguir se inserir em “outro mundo” sem uma ameaça de invasão ou aniquilamento. No mundo mágico, o sobrenatural não é apavorante e a magia é a regra.

Essa magia, evidenciada na fala de Yara - “Uma das magias é você poder ser o que você quiser. Adentrar vários universos e ainda continuar sendo eu, Yara” - representa a possibilidade de adentrar um novo mundo e poder momentaneamente se situar em um outro plano da experiência. Isto nos remete ao que Winnicott descreve como o brincar dentro do espaço potencial.

De acordo com Winnicott (1975WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.), é na construção do espaço potencial que o sujeito experimenta o viver criativo a partir do brincar. Por meio de símbolos e da mediação pela linguagem, o sujeito se insere em um campo situado entre a realidade interna e externa. É justamente este espaço que é caracterizado por Winnicott como sendo produto de uma ilusão ou de uma crença, e que permite ao sujeito aceder a uma área intermediária da experiência, sem alucinar. Área esta que contém elementos da realidade interna e externa, sendo um espaço dentro e fora, real e ilusório (MAIA, 2007MAIA, M. V. M. Rios sem discurso: reflexões sobre a agressividade da infância na contemporaneidade. São Paulo: Vetor, 2007. ).

Pela fala de Yara supracitada, podemos adicionar que, além de não alucinar, há a possibilidade de imersão sem se desintegrar ou fragmentar. A partir de um processo de identificação1 1 A identificação é uma operação pela qual o sujeito se constitui, sendo sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal ([xref ref-type="bibr" rid="r21"]FREUD, 1921[/xref]/2006). É um processo complexo que articula o interior e o exterior, o íntimo e o social, ou seja, a relação estreita que une o sujeito com seu ambiente ao custo de uma série de paradoxos às vezes de difícil elaboração. , pode-se ser um outro, tornar-se o personagem, metamorfosear-se, mas mantendo a unidade do eu.

O espaço potencial é um campo no qual nos descobrimos separados, mas ainda podendo nos imaginar sermos um só por alguns instantes (MAIA, 2007MAIA, M. V. M. Rios sem discurso: reflexões sobre a agressividade da infância na contemporaneidade. São Paulo: Vetor, 2007. ). É interessante observar que essa constatação originalmente foi empregada para situar a diferenciação mãe-bebê. Mas, com base na fala supracitada de Yara, podemos empregar a mesma afirmação na relação sujeito-personagem. Aqui, o sujeito reconhece sua separação, mas pode imaginar, em seu espaço construído subjetivamente e por um processo de identificação, tornar-se um só.

Agora, voltemos à primeira fala de Yara:

Eu prefiro jogar RPGs sozinha. Eu consigo me afundar mais na quest (aventura), na história. Não tem outras pessoas me lembrando que isso não é real. (Yara)

Aqui, podemos observar que, com outras pessoas, Yara tem dificuldades de aceder à área da transicionalidade. Outras pessoas representam comportamentos e formas de interação que fogem de seu controle. Esses a retiram do lugar subjetivo que ela pretende construir dentro do jogo. Sozinha, ela consegue imergir na história e adentrar uma área que não será contestada. Em contrapartida, no jogo compartilhado, a contestação advém do contato com o outro, o que retira a ilusão da realidade construída dentro do jogo.

Mateus apresenta a mesma queixa de Yara referente à qualidade subjetiva de sua própria imersão no universo virtual do RPG:

Tentei jogar World of Warcraft, mas é aquele negócio, foi feito para você ser o personagem, mas ninguém faz isso. Todo mundo age fora do personagem e isso me irrita um pouco, então eu saí. (Mateus)

Portanto, agir diferentemente da forma como o personagem deveria o traz de volta à sua realidade, retirando-o subjetivamente do universo virtual. Entretanto, quando todo conteúdo do universo virtual do jogo é encenado (e aqui se incluem não somente os personagens, mas a adoção da história de vida deste por seu controlador), Mateus encontra facilidade de vivenciar criativamente a partir de um campo que não será questionado, como podemos perceber nesta sua fala:

Gosto daquele jogo que tem a história, você se envolve na história do personagem, você pode fazer escolhas e as suas escolhas vão alterar a história do cara. Esses são meus favoritos. [...]. Eu consegui isso com o Neverwinter Nights, que você tinha que interpretar o personagem. Você tinha que falar sempre como se você fosse o personagem, não podia falar off-character (termo que determina uma ação que não condiz com o personagem, uma ação que transgride as regras da história em que o personagem se encontra ou que não está de acordo com as suas características). Se você falasse da sua vida fora do jogo, um moderador te dava um chamado: “Atenção, aqui não pode off-character”. Você se envolvia com outras pessoas, mas na vida dentro do jogo. (Mateus)

Aqui, comparece também o desejo de se adentrar subjetivamente na história do personagem, de se tornar, pelo menos no instante em que ocorre o jogo, o próprio personagem. Poder não somente agir por meio do personagem, mas adquirir suas características, sua personalidade, sua história de vida, a partir do processo de identificação. E isto só ocorre se o ambiente virtual se sustenta. O off-character é algo que não pertence ao enredo. Como um erro na execução do jogo, ou melhor, um erro no caráter narrativo do jogo. Erro este que invade a relação com o mundo virtual, impede a imersão em um espaço potencial. Com isso, este espaço não pode ser mais neutro, incontestável. Pelo contrário, foge do controle e se torna imprevisível, transformando-se em um espaço falho. A “mágica” se esvai.

O espaço potencial entre bebê e a mãe, entre a criança e a família, entre o indivíduo e a sociedade ou o mundo, depende da experiência que conduz à confiança. Pode ser visto como sagrado para o indivíduo, porque é aí que este experimenta o viver criativo. (WINNICOTT, 1975WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975., p. 142)

Winnicott conceitua o espaço potencial para além da relação mãe-bebê, mas não avança muito na análise deste espaço fora desta relação. Ele, contudo, abre o espaço para essas possíveis elaborações. Nesta citação, ele estava se referindo à confiança na mãe que cria aqui um playground intermediário, onde a ideia da magia se origina, visto que o bebê, até certo ponto, experimenta a sua onipotência. “Chamo isso de playground porque a brincadeira começa aqui. O playground é um espaço potencial entre a mãe e o bebê, ou que une mãe e bebê” (p. 71).

A confiança, nesse caso específico de Yara e Mateus, é a capacidade de sustentação do espaço virtual, de forma semelhante a uma das características de uma mãe suficientemente boa. É a capacidade de sustentar o investimento que nele é colocado. Esta específica confiança cria a “mágica” que os entrevistados relataram vivenciar no campo da ficção. Novamente, podemos nos utilizar de uma afirmação de Winnicott, que originalmente foi postulada se referindo à relação mãe-bebê, para caracterizar a relação sujeito-RPG: “O brincar implica confiança e pertence ao espaço potencial” (p. 78).

Satisfeitos então esses critérios, esses pré-requisitos, pela construção de um espaço potencial, pode-se adentrar a “uma área neutra de experiência que não será contestada” (WINNICOTT, 1975WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975., p. 28-29). Vimos que os entrevistados mencionados buscam essa área de neutralidade, a qual permite uma simulação que lhes fornece o controle que não é possível experimentar fora dela.

Mateus descreve sua inserção no mundo virtual dos jogos de RPG como “um escape do mundo real que não tem dragões e magia, essas coisas”. Certamente, Mateus não deseja a existência propriamente dita de dragões poderosos e agressivos que colocariam em perigo sua existência. Mas a existência de tais criaturas míticas em um plano distante da realidade é desejável. Estar em outro plano, no caso dos MMORPG, significa mais do que residir atrás de uma tela de computador. É a autenticação de uma barreira de segurança, uma membrana subjetiva que assegura a integridade de seu jogador.

Já joguei jogos que morreu, perdeu. Tinha que criar outro personagem. Mas não gostava muito não. Porque fazer um personagem que eu gosto e perder ele pra sempre, eu ia ficar muito frustrado. Já que eu tô jogando um negócio que me dá infinitas possibilidades, eu não quero essa tão perto da realidade assim. (Mateus)

Dessa forma, o RPG permite uma vivência onipotente. Algo a que Mateus não deseja renunciar. Mesmo que o personagem morra no jogo, ele pode ser ressuscitado, carregando para sua nova “vida” atributos que possuía antes de morrer. Torna-se, de certa forma, imortal.

Portanto, podemos agora afirmar que a imersão no mundo virtual do RPG permite uma vivência criativa que, por meio de uma simulação ou encenação, providencia um sentimento de segurança para a realização de desejos e fantasias, possibilitando o acesso a uma área neutra da experiência que representa o espaço potencial propriamente dito. O resultado dessa complexa interação não poderia ser outro senão a aquisição de uma capacidade momentânea de estar livre das tensões e exigências da realidade que lhes são inerentes. Como falam alguns entrevistados:

É um tempo que eu passo que não me preocupo com as coisas. Fico jogando ali e não fica os problemas do dia-a-dia ali pesando. (Pedro)

Eu diria que é realmente a oportunidade de esquecer os problemas da vida mesmo. Eu penso que o ser humano tá sempre procurando se distrair, uns tem álcool, outros tem outros tipos de droga mais pesada, aí tem gente que gosta de ver filmes. Então, penso assim, é mais uma distração que nesse momento o cérebro relaxa, nesse sentido de ficar pensando nos seus problemas. (Ian)

Mais do que uma atividade de lazer, os entrevistados caracterizaram sua atividade dentro do jogo como uma forma de conseguir um alívio frente aos seus problemas cotidianos. Situam o jogo como um lugar de repouso. Uma área neutra em que as tensões que os afligem não são bem-vindas. Esta é a própria definição do espaço potencial: uma área de repouso do ser humano, o playground necessário para que possamos lidar com a realidade externa e também com nossa realidade interna (WINNICOTT, 1975WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.). Podemos, agora, concordar com Winnicott de que nenhum ser humano está livre da tensão de relacionar a realidade interna e externa, e que o alívio dessa tensão é proporcionado por uma área intermediária de experiência. Assim, a especificidade do brincar é mudar a realidade em outra coisa, algo que transforma parte da realidade que é insuportável, quer seja interna ou externa.

O brincar criativo é, então, um modo de enfrentar a realidade. Esse brincar com a realidade se apresenta como a possibilidade de criar, de colocar um tom pessoal na experiência, de rearranjar campos. Facilitando, assim, a comunicação consigo e com os outros; e propiciando experiências inéditas de desintegração e integração que são sustentadas pela não contestação do espaço potencial (FRANCO, 2003FRANCO, S. G. O brincar e a experiência analítica. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, n. 6(1), 2003, p. 45-59.).

Corrobora essa ideia a dificuldade de alguns entrevistados em aceder a esta área devido a descomunais exigências que experimentam em determinados momentos de suas vidas.

Quero voltar a jogar mais, mas o problema é que estou estudando para concurso público, é difícil. Você tá lá jogando e pensando: tenho que estudar. (Pedro)

Sinto falta de ter um tempo que eu não tenha muita responsabilidade. Agora tenho o trabalho, chega em casa e tem que fazer trabalho da faculdade. Sobra pouco tempo para fazer algo que seja puro lazer, puro passatempo. (Gustavo)

Talvez seja esse, pelo menos em parte, o motivo de Freud afirmar que o adulto não pode brincar e, por isso, fantasia (FREUD, 1908FREUD, S. Escritores criativos e devaneios (1908) Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras completas, 9)./2006). Não somente devido à exigência de assumir um papel que condiz com sua representação social enquanto adulto, mas à demanda que lhe é imposta de produzir, sustentar outros e ganhar dinheiro. Assumir as responsabilidades que o ser adulto lhe impõe.

Por outro lado, o brincar, no seu sentido winnicottiano, é um processo complexo e exige um investimento muito grande na atividade criativa, inserindo-se em um campo de repouso. E, como a própria definição desta palavra sinaliza, é uma forma de pausar a atividade, cessar o movimento corrente, libertar-se momentaneamente das tensões que comovem os seres humanos. Sendo assim, a exigência imposta ao adulto se contrapõe com o brincar. Fazendo com que, em alguns casos, o superego impeça a exposição de conteúdos inconscientes que ficam retidos em uma atividade psíquica internalizada, a fantasia.

Winnicott (1975WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.) afirma que “é no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self)” (p. 80). Ou seja, para Winnicott, o brincar no adulto é a manifestação dos conteúdos do fantasiar, por um mecanismo diferente deste. O adulto que não brinca é aquele que foi impedido de fazê-lo devido ao recalque.

Nestes casos, não há a possibilidade de aceder ao espaço potencial. Pode haver um ato de jogar, mas não o brincar como descrito por Winnicott. A imersão do brincar criativo no campo do RPG despende tempo. Assim como no sono é preciso tempo para chegar aos estágios mais profundos, o mesmo ocorre na imersão no jogo de RPG. Por este motivo que o espaço potencial não foi elaborado a partir do jogo, substantivo, mas do brincar, verbo. Ou seja, depende da forma como o jogo é utilizado, assim como nas outras atividades com potencial criativo. Marcos exemplifica estas elaborações:

Quando eu estava estudando para concurso dois anos atrás, eu me abstive de jogar RPG durante uns 8 meses, mandei email para meus amigos expliquei tudo, aí todos me deram a maior força e continuaram jogando RPG e eu parei de jogar. Era notório como eu ficava mais chateado, um pouco mais estressado, é uma das minhas válvulas de escape. [...] é um lazer, é um prazer, é uma atividade, para relaxar. (Marcos)

Nesta fala, podemos perceber que a atividade inserida nesses jogos exige não somente tempo, mas um grande investimento psíquico. Os entrevistados relataram que, em determinados momentos, não conseguiam mais fazer este investimento na dimensão fantástica do RPG. Isto devido a intensas exigências da realidade que, nesses casos, direcionava o investimento para outra atividade.

Considerações finais

O brincar inserido nos jogos de mundo virtual complexo, analisados nessa pesquisa, representa a possibilidade de poder momentaneamente se situar em outro plano da experiência, campo situado entre a realidade interna e externa, o espaço potencial propriamente dito. Contudo, nem toda interação com esses jogos se situa no âmbito do brincar aqui elaborado, justamente por depender de certos fatores como, por exemplo, tempo, investimento e capacidade de sustentação do ambiente virtual.

Enfim, podemos concluir que esses jogos constituem-se como potência para a atividade criativa e, dessa forma, para a constituição de um espaço potencial, onde o sentido de um objeto, coisa, pessoa e experiência se inserem em um processo aberto, cheio de plasticidade, de evolução e desenvolvimento. Esses jogos permitem, também, uma imersão em uma narrativa de ficção com a possibilidade de assumir uma posição ativa nesse mundo virtual, interagindo com ele de uma maneira particular.

Dessa forma, a subjetividade do sujeito pode transpor os limites concretos da tela do computador para assumir o corpo virtual do personagem, caracterizando novos modos de subjetivação emergentes em uma configuração social contemporânea. Trata-se, portanto, de possibilidades de subjetivação a partir de um ambiente virtual, onde novas significações são passíveis de emergir à medida que incorpora formas de viver e de se relacionar que emergem nos sujeitos considerando os contextos relacionais da atualidade.

É possível que outros tipos de jogos, ou qualquer outro ambiente virtual que permita o brincar, carreguem essa mesma característica destes analisados nessa pesquisa. O grande diferencial, nesses jogos, é que, pela imersão que proporcionam ao seu jogador e pela interação com um personagem inserido em uma narrativa particular ao jogo, o brincar como atividade criativa é favorecido. Entretanto, devemos sempre nos atentar às novas possibilidades tecnológicas e virtuais que proporcionam espaço ao enigmático mundo imaginário do ser humano e suas consequências para constituição da subjetividade.

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  • 1
    A identificação é uma operação pela qual o sujeito se constitui, sendo sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal ([xref ref-type="bibr" rid="r21"]FREUD, 1921[/xref]/2006). É um processo complexo que articula o interior e o exterior, o íntimo e o social, ou seja, a relação estreita que une o sujeito com seu ambiente ao custo de uma série de paradoxos às vezes de difícil elaboração.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2018

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2015
  • Aceito
    12 Nov 2015
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