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Os efeitos sociais do processo de implementação das políticas de transferência de renda no México e no Brasil

The social effects of cash transfer policies’ implementation in Mexico and Brazil

Resumo

O artigo analisa os efeitos sociais da implementação de dois programas de transferência de renda na América Latina (Oportunidades/México e Bolsa Família/Brasil) a partir de duas dimensões: (i) arranjos de implementação e (ii) interações entre beneficiários e agentes públicos locais. A primeira engloba aspectos associados à dinâmica organizacional, aos processos burocráticos e aos arranjos institucionais vinculados à trajetória da implementação e orientou a análise do Programa Mexicano. A segunda abrange questões relacionadas ao cotidiano dos processos de implementação relacionadas a julgamentos morais e controles sociais em relação aos grupos de beneficiárias, lente analítica utilizada para o Programa Bolsa-Família. Evidencia-se o reforço das assimetrias que contribuem para o aumento das desigualdades em diferentes dimensões: social, simbólica, moral, de classe, gênero e estigmatização. Criados em 2001 e 2003, respectivamente, os dois programas visam quebrar o ciclo intergeracional da pobreza. No México, foram realizadas 47 entrevistas com implementadores em diversos níveis, incluindo o local, nas cidades de San Luís Potosí e Puebla. No Brasil, os dados advieram de 70 entrevistas com famílias beneficiárias e não beneficiárias e com burocratas de nível de rua em uma área de pobreza na região metropolitana do Rio de Janeiro. As análises revelam que o Estado estabelece múltiplos controles sobre a população beneficiária, agravando as desigualdades sociais. Os dados também mostram que as localidades nos dois países são marcadas por um sistema de vigilância das beneficiárias. Ao visibilizar essas práticas e seus efeitos em nível local, o artigo evidencia o papel central que os agentes de rua desempenham na dinâmica de implementação.

Palavras-chave
programas de transferência de renda; implementação de políticas sociais; burocratas de rua; estigmatização; Programa Oportunidades; Programa Bolsa-Família

Abstract

This article analyzes the social effects of implementing two cash transfer programs in Latin America (Oportunidades/Mexico and Bolsa-Família/Brazil), based on two dimensions: (1) implementation arrangements, and (2) interactions between beneficiaries and street-level bureaucrats. The first dimension, which guides the analysis of the Mexican program, encompasses aspects associated with organizational dynamics, bureaucratic processes, and institutional arrangements related to the implementation process. The second dimension, used as analytical lens to look into the Bolsa-Família Program, involves issues related to daily practices of policy implementation that involve moral judgments about and social control over groups of beneficiaries. Findings point to reinforcement of asymmetries, which contributes to increasing inequalities in different dimensions: social, symbolic, moral, class, gender, and stigmatization. Established in 2001 and 2003, respectively, both programs aim to break the intergenerational cycle of poverty. Forty-seven interviews were held with policy implementers at various levels, including the local level, in the cities of San Luis Potosí and Puebla, Mexico. In Brazil, data was gathered from 70 interviews with beneficiary and non-beneficiary families and street-level bureaucrats in a underprivileged area in the metropolitan region of Rio de Janeiro. The analyses reveal that the State establishes multiple controls over the beneficiary population, exacerbating social inequalities. Data also shows that the locations in both countries are characterized by systematic surveillance of beneficiaries. By making these practices and their effects visible at the local level, this article demonstrates the central role that street-level bureaucrats play in implementation dynamics.

Keywords
cash transfer programs; implementation of social policies; street bureaucrats; stigmatization; Opportunities Program; Bolsa-Família Program

Introdução

Este artigo analisa os efeitos sociais da implementação de dois programas de transferência de renda na América Latina (Oportunidades/México e Bolsa Família/Brasil) a partir de duas dimensões: (i) os arranjos de implementação e (ii) as interações entre beneficiários e agentes públicos locais. A primeira engloba aspectos associados à dinâmica organizacional, aos processos burocráticos e aos arranjos institucionais vinculados à trajetória da implementação e orientará a análise do Programa Mexicano. A segunda, por sua vez, abrange questões relacionadas ao cotidiano dos processos de implementação relacionados a julgamentos morais e controles sociais em relação aos grupos de beneficiárias. Essa será a lente analítica utilizada para o Programa Bolsa-Família.

Criado em 2001 pelo governo do México, a partir da experiência acumulada com os programas Solidaridad e Progresa, Oportunidades (PO) foi um programa de transferência de renda mínima com condicionalidades (PTRC) voltado para a redução e o combate à pobreza no país, vigendo até 2014, quando foi substituído pelo Prospera. A existência de contrapartidas aumentava o vínculo das famílias (e das mulheres) ao programa, além de criar desincentivos à inércia dos beneficiários. Tais contrapartidas nas áreas de saúde e educação acionam uma complexa logística de provisão de bens e serviços sociais, envolvendo um grande número de agentes públicos que, na ponta, detêm grande poder discricionário – aí incluídos os profissionais da educação, da saúde e da assistência, e que podem exercer papel decisivo na operação do programa em nível local.

No caso brasileiro, o Programa Bolsa Família (PBF), criado em 2003, foi substituído pelo programa Auxílio Brasil em 2021, na gestão de Jair Bolsonaro (2018-2023). O PBF fez parte do projeto político do Governo Lula, resultado da unificação de outras ações já existentes no Governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). O PBF foi um programa de transferência condicionada de renda direta, abrangendo, aproximadamente, 13,5 milhões de famílias e possuía dois objetivos: produzir o alívio imediato da pobreza, através da transferência direta de renda a famílias pobres e efetivar direitos sociais básicos relacionados à saúde e à educação, com a finalidade de romper o “ciclo intergeracional de reprodução da pobreza”. Como no caso mexicano, o PBF priorizou a mulher como titular legal, já que 93% dos titulares legais eram do sexo feminino.

Nos dois programas, evidenciaremos, a partir da discussão organizada por Pires (2019)23 PIRES, Roberto. (org.). Implementando desigualdades: reprodução de desigualdade na implementação de políticas públicas. 1ed. Brasília: IPEA; CEPAL, 2019., os aspectos invisíveis e a produção de efeitos colaterais no âmbito da ação estatal, em nível local. Os efeitos perversos se apresentam sob forma material e simbólica, derivando categorias de análise identificadas nos dois programas: desequilíbrios de poder, regulação moral, estigma, classificação normativa, controle social e de gênero. Considerando a literatura que analisa essa dinâmica sob a perspectiva dos agentes locais (Lipsky, 198013 LIPSKY, Michael. Street Level bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. Nova York: Russell Sage Foundation, 1980.; Dubois, 20103 DUBOIS, Vincent. The bureaucrat and the poor: encounters in French welfare offices. Aldershot: Ashgate, 2010.), esses efeitos serão analisados a partir do reforço ou agravamento das assimetrias que, em alguma medida, contribuem para o aumento das desigualdades, discriminações e estigmas sob distintas dimensões: sociais, simbólicas, morais e de gênero.

Paugam (2003)22 PAUGAM, Serge. Desqualificação social: ensaio sobre a nova pobreza. São Paulo: Cortez, 2003., Duvoux (2009)5 DUVOUX, Nicolas. L’autonomie des assistés. Sociologie des politiques d’insertion. Paris: PUF, 2009., Dubois (20103 DUBOIS, Vincent. The bureaucrat and the poor: encounters in French welfare offices. Aldershot: Ashgate, 2010.; 2019)4 DUBOIS, Vincent. Políticas do guichê, políticas no guichê. In: PIRES, Roberto. (org.). Implementando desigualdades: reprodução de desigualdade na implementação de políticas públicas. 1ed. Brasília: IPEA; CEPAL, 2019. e Goffman (2012)8 GOFFMAN, Erving. Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face. Rio de Janeiro: Vozes, 2012. afirmam que os “pobres” – os quais são objeto de controles morais, sociais e políticos específicos derivados das políticas ou dos programas que a eles são destinados – relacionam-se com o processo de enquadramento estatal e com o elemento do estigma. Em muitos casos, quando os pobres não conseguem emprego, seja pela baixa escolaridade, pelo racismo ou pela discriminação de gênero, podem vir a solicitar um auxílio assistencial. Nessa fase de dependência do Estado, a sociedade passa a fazer julgamentos morais em torno da figura do beneficiário, o que pode vir a acarretar (dependendo do contexto) um processo de desqualificação moral.

A literatura sobre implementação de políticas públicas tem avançado nessa direção. Iniciadas com pesquisas voltadas para a análise organizacional-institucional, as pesquisas concentravam-se em investigar como os diversos níveis de governo estavam estruturados e como tais arranjos se relacionavam com os resultados das ações. As evidências revelaram que os sujeitos envolvidos no processo de implementação importam – as burocracias não são neutras e desinteressadas (Downs, 19662 DOWNS, Anthony. Inside bureaucracy. Boston: Little, Brown, 1966.; Lipsky, 198013 LIPSKY, Michael. Street Level bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. Nova York: Russell Sage Foundation, 1980.).

Nessa direção, os estudos sobre a dinâmica dos processos de implementação passaram a levar em conta o cotidiano das políticas, incorporando as rotinas, as interações, o comportamento dos burocratas (especialmente os que estão na linha de frente), os valores, as crenças, a discricionariedade, a tradução e a interpretação – elementos que são agregados às políticas ao longo de sua trajetória. Hill e Hupe (2014)11 HILL, Michael; HUPE, Peter. Implementing Public Policy. 3rd ed. SAGE Publications, 2014.; Lotta (2019)14 LOTTA, Gabriela. (org.). Teorias e análises sobre implementação de políticas públicas no Brasil. 1. ed. Brasília: ENAP, 2019 e Marins (2020)15 MARINS, Mani Tebet. Stigmas and controls on Bolsa Família beneficiary women. In: SACCHET, T. et al. (org.). Women, gender and conditional cash transfers: interdisciplinary perspectives from studies of Bolsa Família. 1. ed. Nova York: Routledge, 2020. p. 161-181. afirmam que a implementação de uma política mobiliza uma complexa trama que extrapola o que foi prescrito e o que foi desenhado. Tais elementos dão a ela novos contornos e geram outros efeitos, ainda que não sejam aqueles esperados.

Tal perspectiva de análise revela, portanto, a complexidade associada aos processos de implementação. Segundo Pires (2019)23 PIRES, Roberto. (org.). Implementando desigualdades: reprodução de desigualdade na implementação de políticas públicas. 1ed. Brasília: IPEA; CEPAL, 2019., as políticas públicas existem para produzir efeitos esperados e resultados desejáveis, mas podem, concomitantemente, produzir um conjunto de efeitos indesejáveis e perversos. Essas dinâmicas fazem com que os agentes públicos que operam no nível local sejam atores-chave. Para Lipsky (1980)13 LIPSKY, Michael. Street Level bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. Nova York: Russell Sage Foundation, 1980., os agentes públicos que atuam no território são representantes do Estado no nível local. São implementadores de políticas no território. Tomando a literatura de implementação que analisa essa dinâmica sob a perspectiva dos agentes locais como referência (Lispky, 198013 LIPSKY, Michael. Street Level bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. Nova York: Russell Sage Foundation, 1980.; Dubois, 20103 DUBOIS, Vincent. The bureaucrat and the poor: encounters in French welfare offices. Aldershot: Ashgate, 2010., 2019; Pires, 201923 PIRES, Roberto. (org.). Implementando desigualdades: reprodução de desigualdade na implementação de políticas públicas. 1ed. Brasília: IPEA; CEPAL, 2019.), os efeitos perversos serão analisados a partir do reforço ou agravamento das assimetrias que, em alguma medida, contribuem para o aumento das desigualdades e/ou discriminações sob distintas dimensões: sociais, simbólicas, morais, de classe e de gênero.

Perspectivas sociológicas sobre os efeitos sociais da implementação de políticas públicas

As diversas definições sobre políticas públicas ressaltam diferentes aspectos sobre seu processo de formulação e implementação: são respostas concretas para um conjunto de demandas que são reconhecidas pelo Estado e são o resultado da ação pública, como fruto da articulação entre os diversos atores que integram a arena pública.

Compreendemos as políticas públicas como o resultado de disputas em torno de projetos políticos, de interesses, de representações sociais e de valores morais distintos. o entendemos a política como um ente abstrato que se imporia, através de suas normas e prescrições, sobre a conduta dos atores. Ao contrário, assumimos que, mesmo existindo um texto formal, divulgado e compartilhado publicamente, operam-se distintas interpretações dessas normas e variadas formas de controle por meio da atuação de diferentes atores, agindo em nome do Estado. Tais formas dependerão do modo como as instituições locais e os “burocratas de rua”1 1 Termo que identifica os implementadores locais, agentes que estão envolvidos cotidianamente na disponibilização das políticas públicas para os cidadãos. interpretam a política. A partir dessa discussão, pode-se compreender como se estruturam valores e crenças (sobretudo de classe, de gênero e familiares) no interior das políticas de transferência de renda para os mais pobres.

Para Pires (2019)23 PIRES, Roberto. (org.). Implementando desigualdades: reprodução de desigualdade na implementação de políticas públicas. 1ed. Brasília: IPEA; CEPAL, 2019., embora as políticas existam para produzir efeitos esperados e resultados desejáveis, elas podem, simultaneamente, produzir externalidades negativas – efeitos indesejáveis, colaterais, não previstos e perversos. Segundo o autor, os efeitos são produzidos, portanto, a partir de dois vetores que operam transversalmente e devem ser analisados de maneira intercruzada e multidimensional: (i) arranjos e instrumentos de implementação e (ii) práticas de implementação e interações nas linhas de frente do serviço público, conforme reproduzido na Figura 1.

Figura 1
Mecanismos e riscos de reprodução de desigualdades em processos de implementação

Na primeira dimensão, que orientará a análise do Programa mexicano, arranjos e instrumentos de implementação geram falhas de conectividade, gargalos, problemas administrativos e técnicos, fragilidades de treinamento, falta de recursos, desequilíbrios de poder, dentre outras. Marins (2020)15 MARINS, Mani Tebet. Stigmas and controls on Bolsa Família beneficiary women. In: SACCHET, T. et al. (org.). Women, gender and conditional cash transfers: interdisciplinary perspectives from studies of Bolsa Família. 1. ed. Nova York: Routledge, 2020. p. 161-181. trata dessas questões quando discute a implementação em rede do Programa Bolsa Família, seguindo as rotinas vinculadas ao controle da frequência escolar. Examinando a complexidade de um programa que articula distintos atores, rotinas e territórios em uma rede multinível, ela observa que os efeitos produzidos pela implementação do programa também se associam àquelas desigualdades, entrelaçando-as.

Ao analisar essas questões, Dubois (2019)4 DUBOIS, Vincent. Políticas do guichê, políticas no guichê. In: PIRES, Roberto. (org.). Implementando desigualdades: reprodução de desigualdade na implementação de políticas públicas. 1ed. Brasília: IPEA; CEPAL, 2019. alerta para a distinção entre efeitos e truques da implementação. Segundo esse autor, a primeira noção está associada a hiatos derivados da própria operacionalização das políticas. Os efeitos são produzidos, portanto, a partir de falhas, gargalos, problemas administrativos, dificuldades técnicas, de treinamento, falta de recursos, dentre outras possibilidades. Os truques, por sua vez, têm uma lógica distinta: dizem respeito a uma dupla mise-em-scène, em que normas, leis e discursos estão vinculados à promoção da equidade, mas o cotidiano da implementação compromete a efetivação dos efeitos desejados, “sabotados” pelos efeitos sociais.

A segunda dimensão, utilizada na análise do programa brasileiro (PBF), trata das práticas de implementação e das interações entre os atores que atuam na linha de frente em relação aos cidadãos em um determinado território. Ao colocar uma lupa sobre as dinâmicas cotidianas que se materializam nos equipamentos públicos e sobre as relações sociais que se conformam nas rotinas diárias em diversos espaços, os hiatos entre as prescrições oficiais e reais se revelam, evidenciando os efeitos perversos que as práticas e estratégias adotadas pelos atores nesses processos de interação reproduzem: classificações, julgamentos, estigmas e regulações de ordem moral, que podem ser excludentes e preconceituosas.

Utilizamos, neste artigo, a noção de vigilância formulada por Foucault (19797 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979., 2009)6 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 37. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. para entender como ela se configura, às vezes de forma mascarada, mas permanente, e sem limites no espaço-tempo. Os indivíduos são vigiados a partir de um olhar invisível, de modo que eles mesmos não percebem que estão sendo controlados. Ao mesmo tempo, Marins (2017)18 MARINS, Mani Tebet. Bolsa Família: questões de gênero e moralidades. 1. ed. Rio de Janeiro: UFRJ/ FAPERJ, 2017. adverte sobre a existência de situações em que os indivíduos utilizam conscientemente seu status de assistido e, por vezes, reagem a determinadas situações de estigma. Sobre essa questão, Goffman (1988)9 GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988. afirma que o estigma só pode ser tratado do ponto de vista relacional. Isso significa dizer que somente podemos analisá-lo a partir das relações sociais que se estabelecem entre Estado, mercado, instituições locais e redes de sociabilidade. Importa, então, compreender o contexto através do qual esses grupos agem e interagem.

Nessa discussão, nas duas dimensões, cabe destacar o papel desempenhado pelos burocratas de nível da rua – os street-level bureaucrats. Segundo Lipsky (1980)13 LIPSKY, Michael. Street Level bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. Nova York: Russell Sage Foundation, 1980., esses atores são os que atuam na linha de frente da provisão de bens e serviços públicos junto aos cidadãos – os destinatários dessas políticas. São, portanto, agentes importantes nessa mediação porque interagem com os usuários, traduzem e interpretam as normas inerentes às políticas e porque criam práticas e estratégias de atuação discricionária. Ainda, em maior ou menor grau, são os que decidem como a política funcionará, quem será (ou não) atendido e como os arranjos institucionais serão cotidianamente mobilizados.

Oliveira e Daroit (2020)21 OLIVEIRA, Breynner R.; DAROIT, Doriana. Public policy networks and the implementation of the Bolsa-Família Program: an analysis based on the monitoring of school attendance. Education Policy Analysis Archives, v. 28, p. 120, 2020. https://doi.org/10.14507/epaa.28.4499
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afirmam que esse processo faz com que outros e novos agentes públicos passem a ocupar e transitar nos territórios, mobilizando processos, dinâmicas, atores institucionais e sujeitos. Além dos burocratas que atuam no nível local, os beneficiários também têm expectativas, interesses e valores próprios e, ao interagirem com os instrumentos, os processos, as rotinas existentes, os demais agentes públicos e os cidadãos, geram dinâmicas que podem modificar a implementação e promover resultados imprevistos e até incoerentes com os objetivos da política.

Nessa direção, os símbolos de status, estigma ou prestígio transmitem informações sociais que frequentemente reproduzem o status quo, mas não somente os atores comuns ou íntimos (amigos, família e vizinhança) fazem parte desse processo de reprodução. Também os profissionais-especialistas (assistentes sociais, agentes de saúde e professores, dentre outros) podem vir a contribuir para a sua reificação.

Ao discutir a relação dos pobres com a Assistência Social, Paugam (2003)22 PAUGAM, Serge. Desqualificação social: ensaio sobre a nova pobreza. São Paulo: Cortez, 2003. trata a pobreza não como um estado fixo ou como um dado natural; ao contrário, revela a existência de um processo lento de construção histórica, social e cultural do fenômeno da pobreza. Para o autor, seria melhor falar em populações reconhecidas como em situação econômica e social precária, razão pela qual chama a atenção para a pluralidade das categorias que envolvem a discussão sobre pobreza e afirma que é durante o processo de escolha de certificação daqueles “verdadeiramente pobres” que se produz um status específico (inferior e desvalorizado) que passa a marcar profundamente a identidade desse grupo.

A possibilidade de negociar as categorias imputadas pelo Estado também depende da posição social do beneficiário: para aqueles mais vulneráveis, o contrato é uma forma de instituir a confiança em si mesmos. É nessa perspectiva que Dubois (2010)3 DUBOIS, Vincent. The bureaucrat and the poor: encounters in French welfare offices. Aldershot: Ashgate, 2010. analisa esse tipo de negociação, a partir de um estudo feito em dois guichês de atendimento e administração de recursos – Caisse d’Allocation Familiale (CAF), na França. Dubois demonstra que o jogo de negociações entre os profissionais de atendimento e os beneficiários das políticas de transferência de renda permite a construção de identidades e cria papéis sociais que se relacionam a algumas funções do serviço público: gestão, administração de recursos e ética. Para Dubois (2010)3 DUBOIS, Vincent. The bureaucrat and the poor: encounters in French welfare offices. Aldershot: Ashgate, 2010., esse momento é estruturalmente assimétrico, na medida em que a esfera administrativa não se apresenta apenas como um lugar de registros burocráticos. Na verdade, os atendentes personificam a instituição e, a partir daí, fazem prescrições, oscilando entre a lógica burocrática e o engajamento pessoal.

Assumimos neste artigo que a atuação dos burocratas de nível de rua (termo cunhado por Lipsky, 198013 LIPSKY, Michael. Street Level bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. Nova York: Russell Sage Foundation, 1980.) evidencia como essas dimensões se configuram e se entrecruzam por meio das fragilidades associadas aos arranjos institucionais, aos múltiplos processos de interação entre os atores vinculados, às tensões e contradições que advêm do cotidiano da implementação na vida dos cidadãos, e aos mecanismos perversos de reprodução da exclusão que são processados em diversos níveis da gestão pública e também nos territórios. Conforme Oliveira & Daroit (2020)21 OLIVEIRA, Breynner R.; DAROIT, Doriana. Public policy networks and the implementation of the Bolsa-Família Program: an analysis based on the monitoring of school attendance. Education Policy Analysis Archives, v. 28, p. 120, 2020. https://doi.org/10.14507/epaa.28.4499
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, as conexões e interações que articulam e mobilizam transversalmente os atores nesses espaços desempenham um papel crucial: reforçam a tese de que a implementação é um processo que vincula o Estado e a ação pública às pessoas e aos cidadãos, colocando-as no centro do processo decisório, no território.

Metodologia

Programa Oportunidades

Foram realizadas 47 entrevistas: três com o corpo estratégico do PO no nível nacional; quatro com o corpo estratégico do PO no nível estadual; duas com o corpo gerencial do PO no nível estadual em San Luís Potosí; duas com agentes públicos da ponta dos centros de saúde; 14 com agentes públicos da escola; dez com agentes públicos da ponta vinculados ao acompanhamento das famílias (os Responsables de Atención, RA) e 12 com vocales.2 2 Em geral mulheres, as Vocales eram titulares locais que recebiam a bolsa do programa. Apesar de não serem agentes públicos e, portanto, não serem formalmente burocratas no nível local, o papel central que desempenhavam no desenho do programa no nível do território as caracterizava como agentes informais a partir da definição de Lipsky (1980), razão pela qual foram incluídas nessa categoria. As entrevistas com os agentes locais foram realizadas nos estados de Puebla e San Luís Potosí.

Programa Bolsa Família

A pesquisa empírica foi realizada em uma periferia da região metropolitana do Rio de Janeiro: Itaboraí. Lá, foi realizada observação participante em diversos espaços: escola, posto de saúde, Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), Coordenação do PBF, setor de cadastramento, restaurante popular e a própria vizinhança. Realizamos ainda 70 entrevistas com diferentes atores públicos e funcionários contratados (agentes de saúde, assistente social, professores de escola pública, cadastradores do Bolsa Família e coordenador do Programa), com famílias beneficiárias (mulheres titulares do benefício, seus cônjuges e/ou parceiros e filhos/adolescentes) e também com famílias não beneficiárias (vizinhas das famílias beneficiárias entrevistadas).

Oportunidades e seus efeitos da implementação derivados dos arranjos e processos burocráticos: estratégias de controle e tutela

Conforme anunciado na Introdução, os efeitos produzidos pelo programa mexicano serão analisados a partir da dimensão arranjos e instrumentos de implementação, definida por Pires (2019)23 PIRES, Roberto. (org.). Implementando desigualdades: reprodução de desigualdade na implementação de políticas públicas. 1ed. Brasília: IPEA; CEPAL, 2019.. As entrevistas com os atores em posições gerenciais e estratégicas indicam que o programa, dada sua elevada centralização, produziu um tipo clássico de insulamento burocrático: ao longo dos anos, parece ter afastado os demais órgãos em nível federal de seu cotidiano, o que se estende para as outras esferas da federação. Da mesma forma, as entrevistas e, sobretudo, as diversas visitas realizadas à sede do programa na cidade do México revelaram que a estrutura administrativa da Secretaria de Desenvolvimento Social Sedesol era enorme e muito complexa.

Em relação aos efeitos associados à operação do programa, os entrevistados deixaram claro que os problemas ligados à infraestrutura e às insuficientes condições de trabalho para os RAs (os Responsables de Atención) comprometiam a qualidade dos dados inseridos nos sistemas, gerando mais retrabalho, além de consumir horas que poderiam ser destinadas ao atendimento das famílias. Chamava a atenção a quantidade de formulários, trâmites e procedimentos que deveriam ser processados e seguidos pelos burocratas de nível de rua e pelos usuários.

Ainda que os achados da pesquisa tenham seu alcance limitado aos estados analisados, a elevada centralização e o excesso de controles têm, também, componentes políticos e podem estar associados aos efeitos da implementação, conforme descrito por Dubois (2019)4 DUBOIS, Vincent. Políticas do guichê, políticas no guichê. In: PIRES, Roberto. (org.). Implementando desigualdades: reprodução de desigualdade na implementação de políticas públicas. 1ed. Brasília: IPEA; CEPAL, 2019.. Ao agir dessa forma, o governo federal assegurava o controle sobre o programa, tanto do ponto de vista operacional (aí, incluídos os cadastros e os trâmites administrativos) quanto em relação à gestão em nível subnacional.

Nessa direção, as entrevistas com as vocales e as profissionais da escola convergem com as pesquisas realizadas por Gonzáles de la Rocha (2012)10 GONZÁLES DE LA ROCHA, Mercedes. Pobreza, transferencias condicionadas y sociedad. Mexico: CIESAS, 2012.. Os dados revelaram que os RAs reproduziam o caráter regulador que o governo federal institucionalizou. Segundo a autora, o programa reforçava a tutela e o controle do Estado sobre os cidadãos, ao invés de estimular o protagonismo e a liberdade das mulheres. Uma pergunta emerge, portanto: até que ponto o programa mexicano estimulava as famílias e as mulheres a diminuir sua dependência frente ao Estado? Como as mulheres poderiam trabalhar, se qualificar e se capacitar se eram obrigadas a participar dessas seções? Nessa direção, os processos e procedimentos administrativos pareciam ter essa conotação: criar vínculos fortes entre os beneficiários e o governo federal, aumentando a dependência entre os cidadãos e o Estado.

As vocales e as demais mulheres do programa: classificação hierárquica, controle e os efeitos sociais derivados dos processos burocráticos

A existência de agentes como as vocales não era recente no México. Essa prática era uma herança de outros programas de combate à pobreza que utilizavam a estratégia da corresponsabilização das pessoas atendidas, através de comitês voltados à prestação de serviços comunitários, sem pagamento adicional ou nenhum outro tipo de remuneração. Segundo Porras (2012)25 PORRAS, Javier. Participación ciudadana y gobernanza local como forma de gobierno em México. In: ZAREMBERG, Gisela. (coord.). Participación, representación y gobernanza local en América Latina. Mexico: Flacso, 2012. p. 392., o papel dessas mulheres consistia em assegurar canal direto entre o governo federal e o território, sem passar pelo poder local. Eram lideranças e referências importantes porque mobilizavam o grupo de titulares e figuravam como elo entre a equipe do programa e o território.

Entretanto, tal atuação produzia efeitos sociais associados ao uso cotidiano do poder, no território: havia vocales que exerciam seu papel de maneira autoritária e/ou burocrática, assumindo um papel de fiscais do governo, localmente. Casos de corrupção e obtenção de vantagens políticas também foram relatados pelas entrevistadas. Em uma das entrevistas, um RA discorre sobre como o exercício da discricionariedade das vocales podia ultrapassar o que foi desenhado para elas. O agente afirmou que havia situações em que essas titulares confundiam seus papéis e intrometiam-se em espaços ou rotinas que não lhes diziam respeito, configurando um clássico exemplo de como a interpretação das regras do jogo por parte dos agentes que estão na ponta é decisiva no processo de implementação de políticas. Cabe notar que o detalhamento institucional de suas atribuições não existia nas regras de operação. Cabia a elas, aos RA e aos profissionais da escola interpretar, decidir e criar seus próprios entendimentos sobre como agir e como essas funções seriam desempenhadas.

Ainda que não se possa afirmar que isso se configurasse como um padrão de comportamento, houve relatos de localidades em que as eleições para essa função eram disputadas; casos de vocales que se candidatavam a cargos eletivos localmente em função de sua influência e poder locais. Nas entrevistas, foram relatados exemplos de denúncias de vocales que cobravam algum tipo de taxa para tramitarem os processos das famílias localmente; casos em que as vocales atuavam como “cabo eleitoral” no período de eleições, dentre outros. Esse tipo de controle social e político, intrinsecamente diluído no cotidiano do programa no nível micro, é uma representação do exercício do poder que, ao longo das décadas, reflete práticas patrimonialistas.

Em relação às vocales de educação, a própria dinâmica das atividades realizadas permitia que algumas regras tácitas fossem definidas. As entrevistas realizadas informaram as funções por elas desempenhadas na escola: verificar se as titulares estavam destinando os recursos que recebem para a compra de materiais escolares; motivar as mães a acompanhar a vida escolar de seus filhos; e inspecionar, in loco, se as crianças estavam frequentando a escola, se estavam limpas, uniformizadas, com as unhas e cabelos cortados, calçadas e com o material escolar completo. Em uma entrevista, uma das professoras demonstrava preocupação em relação ao poder que as vocales tinham para fiscalizar as escolas, os alunos, as mães e o trabalho dos docentes. Segundo a entrevistada, algumas ameaçavam as mães, intimidavam docentes, interrompiam aulas e mandavam recados para as mães por meio dos alunos.

As entrevistas realizadas com as vocales (não somente as de educação) indicam que o exercício da discricionariedade é recorrente, como analisado por Lipsky (1980)13 LIPSKY, Michael. Street Level bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. Nova York: Russell Sage Foundation, 1980.. Como as regras são frouxas e as estratégias de interação são difusas (Goffman, 20128 GOFFMAN, Erving. Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.), essas agentes atuavam com grande liberdade, traduzindo e interpretando as normas para as demais titulares, no nível territorial. Os efeitos sociais dessa interação eram diversos: fluxos de comunicação eram desconexos, ampliando os riscos de disfunções na distribuição e disseminação das informações; padrões de tutela e controle; e comportamentos oportunistas e clientelistas que produziam constrangimentos ao conjunto de beneficiárias.

Além desses, essa dinâmica produziu outros efeitos associados à estigmatização das mulheres beneficiárias. Dentre o rol de atribuições historicamente difundido, fruto da tradição dos programas sociais mexicanos, as vocales eram responsáveis por organizar grupos de beneficiárias que, em suas comunidades, varriam ruas, limpavam as escolas e os centros de saúde, sem pagamento ou remuneração adicionais. Dentre as atividades desempenhadas pelas vocales e pelas demais mulheres titulares, esperava-se que coordenassem e assumissem localmente a prestação de serviços comunitários – as faenas. Apesar de não ser uma contrapartida institucionalmente requerida pelo programa, conforme disposto em suas regras de operação, as faenas eram um componente dos programas anteriores e, por isso, estavam fortemente arraigadas ao programa.

Não bastasse essa dimensão estigmatizante, as mulheres também eram geracionalmente sacrificadas. Como as reuniões e o atendimento às condicionalidades de saúde e educação aconteciam durante o dia, assume-se que o programa estava centrado na figura da mãe, mulher que deveria deixar de trabalhar, estudar e/ou abrir mão de seus projetos pessoais e profissionais para que a família continuasse a receber o recurso. Como o programa não oferecia atividades de formação profissional para os responsáveis, conclui-se que não estava orientado para a construção de alternativas emancipatórias que fizessem com que as mulheres pudessem deixar de recebê-lo. Assim, as entrevistas revelaram que a engenharia do Oportunidades seguia o caminho contrário à ideia de autonomia, reproduzindo a inferiorização e estigmatização de las madres de Oportunidades – expressão que designava as mulheres que eram atendidas pelo programa.

A cobrança das cooperaciones: pressão e indução sobre o uso do recurso para as escolas

Em relação às mulheres atendidas pelo programa, a maioria dos RAs e diretores entrevistados defendia as cooperaciones, induzindo e pressionando as mães para que pagassem às escolas. Como tal prática era cristalizada na sociedade mexicana, os RAs e diretores escolares acreditavam que a condicionalidade educacional elevaria as matrículas nas escolas e, mediante o pagamento das anuidades, a receita das escolas seria, consequentemente, incrementada, diminuindo os problemas de custeio. Em termos práticos, induzia-se, indiretamente, o financiamento da educação.

Os profissionais da educação entrevistados foram claros: um dos principais desafios enfrentados era manter as escolas funcionando. Segundo esses atores, os repasses da Secretaria de Educação Pública3 3 O equivalente ao Ministério da Educação (MEC), no Brasil. (SEP) eram insuficientes; não havia recursos para material de consumo, custeio e manutenção. Esperava-se que os professores contribuíssem com parte de seus salários na compra de insumos. Cabia à comunidade escolar desenvolver estratégias para a geração de receitas para as escolas.

As associações de pais eram responsáveis pela cobrança de cooperaciones – anuidades escolares –, ainda que as escolas fossem públicas.4 4 Segundo a Constituição, a educação é dever do Estado e a rede pública é gratuita. Dois trechos de entrevistas com uma professora e com uma mãe-titular dão a real dimensão da situação. No primeiro, a profissional analisa a dificuldade enfrentada pelas escolas no que se refere à escassez de recursos. No segundo, a mãe reforça as dificuldades da escola e sugere que as famílias têm a obrigação de custear despesas não previstas.

Ao afirmar que a escola era dependente das aportações feitas pelos pais dos alunos, as duas entrevistadas deixam claro que havia um grave problema na educação mexicana, anterior às questões pedagógicas:

Professora escola C: En el mes de agosto se conforma la asociación de padres de familia. Hay una asamblea y dicen cuánto van a pagar de cuota, por decir, en el jardín 400 pesos por persona por padres de família, si tiene otro niño se le cobra 200 [pesos mexicanos].

Pesquisador: Pero la escuela es pública...

Professora escola C: Si es pública, pero hay que cobrar para tener recursos para comprar papel de baño, para comprar trapos para limpiar, para comprar fabuloso, para comprar aceite, agua, comprar material...No te alcanza. En las necesidades educativas de material para exponer en clase no alcanza lo suficiente y el maestro lo tiene que absorber, el maestro lo paga.

Pesquisador: ¿Pero eso es obligatorio por ley?

Professora escola C: No es obligatorio por ley, pero el juez, el comisariado, ellos hablan con la persona, el director de la escuela va y habla con la persona y la trata de convencer de que aporte el recurso. Ahorita el gobierno está poniendo spots para que los padres de familia ya no paguen esas cuotas, pero entonces ¿como le vamos a hacer nosotros los maestros para poder solventar y pagar todos los gastos?

Mãe beneficiária aluno escola B: nosotros damos una cuota y esa cuota es supuestamente para papelería de la escuela y jabones y eso pero cuando se va a arreglar alguna pared o algo así pues tenemos que dar más cooperación para que se haga eso aparte. Casi siempre se hace por que el gobierno no da lo que se necesita si necesitamos algo tenemos que cooperar. Si no he pagado un recibo de la colegiatura de mi hijo no me lo reciben hasta que pague. Nunca me ha pasado bendito dios, siempre he estado pendiente de esto, pero hay padres que si les ha pasado.

E se as famílias (beneficiárias ou não) se recusassem a pagar as anuidades? A lei as desobrigava, mas a prática estava cultural e institucionalmente disseminada, nos moldes do que Dubois (2019)4 DUBOIS, Vincent. Políticas do guichê, políticas no guichê. In: PIRES, Roberto. (org.). Implementando desigualdades: reprodução de desigualdade na implementação de políticas públicas. 1ed. Brasília: IPEA; CEPAL, 2019. afirma ser um típico caso de jogo de cena ou truque da implementação, com base nas normas: a Secretaria de Educação “fazia vista grossa”, o que contribuía para que as famílias fossem induzidas a pagar. Se exigissem que a lei fosse cumprida, corriam riscos de sofrer sanções simbólicas e materiais: poderiam ser classificadas como oportunistas e descomprometidas com a escola; seus filhos poderiam ser discriminados pelos professores e pelos outros colegas e as vagas e matrículas poderiam ser suspensas.

As vocales tinham a mesma posição, o que reforçava a tese de que a questão estava, de fato, cristalizada. Por serem vocales, pagavam a anuidade de seus filhos e induziam as outras a pagar, sustentando o argumento de que trabalhavam para o governo. As entrevistas realizadas revelaram dois aspectos importantes derivados da questão das anuidades: as diretoras pareciam comprometidas com os novos alunos que poderiam receber e o trabalho pedagógico que seria desenvolvido e, ao mesmo tempo, estavam agindo utilitariamente, interessadas na receita complementar que essas matrículas, via cooperaciones, lhes iriam proporcionar. A geração de receita era uma meta central para garantir que a escola seguisse funcionando. Para essas diretoras, era impossível separar essas dimensões. Para uma diretora entrevistada, o fato de as famílias receberem um benefício “carimbado” dava a elas o direito de exigir que as anuidades fossem pagas, obrigatoriamente. Como as escolas enfrentavam sérios problemas de custeio, a bolsa acabava se tornando um ativo monetário importante.

De todo modo, essas dinâmicas revelam que classificações morais – um dos efeitos perversos da implementação, conforme disposto na Figura 1 – podem ser imputadas às mulheres beneficiárias, podendo vir a produzir uma situação de estigma. E, ao mesmo tempo, tais situações podem gerar práticas discriminatórias e de exclusão contra alunos (crianças e adolescentes) beneficiários, cujos pais não pagaram a anuidade.

O Programa Bolsa-Família: o olhar das mulheres atendidas sobre estigmatização social, humilhação e vergonha

O Programa Bolsa Família será analisado tendo em vista a segunda dimensão proposta por Pires (2019)23 PIRES, Roberto. (org.). Implementando desigualdades: reprodução de desigualdade na implementação de políticas públicas. 1ed. Brasília: IPEA; CEPAL, 2019.: os processos de interação entre agentes públicos locais e os beneficiários do programa. Para a discussão empreendida nesse artigo, cinco questões nortearam as análises do campo brasileiro, a partir das observações realizadas no setor de cadastro do PBF no território investigado: (i) em que medida o grupo de beneficiárias passa a se perceber e a ser percebida como um grupo social estigmatizado?5 5 Salientamos que algumas variáveis foram usadas para indicar o que seria “grupo social estigmatizado”, dentre elas: processos de humilhação moral no setor de cadastramento, preconceitos contra as beneficiárias sobretudo em relação às mulheres jovens negras, desconfiança sobre a legitimidade em receber o benefício pelo seu status de casada e questionamento sobre sua condição física de trabalho. (ii) As beneficiárias sofrem constrangimentos e∕ou controles particularmente relacionados à sua posição de dependentes do Estado? (iii) Como as candidatas ao benefício interpretam e negociam com os operadores do programa as categorias por eles imputadas? (iv) Será que, a partir da identificação formal “beneficiária”, se desenvolve um controle social pelo qual elas passam a ser moralmente vigiadas e até mesmo punidas, se necessário? (Foucault, 19797 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979., 20096 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 37. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.) e (v) Como se desenvolve a constituição da “carreira moral” das beneficiárias, quando o “controle disciplinar” passa a ser exercido sobre elas na esfera pública?

Desde que soube do programa, até realizar sua inscrição e começar a receber o benefício, Carla6 6 Os nomes dos entrevistados foram alterados como forma de garantir seu anonimato. (beneficiária, 29 anos, casada) teve de passar por diversas esferas institucionais e presenciou situações nas quais os atendentes agiam com desconfiança em relação aos beneficiários.

Eu fui primeiro lá no hospital velho. Chegando lá, eles disseram que não tinham vaga. Eu ia desistir. Aí, essa minha amiga me levou na casa de tijolinho.[7] Mas lá também não tinha vaga. Por fim, depois de seis, sete meses, teve uma turma no colégio fazendo. Aí, eu consegui me cadastrar no colégio e fui receber três meses depois. Eu fiquei sem graça porque eles me perguntaram como eu, recebendo 60 reais, conseguia me sustentar. Eu disse que tinha uma agente de saúde que me ajuda. Quando eu saí, ele falou pra uma mulher: “A história dela é bem estranha, né?”. Fiquei sem graça, né? Porque eles estavam achando que eu estava mentindo. Aí falei com uma amiga minha dessa situação. Fiquei mais um tempo lá, porque estava esperando uma colega e vi que o cara lá pegou o papel de uma menina, rasgou e jogou fora. Aí eu pensei: essa menina não vai receber. Eu acho que eles devem olhar assim pela roupa da pessoa, aí... ele deve ter desconfiado, né?

O julgamento (baseado no modo de falar, de se vestir e se portar) e a desconfiança sobre a autodeclaração de renda dos candidatos ao Bolsa Família é recorrente entre os cadastradores e digitadores do cadastro. Através da observação participante durante quatro meses no setor de cadastramento, notamos que esse tipo de tratamento de fato se reproduz no cotidiano daqueles que buscam apenas conquistar um direito social, qual seja: aquele da assistência social. Ou seja, a aplicação da regra do programa está sempre permeada por julgamentos e classificações morais normativas (Maynard-Moody; Muscheno, 200320 MAYNARD-MOODY, Steven; MUSHENO, Michael. Cops, teachers, counselors: narratives of street-level judgment. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2003.), o que pode levar a situações de preconceito e discriminação com o grupo de beneficiárias que são, em sua maioria, mulheres negras. Outra beneficiaria, de nome Adelir (41 anos, união estável), afirma que no momento de realização do cadastro sofreu um tipo de humilhação:

Naquele dia ali, eu me senti humilhada. Tem muita gente que desiste por isso, né? Falei que tava passando necessidade... e eles já te tratam com desconfiança, acham que você está mentindo., que está querendo passar a perna. Eles perguntam várias vezes: você ganha só isto mesmo?

No setor de cadastramento, vemos claramente emergir dois tipos de dominação: a dominação simbólica (construção de distinção social e de julgamento classificatório) e a dominação burocrática (cumprimento do controle social via regra administrativa) em relação às beneficiárias. Importante resgatar aqui a ideia de dominação weberiana para pensar a relação da assistência com os beneficiários. Em Weber, em uma situação de contrato, o princípio de igualdade não pode ser jamais cumprido. De fato, vemos que a posição de classe social dos atores envolvidos junto com a dominação burocrática produz uma situação de hierarquia que pode vir a cristalizar tratamentos discriminatórios.

Já para a beneficiária Luciana (40 anos, solteira), a questão mais problemática na interação com o Estado se apresenta na questão da dependência financeira. Esse é o fator que mais a constrange como beneficiária, pois se sentia inútil e humilhada por receber dinheiro do governo. Segundo ela, na fila do banco, na hora de receber, diversas titulares escondem o cartão por vergonha, com receio de ser chamada de “esfomeada”. Também afirmando sofrer constrangimentos, porém no âmbito da coordenação do Bolsa Família, Naiara (50 anos, casada) salienta que a humilhação sofrida foi exercida, sobretudo, pelas atendentes do setor de cadastramento.

Elas dizem: “O governo não vai dar mais nada, não!”, “Vocês têm que trabalhar!”, “Não tem mais nada, não!”. Aí eu não procuro mais ver esta questão da falta na escola do menino [recebeu uma notificação de que seu filho faltou à escola, mas ele de fato não faltara], nem vou mais, porque não quero ser maltratada. Elas lá na coordenação ficam falando para qualquer um ouvir: “Vocês ficam na farra e não querem nada, só ganhar dinheiro fácil!”.

Verificamos vários efeitos sociais que envolvem a interação das beneficiárias com os profissionais que trabalham na gestão do programa: preconceitos, julgamentos morais, humilhação e estigma que são relatados tanto por elas quanto pelo próprio corpo técnico vinculado ao programa (sobretudo as assistentes sociais e as agentes de saúde) que corroboram que os atendentes da “porta de entrada” realizam práticas discriminatórias. A agente de saúde Cacilda (40 anos, solteira), por exemplo, classifica algumas beneficiárias como: “parasitas, porque elas colam no governo e não saem mais. Elas não procuram trabalho, ficam querendo tudo fácil. Ficam na aba dos outros”.

O controle social informal induz a um processo classificatório moral, tornando pública a imagem negativa da beneficiária. A ideia de “má reputação” em Goffman (1988)9 GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988. nos ajuda a compreender melhor o desenvolvimento de diversas categorias valorativas sobre a figura da titular legal, tais como “deixam as crianças largadas”, “são aproveitadores”, “vagabundos” ou até mesmo “parasitas”, ao mesmo tempo que se desenvolve uma relação pautada no constrangimento e na humilhação. Em alguns contextos, desenvolve-se apenas uma relação burocratizada, o cadastramento) ou o recadastramento se realiza rapidamente, sem envolvimento da atendente, cumprindo sua função burocrática de preenchimento dos dados. O exemplo relatado por Maria segue nesta direção: “ela foi perguntando e marcando, e aí eu perguntei quando eu ia receber e ela falou: ‘Isso aí é lá com o governo federal. Eu não sei de nada’. Depois que ela acabou, me deu um papel com o telefone e falou: ‘Pode ir, está feito.’”

Nessa mesma situação, outra forma de interação pode ser produzida entre candidatos (ou beneficiários) e atendentes, na qual estes últimos oferecem recursos e encaminhamentos adequados à demanda. Este parece ser o caso de Jucélia (beneficiária, viúva, 38 anos): “quando eu fui, até que a mulher preencheu meus dados direitinho [...] Eles me ajudaram assim... a mulher falou que eu tinha que pesar meu filho, que tava muito magro na época. Aí ela me deu o telefone do posto que pesa lá.”

Os implementadores do PBF no nível local: estigmas em relação às mulheres atendidas

Vejamos agora se os comportamentos dos atores institucionais são homogêneos e como percebem as trajetórias dos candidatos ao PBF, desde a fase de cadastramento até o momento de se tornarem beneficiários do programa, quando passam a cumprir as exigências da política. Como eles (aqui, elas) visualizam suas interações com o conjunto das famílias beneficiárias? O que destacam como mais importante no contexto da interação? Existiria um processo de degradação da imagem da beneficiária, chegando a ser desqualificada moral e socialmente? Essas questões nortearam essa parte de nossa análise. De imediato, Élida (assistente social, casada, 27 anos) aponta efeitos não premeditados do programa, destacando a emergência de preconceitos relacionados à figura do beneficiário:

Acho que é como se fosse uma humilhação, e a própria pessoa que vai receber vai incorporando esse pensamento de que é miserável, né? Acho que quando o governo pensou nisso, não pensou em estar humilhando. Foi pra ajudar a suprir as necessidades.

A própria assistente social interpreta o recebimento de um auxílio não como direito social, mas como uma humilhação para os beneficiários. Afirma, também em outros trechos da entrevista, que, muitas vezes, as mães beneficiárias não gostavam quando o programa inicialmente se chamava Fome Zero, pois dessa forma seriam ainda mais identificadas como: “miseráveis”. Já Cacilda, agente de saúde, percebe uma diferença no grau de humilhação relacionado ao valor do benefício; assim, quanto mais baixo o valor, maior seria a possibilidade de os beneficiários sentirem vergonha ou passarem por situações humilhantes. Se, por um lado, os benefícios mais baixos contribuem muito pouco para a redução da pobreza e, também, da desigualdade, por outro, também podem ensejar uma cristalização da desigualdade simbólica. De fato, isso é o que aparece nos trabalhos produzidos por Marins (201718 MARINS, Mani Tebet. Bolsa Família: questões de gênero e moralidades. 1. ed. Rio de Janeiro: UFRJ/ FAPERJ, 2017., 2019a16 MARINS, Mani Tebet. Estigma e repercussões do status de beneficiária. In: PIRES, R. (org.). Implementando desigualdades: reprodução de desigualdade na implementação de políticas públicas. 1ed. Brasília: IPEA; CEPAL, 2019a. p. 13-730., 2019b17 MARINS, Mani Tebet. As consequências não previstas do Programa Bolsa Família. In: LOTTA, Gabriela. (org.). Teorias e análises sobre implementação de políticas públicas no Brasil. 1. ed. Brasília: ENAP, 2019b. p. 3-324., 2020)15 MARINS, Mani Tebet. Stigmas and controls on Bolsa Família beneficiary women. In: SACCHET, T. et al. (org.). Women, gender and conditional cash transfers: interdisciplinary perspectives from studies of Bolsa Família. 1. ed. Nova York: Routledge, 2020. p. 161-181..

Cacilda também nota que os beneficiários sentem vergonha, sobretudo quando seus nomes constam na ficha de atendimento do Serviço Social. Cacilda – corroborando a ideia de Duvoux (2009)5 DUVOUX, Nicolas. L’autonomie des assistés. Sociologie des politiques d’insertion. Paris: PUF, 2009. – parece apontar que o sentimento de vergonha e a incorporação do estigma não aparecem como aleatórios entre os beneficiários. Quanto mais humildes, para usar a expressão de Cacilda – ou quanto mais resilientes nos termos de Dubois (2010)3 DUBOIS, Vincent. The bureaucrat and the poor: encounters in French welfare offices. Aldershot: Ashgate, 2010. –, maior é a chance de submissão a processos de humilhação e de aceitação da imputação do estigma. Isso pode ter relação com a falta de um repertório educacional mínimo para a consecução da reação e enfrentamento do estigma. O silenciamento, sobretudo entre os mais humildes, representa, muitas vezes, a aceitação de sua condição, como observado nas filas de cadastramento para o recebimento do Bolsa-Família.

Sobre constrangimentos específicos sofridos por essa população, Raquel (professora do município, casada, 30 anos) avalia que as mães beneficiárias investem o dinheiro de uma forma errônea e, ao fazê-lo, atraem, por consequência, julgamentos morais negativos:

Já ouvi falar: “você é um esfomeado...”, “Ao invés de dar dinheiro, por que não faz outra coisa?” Eu, particularmente, não gosto, porque eu gosto de programas que incentivam. Só não gosto de como é utilizado. Por isso acho que poderia ter uma fiscalização maior. Porque pode estar sendo utilizado para o vício.

Raquel salienta ainda que o controle social deveria ser maior sobre a família beneficiária, apontando que a fiscalização mais forte evitaria o risco de a política sustentar “vícios”. De acordo com as percepções dos agentes locais, o aspecto da humilhação geralmente se relaciona à posição de precariedade do sujeito que, ao precisar solicitar o benefício de um programa de renda mínima, passa a ser classificado como miserável (leia-se “esfomeado”), o que produz um sentimento de vergonha e constrangimento constante. Para Paula, (estagiária de serviço social, casada, 23 anos) os beneficiários não se sentem humilhados pelo recebimento do benefício em si, mas sim pelo atendimento que recebem principalmente na esfera da coordenação e no setor de cadastramento do PBF.

Na recepção, as pessoas que trabalham lá se sentem as donas. Aí, já atende beneficiário, do tipo: “Ah, não tem marido, não? Com essa aliança aí no dedo, não tem marido!”. Meio que atende com desconfiança. Tem muito preconceito aqui na porta de entrada, de chegar a chamar até de puta, por aí. Eu, por exemplo, já atendi uma pessoa aqui que começou a falar comigo e começou a chorar. Aí eu perguntei: “O que foi?”. E ela disse: “Eu perdi minha mãe não tem nem dois meses. E eu perguntei: “Sua mãe faleceu de quê?”. Aí, ela disse: “Vê aí no atestado de óbito”. Aí eu olhei o atestado e estava “insuficiência alimentar”. Ela morreu porque não comia. Ela disse: “Poxa, a gente chega aqui, é maltratado, e a primeira coisa que tem, a lei do desacato, desacato ao funcionário público dá cadeia”.

Assim como nos achados de Goffman (1988)9 GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988., Dubois (2010)3 DUBOIS, Vincent. The bureaucrat and the poor: encounters in French welfare offices. Aldershot: Ashgate, 2010. sinaliza que a dependência econômica da assistência acaba por ter um papel fundamental no jogo de interações que os beneficiários irão estabelecer com os funcionários da “porta de entrada”. Ressalta, também, que esse poder, caracterizado pelo autor como assimétrico, produz uma relação que não se configura meramente como formal/burocrática, mas carrega julgamentos normativos que podem, em última instância, conduzir a práticas estigmatizantes.

Mesmo sofrendo claras restrições econômicas em sua vida, Mara (não beneficiária, casada, 44 anos) optou por não solicitar o benefício, exatamente para evitar possíveis humilhações e preconceitos que poderiam ser exercidos pelos representantes do Estado. “Eu prefiro passar necessidade que pedir. Tenho vergonha, né? Já sou pobre e aí vou ficar me humilhando pros outros, pedindo dinheiro?” Dayane (não beneficiária, divorciada, 38 anos) também resistiu à busca pelo benefício, tendo em vista que, para ela, a possibilidade de “ser beneficiária” significaria passar por um processo de humilhação.

Como histórias de humilhação e constrangimento na coordenação do PBF são relatadas pelos beneficiários, algumas desistem de solicitar o auxílio. Esse efeito material pode introduzir “barreiras de acesso ou critérios de seleção não formalmente previstos e que incidam precisamente sobre os segmentos sociais mais precarizados” (Pires, 201724 PIRES, Roberto. Implementando desigualdades? Introdução a uma agenda de pesquisa sobre agentes estatais, representações sociais e (re)produção de desigualdades. Boletim de Análise Político-Institucional, v. 13, p. 7-14, 2017. http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/8090
http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11...
, p. 10). Algumas candidatas, e até mesmo as já beneficiárias, evitam a interação face a face, porque seria uma forma de preservar sua fachada (Goffman, 20128 GOFFMAN, Erving. Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face. Rio de Janeiro: Vozes, 2012., p. 13-14), definida como regras comportamentais de respeito próprio, que pressupõem o reconhecimento pelo outro de seu “valor social positivo”. Isso acontece quando a pessoa resiste em participar de determinados encontros sociais, nos quais poderia ser alvo de tratamento ofensivo.

Grande parte da dificuldade em aceitar tal benefício parece vir também do baixo valor transferido pelo PBF; recusa que talvez não ocorresse, caso o valor fosse maior para o conjunto da família. Aqui parece que o sentimento de vergonha está menos relacionado à posição de “fracassado” na vida profissional e mais vinculado ao recebimento de uma renda ínfima. É por isso que, muitas vezes, as potenciais beneficiárias se desviam do status de assistida, com medo das imputações negativas (“esfomeadas”, “acomodadas” e “vagabundas”) que poderiam ser feitas caso viessem a solicitar o auxílio. Importante destacar que, em duas pesquisas quantitativas distintas realizadas por Castro et al. (2009)1CASTRO, Henrique C. O.; WALTER, Maria Inez M. T.; SANTANA, Cora M. B.; STEPHANOU, Michelle C. Percepções sobre o Programa Bolsa Família na sociedade brasileira. Opinião Pública, v. 15, n. 2, p. 333-355, 2009. https://doi.org/10.1590/S0104-62762009000200003
https://doi.org/10.1590/S0104-6276200900...
e Kerstenetzky (2009)12 KERSTENETZKY, Celia L. Redistribuição e desenvolvimento? A economia Política do Programa Bolsa Família. Dados, v. 52, n. 1, p. 53-83, 2009. https://doi.org/10.1590/S0011-52582009000100002
https://doi.org/10.1590/S0011-5258200900...
, os autores afirmam que as pessoas não beneficiárias que conhecem titulares do Bolsa Família avaliam melhor o PBF do que aquelas que não conhecem. E, por consequência, podemos inferir que essa aproximação tende a diminuir o efeito de estigmatização.

Quando se trata da situação de (re)cadastramento, as interações entre candidatas e/ou beneficiárias com os atendentes se desenvolvem basicamente de três formas: (i) interação estigmatizante: nas quais as ofensas e as humilhações objetivam destruir a fachada (Goffman, 20128 GOFFMAN, Erving. Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face. Rio de Janeiro: Vozes, 2012., p. 13-14) do beneficiário; (ii) interação assistencial: quando os atendentes fornecem recursos de auxílio como, por exemplo, encaminhamentos; e (iii) interação burocrática: atendentes exercem função administrativa de preenchimento do cadastro ou do recadastramento, movidos pelo senso de rapidez e eficácia (Marins, 201419 MARINS, Mani Tebet. Repertórios morais e estratégias individuais de beneficiários e cadastradores do Bolsa Família. Sociologia e Antropologia, v. 4, n. 2, p. 544-562, 2014. https://doi.org/10.1590/2238-38752014V4210
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).

Para Goffman (2012)8 GOFFMAN, Erving. Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face. Rio de Janeiro: Vozes, 2012., é através do componente cerimonial que se fará uma avaliação da pessoa, a fim de julgar suas qualidades como desejáveis (aqui emergem as noções de “verdadeiro”, “dedicado” e “bom pobre”) ou indesejáveis (através de categorias como: “interesseiro”, “preguiçoso”, “aproveitador” e “parasita”). Sob a ótica da “verdade”, o atendente tende a diminuir as convicções de precariedade do candidato, questionando sua condição e demonstrando uma desconfiança moral sobre suas posturas.

O enquadramento, ou não, no status de pobre se dará sob a incorporação (e aceitação, mesmo que temporária) de sua condição de precariedade e também pela aprovação formal (e burocrática) de seu cadastro como sujeito “merecedor” de direito. Vimos, a partir do material empírico, que as pessoas – em alguma medida – calculam o custo de engajamento para entrar, de fato, em uma interação face a face com os agentes públicos. Esse tipo de repertório acionado se apresenta como uma estratégia social contextual da “identidade de pobre” como uma ferramenta importante para obter sucesso em sua demanda, uma vez que os recursos da assistência no Brasil são escassos.

Considerações finais

Analisamos, neste artigo, os efeitos sociais decorrentes do processo de implementação de dois programas de transferência de renda na América Latina: Oportunidades e Bolsa-Família. A partir de duas perspectivas de análise – arranjos institucionais no caso mexicano e interações entre agentes públicos e beneficiárias no caso brasileiro – vimos emergir uma série de efeitos materiais e simbólicos sobre as mulheres beneficiárias desses dois programas.

Analisamos como as mulheres beneficiárias no Brasil e no México sofrem diversos controles (sociais, morais e de gênero) por parte dos agentes públicos, dos processos administrativos/burocráticos e pela vizinhança nos respectivos territórios. O cotidiano de implementação dos dois programas evidencia como a transferência de renda é profundamente marcada por crenças, valores, disputas políticas, pelo clientelismo e práticas estigmatizantes por parte dos agentes públicos em relação às mulheres/mães beneficiárias.

Materializados por meio de controles múltiplos e complexos que se disseminam em diversos ambientes e são exercidos sobre as beneficiárias através de cobranças diretas, tais efeitos se revelam sobretudo pelas exigências morais escamoteadas no discurs o da autoridade pública. Além disso, os atores institucionais estabelecem uma cobrança simbólica extraoficial de enquadramento e julgamento das beneficiárias a partir das noções de “boa mãe”, “mulher correta” e “mãe responsável”. As análises dos processos de implementação do Oportunidades e do PBF permitem afirmar que o Estado estabelece múltiplos controles sobre a população-alvo, que serão (re)negociados no contexto interacional. Ao contrário da clara incorporação das regras da política, os agentes institucionais aderem a valores morais específicos do “bom pobre” e do “merecedor” – aquilo que denominamos efeitos simbólicos da implementação.

Os candidatos ao PBF enfrentam, com receio, a interação face a face com os atendentes do setor de cadastramento, pois são afetados pelas histórias de desconforto e constrangimento que outros já vivenciaram. Há, portanto, através de outras interações, uma repercussão das ofensas praticadas por atendentes do setor de cadastramento. A fama de “grosseiros” de tais atendentes, no bairro, faz com que muitos candidatos potenciais (e que cumprem os critérios de elegibilidade do programa) se desviem do Bolsa Família com a justificativa de que não precisam se “humilhar” para receber um auxílio do Estado. Tal efeito social é material e não simbólico, uma vez que pode fazer com que outros potenciais candidatos ao programa não se habilitem.

No caso mexicano, os efeitos sociais derivados de seus arranjos institucionais (as atribuições das vocales e das mães; o volume de processos e rotinas administrativas; a discricionariedade dos agentes locais; a cobrança das cooperaciones; a liberalidade do gasto do componente educacional e a tutela administrativa e social imposta pelo programa) indicam que a promoção da inclusão e o combate à pobreza através dessa condicionalidade podem reforçar e/ou agravar a desigualdade, exatamente o que se pretendeu combater.

Os dados revelam que, em ambas as localidades, existe um amplo sistema de vigilância (política, social, moral e de gênero) sobre as mulheres atendidas. A vigilância é política porque há uma fiscalização e sanções específicas, mesmo se brandas, em relação às condicionalidades. Em segundo lugar, o sistema de vigilância é também social porque se funda em controles de condutas e comportamentos. Ao mesmo tempo é moral, na medida em que os outros utilizam o julgamento como recurso de classificação estigmatizante. A vigilância também se refere ao gênero, uma vez que se exige da mãe titular legal o cumprimento da norma de maternagem, solidariedade e do cuidado com as crianças no que tange à administração do recurso.

Por fim, as evidências analisadas neste artigo revelam que as práticas cotidianas dos implementadores locais produzem distintos cursos de ação para esses programas, desconhecidos ou secundarizados pelos formuladores. Ao descrever sua operação no nível das interações cotidianas, vários efeitos sociais (estigmas, discriminações e classificações morais) se tornam visíveis, reforçando o papel central que desempenham tanto em relação aos arranjos e instrumentos de implementação quanto às práticas de implementação e interações nas linhas de frente do serviço público.

  • 1
    Termo que identifica os implementadores locais, agentes que estão envolvidos cotidianamente na disponibilização das políticas públicas para os cidadãos.
  • 2
    Em geral mulheres, as Vocales eram titulares locais que recebiam a bolsa do programa. Apesar de não serem agentes públicos e, portanto, não serem formalmente burocratas no nível local, o papel central que desempenhavam no desenho do programa no nível do território as caracterizava como agentes informais a partir da definição de Lipsky (1980)13 LIPSKY, Michael. Street Level bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. Nova York: Russell Sage Foundation, 1980., razão pela qual foram incluídas nessa categoria.
  • 3
    O equivalente ao Ministério da Educação (MEC), no Brasil.
  • 4
    Segundo a Constituição, a educação é dever do Estado e a rede pública é gratuita.
  • 5
    Salientamos que algumas variáveis foram usadas para indicar o que seria “grupo social estigmatizado”, dentre elas: processos de humilhação moral no setor de cadastramento, preconceitos contra as beneficiárias sobretudo em relação às mulheres jovens negras, desconfiança sobre a legitimidade em receber o benefício pelo seu status de casada e questionamento sobre sua condição física de trabalho.
  • 6
    Os nomes dos entrevistados foram alterados como forma de garantir seu anonimato.
  • 7
    Casa de tijolinho é o nome que as beneficiárias usam para se referir a Coordenação local do Programa do Bolsa Família.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2021
  • Aceito
    30 Set 2022
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