Acessibilidade / Reportar erro

ACESSO AO TRATAMENTO PARA DEPENDENTES DE CRACK EM SITUAÇÃO DE RUA

ACCESO AL TRATAMIENTO PARA ADICTOS AL CRACK EN SITUACIÓN DE CALLE

ACCESS TO DRUG DEPENDENCE TREATMENT BY CRACK ADDICTS LIVING ON THE STREET

Resumo

A população em situação de rua, usuária de crack, é negligenciada no Brasil. O objetivo deste estudo foi aproximar-se dessa para compreender o acesso/uso dos serviços de saúde para tratamento da dependência de drogas. Trata-se de uma pesquisa qualitativa com a realização de 26 entrevistas individuais e um grupo focal com cinco usuários de crack em situação de rua no município da Baixada Santista/SP. A análise dos dados revelou que o tratamento oferecido pelas comunidades terapêuticas é o mais conhecido, porém é pouco efetivo para essa população. Com relação aos tratamentos praticados na rede pública de saúde, houve críticas, pouca informação e acesso limitado, além da ausência de conhecimento sobre estratégias de redução de danos. Os usuários referiram sentimentos de estigma, discriminação e preconceitos, vivenciados inclusive na relação com os profissionais de saúde, sendo esses importantes fatores que dificultam o acesso desta população à rede de cuidados.

Palavras-chave:
Cocaína crack; Terapêutica; Transtornos relacionados ao uso de substâncias; Moradores de rua

Resumen

La población usuaria de crack en situación de calle está desatendida en Brasil. El objetivo de este estudio fue acercarse a ellos para comprender el acceso/uso de servicios de salud para el tratamiento de la dependencia de las drogas. Se trata de una investigación cualitativa, con 26 entrevistas individuales y uno grupo focal con cinco usuarios de crack en situación de calle en un municipio de la Baixada Santista/SP. El análisis de los datos reveló que el tratamiento ofrecido por las comunidades terapéuticos es el más conocido, pero es poco eficiente para esa población. Con relación al tratamiento ofrecido por el sistema de salud pública, hubo críticas, poca información y acceso limitado. Además de la ausencia de conocimiento sobre las estrategias de reducción de daños. Los consumidores de crack reportaron sentimientos de estigma, discriminación y prejuicios, vivenciados inclusive en la relación con los profesionales de la salud, siendo estos factores importantes que dificultan el acceso de esta población a la red de atención.

Palabras clave:
Cocaína crack; Terapéutica; Trastornos Relacionados con el uso de sustancias; Población en situación de calle

Abstract

The homeless crack users are neglected in Brazil. The goal of this study was to approach this population in order to understand their access/use of health services to the treatment of drug addiction. This is a qualitative research consisting of 26 individual interviews and one focal group with five crack users living in the streets of a city of Baixada Santista/SP. The analysis of this study revealed that the treatment offered by therapeutic communities is the best known, but it is not effective for this population. Regarding the treatment offered by the public health system, there were criticism, little information and limited access, and a lack of knowledge about harm reduction strategies. The crack users reported feelings of stigma, discrimination and prejudice, feelings which were experienced also in their relation with health professionals, being these important factors that hinder the access of this population to the care and health system.

Keywords:
Crack cocaine; Therapeutics; Substance-Related disorders; Homeless

Introdução

O abuso e a dependência de álcool e outras drogas, incluindo o crack, resultam em danos físicos, psíquicos e sociais para os usuários (Jorge, Quinderé, Yasui, & Albuquerque, 2013Jorge, M. S. B., Quinderé, P. H. D., Yasui, S., & Albuquerque, R. A. (2013). Ritual de consumo do crack: aspectos socioantropológicos e repercussões para a saúde dos usuários. Ciência & Saúde Coletiva , 18(10), 2909-2918.). O rápido aumento do consumo de crack, a partir da década de 1990 (Ramiro, Padovani, & Tucci, 2014Ramiro, F. D. S., Padovani, R. D. C., & Tucci, A. M. (2014). Consumo de crack a partir das perspectivas de gênero e vulnerabilidade: uma revisão sobre o fenômeno. Saúde em Debate, 38(101), 379-392.), somado à lacuna assistencial na execução das políticas públicas de saúde para a questão das drogas (Andrade, 2011Andrade, T. (2011). Reflexões sobre políticas de drogas no Brasil.Ciência & Saúde Coletiva,16(12), 4665-4674. https://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232011001300015
https://doi.org/10.1590/S1413-8123201100...
; Pitta, 2011Pitta, A. M. F. (2011). Um balanço da Reforma Psiquiátrica Brasileira: Instituições, Atores e Políticas. Ciência & Saúde Coletiva , 16(12), 4579-4589.) e à tendência de manutenção de uma racionalidade conservadora proibicionista, centrada na perspectiva norte-americana de “Guerra às Drogas” (Santos & Oliveira, 2012Santos, J. A. T. & Oliveira, M. L. F. (2012). Políticas públicas sobre álcool e outras drogas: breve resgate histórico. Journal of Nursing & Health, 1(2), 82-93.), têm incrementado a gravidade dos danos associados ao consumo dessa substância, tornando os usuários mais visíveis e estigmatizados, o que agrava suas condições de vulnerabilidade, especialmente nas parcelas menos privilegiadas da população (Romanini & Roso, 2012Romanini, M. & Roso, A. (2012). Mídia e Crack: Promovendo Saúde ou Reforçando Relações de Dominação? Psicologia, Ciência, & Profissão, 32(1), 82-97.; Ronzani, Noto, & Silveira, 2014Ronzani, T. M., Noto, A. R., & Silveira, P. S. (2014). Reduzindo o estigma entre usuários de drogas: guia para profissionais e gestores. Juiz de Fora, MG: UFJF.).

Os dados do censo de 2007 (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome [MDS], 2008Ministério do Desenvolvimento Social e de Combate à Fome - MDS. (2008). Pesquisa nacional sobre a população em situação de rua. Brasília, DF Autor.), única pesquisa nacional censitária e por amostragem da População em Situação de Rua (PSR), realizada pelo governo, apontaram que os principais motivos pelos quais essas pessoas passaram a viver e morar na rua eram problemas associados ao alcoolismo e/ou drogas (35,5%), ao desemprego (29,8%) e às desavenças com pai/mãe/irmãos (29,1%). Grande parte dos entrevistados (60%) apresentou histórico de internação em instituições, com destaque para os centros de recuperação de dependentes químicos (28,1%). Na cidade de São Paulo, a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, da Universidade de São Paulo, realizou alguns censos com a PSR nos anos de 2000, 2009, 2011 e 2015. Os dados revelaram aumento dessa população de 8.706, em 2000, para 15.905, em 2015, ou seja, o número de pessoas vivendo em situação de rua na cidade de São Paulo praticamente dobrou em 15 anos (FIPE, 2015Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas - FIPE & Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social-SMADS/ Prefeitura de São Paulo. (2015). Censo da População em Situação de Rua da cidade de São Paulo, 2015: Resultados. Recuperado de http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/assistencia_social/observatorio_social/2015/censo/FIPE_smads_CENSO_2015_coletivafinal.pdf
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/s...
). O último senso aponta o perfil dessa população, sendo a maioria do sexo masculino (82%) e adulto, com idade entre 31 a 49 anos (36,6%).

Em 2010, a FIPE realizou uma pesquisa sobre o perfil socioeconômico da PSR da área central da cidade de São Paulo. O estudo entrevistou 526 pessoas. Na faixa etária entre 18 e 30 anos, o consumo de álcool e outras drogas foi de 47,7%; na faixa etária entre 31 e 49 anos, foi de 26,1%; e entre aqueles com mais de 50 anos, foi de 9,5%. Em todas as faixas etárias, o uso do crack foi maior do que o de maconha, alcançando o maior índice na população com idade entre 18 e 30 anos, chegando a atingir 53,7% dos usuários. A pesquisa ainda mostrou que quase metade dessa população nunca esteve internada em nenhuma instituição (47%); 26,8%, já esteve em alguma espécie de casa de detenção e 25,1%, em centros de recuperação para dependentes químicos (Comunidades Terapêuticas - CT) (Schor & Vieira, 2010Schor, S. M. & Vieira, M. A. C. (2010). Principais resultados do perfil socioeconômico da população de moradores de rua da Área Central da cidade de São Paulo - 2010. São Paulo: Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE); Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo. ).

Apesar do uso de crack ser menor nos levantamentos domiciliares, nota-se que, quando tomadas parcelas específicas da população, como o caso da PSR, o uso dessa droga tem sido muito maior, e pode estar relacionado tanto às condições de vulnerabilidade que levaram à situação de rua quanto as que contribuem para a manutenção do consumo da droga. Assim, existe a necessidade de novos estudos e levantamentos com a PSR para entender as complexas relações entre estar em situação de rua e ser usuário de drogas.

Com relação ao tratamento para a dependência de drogas, ofertado pelo Ministério da Saúde (MS), nota-se um rol de possibilidades de serviços que oferecem algum tipo de tratamento, alocados numa Rede de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e de Outras Drogas (Silveira et al., 2003Silveira, C., Doneda, D., Gandolfi, D., Hoffmann, M. C., Macedo, P., Delgado, P. G., Benevides, R., & Moreira, S. (2003). Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas.Jornal Brasileiro de Psiquiatria,52(5), 349-354.). O aparato organizativo central da rede é o Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (CAPSad), dispositivo com funcionamento ambulatorial de hospital-dia e/ou com leitos de internação, com funcionamento 24 horas. Além de realizar um trabalho interdisciplinar e integral, dentro da lógica de Redução de Danos (RD), o CAPSad deve oferecer cuidado aos familiares dos usuários e promover sua reinserção social, utilizando recursos intersetoriais, ou seja, organizando e articulando toda a rede de atenção para essa população junto aos outros setores, tais como assistência social, educação e justiça. Outros dispositivos da rede são os serviços da atenção primária (Unidades Básicas de Saúde, Estratégia de Saúde da Família, Núcleo de Apoio à Saúde da Família e Consultórios na Rua), da atenção terciária (Prontos-Socorros e Hospitais Gerais), Unidades de Acolhimento e Serviços Residenciais Terapêuticos (Residências Transitórias e Comunidades Terapêuticas).

Apesar do rol de possibilidades de serviços ofertados por esta rede, grande parte das ofertas de cuidado é desenvolvida no interior de instituições de saúde, e suas abordagens terapêuticas são focadas na abstinência total como objetivo único do tratamento (Andrade, 2011Andrade, T. (2011). Reflexões sobre políticas de drogas no Brasil.Ciência & Saúde Coletiva,16(12), 4665-4674. https://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232011001300015
https://doi.org/10.1590/S1413-8123201100...
; MS, 2010Ministério da Saúde. (2010). Consultórios de Rua do SUS: material de trabalho para a II Oficina Nacional de Consultórios de Rua do SUS. Brasília, DF: MS/Coordenação Nacional de Saúde Mental/EPJN-FIOCRUZ. ). Esse modelo de atenção, somado às barreiras no acesso aos serviços encontrados pela população usuária de álcool e outras drogas em situação de rua, têm limitado ainda mais a busca de tratamento por esses usuários, assim como favorece a exclusão dessa população das ações de assistência e prevenção (Jorge & Corradi-Webster, 2012Jorge, J. S. & Corradi-Webster, C. M. (2012). Consultório de Rua: Contribuições e Desafios de uma Prática em Construção.Saúde & Transformação Social, 3(1), 39-48.). Assim, para contribuir com o conhecimento nessa área, o objetivo desse estudo foi avaliar o acesso aos tratamentos oferecidos para a dependência de drogas para os usuários de crack em situação de rua, ou seja, a partir da percepção dessa população, compreender as barreiras e dificuldades no acesso aos serviços que oferecem algum tipo de tratamento para a dependência de crack.

Método

Sabendo-se que a abordagem qualitativa auxilia na identificação de práticas comportamentais emergentes (Clatts, Welle, Goldsamt, & Lankenau, 2002Clatts, M. C., Welle, D. L., Goldsamt, L. A., & Lankenau, S. E. (2002). An ethno-epidemiological model for the study of trends in illicit drug use: reflections on the “emergence” of crack injection. International Journal of Drug Policy, 13(1), 285-295.), facilitando a descoberta de seus nexos e dimensões, tornou-se, na presente pesquisa, a melhor opção metodológica à investigação sobre como os usuários de crack em situação de rua compreendem o acesso aos tratamentos oferecidos para a dependência de drogas e as barreiras e dificuldades no acesso a esses. Além disto, a metodologia qualitativa, aplicada à saúde, busca entender o significado individual ou coletivo das problemáticas associadas ao processo de adoecimento na vida das pessoas. O significado tem função estruturante em torno do qual as coisas significam e de como as pessoas organizam de certo modo suas vidas, incluindo seus próprios cuidados com a saúde (Turato, 2005Turato, E. R. (2005). Métodos qualitativos e quantitativos na área da saúde: definições, diferenças e seus objetos de pesquisa. Revista de Saúde Pública , 39(3), 507-514.).

Participantes

Neste estudo, foi utilizada uma amostra intencional. Os critérios de inclusão foram: usuários ou ex-usuários de crack de ambos os sexos, com idade superior a 18 anos, que se encontravam em situação de rua, ou em tratamento, e que faziam uso da droga em um dos municípios da Baixada Santista. Entre aqueles que estavam em tratamento, foram considerados participantes desse estudo apenas aqueles que, no momento anterior à entrada no tratamento, foram identificados como estando em situação de rua. Esclarece-se que os usuários que estavam em situação de rua e em tratamento no CAPSad do município onde a coleta de dados foi realizada foram convidados a participar do estudo. No entanto, apesar da pesquisadora ter permanecido por vários dias diferentes no equipamento, não houve interessados que preenchessem os critérios de inclusão para a participação no estudo.

O critério para ser usuário e ex-usuário, nesse estudo, foi ter consumido crack por no mínimo um ano, evitando-se a inclusão de iniciantes. Foram excluídos da amostra os usuários que estavam, no momento da entrevista, sob o efeito da droga ou com sintomas de abstinência da droga que impedissem a realização da mesma. Assim, a amostra foi composta por 31 usuários de crack, sendo 21 homens, dos quais 16 participaram da entrevista individual e cinco do grupo focal, e 10 mulheres que participaram da entrevista individual.

Locais da coleta de dados

Os usuários foram recrutados em locais distintos: (a) em uma Instituição Filantrópica (IF), associação que recebe moradores de rua para alimentação, banho e outros serviços, incluindo alfabetização, bastante frequentada por usuários de drogas em situação de rua; (b) nos principais locais públicos de concentração para compra e uso da droga no referido município; e (c) Em uma CT da região, um centro de apoio e recuperação de dependentes de drogas. A CT foi incluída como local de coleta de dados em razão de ter sido citada por vários usuários que foram entrevistados na instituição filantrópica e mesmo por aqueles que foram entrevistados nos locais públicos de uso da droga. Além disso, essa CT era a instituição de referência para a internação dessa população na Baixada Santista.

Instrumentos

Foram adotados como instrumentos de coleta de dados a entrevista semiestuturada individual, baseada em roteiro pré-elaborado e o grupo focal, também baseado em roteiro pré-elaborado (Minayo, 2010Minayo, M. C. S. (2010). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec/Abrasco.). A diferença entre a entrevista individual e o grupo focal consiste no fato de esse último ocorrer por meio da interação de indivíduos. Nesse estudo, o objetivo da utilização do grupo focal foi obter alguns dados que a entrevista individual não propiciou, mas que eram importantes na compreensão do acesso ao tratamento pelos usuários de drogas em situação de rua. Dessa maneira, a pesquisadora criou um ambiente favorável para a discussão do tema, o qual proporcionou aos participantes a manifestação de suas percepções e pontos de vista (Minayo, 2010).

Foram realizadas 26 entrevistas individuais e um grupo focal, com a participação de cinco usuários de crack do sexo masculino. As entrevistas foram conduzidas individualmente, em uma única sessão, tiveram a duração de aproximadamente 60 minutos e foram gravadas na íntegra, com o consentimento dos usuários. O grupo focal teve a duração aproximada de 150 minutos.

Procedimentos

A pesquisadora compareceu aos locais da pesquisa em diferentes dias e horários para aproximação ao público-alvo e tentativa de agendamento das entrevistas. Na IF e na CT, a seleção dos participantes foi mediada pelas dirigentes das instituições, e as entrevistas ocorreram nos próprios locais, em datas e horários previamente agendados, e em salas reservadas para as entrevistas, para a garantia do sigilo das informações coletadas e dos cuidados éticos envolvidos. Já nos locais públicos de concentração para compra e uso da droga, a pesquisadora recebeu auxílio de informantes-chave, e os usuários eram abordados diretamente pelos informantes-chave e pela pesquisadora. Após serem convidados e aceitarem participar do estudo, os entrevistados foram conduzidos para locais adequados próximos, como um banco de uma praça pública ou salas de Unidades Básicas de Saúde para maior detalhamento da pesquisa e realização da entrevista no mesmo dia ou em dia agendado.

O grupo focal foi realizado em sala da IF, após o término das entrevistas individuais, com o objetivo de aprofundar questões específicas a respeito do tratamento para a dependência química e, a partir da interação do grupo, identificar os diferentes pontos de vista e os consensos.

Em todos os locais de coleta de dados, mencionados anteriormente, os critérios de definição dos participantes foram a disponibilidade e a motivação do usuário para participar da entrevista nos dias em que a pesquisadora esteve no campo. A pesquisadora não teve qualquer contato com os usuários fora do local da coleta de dados e manteve postura séria, ética e de confiabilidade durante as entrevistas, as quais ocorreram sem intercorrências e foram gravadas integralmente. Além disso, a pesquisadora se manteve o mais parcial possível, sem emitir opiniões pessoais acerca dos conteúdos explorados ao longo das entrevistas.

Análise de dados

Durante a transcrição, cada entrevista foi identificada com um código alfanumérico, significando, pela ordem: sexo do entrevistado, idade e iniciais do nome. Após a codificação, cada participante recebeu um nome fictício, para facilitar a associação dos nomes com as falas pelo leitor. Após a transcrição de todo o material, os dados foram examinados segundo a Análise de Conteúdo de Bardin (2011Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70.), a qual utiliza-se de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, acrescentados da produção de inferências, as quais resultam em categorias temáticas de análise. As categorias de análise estabelecidas foram: (a) Comunidades Terapêuticas: o tratamento mais acessado; (b) Acesso aos demais serviços e barreiras encontradas; (c) Estigma, discriminação e preconceito: as maiores barreiras.

Questões éticas

A pesquisa cumpriu os princípios éticos contidos nas Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos (Resolução CNS, 196/96), sendo aprovada pelo Comitê de Ética da universidade (parecer nº 990.516). A participação na pesquisa foi voluntária e realizada apenas quando o participante concordou e assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Resultados e discussão

Caracterização dos participantes

A Tabela 1 mostra as principais características dos 31 entrevistados nesse estudo. A maior parte deles era do sexo masculino (N=22), com idade entre 25 e 37 anos (N=20), encontrava-se solteiro ou separado (N=19), analfabeto ou com ensino fundamental incompleto (N=14), religião de origem cristã (católicos e evangélicos) (N=15) e fazia uso de crack há pelo menos cinco anos (N=27), sendo que mais da metade já consumia a droga há pelo menos 10 anos (N=14). Em relação aos locais onde foram realizadas as entrevistas, a maioria ocorreu na IF (N=21).

Tabela 1:
Caracterização dos participantes do estudo

Com relação ao histórico de tratamento para dependência de drogas, 11 relataram já terem feito algum tipo de tratamento, 11 nunca fizeram tratamento, e quatro estavam em tratamento no momento da pesquisa. Dos que estavam em tratamento, todos eram homens, devido ao local onde foram realizadas as entrevistas ser uma CT exclusiva para homens. Com relação ao tipo de tratamento realizado, as CT foram as mais citadas, tendo sido utilizadas por 10 usuários. Somente dois usuários já tinham realizado o tratamento no CAPSad em momento anterior ao presente estudo, e um usuário tinha sido internado em hospital psiquiátrico. Dos 10 usuários que fizeram o tratamento nas CT, seis foram internados somente uma vez, e somente um completou o tratamento proposto de nove meses, sendo que dos 10 usuários já internados em CT, o tempo de permanência no local foi por volta três meses, ou seja, abandonaram o tratamento antes de sua conclusão.

As categorias temáticas estabelecidas e que serão apresentadas a seguir são: (a) Comunidades terapêuticas: o tratamento mais acessado; (b) Acesso aos demais serviços e barreiras encontradas; (c) Estigma, discriminação e preconceito: as maiores barreiras.

Comunidades Terapêuticas: o tratamento mais acessado

Os dados revelam que, apesar do rol de opções de tratamentos para a dependência de drogas no Brasil, o tratamento em CT foi o mais acessado pelos usuários de crack em situação de rua. Com o crescimento do consumo de crack no Brasil, houve uma expansão considerável desses serviços no país, que chegam a ser responsáveis pelo tratamento de mais da metade dos usuários, podendo chegar a 80% em algumas regiões. Supõe-se que isto venha ocorrendo, principalmente, devido à disponibilidade insuficiente de dispositivos vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS) como, por exemplo, leitos hospitalares e CAPSad (Damas, 2013Damas, F. B. (2013). Comunidades Terapêuticas no Brasil: expansão, institucionalização e relevância social.Revista de Saúde Pública de Santa Catarina, 6(1), 50-65.). Por outro lado, vem ocorrendo aumento do financiamento público dessas instituições, mesmo sendo um modelo questionado por especialistas, em decorrência tanto da falta de um tratamento técnico adequado como por esse não estar pautado na reabilitação psicossocial e, assim, favorecer a exclusão social. Além disso, tais instituições apresentam um tratamento pautado na lógica proibicionista e religiosa, que tem a abstinência como único resultado almejado e aceito, ou seja, uma ideologia moralista e que exclui a redução de danos como estratégia de cuidado aos usuários de drogas. Tais características têm sido reforçadas por parte do governo, favorecendo o recrudescimento do entendimento do uso de substâncias psicoativas pelas vertentes moralista e conservadora (Pereira et al., 2017Pereira, M. O., Oliveira, M. A. F., Pinho, P. H., Claro, H. G., Garcia, H., Gonçalves, A. M., & Reinaldo, A. M. S. (2017). What is the emphasis of Brazilian drug policy: resocialization or internment?Escola Anna Nery[online], 21(3), 1-9.).

Na tentativa de regulamentar o funcionamento das CT no Brasil, ou seja, evitar a má qualidade do atendimento prestado e a inadequação dos estabelecimentos, foi editada a Resolução RDC 101/2001. No entanto, a comparação entre a nova RDC 29/2011 e a antiga RDC 101/2001 aponta para maior fragilidade do trabalho ofertado pelas CT, como, por exemplo, a não necessidade de fiscalização pela vigilância sanitária, por essas terem sido descaracterizadas como uma instituição de saúde, passando para a área de assistência. Na resolução atual ainda não há necessidade de se apresentar um programa terapêutico nem de aprovação de infraestrutura mínima (ANVISA, 2011Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA. (2011). Nota Técnica n. 1, de 15 de julho de 2011. Esclarecimentos e orientações sobre o funcionamento de instituições que prestem serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas. Recuperado de http://portal.anvisa.gov.br/documents/33852/271858/Nota+t%C3%A9cnica+n%C2%BA+01+de+2011/fe65a47c-ae23-4cd6-a9be-bef63d0d30f9
http://portal.anvisa.gov.br/documents/33...
). As CT são definidas como instituições que prestam serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas (DSP), em regime de residência. O principal instrumento terapêutico utilizado para o tratamento nessas instituições é a convivência entre os pares, com diversos “métodos” de tratamento, tais como: espiritualidade; laborterapia, disciplina; duração prolongada; e para qualquer situação e tipo de DSP (Damas, 2013Damas, F. B. (2013). Comunidades Terapêuticas no Brasil: expansão, institucionalização e relevância social.Revista de Saúde Pública de Santa Catarina, 6(1), 50-65.).

Os resultados deste estudo revelam diversas críticas dos participantes relacionadas ao tratamento oferecido nas CT, principalmente a relacionada ao modelo de abstinência total, como pode ser notado nas falas de José: “Já fugi muitas vezes dessa casa de recuperação ... várias vezes! E teve um dia que eu não aguentei, fazer o quê? Abstinência total!” e de Guilherme: “Fiquei dois meses internado, tava com o saco cheio, à flor da pele, sem beber, sem fumar nem nada”. Nota-se, no discurso desses usuários, que esse modelo de abstinência total pode estar relacionado ao alto índice de abandono do tratamento. Como o tratamento ofertado pelas CT, normalmente, tem duração prolongada, planejado em algumas fases, o abandono nos primeiros meses do tratamento implica, principalmente, em prejuízos para o usuário, já que não conclui todas as fases, sendo que a fase que tem como objetivo a ressocialização do usuário está inserida dentro dos três últimos meses dos nove meses, tempo do tratamento completo em tais instituições (De Leon, 2008De Leon G. (2008). A Comunidade Terapêutica: teoria, modelo e método. São Paulo: Edições Loyola. ). A usuária Taís revela em sua fala “O tratamento em si é psicológico, entendeu? ... a luta é você não usar aqui na rua”, ou seja, mostra a ausência de qualquer habilidade para fazer uso controlado da substância em contexto social.

O Manual para o Tratamento da Dependência de Drogas nas CT na Europa, elaborado pela European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction (EMCDDA) (Vanderplasschen, Vandevelde, & Broekaert, 2014Vanderplasschen, W., Vandevelde, S., & Broekaert, E. (2014). Therapeutic communities for treating addictions in Europe: Evidence, current practices and future challenges. European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction [EMCDDA]. doi:10.2810/25291.
https://doi.org/10.2810/25291...
), faz alerta em relação ao tempo prolongado de tratamento, que aumentaria a possibilidade de abandono, e que esta modalidade deve ser ofertada para os dependentes de drogas com múltiplos e graves problemas relacionados ao uso da substância, sugerindo menor duração, utilização de técnicas comprovadas cientificamente e treino em habilidades de recusa da oferta de drogas na comunidade, corroborando com a fala acima da usuária Taís

O uso prejudicial de drogas é maior entre aqueles que não completam o tratamento quando comparados aos que completam (Fernández-Montalvo, López, Illescas, Landa, & Lorea, 2008Fernández-Montalvo, J., López, J. J., Illescas, C., Landa, N., & Lorea, I. (2008). Evaluation of a therapeutic community treatment program: A long-term follow-up study in Spain. Substance Use & Misuse, 43(10), 1362-1377.). No entanto, segundo Dekel, Benbenishty e Amram (2004Dekel, R., Benbenishty, R., & Amram, Y. (2004). Therapeutic communities for drug addicts: Prediction of long-term outcomes. Addictive Behaviors, 29(1), 1833-1837.), o não uso de substâncias, após a alta do tratamento em CT, ocorreu entre indivíduos que apresentavam autoestima elevada e autocontrole. Assim, os maiores benefícios do tratamento em CT poderiam estar relacionados a esses fatores e não aos aspectos espirituais e religiosos. Tais aspectos estiveram presentes nas falas dos usuários também como algo crítico, como revela o usuário Marcelo: “Sendo bem franco, eu acho que vai ser difícil eu chegar no final do tratamento ... eles enfiam religião goela abaixo, eles ensinam trabalho, eu já cuidei de porco, de galinha, de vaca, eu não gosto de animal!”.

Estudos científicos sobre a eficácia dos tratamentos de base espiritual ou religiosa para a reabilitação de usuários de drogas que são oferecidos nas CT são escassos na bibliografia (Fiestas & Ponce, 2012Fiestas, F. & Ponce, J. (2012). Eficacia de las comunidades terapéuticas en el tratamiento de problemas por uso de sustancias psicoactivas: una revisión sistemática. Revista Peruana de Medicina Experimentale y Salud Publica. 29(1), 12-20.). No Brasil, a intervenção religiosa na recuperação de dependentes de drogas utiliza alguns recursos terapêuticos, como a oração e a fé. No entanto, o principal fator que vincula os usuários a esses tratamentos parece ser o acolhimento recebido, o que resulta na valorização pessoal, aumento da autoestima, identificação com o grupo e aceitação da espiritualidade, ou seja, o usuário encontra o suporte social que necessita (Sanchez & Nappo, 2008Sanchez, Z. V. D. M. & Nappo, S. A. (2008). Intervenção religiosa na recuperação de dependentes de drogas. Revista de Saúde Pública, 42(2), 265-272.). Segundo as autoras citadas, a oração funcionaria como método ansiolítico, e a fé como instrumento principal de conversão do indivíduo, ou seja, está relacionada à necessidade de reestruturação da vida e aumento da autoestima (Sanchez & Nappo). No entanto, a escolha do usuário de drogas pelo tratamento de base espiritual se dá, na maioria das vezes, por se ser gratuito e imediato e, muitas vezes, a única opção disponível.

Outra crítica bastante frequente trazida pelos usuários que não concluíram o tratamento está relacionada ao regime “disciplinar” adotado por grande parte das CT, traduzido em excesso de normas e regras impostas de maneira autoritária, coerciva e compulsória, como revelam Renato: “Eles querem colocar um regime militar lá dentro, mas não conseguem. Quanto mais você prender o paciente, mais ele quer fugir”.

Damas (2013Damas, F. B. (2013). Comunidades Terapêuticas no Brasil: expansão, institucionalização e relevância social.Revista de Saúde Pública de Santa Catarina, 6(1), 50-65.) traça uma analogia entre as CT e as instituições totais, apontando que ambas instituições, na tentativa de controlar o indivíduo, podem torná-lo temporariamente incapaz de enfrentar alguns aspectos de sua vida diária, principalmente pela mudança de seus esquemas culturais. Assim, cabe ressaltar que entre as estratégias utilizadas nessas instituições para que o usuário alcance a tão almejada abstinência total, proposta única de tratamento das CT, estão práticas coercivas e autoritárias, as quais geram impactos sociais negativos e violam os direitos de tais usuários, assim como normalizam tais estratégias dentro do contexto de cuidado.

Estudos de revisão sistemática que avaliaram a eficácia do tratamento oferecido pelas CT mostram que o uso de substância tende a diminuir durante o período de tratamento, porém, após o término do tratamento, os episódios de uso com danos e riscos são frequentes e os benefícios do tratamento são incertos (Malivert, Fatséas, Denis, Langlois, & Auriacombe, 2012Malivert, M., Fatséas, M., Denis, C., Langlois, E., & Auriacombe, M. (2012). Effectiveness of Therapeutic Communities: A Systematic Review. European Addiction Research. 18(1), 1-11.). Poucos estudos mostraram aumento no tempo de abstinência da droga e diminuição de atividades ilegais/ilícitas na vida do indivíduo, com alguma melhora nos aspectos sociais relacionados ao emprego/trabalho e no funcionamento psicológico (Vanderplasschen et al., 2014Vanderplasschen, W., Vandevelde, S., & Broekaert, E. (2014). Therapeutic communities for treating addictions in Europe: Evidence, current practices and future challenges. European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction [EMCDDA]. doi:10.2810/25291.
https://doi.org/10.2810/25291...
). Os estudos apontam que não há nenhuma evidência para apoiar a superioridade das CT sobre outros tipos de tratamento para o uso de drogas (Fiestas & Ponce, 2012Fiestas, F. & Ponce, J. (2012). Eficacia de las comunidades terapéuticas en el tratamiento de problemas por uso de sustancias psicoactivas: una revisión sistemática. Revista Peruana de Medicina Experimentale y Salud Publica. 29(1), 12-20.; Vanderplasschen et al., 2014) e que uma CT pode ser mais benéfica somente quando comparada ao contexto de uma prisão (Fiestas & Ponce). Além disso, esses estudos revelam haver também novos modelos de CT que incluem tratamentos mais estruturados, com a participação de profissionais de saúde mental, e que os cuidados pós-tratamento são responsáveis por melhor recuperação, sugerindo abordagens de tratamento com cuidados continuados.

Acesso aos demais serviços e barreiras encontradas

A infrequente procura por cuidado ou tratamento, o baixo acesso e até mesmo a exclusão dos indivíduos usuários de drogas de qualquer tipo de tratamento são bastante apontados na bibliografia científica (Jorge et al., 2013Jorge, M. S. B., Quinderé, P. H. D., Yasui, S., & Albuquerque, R. A. (2013). Ritual de consumo do crack: aspectos socioantropológicos e repercussões para a saúde dos usuários. Ciência & Saúde Coletiva , 18(10), 2909-2918.; Passos & Souza, 2011Passos, E. H. & Souza, T. P. (2011). Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas”. Psicologia & Sociedade , 23(1), 154-162.; Ramiro et al., 2014Ramiro, F. D. S., Padovani, R. D. C., & Tucci, A. M. (2014). Consumo de crack a partir das perspectivas de gênero e vulnerabilidade: uma revisão sobre o fenômeno. Saúde em Debate, 38(101), 379-392.; Silveira, 2010Silveira, P. S. (2010). Estigmatização do uso de álcool e outras drogas entre profissionais de saúde de Juiz de Fora. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Juiz de Fora, MG.; Wenzel et al., 2001Wenzel, S. L., Burnam, A., Koegel, P., Morton, S. C., Miu, A., Jinnett, K. J., & Sullivan, J. G. (2001). Access to Inpatient or Residential Substance Abuse Treatment Among Homeless Adults With Alcohol or Other Drug Use Disorders. Medical Care, 39(11), 1158-1169.) e em documentos do governo (MDS, 2008Ministério do Desenvolvimento Social e de Combate à Fome - MDS. (2008). Pesquisa nacional sobre a população em situação de rua. Brasília, DF Autor.; MS, 2010Ministério da Saúde. (2010). Consultórios de Rua do SUS: material de trabalho para a II Oficina Nacional de Consultórios de Rua do SUS. Brasília, DF: MS/Coordenação Nacional de Saúde Mental/EPJN-FIOCRUZ. , 2012Ministério da Saúde. (2012). Manual sobre o cuidado à saúde junto a população em situação de rua. Brasília: MS/Secretaria de Atenção à Saúde/Departamento de Atenção.). Uma das hipóteses é a escolha do modelo político adotado pelo governo brasileiro para lidar com a questão das drogas, centrado no proibicionismo e marcado por repressão, criminalização e psiquiatrização (Andrade, 2011Andrade, T. (2011). Reflexões sobre políticas de drogas no Brasil.Ciência & Saúde Coletiva,16(12), 4665-4674. https://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232011001300015
https://doi.org/10.1590/S1413-8123201100...
; Pitta, 2011Pitta, A. M. F. (2011). Um balanço da Reforma Psiquiátrica Brasileira: Instituições, Atores e Políticas. Ciência & Saúde Coletiva , 16(12), 4579-4589.; Santos & Oliveira, 2012Santos, J. A. T. & Oliveira, M. L. F. (2012). Políticas públicas sobre álcool e outras drogas: breve resgate histórico. Journal of Nursing & Health, 1(2), 82-93.). Porém, principalmente, nas duas últimas décadas, aconteceram mudanças significativas nesse cenário político, as quais passaram a reconhecer a questão da droga como um flagelo de natureza multifatorial, e não apenas no âmbito da justiça-penal, tornando o campo mais aberto às medidas de prevenção, tratamento e reinserção social do usuário de drogas, com destaque para as políticas públicas do setor da saúde que adotaram a estratégia de redução de danos em todos os níveis de tratamento (Andrade, 2011; Pitta, 2011; Santos & Oliveira, 2012). Assim, nos últimos anos, destaca-se a ampliação dos dispositivos centrais na saúde mental para a clientela específica usuária de drogas, os CAPSad, e a criação de novo dispositivo de atenção para a PSR usuária de droga, como os Consultórios na Rua (MS, 2010Ministério da Saúde. (2010). Consultórios de Rua do SUS: material de trabalho para a II Oficina Nacional de Consultórios de Rua do SUS. Brasília, DF: MS/Coordenação Nacional de Saúde Mental/EPJN-FIOCRUZ. ), além de maiores investimentos em capacitação profissional, principalmente na modalidade EaD, como o SUPERA (Sistema para detecção do Uso abusivo e dependência de substâncias Psicoativas: Encaminhamento, intervenção breve, Reinserção social e Acompanhamento), promovido pela SENAD, do Ministério da Justiça (MJ) e oferecido, gratuitamente, por meio da parceria com a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

A redução de danos é uma estratégia de produção de saúde alternativa às estratégias pautadas na lógica da abstinência, incluindo a diversidade de demandas e ampliando as ofertas em saúde para usuários de drogas (Passos & Souza, 2011Passos, E. H. & Souza, T. P. (2011). Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas”. Psicologia & Sociedade , 23(1), 154-162.). Ela tem como objetivo minimizar as consequências adversas provenientes do uso e abuso de substâncias psicoativas, tendo como princípios fundamentais o respeito à liberdade de escolha do indivíduo e o acesso aos serviços de saúde. Já os Consultórios na Rua são dispositivos móveis da atenção básica, na modalidade de atendimento extramuros, no próprio contexto da rua, que oferecem cuidados em saúde para a PSR, também pautados na estratégia de redução dos danos. Seus princípios fundamentais são: ampliar o acesso e fortalecer a rede de atenção à saúde da PSR, incluindo os usuários de drogas que se encontram nessa situação, preservando o respeito ao contexto sociocultural desses indivíduos, com potencial para se transformar numa oportunidade de tratamento, principalmente pela questão do vínculo estabelecido entre a equipe de saúde e os usuários (Silva, Frazão, & Linhares, 2014Silva, F. P., Frazão, I. S., & Linhares, F. M. P. (2014). Práticas de saúde das equipes dos Consultórios de Rua. Cadernos de Saúde Pública, 30(4), 805-814.).

Pesquisa realizada nos Estados Unidos, com a PSR usuária de drogas, revela alta porcentagem de indivíduos que estão excluídos de qualquer tipo de tratamento e elevadas necessidades em saúde mental - mais de 50% da amostra (Brubaker, Amatea, Torres-Rivera, Miller, & Nabors, 2013Brubaker, M. D., Amatea, E. A., Torres-Rivera, E., Miller, M. D., & Nabors, L. (2013). Barriers and Supports to Substance Abuse Service Use Among Homeless Adults. Journal of Addictions & Offender Counseling, 34(1), 81-98. doi:10.1002/j.2161-1874.2013.00017.x
https://doi.org/10.1002/j.2161-1874.2013...
). Aponta também que as principais barreiras no tratamento são: a falta de seguro saúde para os tratamentos para a dependência de drogas; a falta de habitação; a dificuldade de obter informações a respeito dos programas existentes e como acessá-los; o tempo de espera para o início do tratamento; a falta de qualidade nos cuidados recebidos; o excesso de encaminhamento; a falta de serviços que cuidem dos filhos para que o usuário possa trabalhar; a falta de recursos básicos para obter o tratamento (transporte, trabalho, dinheiro, tempo) e a vivência de sentimentos de estigma.

O presente estudo corrobora com os estudos na área já mencionados, apontando um reduzido número de usuários que já acessaram o CAPSad no município de coleta de dados. Os usuários que não acessaram esse dispositivo central na rede relataram desconhecer o serviço ou o excesso de burocracias e protocolos para conseguir iniciar o tratamento, como revelado nas falas das usuárias Lígia: “Você já frequentou o CAPSad? - Nem sei onde é isso!”; e Taís: “... não comecei ainda porque eu tô sem o meu RG. [Preciso] Tirar documento pra poder começar”. Também citada como outra barreira no acesso ao CAPSad, a medicalização é a principal estratégia terapêutica adotada por esses serviços. Os usuários relatam excesso de medicamentos e receio de seus efeitos colaterais, principalmente quando combinadas com o uso de drogas, como percebe-se nas falas de Daniel: “...eu tomava 10 comprimidos por dia, fica grogue”. e de Pedro: “Vejo vários caras indo lá no CAPSad e eles tomam remédio e depois mistura com a droga e com a cachaça e fica louco, fica bobo da cabeça... eu tenho medo disso”.

Receber medicação parece não ser a maior motivação dos usuários de crack que buscam tratamento no Brasil, contrastando com o estudo de revisão sistemática realizado na França, que aponta que os usuários só buscam tratamentos psicossociais ou internações em CT porque não existe medicação eficaz para a dependência de droga (Malivert et al., 2012Malivert, M., Fatséas, M., Denis, C., Langlois, E., & Auriacombe, M. (2012). Effectiveness of Therapeutic Communities: A Systematic Review. European Addiction Research. 18(1), 1-11.). Ao contrário, os usuários de crack brasileiros procuram um serviço que ofereça um espaço de escuta, que vem de encontro à Política Nacional de Humanização (MS, 2004Ministério da Saúde - MS. (2004). HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização. A Humanização como Eixo Norteador das Práticas de Atenção e Gestão em Todas as Instâncias do SUS. Brasília, DF: Autor. ), pouco executada, como se pode notar na fala do usuário Tiago: ...Eu não fui lá ainda, mas pelo que as pessoas falam, você tem que beber remédio. Não é isso que a gente tá procurando... A gente quer ser escutado por alguém.

A execução das intervenções previstas nos documentos das políticas públicas de saúde mental são frágeis, com destaque para a dificuldade na consolidação das seguintes ações: busca ativa, disponibilidade de atividades de lazer e de trabalho e intervenções baseadas nas estratégias de redução de danos, sinalizando a necessidade de maior atuação dos equipamentos nos espaços comunitários (Souza, Kantorski, Luis, & Oliveira, 2012Souza, J., Kantorski, L. P., Luis, M. A. V., & Oliveira, N. F. (2012). Intervenções de saúde mental para dependentes de álcool e outras drogas: das políticas à prática cotidiana. Texto Contexto Enfermagem, 21(4), 729-738.). Uma das consequências desta fragilidade é a ausência de informações básicas sobre as drogas, como seus efeitos e consequências para o organismo, limitando o acesso a esse conhecimento tanto pelos profissionais de saúde, quanto pelos usuários.

A carência desse tipo de intervenção mais preventiva também dificulta o desenvolvimento de estratégias para lidar de forma mais eficiente com os efeitos da abstinência das drogas, assim como para se evitar episódios de uso danosos à saúde física e mental do usuário. O usuário Gabriel, que não tem acesso aos serviços da rede, conta um episódio que poderia ter adotado uma estratégia diferente no uso da substância, caso tivesse informações básicas a respeito dos sintomas de abstinência do crack: “De vez em quando me dá uma recaída, aí eu uso duas, três (pedras), mas é porque meu corpo começa a doer, tava trocando a pele, por falta da droga, eu tava descascando igual a uma cobra”. Isso revela que o usuário não associa o episódio de uso com seu desejo ou compulsão pela droga, mas que busca a droga por não possuir informações a respeito dos sintomas decorrentes da retirada dessa substância do seu organismo. Apesar do uso da substância ter ocorrido de maneira pontual e sem maiores danos ao usuário, é importante que as políticas públicas para os usuários de drogas em situação de rua contemplem intervenções informativas sobre os sintomas de abstinência da substância em uso, tanto para aqueles que optarem por um padrão de uso mais controlado e com menores danos e riscos associados, quanto para aqueles que optarem pela abstinência.

Somando-se a intervenções preventivas e informativas, é necessário considerar que o arcabouço de ações a serem desenvolvidas junto a esses usuários deve ser pautado no entendimento que a dependência de substâncias é algo complexo e os fatores sociais são preponderantes. Dessa maneira, deve-se reforçar o protagonismo do usuário, a ampliação de suas opções para a busca de prazer e lazer, a participação deste no cuidado de si e do outro; e o fortalecimento de redes intersetoriais no cuidado com essa população (Passos & Souza, 2011Passos, E. H. & Souza, T. P. (2011). Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas”. Psicologia & Sociedade , 23(1), 154-162.).

O Ministério da Saúde enfatiza em seus documentos (MS, 2010Ministério da Saúde. (2010). Consultórios de Rua do SUS: material de trabalho para a II Oficina Nacional de Consultórios de Rua do SUS. Brasília, DF: MS/Coordenação Nacional de Saúde Mental/EPJN-FIOCRUZ. ) que é preciso potencializar as ações em contexto de rua e articulá-las com as redes de atenção integral voltadas à PSR. Para dar conta dessa necessidade, foram criados os Consultórios na Rua, mencionados anteriormente. Poucos usuários que participaram da pesquisa conhecem esse dispositivo, o que justifica-se por ainda ser um equipamento novo na rede. A usuária Simone, que já conhece o Consultório na Rua, aponta o início da incorporação desse serviço por essa população: “Tem um carro, como chama? de rua... Ele vem aqui sempre, eles trazem bolacha, eles trazem preservativo”. Enfatiza-se a necessidade de ampliar a cobertura desse dispositivo, visando que se torne um serviço de referência para a PSR usuária de droga, historicamente excluída dos serviços convencionais de atenção à saúde.

Apesar do Ministério da Saúde reconhecer que os vínculos com os usuários de drogas devem ser inclusivos (MS, 2012), o vínculo dos serviços e das equipes de saúde com esta população, principalmente com os que se encontram em situação de rua, é ainda frágil e precisa ser mais desenvolvido. Esta ausência de vínculos inclusivos foi mencionada pelos usuários como uma outra barreira no acesso aos serviços, como relata Paulo: “Todos precisam de ajuda... só que é muita hipocrisia e muito fascismo, entendeu?”. Por outro lado, percebe-se, nesse estudo, que outras instituições, tal como a IF que participou da pesquisa, é mencionada como uma instituição que consegue estabelecer vínculo inclusivo. O vínculo poderia ser o eixo central para o realinhamento e a execução das políticas públicas sobre drogas no Brasil. Tais experiências podem ser detectadas nas falas a seguir: “Quando eu começo a frequentar aqui (IF), parece que me traz um pouco de paz no meu coração, então eu paro de roubar um pouco”. (Gabriel); e “Eu acho a casa aqui (IF) legal pra caramba, ajuda nós em todos os aspectos, físico, espiritual, tudo” (Tiago).

Enfim, os resultados apresentados e discutidos nesta categoria sugerem que é necessário a ampliação da discussão sobre as principais barreiras no acesso dos usuários de drogas aos serviços da rede, repensar as práticas adotadas por esses serviços e fortalecer as estratégias de redução de danos e de humanização nas práticas em saúde, favorecendo o acesso, a adesão e a melhoria nas condições de saúde mental e sociais dos usuários, principalmente, daqueles em situação de rua.

Estigma, discriminação e preconceito: as maiores barreiras no acesso

A população em situação de rua é um grupo heterogêneo, mas com algumas características comuns que os identificam em suas formas de ser e viver no mundo. É um grupo formado por seres humanos, embora vivendo em uma condição sub-humana, com diversas privações (MDS, 2008Ministério do Desenvolvimento Social e de Combate à Fome - MDS. (2008). Pesquisa nacional sobre a população em situação de rua. Brasília, DF Autor.). Suas trajetórias de vida revelam processos de perdas e rupturas: perda de vínculos familiares, de emprego, de moradia, de autoestima, da dignidade humana. São vítimas de violações de direitos humanos, de intolerância por grande parte da sociedade e carregam no corpo as marcas do estigma, evidenciadas pela discriminação e preconceito que sofrem no dia-a-dia (Morell, Brandão, Baierl, Nozabielli, & Rodrigues, 2012Morell, M. G. G., Brandão, M. V. M., Baierl, L. F., Nozabielli, S. R., & Rodrigues, T. F. (2012). População em situação de rua: indicadores e políticas públicas no município de Santos. Relatório de Projeto de Extensão. Santos, SP: Universidade Federal de São Paulo.).

Além do tradicional modelo político brasileiro que tratou o usuário de drogas por muitos anos somente no âmbito da justiça-penal (Santos & Oliveira, 2012Santos, J. A. T. & Oliveira, M. L. F. (2012). Políticas públicas sobre álcool e outras drogas: breve resgate histórico. Journal of Nursing & Health, 1(2), 82-93.), a dependência de drogas, segundo a classificação utilizada convencionalmente na rede pública de saúde, a Classificação Internacional de Doenças - Versão 10 (CID - 10), é tratada como doença, favorecendo a discriminação e o preconceito dos usuários de drogas (Romanini & Roso, 2012Romanini, M. & Roso, A. (2012). Mídia e Crack: Promovendo Saúde ou Reforçando Relações de Dominação? Psicologia, Ciência, & Profissão, 32(1), 82-97.; Ronzani et al., 2014Ronzani, T. M., Noto, A. R., & Silveira, P. S. (2014). Reduzindo o estigma entre usuários de drogas: guia para profissionais e gestores. Juiz de Fora, MG: UFJF.; Silveira, 2010Silveira, P. S. (2010). Estigmatização do uso de álcool e outras drogas entre profissionais de saúde de Juiz de Fora. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Juiz de Fora, MG.). Assim, ser usuário de drogas e estar em situação de rua ou de vulnerabilidade resulta em um duplo estigma, o que aumenta o sofrimento gerado pela discriminação e pelo preconceito.

O estigma, a discriminação e o preconceito aparecem como uma questão de destaque neste estudo, os quais podem ser apreendidos implícita e explicitamente nas falas e relatos dos usuários de crack. Presente em todos os espaços, públicos e privados, os usuários revelam esse sofrimento de diversas formas: nos olhares, gestos, atitudes, descaso e abandono. O usuário Daniel relata um episódio: “Eu estava passando num sinal, tinha uma mulher parada num Honda Civic no sinal, eu fui atravessar e a mulher fechou o vidro, pensou que eu ia roubar ela”. Segundo outro usuário, Tiago, o preconceito limita as relações sociais, excluindo as possibilidades de estabelecer qualquer tipo de vínculo e, consequentemente, possibilidade de ajuda para a busca de tratamento: “A gente que vive na rua é difícil, né? Por que as pessoas veem a gente e já discrimina só pela aparência, não para pra conversar com a gente, pra saber realmente como a gente tá”.

Para entender o motivo das pessoas agirem com discriminação, Rodrigo cita a mídia como reforçadora do preconceito: “O que acontece na televisão? Eles veem no jornal que usuário de droga fez isso, que o usuário de droga fez aquilo”. A mídia, para descrever o fenômeno do crack, tem se utilizado de diversas estratégias ideológicas que operam em conjunto, obscurecendo significados importantes para a compreensão do fenômeno em questão. Essas estratégias servem, em alguma medida, para manter as relações de dominação e cristalizar ideias, estereotipando os usuários de crack, o que pode estar colaborando com o estabelecimento e/ou manutenção de processos de exclusão, que prejudicam o acesso aos direitos à saúde das pessoas, principalmente desses grupos excluídos, em função de sua posição e trajetória traçadas em um campo social (Romanini & Roso, 2012Romanini, M. & Roso, A. (2012). Mídia e Crack: Promovendo Saúde ou Reforçando Relações de Dominação? Psicologia, Ciência, & Profissão, 32(1), 82-97.). Tal postura limita as possibilidades de acesso para as pessoas que apresentam problemas com o uso de drogas e afetam negativamente a qualidade dos serviços prestados, iniciando com descaso no acolhimento recebido pelos profissionais de saúde (Ronzani et al., 2014Ronzani, T. M., Noto, A. R., & Silveira, P. S. (2014). Reduzindo o estigma entre usuários de drogas: guia para profissionais e gestores. Juiz de Fora, MG: UFJF.; Silveira, 2010Silveira, P. S. (2010). Estigmatização do uso de álcool e outras drogas entre profissionais de saúde de Juiz de Fora. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Juiz de Fora, MG.).

O acolhimento que os profissionais de saúde da rede pública dispensam à PSR foi avaliado como algo frio, distante e causador de sentimentos de discriminação no ato do atendimento (MDS, 2008Ministério do Desenvolvimento Social e de Combate à Fome - MDS. (2008). Pesquisa nacional sobre a população em situação de rua. Brasília, DF Autor.). O processo de estigmatização social da PSR usuária de droga pode ser o maior desafio no processo de inserção social efetiva desse grupo populacional (Paiva, Ferreira, Martins, Barros, & Ronzani, 2014Paiva, F. S., Ferreira, M. L., Martins, M. Z. F., Barros, S. L. C. F., & Ronzani, T. M. (2014). Percepção profissional e comunitária sobre a reinserção social dos usuários de drogas. Psicologia & Sociedade, 26(3), 696-706.). A fala a seguir descreve um episódio de busca por ajuda após uma tentativa de suicídio de uma usuária, revelando o estigma e a discriminação presentes nos serviços de saúde:

Tentei chegar no pronto socorro andando... não consegui. Ninguém parava... Ah! Deixa isso ai, é psica! Quando cheguei no pronto socorro, fui tratada como psica: Eh! Tomou às duas horas da manhã, é sete e não morreu ainda, é nóia! (Nina)

Instituída como política nacional, a humanização reconhece o campo das subjetividades como instância fundamental para a melhor compreensão dos problemas e para a busca de soluções compartilhadas (MS, 2004). Porém, os usuários revelam a ausência da prática dessa política, por meio das relações estabelecidas por alguns profissionais que discriminam o usuário de droga. O usuário Tiago deixa um desabafo, gerado pelo sentimento de discriminação, e aponta para a ausência da prática profissional humanizada:

Antes de ser usuário de crack, a gente somos ser humano, certo? A gente tem sentimento como qualquer outra pessoa tem... Só que a gente tem uma dificuldade maior, que é o vício, claro... O sangue que corre na veia, que nem o cara falou pra mim, não é droga, é sangue.

Considerando o impacto negativo que o estigma, a discriminação e o preconceito têm no tratamento dos usuários de drogas, estratégias de redução do estigma e processos associados que envolvam os profissionais de saúde precisam ser pensadas, como capacitações que permitam o acesso a informações científicas sobre as drogas e fatores associados. Por trás da condição de rua e da problemática que envolve as drogas, existem seres humanos, e são para eles que as políticas públicas de saúde devem ser pensadas indistintamente. A discussão dos temas estigma, discriminação e preconceito deve ser realizada nos serviços de saúde e deve estar presente no processo de tratamento e cuidado ao usuário de drogas, prevendo a melhora da adesão e efetividade do mesmo.

Considerações finais

Apesar da metodologia escolhida por esta pesquisa não representar toda a população de usuários de crack em situação de rua, conseguiu-se, por meio da análise de dados, aprofundar diversas situações para o entendimento dessa problemática. A partir da percepção dos usuários de crack em situação de rua, foi possível detectar que, embora existam diversas possibilidades de tratamento para a dependência de drogas, os usuários acessam mais as CT. “Internar” parece uma solução atraente para a sociedade, pois remete a um contexto de proteção e higienização sustentadas, muitas vezes, no Brasil, por observações leigas, provenientes de um senso comum e de cunho midiático.

No entanto, a CT está sustentada na lógica psiquiátrica, que tem a abstinência como princípio fundamental, além das práticas nessas instituições serem orientadas por um paradigma moral-religioso, que exclui outras possibilidades de escolha religiosa ou de sexualidade, ou mesmo de um padrão de uso controlado com poucos danos à sua saúde física e mental, os quais favoreceriam o protagonismo do usuário e, por conseguinte, uma melhor inclusão social dessa população. Sendo assim, o tipo de tratamento ofertado nessas instituições não resolve o maior desafio no tratamento da dependência de drogas ou na atenção integral ao usuário, que é a vida fora dos limites das CT, ou seja, a inclusão social e a chance de reestruturação da vida, apontando para um retrocesso nas políticas de saúde mental, que avançaram muito desde a Reforma Psiquiátrica. Desta forma, tornam-se imprescindíveis maiores investimentos e fortalecimento dos equipamentos públicos já instalados, como os CAPSad e os Consultórios na Rua, além da capacitação de seus profissionais para atuarem nesses dispositivos de forma eficiente com essa população.

Considerando que o tratamento nas CT é o mais acessado por essa população, torna-se válida uma discussão para uma possível padronização de recursos terapêuticos no tratamento da dependência de drogas, baseados em terapêuticas eficazes, comprovadas cientificamente, e aliadas às estratégias de redução de danos. Também frisa-se a necessidade do acompanhamento dos usuários por um período pós-tratamento e o auxílio em sua reinserção social, com garantia de moradia, resgate dos vínculos familiares e oportunidades de empregos e cursos de capacitação profissional. Outra questão de grande importância seria reavaliar os pontos controversos de regulamentação das CT no Brasil, na Resolução RDC 29/2011, para garantia da prestação de serviços com mais qualidade e que sejam frequentemente fiscalizados pelos órgãos competentes.

O estudo também apontou que são diversas as barreiras que impedem o acesso aos serviços públicos da rede de saúde por essa população. Apesar da política nacional de álcool ou outras drogas preconizarem o tratamento em meio aberto e no território, garantindo o acesso à saúde para todos, a PSR parece ter pouco acesso a esses serviços, revelando que o estigma, o preconceito e a discriminação ainda se encontram presentes nos serviços da rede, reforçando a exclusão e se constituindo enquanto barreiras para o acesso a esses.

O abandono e o descaso do Brasil com a PSR usuária de drogas constituem, hoje, um grande desafio para a implementação de uma política de atenção aos problemas relacionados ao abuso e dependência de drogas. Os resultados ainda revelaram a necessidade de maior capacitação dos profissionais de saúde, incluindo os gestores, para que possam acolher e incluir essa população, sem discriminação ou preconceitos.

Para assegurar a execução das políticas do Ministério da Saúde, tornam-se imprescindíveis, de forma permanente, a fiscalização para garantia dos direitos humanos, o estímulo ao controle social e, principalmente, uma gestão que, de fato, esteja preocupada em proporcionar alternativas de vida para essas pessoas e não apenas em retirá-las dos espaços públicos a partir da lógica da higienização social. É preciso ainda traçar estratégias em relação às drogas ilícitas, no mínimo, da mesma forma como é feito com as drogas lícitas, e enfrentar a contradição repressão/descriminalização com elementos pautados nos resultados da redução de danos, os quais ampliam as alternativas de um uso mais seguro. Essa tarefa não é fácil, uma vez que se liga às questões morais, conservadoras e estruturais, requisitando transformações na base estrutural da sociedade, a começar pela educação no tema relativo às drogas.

Referências

  • Andrade, T. (2011). Reflexões sobre políticas de drogas no Brasil.Ciência & Saúde Coletiva,16(12), 4665-4674. https://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232011001300015
    » https://doi.org/10.1590/S1413-81232011001300015
  • Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA. (2011). Nota Técnica n. 1, de 15 de julho de 2011. Esclarecimentos e orientações sobre o funcionamento de instituições que prestem serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas. Recuperado de http://portal.anvisa.gov.br/documents/33852/271858/Nota+t%C3%A9cnica+n%C2%BA+01+de+2011/fe65a47c-ae23-4cd6-a9be-bef63d0d30f9
    » http://portal.anvisa.gov.br/documents/33852/271858/Nota+t%C3%A9cnica+n%C2%BA+01+de+2011/fe65a47c-ae23-4cd6-a9be-bef63d0d30f9
  • Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo Lisboa: Edições 70.
  • Brubaker, M. D., Amatea, E. A., Torres-Rivera, E., Miller, M. D., & Nabors, L. (2013). Barriers and Supports to Substance Abuse Service Use Among Homeless Adults. Journal of Addictions & Offender Counseling, 34(1), 81-98. doi:10.1002/j.2161-1874.2013.00017.x
    » https://doi.org/10.1002/j.2161-1874.2013.00017.x
  • Clatts, M. C., Welle, D. L., Goldsamt, L. A., & Lankenau, S. E. (2002). An ethno-epidemiological model for the study of trends in illicit drug use: reflections on the “emergence” of crack injection. International Journal of Drug Policy, 13(1), 285-295.
  • Damas, F. B. (2013). Comunidades Terapêuticas no Brasil: expansão, institucionalização e relevância social.Revista de Saúde Pública de Santa Catarina, 6(1), 50-65.
  • De Leon G. (2008). A Comunidade Terapêutica: teoria, modelo e método São Paulo: Edições Loyola.
  • Dekel, R., Benbenishty, R., & Amram, Y. (2004). Therapeutic communities for drug addicts: Prediction of long-term outcomes. Addictive Behaviors, 29(1), 1833-1837.
  • Fernández-Montalvo, J., López, J. J., Illescas, C., Landa, N., & Lorea, I. (2008). Evaluation of a therapeutic community treatment program: A long-term follow-up study in Spain. Substance Use & Misuse, 43(10), 1362-1377.
  • Fiestas, F. & Ponce, J. (2012). Eficacia de las comunidades terapéuticas en el tratamiento de problemas por uso de sustancias psicoactivas: una revisión sistemática. Revista Peruana de Medicina Experimentale y Salud Publica 29(1), 12-20.
  • Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas - FIPE & Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social-SMADS/ Prefeitura de São Paulo. (2015). Censo da População em Situação de Rua da cidade de São Paulo, 2015: Resultados Recuperado de http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/assistencia_social/observatorio_social/2015/censo/FIPE_smads_CENSO_2015_coletivafinal.pdf
    » http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/assistencia_social/observatorio_social/2015/censo/FIPE_smads_CENSO_2015_coletivafinal.pdf
  • Jorge, J. S. & Corradi-Webster, C. M. (2012). Consultório de Rua: Contribuições e Desafios de uma Prática em Construção.Saúde & Transformação Social, 3(1), 39-48.
  • Jorge, M. S. B., Quinderé, P. H. D., Yasui, S., & Albuquerque, R. A. (2013). Ritual de consumo do crack: aspectos socioantropológicos e repercussões para a saúde dos usuários. Ciência & Saúde Coletiva , 18(10), 2909-2918.
  • Malivert, M., Fatséas, M., Denis, C., Langlois, E., & Auriacombe, M. (2012). Effectiveness of Therapeutic Communities: A Systematic Review. European Addiction Research 18(1), 1-11.
  • Minayo, M. C. S. (2010). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde São Paulo: Hucitec/Abrasco.
  • Ministério da Saúde - MS. (2004). HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização. A Humanização como Eixo Norteador das Práticas de Atenção e Gestão em Todas as Instâncias do SUS Brasília, DF: Autor.
  • Ministério da Saúde. (2010). Consultórios de Rua do SUS: material de trabalho para a II Oficina Nacional de Consultórios de Rua do SUS Brasília, DF: MS/Coordenação Nacional de Saúde Mental/EPJN-FIOCRUZ.
  • Ministério da Saúde. (2012). Manual sobre o cuidado à saúde junto a população em situação de rua Brasília: MS/Secretaria de Atenção à Saúde/Departamento de Atenção.
  • Ministério do Desenvolvimento Social e de Combate à Fome - MDS. (2008). Pesquisa nacional sobre a população em situação de rua Brasília, DF Autor.
  • Morell, M. G. G., Brandão, M. V. M., Baierl, L. F., Nozabielli, S. R., & Rodrigues, T. F. (2012). População em situação de rua: indicadores e políticas públicas no município de Santos Relatório de Projeto de Extensão. Santos, SP: Universidade Federal de São Paulo.
  • Paiva, F. S., Ferreira, M. L., Martins, M. Z. F., Barros, S. L. C. F., & Ronzani, T. M. (2014). Percepção profissional e comunitária sobre a reinserção social dos usuários de drogas. Psicologia & Sociedade, 26(3), 696-706.
  • Passos, E. H. & Souza, T. P. (2011). Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas”. Psicologia & Sociedade , 23(1), 154-162.
  • Pereira, M. O., Oliveira, M. A. F., Pinho, P. H., Claro, H. G., Garcia, H., Gonçalves, A. M., & Reinaldo, A. M. S. (2017). What is the emphasis of Brazilian drug policy: resocialization or internment?Escola Anna Nery[online], 21(3), 1-9.
  • Pitta, A. M. F. (2011). Um balanço da Reforma Psiquiátrica Brasileira: Instituições, Atores e Políticas. Ciência & Saúde Coletiva , 16(12), 4579-4589.
  • Ramiro, F. D. S., Padovani, R. D. C., & Tucci, A. M. (2014). Consumo de crack a partir das perspectivas de gênero e vulnerabilidade: uma revisão sobre o fenômeno. Saúde em Debate, 38(101), 379-392.
  • Romanini, M. & Roso, A. (2012). Mídia e Crack: Promovendo Saúde ou Reforçando Relações de Dominação? Psicologia, Ciência, & Profissão, 32(1), 82-97.
  • Ronzani, T. M., Noto, A. R., & Silveira, P. S. (2014). Reduzindo o estigma entre usuários de drogas: guia para profissionais e gestores Juiz de Fora, MG: UFJF.
  • Sanchez, Z. V. D. M. & Nappo, S. A. (2008). Intervenção religiosa na recuperação de dependentes de drogas. Revista de Saúde Pública, 42(2), 265-272.
  • Santos, J. A. T. & Oliveira, M. L. F. (2012). Políticas públicas sobre álcool e outras drogas: breve resgate histórico. Journal of Nursing & Health, 1(2), 82-93.
  • Schor, S. M. & Vieira, M. A. C. (2010). Principais resultados do perfil socioeconômico da população de moradores de rua da Área Central da cidade de São Paulo - 2010 São Paulo: Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE); Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo.
  • Silva, F. P., Frazão, I. S., & Linhares, F. M. P. (2014). Práticas de saúde das equipes dos Consultórios de Rua. Cadernos de Saúde Pública, 30(4), 805-814.
  • Silveira, C., Doneda, D., Gandolfi, D., Hoffmann, M. C., Macedo, P., Delgado, P. G., Benevides, R., & Moreira, S. (2003). Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas.Jornal Brasileiro de Psiquiatria,52(5), 349-354.
  • Silveira, P. S. (2010). Estigmatização do uso de álcool e outras drogas entre profissionais de saúde de Juiz de Fora Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Juiz de Fora, MG.
  • Souza, J., Kantorski, L. P., Luis, M. A. V., & Oliveira, N. F. (2012). Intervenções de saúde mental para dependentes de álcool e outras drogas: das políticas à prática cotidiana. Texto Contexto Enfermagem, 21(4), 729-738.
  • Turato, E. R. (2005). Métodos qualitativos e quantitativos na área da saúde: definições, diferenças e seus objetos de pesquisa. Revista de Saúde Pública , 39(3), 507-514.
  • Vanderplasschen, W., Vandevelde, S., & Broekaert, E. (2014). Therapeutic communities for treating addictions in Europe: Evidence, current practices and future challenges European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction [EMCDDA]. doi:10.2810/25291.
    » https://doi.org/10.2810/25291
  • Wenzel, S. L., Burnam, A., Koegel, P., Morton, S. C., Miu, A., Jinnett, K. J., & Sullivan, J. G. (2001). Access to Inpatient or Residential Substance Abuse Treatment Among Homeless Adults With Alcohol or Other Drug Use Disorders. Medical Care, 39(11), 1158-1169.
  • Financiamento: Esse estudo foi contemplado com bolsa de mestrado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) para a primeira autora do manuscrito por meio do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências da Saúde, da Universidade Federal de São Paulo. Esse estudo foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, na modalidade Auxílio Regular à Pesquisa, processo número 2011/001884.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2016
  • Revisado
    13 Nov 2019
  • Aceito
    17 Dez 2019
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: revistapsisoc@gmail.com