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Mais razão e menos emoção: o discurso de autoajuda para mulheres

More Reason and Less Emotion: The Self-Help Discourse Addressed to Women

Resumo:

Neste trabalho, adotando um ponto de vista interdisciplinar, no qual nos servimos da Análise do Discurso de linha francesa e da Psicologia Social, analisamos o ethos de uma obra de autoajuda sobre relacionamentos dirigida a mulheres. A análise revela que, ancorado no estereótipo tradicional de mulher, o discurso de autoajuda adota um tom melodramático e especialmente um tom didático, propondo às mulheres que sejam mais racionais e menos emocionais, colaborando, de um modo não evidente, para a manutenção do sistema de desigualdades entre os gêneros.

Palavras-chave:
discurso; autoajuda; ethos; tom; estereótipo de mulher

Abstract:

In this paper, from an interdisciplinary point of view, which is based on the theoretical framework of French Discourse Analysis and based on Social Psychology, we analyze the ethos of a self-help book about relationships addressed to women. The analysis reveals that, anchored in the traditional stereotype of women, the self-help discourse adopts a melodramatic tone and especially a didactic tone, proposing to women that they need to be more rational and less emotional¸ collaborating, in a non-obvious way, to maintain the system of inequalities between the genres.

Keywords:
discourse; self-help; ethos; tone; stereotype of woman

Introdução

Neste trabalho, analisamos o ethos de um livro de autoajuda dirigido a mulheres, procurando refletir sobre o modo como esse discurso contribui para a manutenção e/ou transformação de estereótipos de mulheres.

Do nosso ponto de vista, uma obra dirigida a mulheres e ligada a um discurso de grande circulação, como é o caso do discurso de autoajuda, é um material particularmente interessante para uma reflexão sobre a identidade feminina, especialmente tendo o ethos discursivo como foco de análise, dada a relação entre ethos e estereótipos, conforme esclarecemos no próximo item. Nele apresentarmos o aparato que dá suporte à análise, isto é, a Análise do Discurso de linha francesa, com ênfase nas reflexões de Dominique Maingueneau (1989MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em Análise do Discurso. Campinas: Pontes/Editora da UNICAMP, 1989. , 2006, 2008MAINGUENEAU, Dominique. “A noção de ethos discursivo”. In: MOTTA, Ana Raquel; SALGADO, Luciana (orgs.). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008. p. 11-29.) sobre o conceito de ethos discursivo.

Nosso interesse pelos estereótipos femininos liga-se ao fato de que, atualmente, há uma gama variada de representações do feminino, o que não é difícil de perceber, especialmente se observamos o discurso midiático, no qual circulam várias imagens de mulher: a executiva, a mãe zelosa, a mulher obcecada pelos cuidados com a beleza, a consumidora compulsiva, a mulher sensual, etc.

De fato, observando os principais resultados de trabalhos inscritos na Análise do Discurso que investigaram imagens de mulheres, podemos notar essa diversidade. Por exemplo, Maria da Conceição Fonseca-Silva (2007FONSECA-SILVA, Maria da Conceição. “Humor e práticas de subjetivação em Maitena”. Estudos da Língua(gem):representações do feminino, Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 95-108, jun. 2007.) verifica que o discurso humorístico não é indiferente às transformações e às angústias pelas quais passa a mulher moderna, refletindo a transição e a mudança dos valores que a afetam.

Do mesmo modo, Fernanda Mussalim (2007MUSSALIM, Fernanda. “A constituição de identidades femininas no discurso publicitário”. Estudos da Língua(gem): representações do feminino, Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 109-124, jun. 2007. ), nota que o discurso publicitário, atualmente,

[...] tem buscado construir uma identidade feminina que leve em conta a diversidade e o pluralismo dos papéis da mulher em nossa sociedade. Nesse processo, clichês como os que limitavam as mulheres às tarefas domésticas tiveram que ser recusados. Ao mesmo tempo, a imagem da mulher como esposa, mãe zelosa e competente dona-de-casa não pôde ser deixada de lado. O discurso publicitário passou, então a apostar no alargamento das características dessa identidade feminina, incorporando um conjunto de representações de comportamento e papéis sociais capazes de construir um imaginário feminino que fosse plural o suficiente a ponto de permitir uma maior possibilidade das mulheres com esse imaginário (MUSSALIM, 2007MUSSALIM, Fernanda. “A constituição de identidades femininas no discurso publicitário”. Estudos da Língua(gem): representações do feminino, Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 109-124, jun. 2007. , p. 111; o grifo é nosso).

Por outro lado, Sírio Possenti (2007POSSENTI, Sírio. “Discurso humorístico e representações do feminino”. Estudos da Língua(gem): representações do feminino, Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 63-94, jun. 2007. ) aponta para uma direção um pouco diferente e encontra um dado interessante no discurso humorístico, isto é, que os estereótipos femininos que circulam em alguns gêneros desse discurso (como tirinhas e piadas) fazem apelo especialmente a uma certa memória, deixando, para segundo plano, a relação entre discurso e história (o que, no caso em questão, pode ser entendido basicamente como é, nos dias de hoje, o cotidiano das mulheres). Ou seja, embora seja inegável que a mulher desfrute, hoje em dia, de mais liberdade profissional, financeira, e sexual, pelo menos no discurso humorístico, ela continua sendo representada como alguém que tem preocupações com a beleza (alguém que não quer ter celulite, que não quer ficar velha, que precisa ficar magra a todo custo, etc.).

Considerando essa diversidade de modos de retratar a mulher, interessa-nos saber qual é ou quais são as imagens de mulheres que o discurso de autoajuda colabora para manter e/ou transformar, a fim de darmos alguma contribuição às reflexões que estão sendo desenvolvidas nas ciências humanas sobre os estereótipos, mais especificamente sobre os relativos às mulheres na sociedade contemporânea. Para tanto, como dito, analisamos o ethos de uma obra de autoajuda dirigida a mulheres com base nos postulados da Análise do Discurso de linha francesa. Na verdade, a análise também se desenvolve a partir de um diálogo que estabelecemos com a Psicologia Social, a fim de compreendermos de modo adequado o(s) estereótipo(s) presente(s) no discurso bem como o papel que nele desempenha(m).

Com essa opção, seguimos uma das tendências atuais da Análise do Discurso, que, no âmbito das reflexões que promove, tem dialogado com outras áreas de conhecimento das Ciências Humanas, tais como a Ciência Política, a Comunicação Social, a Sociologia da Cultura. Um bom exemplo é, assim, o trabalho de Marie-Anne Paveau (2013PAVEAU, Marie-Anne. Os pré-discursos: sentido, memória, cognição. Campinas: Pontes, 2013.), que avança no debate sobre as relações entre a Análise do Discurso e os estudos da cognição. No nosso caso, dialogamos com os estudos de Psicologia Social para compreende melhor os estereótipos e seu papel no funcionamento dos discursos.

1. Ethos discursivo e estereótipos sociais

Neste trabalho, tratamos do discurso de autoajuda para mulheres, analisando o ethos da obra O que toda mulher inteligente deve saber (Steven CARTER e Julia SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.), que tematiza relacionamentos e que é dirigida ao público feminino. Essa seleção se deve ao fato de se tratar de um livro que, além de ainda estar disponível no mercado brasileiro, já fez parte da lista de mais vendidos da categoria de autoajuda1 1 http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u62257.shtml; último acesso em fevereiro de 2017. , o que significa que, de alguma forma, despertou a atenção do público consumidor2 2 Segundo o site da Livraria Cultura, trata-se, atualmente, de uma obra que vendeu 850 mil exemplares (cf. http://www.livrariacultura.com.br/p/o-que-toda-mulher-inteligente-deve-saber-1411584; acesso em março de 2017). , daí nosso interesse pelo conteúdo que veicula.

Nas reflexões que desenvolve sobre o ethos discursivo, Dominique Maingueneau (1989MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em Análise do Discurso. Campinas: Pontes/Editora da UNICAMP, 1989. , 2006, 2008) o define, em linhas gerais, como a imagem relacionada ao enunciador do discurso, revelado pelo próprio modo como enuncia. Nesses termos, o ethos não corresponde ao que o enunciador diz a respeito de si, mas ao que revela de si pelo modo de se exprimir.

O primeiro e mais importante elemento que recobre o campo do ethos discursivo é a voz do discurso cuja concepção é transversal à oposição entre o oral e o escrito, o que significa que não se trata de conceber o escrito como uma oralidade enfraquecida, mas de entender que há uma voz específica que habita a enunciação de qualquer texto, seja ele oral ou escrito. A essa voz, Maingueneau prefere chamar de tom, “à medida que seja possível falar do ‘tom’ de um texto do mesmo modo que se fala de uma pessoa” (MAINGUENEAU, 1989MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em Análise do Discurso. Campinas: Pontes/Editora da UNICAMP, 1989. , p. 46). O tom, que é mais exatamente um ideal de entonação que acompanha os lugares de enunciação, está ligado a um caráter e a uma corporalidade.

O primeiro diz respeito ao conjunto de traços psicológicos que podem ser atribuídos ao enunciador em função do seu modo de dizer. A corporalidade, por sua vez, é a representação do corpo do enunciador, o que inclui um modo próprio de se movimentar no espaço social. Nesse sentido, o ethos é uma maneira de dizer indissociável de uma maneira global de ser, de uma maneira específica de habitar o mundo. Com esses elementos, como bem nos esclarece Maingueneau, o ethos está ligado aos estereótipos que circulam em uma dada cultura, o que nos leva a refletir sobre o papel dos estereótipos no discurso.

De acordo com a Psicologia Social, principal área do conhecimento que investiga o tema, os estereótipos podem ser definidos, de um modo bem amplo, como representações cristalizadas sobre um grupo social, como imagens fictícias ou esquemas culturais preexistentes que expressam um imaginário social. Em alguns trabalhos da área, o caráter negativo dos estereótipos se liga a processos de categorização e generalização do real que o simplificam, produzindo uma visão esquemática e deformada que favorece a emergência de preconceitos.

Walter Lippmann (1922LIPPMANN, Walter. Public opinion. New York: Harcourt, Brace, Jovanovitch, 1922.), pioneiro nas reflexões sobre o tema, embora não fosse da área, considera que os estereótipos mediatizam nossa relação com o real, pois é através deles que filtramos a realidade que nos cerca. Para esse autor, o que vemos é o que nossa cultura definiu previamente. Os estereótipos são, assim, imagens que constituem a vida em sociedade, que nos permitem não só compreender o real, que seria demasiado complexo para ser apreendido em sua totalidade pela mente humana, como também categorizá-lo e agir sobre ele.

Na segunda parte deste trabalho, procuramos refletir sobre a relação que há entre os estereótipos presentes na obra em análise e os tons que nela predominam. Para tanto, apoiamo-nos tanto em trabalhos que apresentam uma visão mais geral sobre os estereótipos, como John Jost e Mahzarin Banaji (1994JOST, John; BANAJI, Mahzarin.“The role of stereotyping in system-justification and the production of false consciousness”. British Journal of Social Psychology, vol. 33, p. 1-27, mar. 1994.) sobre a Teoria da Justificação do Sistema, quanto em outros que tematizam especialmente os estereótipos de gênero, como John Jost e Aaron Kay (2005) e Susan Fiske et al. (2007FISKE, Susan Tufts; CUDDY, Amy Joy Casselberry; GLICK, Peter. “Universal dimensions of social perception: warmth and competence”. Trends in Cognitive Science, vol. 11, n. 2, p. 77-83, feb. 2007.).

De acordo com a Teoria da Justificação do Sistema, inicialmente proposta por Jost e Banaji (1994JOST, John; BANAJI, Mahzarin.“The role of stereotyping in system-justification and the production of false consciousness”. British Journal of Social Psychology, vol. 33, p. 1-27, mar. 1994.), qualquer sistema social que se baseie na separação de pessoas em papéis, classes, posições, status faz uso de estereótipos que contribuem para que tais arranjos sejam percebidos e explicados como justificáveis por aqueles que participam do sistema. Além disso, os estereótipos que servem para justificar certo estado de coisas (o sistema social ou o econômico, hierarquias de status ou poder, distribuições de renda, divisão dos papéis sociais, etc.) funcionam, mesmo que prejudiquem os interesses dos indivíduos ou os interesses coletivos, por isso podem ser promovidos inclusive por aqueles que têm a perder com eles.

Em Fiske et al. (2007FISKE, Susan Tufts; CUDDY, Amy Joy Casselberry; GLICK, Peter. “Universal dimensions of social perception: warmth and competence”. Trends in Cognitive Science, vol. 11, n. 2, p. 77-83, feb. 2007.), os conteúdos dos estereótipos de gênero são pensados a partir das dimensões básicas da cognição humana. A esse respeito, vale observamos que, na literatura da Psicologia Social, há mesmo muitos autores que consideram que a cognição humana tenha duas dimensões universais. Mais exatamente, desse ponto de vista, tais dimensões não só regem o modo como as pessoas caracterizam os outros, como também definem o conteúdo dos estereótipos. O modo de definir as duas dimensões, embora sempre muito próximo, pode variar um pouco entre os autores; uma das nomenclaturas mais utilizada é a das dimensões warm e competence.

Segundo Fiske et al. (2007FISKE, Susan Tufts; CUDDY, Amy Joy Casselberry; GLICK, Peter. “Universal dimensions of social perception: warmth and competence”. Trends in Cognitive Science, vol. 11, n. 2, p. 77-83, feb. 2007.), a primeira dimensão captura traços relativos a um tipo de intenção percebida que inclui amizade, ajuda, sinceridade, confiança e moralidade, enquanto a segunda, a dimensão competence, reflete traços relacionados a capacidade percebida, incluindo inteligência, aptidão, criatividade e eficiência. Considerando essas dimensões, os homens são tradicionalmente estereotipados como competentes, assertivos, independentes e orientados para a realização, enquanto as mulheres não são; as mulheres, por sua vez, são geralmente estereotipadas como calorosas, sociáveis, interdependentes e orientadas para as relações, enquanto os homens não.

Dessa perspectiva, estereótipos tradicionais de gêneros são tomados no sistema como complementares, pois se considera que cada gênero, apesar de seus pontos fracos, seja dotado de pontos fortes que equilibram suas próprias fraquezas e que suplementam os pontos fortes do outro grupo.

Kay e Jost (2003KAY, Aaron; JOST, John. “Complementary justice: effects of ‘poor but happy’ and ‘poor but honest’ stereotype exemplars on system justification and implicit activation of the justice motive”. Journal of Personality and Social Psychology, vol. 85, n. 5, p. 823-837, nov. 2003.), adotando a perspectiva da Teoria da Justificação do Sistema, afirmam que a crença de que cada grupo na sociedade tem vantagens e desvantagens deve aumentar a noção de que o sistema como um todo é justo, equilibrado e legítimo. Nesses termos, num trabalho posterior, Jost e Kay (2005), entendem que a complementaridade dos estereótipos de gênero contribui para manter o status quo.

Mais exatamente, segundo Jost e Kay (2005JOST, John; KAY, Aaron. “Exposure to benevolent sexism and complementary gender stereotypes: consequences for specific and diffuse forms of system justification”. Journal of Personality and Social Psychology, vol. 88, n. 3, p. 498-509, mar. 2005.), estereótipos tradicionais do gênero feminino, além de racionalizarem funções específicas como a de ser dona de casa e de adularem as mulheres para que elas adotem o status quo sexista, prestam-se a objetivos de justificação do sistema, contrabalançando as vantagens dos homens em termos de agentividade e status. Assim, os efeitos da justificação do sistema relativos à complementaridade dos estereótipos operam em conjunção com processos de justificação de papéis e realizam a cooptação dos subordinados de modo mais eficiente.

Como estereótipos de gêneros complementares desempenham a função de justificação do sistema, Jost e Kay (2005JOST, John; KAY, Aaron. “Exposure to benevolent sexism and complementary gender stereotypes: consequences for specific and diffuse forms of system justification”. Journal of Personality and Social Psychology, vol. 88, n. 3, p. 498-509, mar. 2005.) entendem que bastaria ativar esses estereótipos na memória das pessoas para aumentar o suporte ao status quo, resultado que, de fato, alcançaram em estudos experimentais que realizaram. Considerando esses resultados e outros obtidos na mesma direção por outros pesquisadores, verificam que não é preciso que haja a adesão aos estereótipos para que o suporte ao status quo aumente, pois quando um estereótipo é muito difundido, passa a ser culturalmente acessível. Desse modo, quando uma associação estereotípica está bastante dispersa do ponto de vista cultural, como é o caso das relativas aos gêneros, basta ativá-la para que ela possa produzir efeitos tanto psicológicos (nos indivíduos) quanto sociais (na própria população, como um todo), o que evidencia a pertinência de refletirmos sobre o modo como os discursos colaboram com a circulação dos estereótipos de gêneros.

Feitos esses esclarecimentos, passamos a analisar o ethos da obra selecionada, procurando identificar os tons de que se vale. Posteriormente, trataremos de verificar em que medida esses tons estão relacionados a certos estereótipos do gênero feminino.

2. Análise do ethos

Como o corpus é constituído por uma obra de autoajuda, podemos dizer que desperta algumas expectativas sobre o ethos, que dizem respeito ao próprio tipo de discurso. A esse respeito, vale esclarecermos que Maingueneau (2006MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da enunciação. POSSENTI, Sírio; SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília Perez (orgs.). Curitiba: Criar Edições, 2006. , 2008) faz uma distinção entre o ethos pré-discursivo e o ethos discursivo. Enquanto o ethos discursivo diz respeito à imagem que o enunciador projeta de si pelo seu próprio discurso, o ethos pré-discursivo resulta de representações prévias do enunciador, especialmente quando o discurso está relacionado a alguma figura pública.

Segundo Maingueneau (2006MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da enunciação. POSSENTI, Sírio; SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília Perez (orgs.). Curitiba: Criar Edições, 2006. ), há discursos que prescindem dessas imagens construídas a priori pelos enunciatários dos discursos. Por outro lado, um discurso pertencente a um domínio mais público é normalmente associado a um ethos que pode ou não ser confirmado. Além disso, “o simples fato de que um texto pertence a um gênero de discurso ou a certo posicionamento ideológico, induz expectativas em matéria de ethos” (MAINGUENEAU, 2006MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da enunciação. POSSENTI, Sírio; SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília Perez (orgs.). Curitiba: Criar Edições, 2006. , p.57), conforme nos parece ser o caso da obra em questão, por pertencer ao discurso de autoajuda.

Em Brunelli (2004BRUNELLI, Anna Flora. O sucesso está em suas mãos: análise do discurso de autoajuda. 2004. Tese (Doutorado em Linguística) - Programa de Pós-Graduação em Linguística, Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil.), constatamos que, de modo geral, o discurso em questão, destina-se a passar, de uma forma simples e objetiva, algum ensinamento ligado a alguma das necessidades do indivíduo pós-moderno (como ser feliz, como conseguir sucesso profissional, como educar os filhos para serem bem realizados na vida, como conquistar o parceiro ideal, etc.).

No trabalho citado, verificamos que o ethos do enunciador das obras de autoajuda que tematizam o sucesso profissional e financeiro e que são destinadas ao público adulto em geral, é o ethos do self-made-man, isto é, não se trata apenas da pessoa de sucesso, mas especialmente de alguém que conquistou o sucesso acreditando no seu próprio potencial e trabalhando pelos seus projetos. Desse modo, é também o ethos da pessoa otimista, que acredita em seus sonhos, e da pessoa objetiva e focada, por isso seu discurso é direto e marcado por um tom de certeza e convicção e, especialmente, por um tom otimista.

Assim, o discurso de autoajuda pode ser considerado como um conjunto de orientações, de direcionamentos e não um convite à reflexão, ou seja, trata-se de um discurso que não se propõe a discutir as causas dos problemas das pessoas, mas a dizer o que as pessoas devem fazer para resolvê-los. Para tanto, apresenta um conjunto de enunciados que orientam o enunciatário em seu caminho rumo ao sucesso, ao lado de um conjunto relativamente pequeno de teses (que se repetem constantemente por meio de paráfrases). Espécie de manual de sobrevivência para o indivíduo pós-moderno, esse discurso dispensa as discussões de suas teses ao apresentá-las como verdades e como orientações a serem seguidas e não questionadas. Por isso, as obras de autoajuda se apresentam como um conjunto de dicas, de conselhos ou como “uma receita” a ser seguida na busca por uma meta específica.

Nesses termos, o enunciador das obras de autoajuda, ao projetar de si a imagem de uma pessoa otimista, convicta, determinada e de sucesso, apresenta-se também como alguém que tem o saber necessário para orientar o seu enunciatário, enunciando de um lugar de saber que projeta de si a imagem de um mentor, de um orientador, como se fosse alguém realmente dotado do conhecimento necessário para guiar as ações do enunciatário.

Essas expectativas em termos de ethos pré-discursivo não se devem apenas aos estudos sobre o discurso em questão. Com a popularização das obras de autoajuda e com a circulação intensa desse discurso na mídia, podemos dizer que se forma uma expectativa em termos de ethos pré-discursivo ligada a esse tipo de discurso que extrapola os limites dos estudos desenvolvidos sobre o tema. Assim, podemos dizer que o ethos pré-discursivo do enunciador de qualquer texto de autoajuda diz respeito realmente a um ethos de otimismo, de objetividade e de sabedoria, entendendo que esses dois últimos aspectos se ligam diretamente ao modo como o discurso se constrói, ou seja, por meio de orientações, dicas, conselhos.

No caso da obra em análise, notamos que os paratextos a apresentam como uma obra destinada a ensinar as mulheres a aprenderem a “lidar com os homens” (CARTER e SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., contracapa), de uma forma que seja fácil e simples. Esse tipo de apresentação, que informa que a obra se destina a passar algum tipo de conhecimento, de ensinamento de uma forma que seja fácil, simples, descomplicada e até descontraída é típica de obras de autoajuda, confirmando as expectativas do ethos pré-discursivo.

Passemos agora à análise do ethos discursivo propriamente dito, procurando identificar os tons do discurso. Essa análise se inicia com a observação do modo como a obra se organiza: não há capítulos nem seções. Apesar disso, podemos dizer que há divisões que são demarcadas por frases aforizadas, isto é, frases com propriedades enunciativas, apresentadas logo a seguir, que as aproximam de aforismos (como provérbios, adágios, slogans). Assim, cada uma das partes que compõem a obra se inicia por uma frase aforizada, colocada na parte superior da página, em negrito e em uma fonte diferente e maior que a fonte empregada no resto do texto.

Mais exatamente, na obra em questão, há mais de 250 aforizações, o que é um número bem alto, considerando, inclusive, o fato de que a obra tem apenas 160 páginas. Além das frases aforizadas que iniciam as seções, há muitas outras, especialmente nos finais das seções; assim, são as aforizações que marcam o início ou o final das seções. Essas frases aforizadas se iniciam praticamente da mesma forma, ou seja, pelo sintagma nominal “as mulheres inteligentes”, com poucas variações (“uma mulher inteligente”, “a mulher inteligente”). Vejamos algumas frases aforizadas que iniciam seções da obra:

(01) ‘As mulheres inteligentes sabem que... É sempre um erro deixar-se atrair pela aparência de um homem a ponto de ignorar seu conteúdo’. (CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 9)

(02) ‘As mulheres inteligentes sabem que... Deus inventou o flerte para que a mulher possa descobrir os defeitos de um homem antes de se envolver com ele, e não depois’. (CARTER e SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 17)

(03) ‘Uma mulher inteligente sabe distinguir os homens bons dos maus.’ (CARTER e SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 31)

Em linhas gerais, podemos dizer que as frases aforizadas são frases que desfrutam de um status pragmático especial, isto é, eles decorrem de um regime de enunciação específico, ao qual Maingueneau (2010MAINGUENEAU, Dominique. Doze conceitos em Análise do Discurso. POSSENTI, Sírio; SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília Perez. (orgs.). São Paulo: Parábola, 2010., 2015MAINGUENEAU, Dominique. Frases sem texto. São Paulo: Parábola, 2015.) chama de enunciação aforizante, em oposição à enunciação textualizante. Na enunciação textualizante, há posições correlativas de produção e de recepção, que são especificadas pelas restrições da cena relativa ao gênero a que o texto pertence, e os pensamentos estão articulados por meio de restrições de jogos de linguagem de diversas ordens (argumentar, narrar, responder, etc.).

Na enunciação aforizante, por sua vez, no lugar de posições correlativas, encontra-se uma instância que fala a uma espécie de auditório universal. Assim, não há protagonistas colocados no mesmo plano, pois a enunciação, de tipo monologal, centra-se no enunciador. Nesse caso, é o próprio indivíduo que se exprime, além e aquém de qualquer papel discursivo em particular. Não se trata, então, de uma argumentação, de uma resposta, de uma narração, mas de uma tese, de uma afirmação soberana, que prescinde de negociação.

Outra característica importante das aforizações diz respeito ao seu sentido. Segundo Maingueneau (2010MAINGUENEAU, Dominique. Doze conceitos em Análise do Discurso. POSSENTI, Sírio; SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília Perez. (orgs.). São Paulo: Parábola, 2010.) há, nas aforizações, uma opacificação de sentido que exige um trabalho interpretativo. Isto é, para as frases aforizadas o enunciatário (leitor ou ouvinte) é compelido a atribuir um sentido que vai além de seu sentido imediato. Ainda de acordo com Maingueneau (2010), essa interpretação assume uma forma geral que pode ser assim definida: “dizendo X, o enunciador implica Y, onde Y é um enunciado genérico de valor deôntico” (MAINGUENEAU, 2010MAINGUENEAU, Dominique. Doze conceitos em Análise do Discurso. POSSENTI, Sírio; SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília Perez. (orgs.). São Paulo: Parábola, 2010., p.15). A fim de exemplificar esse valor, Maingueneau (2010) cita o caso da frase aforizada “Eu me acho linda”, apresentada pela edição de 3 de setembro de 2003 da revista Veja, e atribuída à cantora Preta Gil. Conforme nos esclarece o autor, apesar de ser aparentemente trivial, essa frase, como toda atomização, tem um sentido que vai além de seu sentido imediato e que pode ser entendido como uma frase genérica com valor deôntico do tipo: “Não se deve ter vergonha de ser gordo”, “A gente deve se amar”, “Não se deve esconder o corpo”, etc.

Desse modo, qualquer uma das frases aforizadas presentes na obra em análise, como as aforizações apresentadas anteriormente, podem ser convertidas em frases genéricas com valor deôntico. Por exemplo, uma frase aforizada como a (03), “As mulheres inteligentes sabem que... É sempre um erro deixar-se atrair pela aparência de um homem a ponto de ignorar seu conteúdo”, pode ser assim parafraseada: “Nenhuma mulher deve se deixar levar pela aparência dos homens”, “As mulheres sempre devem prestar mais atenção no conteúdo do que na aparência dos homens”, “Todas as mulheres não devem nunca se deixar levar pela aparência dos homens”. O valor genérico das paráfrases evidencia-se nos sintagmas nominais com valores genéricos e/ou indefinidos (“as mulheres”, “todas as mulheres”, “nenhuma mulher”) e nos advérbios de valor indefinido (“nunca”, “sempre”).

Considerando os objetivos do discurso de autoajuda, podemos dizer que as frases aforizadas encontram, nesse discurso, um terreno bastante fértil para sua emergência. A esse respeito, vale lembrarmos que o discurso de autoajuda, qualquer que seja o tema e o público a que se dirige, promete ensinar fórmulas infalíveis para a realização bem sucedida de uma série de tarefas, entre as quais está a de ajudar as mulheres a lidarem com os homens e a conquistarem o parceiro ideal, que é o objetivo da obra que estamos analisando.

Além disso, conforme já dito, o discurso de autoajuda, de modo geral, pode ser tomado muito mais como um conjunto de orientações, de direcionamentos do que como um convite à reflexão, pois, ao invés de discutir as causas dos problemas de seus possíveis enunciatários, oferece soluções, dicas, conselhos.

Diante do exposto, podemos dizer que as frases aforizadas no discurso de autoajuda para mulheres auxiliam o enunciador no seu trabalho de orientação de seus enunciatários, pois lhe permitem dar uma ordem como se estivesse enunciando uma verdade.

Essas frases cumprem também o papel de reforçar o caráter didático do discurso, pois permitem que o enunciador possa expressar ordens de forma indireta, sem empregar enunciados imperativos ou deonticamente modalizados, que funcionam como instrumentos à disposição do enunciador para impor vontades sobre o enunciatário, regulando seu comportamento por meio de ordens e proibições, qualquer que seja o subtipo de dever veiculado (obrigação, permissão ou necessidade). Ou seja, enunciados imperativos ou deonticamente modalizados são impositivos e seu emprego pressupõe uma autoridade por parte de quem o profere. Por outro lado, com as frases aforizadas, esse tom autoritário fica bem acentuado, pois o valor deôntico não é explicito, mas deve ser inferido (ainda que essa inferência seja bastante óbvia).

Desse modo, as frases aforizadas na obra em análise mascaram o caráter autoritário do enunciador do discurso de autoajuda, mas sem comprometer o poder persuasivo do discurso, isto é, sua capacidade de desencadear a crença. Assim, proferindo ordens como se fossem verdades, ou seja, como conteúdos não negociáveis, o enunciador do discurso de autoajuda reforça o poder persuasivo desse discurso imprimindo-lhe um tom mais didático e menos autoritário, até porque cabe ao enunciatário descobrir o valor deôntico desses enunciados.

De fato, esse tom didático é bem evidente na obra em análise. Além das frases aforizadas, há outros indícios da presença desse tom, dentre os quais podemos citar o papel das narrativas apresentadas depois das aforizações. Mais exatamente, depois de cada frase aforizada, que inicia uma seção da obra, explora-se a orientação sugerida implicitamente pela aforização por meio de uma narrativa. Curiosamente, embora as aforizações tematizem “as mulheres inteligentes”, muitas narrativas apresentam histórias de mulheres mal sucedidas em seus relacionamentos, ou seja, tratam das mulheres que não foram “inteligentes” em seus relacionamentos. Vejamos um excerto a esse respeito:

(04) Bonnie reconhece que tem dificuldade em acertar nos seus relacionamentos. Embora a maioria das pessoas a considere autossuficiente, competente e independente, quando conhece um homem de quem gosta ela se entrega demais a ele. Quase contra a sua vontade, ela se envolve demais e se torna muito dependente. Bonnie fica ansiosa se o homem não lhe telefona todos os dias - mesmo no início do relacionamento. Ela fica nervosa se não sabe ao certo quando irá vê-lo de novo. Por exemplo, quando chega em casa após um programa com um homem de quem gosta, Bonnie muitas vezes se surpreende estendendo a mão para pegar o telefone e ligar para ele. Ela não consegue suportar a ansiedade da espera e da incerteza. Antes mesmo de ter certeza se gosta ou não de um homem, ela começa a pensar sobre todas as pequenas coisas que quer compartilhar com ele. Ela se dispõe a abdicar de seus amigos, de seus planos e de seu estilo de vida logo após conhecer alguém. Parece idiotice, mas Bonnie tem medo de fazer outros planos, porque aí “ele” pode telefonar e convidá-la para sair. Ela se preocupa com a possibilidade de perder a oportunidade de “tê-lo”, se não estiver completamente disponível para ele. Bonnie começou a sair com Daniel, um advogado que ela conheceu dois meses antes. No início, o relacionamento estava muito equilibrado. Ele se mostrava visivelmente interessado e tudo parecia correr bem. Ela se sentia calma e no controle de si mesma e de seus sentimentos. Então, depois da quarta saída, foram se aproximando cada vez mais e acabaram indo para a cama. Esse é o ponto em que Bonnie sempre começa a ficar ansiosa. Após uma relação sexual, ela passa a requerer muita atenção, começa a sonhar com o futuro, a imaginar o tipo de vida que “os dois” terão e a tentar empurrar o relacionamento para um novo patamar de intimidade. (CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 106-7)

A narrativa em questão é apresentada na obra depois da aforização “As mulheres inteligentes sabem que... um relacionamento com um homem deveria enriquecer a sua vida, e não moldá-la” (CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 106). Considerando essa aforização, podemos dizer que essas narrativas se prestam a exemplificar a situação de uma mulher que, ao invés de ter a vida enriquecida por um relacionamento, deixa o relacionamento moldar a sua vida, ou seja, a narrativa ilustra um comportamento contrário à norma prescrita indiretamente na/pela aforização.

Outras narrativas da obra, apresentadas após uma aforização, funcionam da mesma forma, isto é, exemplificando um comportamento que não deve ser adotado pelas mulheres. Desse modo, as narrativas compõem um dos recursos empregados para orientar as mulheres a se tornarem “mulheres inteligentes”.

Uma vez que o discurso de autoajuda, qualquer que seja o tema tratado e o público ao qual se refere, sempre se destina a passar algum tipo de orientação, podemos dizer que se trata de um discurso que tem um caráter didático evidente, o que se confirma por meio de enunciados que expressam alguma orientação, seja por meio de um tom autoritário, caso em que as orientações se apresentam como ordens a serem seguidas, seja por meio de um tom mais didático; nesse último caso, as orientações se apresentam como ensinamentos, sugestões, dicas, conselhos. No caso da obra em análise, podemos dizer que as aforizações e as narrativas deixam o tom do discurso mais didático.

Além das narrativas e das frases aforizadas, outro recurso que reforça o tom didático do discurso de autoajuda na obra em análise diz respeito ao emprego de perguntas e respostas que antecipam as prováveis dúvidas das leitoras. Vejamos dois excertos relativos a esse recurso:

(05) “Por que isso acontece? Porque saber lidar com a vida, com o amor e com os relacionamentos é muito diferente de ser um gênio em física nuclear.” (CARTER ; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 6)

(06) “O que há de errado com as obsessões? Nada, se você não se importar de se sentir deprimida praticamente o tempo todo.” (CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 12)

Conforme podemos notar, com essas perguntas o enunciador presta algum tipo de esclarecimento, e, ao mesmo tempo, aproxima-se do seu enunciatário (as leitoras), simulando um diálogo direto com ele, como se estive lhe antecipando as possíveis dúvidas. Além disso, projeta de si a imagem de alguém que conhece não só o pensamento das mulheres de que trata (as mulheres inteligentes e as que não são inteligentes) como também o pensamento de seu enunciatário, o que reforça a imagem de que se trata de um enunciador de conhecimento, dotado do saber necessário para aconselhar o enunciatário.

Outro indício diz respeito à apresentação das orientações e até mesmo das aforizações por meio de enumerações, algumas bem longas, com mais de 30 itens enumerados, e outras com um pouco menos, tais como:

(07) Uma mulher inteligente sabe também que não deve jamais se deixar cegar pela atração sexual a ponto de não prestar atenção em qualquer um dos seguintes aspectos: a atitude dele em relação às mulheres em geral a atitude dele em relação a dinheiro a atitude dele em relação à própria família a atitude dele em relação à própria carreira a atitude dele em relação ao próprio carro a atitude dele em relação à carreira dela a capacidade dele de ouvir e compartilhar a capacidade dele de jogar limpo a capacidade dele de rir a capacidade dele de não se levar muito a sério os vícios dele (fumar, beber, drogas, etc.) as possíveis aversões dele (seus animais de estimação, seus gostos, seus amigos, sua religião, anchova, etc.) as convicções políticas dele as crenças religiosas dele os valores dele as neuroses dele o histórico dele em relação às mulheres (CARTER e SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 18)

Enumerações como essa também evidenciam o tom didático do discurso à medida que procuram esclarecer detalhadamente algum aspecto específico relativo à orientação que está sendo passada. No caso citado, as enumerações listadas esclarecem quais são cada um dos aspectos que as mulheres precisam prestar atenção para avaliarem se estão ou não se deixando levar pela atração sexual.

Outro aspecto que merece ser comentado diz respeito ao tom de exagero, que marca especialmente as narrativas, nas quais situações e fatos descritos ou são muito positivos ou são negativos demais. Da mesma forma, são as pessoas descritas, suas reações, seus comportamentos e sentimentos. Vejamos um excerto no qual podemos notar esse tom:

(08) A maioria das pessoas acha que Linda é incrível. Afinal, ela teve uma ótima educação, dirige seu próprio negócio e é muito atraente e talentosa. Eis uma lista de algumas das coisas que ela sabe fazer: colocar papel de parede, construir divisórias, consertar uma torneira que está pingando, forrar sofás e poltronas, calcular seus impostos, preparar um molho de macarrão delicioso, ler enquanto pedala na bicicleta ergométrica, tricotar um suéter e enumerar os melhores jogadores da Seleção. Linda, que é divorciada e tem um filho de dez anos, é uma mãe maravilhosa, uma boa amiga e uma excelente cozinheira. Em resumo, Linda é uma mistura de Mulher Maravilha e Supermulher. No entanto, ela não se acha nada disso se estiver sozinha. Ela se sente péssima quando não tem um homem ao seu lado para lhe dizer que ela é bonita, inteligente e talentosa. Embora não admita isso com muita frequência, ela não se sente viva se não tiver um homem ao seu lado. Se um homem manifesta o mínimo interesse por ela, se esboçar o menor gesto ou diz alguma coisa que a faça se sentir bonita, desejável e importante, Linda mergulha de cabeça. Não é que ela queira se envolver com homens execráveis, mas a sua falta de autoestima e de bom senso é um fator que controla sua vida. [...] Está tão ansiosa para arranjar um companheiro, que se apaixona rápido demais por um homem. É como se seus olhos estivessem quase fechados. São tantas as tentativas que ninguém consegue se lembrar de todos os ex-namorados de Linda... Houve o Michael, que estava sempre a ponto de deixar a esposa, mas nunca deixou; o George que estava sempre para mudar de emprego, mas nunca mudou; o Fred, que achava defeito em tudo o que Linda fazia; o Harry, que cantava todas as suas amigas; o Ted, que passava mais tempo com seu parceiro de tênis do que com ela. Linda também tentou ter um relacionamento com Edward, que nunca falava; com Alan, que jamais calava a boca; com Bob, que nunca aparecia, e com Barney, que sempre aparecia bêbado. (CARTER e SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p.27-8; grifos nossos)

Nesse excerto, Linda é incialmente descrita como uma pessoa que tem várias qualidades (“incrível”, “teve uma ótima educação”, “muito atraente e talentosa”, “mãe maravilhosa”, “uma boa amiga e uma excelente cozinheira”) e que é muito independente (“dirige seu próprio negócio” e sabe fazer uma série de tarefas, algumas das quais poderiam ser consideradas mais tipicamente masculinas, tais como: “colocar papel de parede”, “construir divisórias”, “consertar uma torneira que está pingando”, “forrar sofás e poltronas”, “enumerar os melhores jogadores da Seleção”). Linda é apresentada de um modo tão positivo que é descrita como uma “uma mistura de Mulher Maravilha e Supermulher”.

Apesar dessa caracterização positiva, essa mesma Linda é descrita como uma pessoa que se sente tão mal se não estiver envolvida num relacionamento (“Ela se sente péssima quando não tem um homem”) a ponto de não se sentir “viva”. Por isso, “se um homem manifesta o mínimo interesse por ela, se esboçar o menor gesto ou diz alguma coisa que a faça se sentir bonita, desejável e importante, Linda mergulha de cabeça”, pois “a sua falta de autoestima e de bom senso é um fator que controla sua vida”, deixando-a muito ansiosa (“tão ansiosa”) a ponto de se apaixonar “rápido demais” por um homem. Segundo a narrativa, por causa dessa ansiedade que a impede de avaliar suas escolhas (“como se seus olhos estivessem quase fechados”), Linda já esteve muitas vezes envolvida em relacionamentos (“são tantas as tentativas que ninguém consegue se lembrar de todos os ex-namorados”) que não lhe fizeram bem, o que fica subentendido pelo tipo de homem com o qual ela se envolvia: homem casado, homem muito crítico (“o Fred, que achava defeito em tudo o que Linda fazia”), homem infiel (“o Harry, que cantava todas as suas amigas”); homem que bebe demais (“Barney, que sempre aparecia bêbado”).

O tom de exagero se deve ao emprego do léxico ora com valor positivo (“incrível”, “maravilhosa”, “ótima”, “excelente”), ora com valor negativo (“péssima”, “execráveis”), e ao emprego de certos advérbios (“nunca”, “jamais”, “sempre”), de intensificadores (“muito”, “mais”, “tão”) e de quantificadores (“tudo”, “todas”).

A seguir, apresentamos outro excerto em que podemos notar o tom de exagero do discurso que se materializa na obra a partir dos recursos já citados (emprego de adjetivos, de intensificadores e de quantificadores), e também por meio de orações subordinadas consecutivas de intensidade (tão/tanto X que Y).

(09) No entanto, ela não precisou de muito tempo para perceber que estava louca por ele. As primeiras semanas do relacionamento foram fantásticas. Margaret estava delirantemente feliz. Repetia sem cessar às suas amigas o quanto se sentia privilegiada e se emocionava ao pensar na sorte que tinha. Paul era atraente, agradável, charmoso, inteligente e indubitavelmente a adorava. [...] Quando estavam juntos, tudo continuava a ser maravilhoso, e por isso ela teve muita dificuldade em aceitar o que estava acontecendo. [...] Foi então que Margaret começou a entrar em desespero. [...] Às vezes os dois têm discussões terríveis, e ela se vê gritando com ele ou quase lhe suplicando. Mas a tristeza de Margaret ou sua histeria não mudam o comportamento de Paul. [...] Margaret sente raiva, ansiedade, dor. [...] mas ela não quer que eles saibam que a situação está péssima [...]. (CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 50-1; grifos nossos)

Podemos dizer que esse tom de exagero, no discurso em análise, está ligado ao seu caráter didático, pois, como os exageros dão ênfase às ideias a que estão relacionados, facilitam a compreensão das situações exemplificadas e das teses que o discurso defende.

Com esse tom de exagero, o discurso de autoajuda parece se aproximar das mulheres a quem se dirige, que, segundo esse mesmo discurso, seriam as mulheres que estão acostumadas ao sofrimento e ao melodrama. No próximo item, tratamos da relação entre esses tons identificados na análise (isto é, o tom didático das orientações e o tom de exagero e de melodrama das narrativas), a imagem que o discurso de autoajuda projeta das mulheres e o estereótipo tradicional de gênero feminino.

3. Imagens de mulher presentes no discurso de autoajuda

No discurso de autoajuda sobre relacionamentos dirigido às mulheres, predominam duas imagens de mulheres bem delineadas: uma imagem positiva, que diz respeito ao comportamento que deve ser adotado pelas mulheres, e a uma imagem negativa, que diz respeito ao comportamento que deve ser evitado pelas mulheres para o sucesso de seus relacionamentos.

No caso da obra em análise, a primeira delas, que diz respeito ao modelo de mulher de que a obra trata, é a “a mulher inteligente”. Considerando excertos como os apresentados a seguir, podemos dizer que essa mulher é a que sabe “manter relacionamentos equilibrados”, que tem autoestima elevada, independentemente de estar ou não envolvida em um relacionamento, e que não se deixa levar pelas próprias emoções:

(10) A inteligência de que este livro trata está relacionada à capacidade de manter relacionamentos sadios e equilibrados. Mas só consegue essa sabedoria quem tem consciência de que, para ser feliz com qualquer pessoa, é preciso, antes de tudo, gostar de si mesmo, valorizar-se e respeitar seus verdadeiros desejos. (CARTER e SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., orelha da capa)

(11) Nós temos certeza de que existe uma maneira mais fácil para uma mulher se tornar inteligente - uma maneira mais fácil de aprender a ser sábia ao lidar com relacionamentos e não precisar passar por experiências traumáticas que muitas vezes acompanham a aquisição desse conhecimento. (CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 5)

A outra imagem de mulher diz respeito ao comportamento que as mulheres devem evitar, se quiserem se tornar “mulheres inteligentes”. Considerando as narrativas e o conteúdo das orientações dirigidas às mulheres, de forma direta ou indireta, especialmente por meio das aforizações, notamos que se trata de uma mulher que corresponde ao oposto da mulher inteligente: uma mulher com baixa autoestima, que se deixa levar pelas emoções, que só se sente realizada se estiver envolvida em algum relacionamento. Aliás, nas narrativas, fica bastante evidente que essa mulher não é apenas caracterizada como sendo uma pessoa muito emocional, mas especialmente como uma pessoa que não tem controle sobre essas emoções. Por isso, nas narrativas as mulheres têm emoções muito intensas (amam demais, se entregam demais ao relacionamento, sofrem demais, etc.) e se deixam dominar por esses sentimentos, a ponto de serem descritas como histéricas ou obcecadas, conforme podemos notar nos excertos apresentados a seguir:

(12) “Essa não é a primeira vez e, provavelmente, não será a última em que Stella fica obcecada por alguém. Afinal, na opinião dela, obsessão e amor são sinônimos”. (CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 13; grifos nossos)

(13) “Como ele morava em outra cidade, Sarah só descobriu que a esposa dele estava grávida depois de a criança nascer. É claro que ficou histérica.” (CARTER e SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 46; grifos nossos)

(14) Dorothy ficou histérica, como não suportava a ideia de passar o resto da vida sozinha começou a sair alucinadamente.” (CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 72; grifos nossos)

Em todas as narrativas, fica evidente a caracterização da mulher cuja história está sendo ali contada como sendo, em linhas gerais, uma pessoa insegura, sem controle emocional e bastante ansiosa, isto é, uma pessoa mais emocional do que racional (por isso, inclusive, as fortes emoções, as brigas, as discussões, o sofrimento, a ansiedade, o histerismo, etc.). Vejamos alguns excertos a esse respeito:

(15) Uma vez ficou tão descontrolada que jogou todo o que havia dentro dos armários pela janela. Outra lhe telefonava todas as noites, à meia-noite, e desligava assim que ele atendia. Outra ainda, dois anos após terem terminado, fazia uma cena cada vez que o via acompanhado de uma mulher. (CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 43; grifos nossos).

(16) “Foi então que Margaret começou a entrar em desespero. (...) Às vezes os dois têm discussões terríveis, e ela se vê gritando com ele ou quase lhe suplicando. Mas a tristeza de Margaret ou sua histeria não mudam o comportamento de Paul. (...) Margaret sente raiva, ansiedade, dor.” (CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 50-1, grifos nossos)

(17) Quase contra a sua vontade, ela se torna grudenta carente e insegura. Em resumo, ela se envolve demais e se torna muito dependente. Bonnie fica ansiosa se o homem não lhe telefona todos dos dias - mesmo no início do relacionamento. Ela fica nervosa se não sabe ao certo quando irá vê-lo de novo. (...) Ela não consegue suportar a ansiedade da espera e da incerteza. (CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p.106; grifos nossos)

A imagem de mulher que tem baixa autoestima, que é insegura e que se deixa levar pelas emoções pode ser percebida inclusive quando o discurso de autoajuda simula reproduzir, por meio de perguntas, o próprio discurso das mulheres cujas histórias narra; vejamos dois excertos a esse respeito:

(18) “Ela fica confusa, tenta adivinhar o que aconteceu, fica imaginando o que pode ter saído errado. Terá sido alguma coisa que ela disse, alguma coisa que ela fez, alguma coisa que ela não disse, alguma coisa que ela não fez? ” (CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 63)

(19) “Annie está fora de si. Será que ela disse ou fez alguma coisa errada? Será que há algo errado com ela sexualmente? Será que ele detestou a aparência dela, a maneira como ela se sentia e agia? Será que ela era muito reprimida? Será que não era suficientemente reprimida? O que será que aconteceu?” (CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 65)

(20) Amanhã à noite ela sairá pela primeira vez com Adam, primo de uma colega de trabalho. Connie o viu umas duas vezes quando ele foi visitar a prima e, sem dúvida, o acha muito atraente. Mas será que ele é tão simpático quanto bonito? O que uma mulher faz em um primeiro encontro hoje em dia? Será que é como nos filmes, como todo mundo correndo para a cama na primeira oportunidade? E o controle de natalidade?... E as doenças sexualmente transmissíveis? Como é que se abordam esses assuntos? O sexo pode ser algo maravilhoso, mas será que vale a pena? Ela precisa obter algumas respostas bem depressa. (CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 89)

Nesses excertos, notamos que a imagem de mulher insegura se constrói pelas dúvidas que expressam por meio de perguntas. Com essas perguntas, o enunciador simula reproduzir o pensamento (as dúvidas) das mulheres cujas histórias está narrando. Embora sejam poucas as vezes em que o enunciador relata o discurso das mulheres de que trata, quando o faz, reforça a imagem de mulher insegura e cheia de dúvidas.

Do nosso ponto de vista, essa imagem está diretamente vinculada ao estereótipo tradicional de mulher. Mais exatamente, a ideia de que a mulher é mais emocional e menos racional pode ser tomada como uma variação do estereótipo tradicional do gênero feminino, segundo o qual a mulher é calorosa, mas incompetente (positivo na dimensão warm e negativo na dimensão competence).Seguindo essa mesma linha de raciocínio e considerando reflexões como as de Cecilia Ridgeway (2009RIDGEWAY, Cecilia. “Framed before we know it: how gender shapes social relations”. Gender & Society, vol. 23, n. 2, p. 145-160, apr. 2009.),podemos dizer que se trata de uma variação da ideia de que as mulheres são “mais reativas e emocionalmente expressivas” (RIDGEWAY, 2009RIDGEWAY, Cecilia. “Framed before we know it: how gender shapes social relations”. Gender & Society, vol. 23, n. 2, p. 145-160, apr. 2009., p. 149).

Além disso, entendemos que essa imagem tem um papel fundamental no discurso em questão, pois é ela que lhe dá legitimidade. Conforme já dito, o discurso em análise se apresenta como um discurso que pretende auxiliar as mulheres a se tornarem “mulheres inteligentes”, ou seja, menos emocionais e mais competentes no gerenciamento de suas vidas afetivas. O próprio léxico do discurso reflete essa oposição entre a razão (“inteligência”, “inteligente”, “sabedoria”, “compreensão”, “consciência”, “sensata”, “bom senso”, “julgamento”), que é valorizada, e a emoção (“melodrama”, “sofrimento”, “ciúmes”, “medo”), que é rejeitada, como podemos notar nos excertos apresentados a seguir:

(21) “Sabedoria sem sofrimento, compreensão sem angústia, descobertas sem melodrama - é disto que trata este livro.” (CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 5; grifos nossos)

(22) “Uma mulher inteligente sabe que não está sendo sensata quando (...)” (CARTER ;SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 26; grifo nosso)

(23) “As mulheres inteligentes sabem que... Ter consciência do seu próprio valor significa saber o que você tem a oferecer e não oferecê-lo rápido demais” (CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 27; grifos nossos)

(24) “Uma mulher inteligente tem o bom senso de gostar de um homem que: (...)” (CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 35 e p. 38; grifos nossos)

(25) “As mulheres inteligentes sabem que... Não é sensato deixar o medo da solidão prejudicar o seu julgamento. ” CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 71; grifos nossos)

(26) “As mulheres inteligentes sabem que... Se você está envolvida com um homem que lhe provoca ciúmes, é aconselhável investigar melhor o relacionamento, o seu parceiro e as suas próprias reações” (CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p.81; grifos nossos).

(27) “As mulheres inteligentes sabem que... Não é inteligente aferrar-se ao sofrimento” (CARTER; SOKOL, 2006CARTER, Steven; SOKOL, Julia. O que toda mulher inteligente deve saber: como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006., p. 127; grifos nossos).

Podemos dizer que o discurso de autoajuda se vale dessa imagem tradicional de mulher para se legitimar, porque como se trata de um discurso que pretende passar um conhecimento específico às mulheres (no caso, como se comportarem a fim de se tornarem “mulheres inteligentes”), é, nesses termos, um discurso que só tem validade se as mulheres realmente necessitarem desse tipo de conhecimento. Como o discurso se ancora nessa imagem para se legitimar, podemos dizer que tal imagem funciona como uma de suas condições de produção mais importantes.

Nessa ancoragem, o discurso colabora para a manutenção desse estereótipo, na medida em que reforça a sua circulação. Assim, sob a justificativa de auxiliar as mulheres a melhorarem a sua autoestima e a aprenderem a lidar com os homens, o discurso de autoajuda pressupõe que as mulheres precisam desse auxílio porque são mais emocionais do que racionais, reforçando o estereótipo em questão.

Considerando, então, esses esclarecimentos, passemos a refletir sobre a relação entre o tom didático do discurso de autoajuda e estereótipos de gênero feminino. Conforme vimos, na obra em análise, o tom didático está bastante acentuado. Do nosso ponto de vista, esse tom está diretamente ligado ao estereótipo de gênero feminino em que o discurso se ancora. Vejamos: destinando-se justamente a orientar as mulheres e pressupondo que elas seriam menos capazes do que o desejável (mais emoção e menos razão), o discurso investe em recursos de expressão que facilitem a compreensão por parte do enunciatário, daí o predomínio do tom didático.

Essa suposta inclinação das mulheres às emoções pode justificar ainda o tom melodramático das narrativas. Nesse caso, como já dito, o discurso de autoajuda estaria adotando esse tom para adequar-se ao universo das mulheres, especialmente àquelas a que se dirige, que, segundo esse discurso, seriam mesmo propensas ao sofrimento, às fortes emoções; daí a caracterização das mulheres nas narrativas como pessoas inseguras, ansiosas, carentes, sem controle emocional, obcecadas, histéricas.

Diante do exposto, podemos dizer que o discurso de autoajuda dirigido às mulheres, ancorado na imagem tradicional da mulher (mais emocional e menos racional) colabora para a manutenção do sistema de desigualdades entre os gêneros, mesmo que se destine a auxiliar as mulheres a superarem as suas supostas deficiências. A esse respeito, vale lembrar que, mesmo quando não há adesão ao estereótipo, seu suporte ao status quo ainda funciona, pois quanto mais um estereótipo é difundido, mais culturalmente acessível ele se torna. Ou seja, o que está em questão aqui são os efeitos desencadeados pela circulação do estereótipo de gênero e não o fato de serem ou não endossados pelas pessoas.

Esse resultado nos leva a constatar que o discurso de autoajuda para mulheres, pelo menos no que diz respeito a obras como a citada, é sexista. Como nos revela Fiske (2012FISKE, Susan Tufts. “Managing ambivalent prejudices: smart-but-cold and warm-but-dumb stereotypes”. Annals of the American Academy of Political and Social Science , Philadelphia, EUA, vol. 639, n. 1, p. 33-48, jan. 2012.), o sexismo não deixa de sê-lo mesmo quando aparece travestido de benevolência. Segundo a autora, o sexismo benevolente perturba a mulher com dúvidas sobre si e pode desabilitar a mulher a perceber e a resistir ao próprio sexismo. Esse nos parece ser o caso do discurso em análise, porque, embora se apresente como um discurso a serviço dos interesses das mulheres, reforça a crença de que as mulheres precisam de orientação, de que fazem escolhas insensatas, de que não têm controle emocional, de que são carentes, etc.

Diante das desigualdades que há entre os gêneros em sociedades como a nossa, a circulação dessa imagem de mulher (mais emocional do que racional) certamente não se presta apenas a colaborar para que os livros de autoajuda sejam vendidos, mas participa, à sua maneira, do processo de manutenção das diferenças de status entre os gêneros.

4. Considerações Finais

Neste trabalho, analisando uma obra de autoajuda sobre relacionamento, verificamos que o ethos do discurso de autoajuda dirigido a mulheres é marcado por um tom de exagero e especialmente por um tom didático que estão ligados à imagem que o discurso projeta de seu enunciatário (as leitoras das obras). A reflexão desenvolvida evidencia que esse discurso reforça a circulação do estereótipo de mulher segundo o qual as mulheres são mais emocionais do que racionais.

Diante desse resultado, notamos a contradição do discurso de autoajuda sobre relacionamentos dirigidos às mulheres: trata-se, aparentemente, de um discurso que está a serviço das mulheres, pois se apresenta como um discurso direcionado a auxiliá-las a terem sucesso no gerenciamento de seus relacionamentos. Entretanto, a análise do modo como se estrutura revela que reforça o estereótipo tradicional de gênero feminino, colaborando, assim, com o processo de manutenção do sistema de desigualdade entre os gêneros do qual o estereótipo feminino em questão participa. E ao colaborar para reforçar o sistema de desigualdades entre os gêneros, que é desfavorável às mulheres, o discurso de autoajuda cumpre um papel bem distinto de sua finalidade assumida, que, como vimos, traria supostamente um saldo positivo às mulheres, daí o caráter contraditório de seu funcionamento.

Ainda quanto ao discurso em questão, vale observarmos que, ao longo da análise aqui desenvolvida, não identificamos indícios do tom de otimismo que é característica básica do discurso de autoajuda, conforme observamos em Brunelli (2004BRUNELLI, Anna Flora. O sucesso está em suas mãos: análise do discurso de autoajuda. 2004. Tese (Doutorado em Linguística) - Programa de Pós-Graduação em Linguística, Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil.). Esse resultado nos indica que se trata de um discurso heterogêneo, pois apresenta variação de tom em função do tema tratado e do público ao qual se dirige. Quando se destina a orientar adultos para que ascendam profissional e financeiramente, o discurso é objetivo e o tom de otimismo é bem evidente. Por outro lado, quando se dirige às mulheres e tematiza relacionamentos, o tom otimista desaparece, cedendo espaço para que o tom didático predomine.

Referências Bibliográficas

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  • 2
    Segundo o site da Livraria Cultura, trata-se, atualmente, de uma obra que vendeu 850 mil exemplares (cf. http://www.livrariacultura.com.br/p/o-que-toda-mulher-inteligente-deve-saber-1411584; acesso em março de 2017).
  • Anna Flora Brunelli (anna@ibilce.unesp.br) é professora da área de língua portuguesa do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, UNESP, Campus de São José do Rio Preto (SP), instituição na qual atua em cursos de graduação e de pós-graduação. É mestre e doutora em Linguística pela UNICAMP. Realizou dois estágios de pós-doutoramento: um junto ao Departamento de Linguística da UNICAMP e outro junto ao Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia em Davis (UC Davis), EUA. Trabalha com a Análise do Discurso de linha francesa. É membro do grupo de pesquisa CNPq FEsTA (Fórmulas e Estereótipos: teoria e análise).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Out 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2017
  • Revisado
    09 Abr 2018
  • Aceito
    10 Abr 2018
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