Acessibilidade / Reportar erro

QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS EM DISCURSOS EM TORNO DA VIRILIDADE MASCULINA NEGRA EM CONTOS HOMOERÓTICOS

ETHNIC-RACIAL ISSUES IN DISCOURSES ON BLACK MALE VIRILITY IN HOMOEROTIC SHORT STORIES

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo analisar a naturalização de um determinado discurso de virilidade masculina negra em contos homoeróticos publicados na Internet. O referencial teórico abarca a problematização da questão racial (BELL HOOKS, 1995HOOKS, bell. Intelectuais negras. Estudos feministas, ano 3, n. 2 - Dossiê: Mulheres Negras. Florianópolis, p. 464-478, jun/dez 1995.; FREITAS, 2011FREITAS, Marcel de Almeida. “O cotidiano afetivo-sexual No Brasil colônia e suas consequências psicológicas E culturais nos dias de hoje”.Ponta De Lança: Revista Eletrônica De História, Memória & Cultura5 (9), 2011, 63-68. https://seer.ufs.br/index.php/pontadelanca/article/view/1577
https://seer.ufs.br/index.php/pontadelan...
; FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. MBEMBE 2018MBEMBE, Achille. A crítica da razão negra. Tradução de Marta Lança. Lisboa: Antígona, 4. ed, 2018; WIEVIORKA, 2018WIEVIORKA, Michel. O racismo: uma introdução. São Paulo: Perspectiva, 2018.), da perspectiva da noção de discurso (FOUCAULT, 2012FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. ; MAINGUENEAU, 2010MAINGUENEAU, Dominique. O discurso pornográfico. Tradução Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. (Lingua[gem]; 42).) e de construções de sentido de virilidade e seus efeitos ao longo da História (TAMAGNE, 2012TAMAGNE, Florence. “Mutações homossexuais”. In: COURTINE, Jean-Jacques. (dir.) História da virilidade . Vol. 3. A virilidade em crise? Séculos XX e XXI. Petrópolis: Vozes, 2012.; THUILLIER, 2012THUILLIER, Jean-Paul. “Virilidades romanas: vir, virilitas, virtus”. In: VIGARELLO, Georges. (dir.) História da virilidade . Vol. 1. A invenção da virilidade. Da antiguidade às Luzes. Petrópolis: Vozes, 2012.). Metodologicamente, este estudo se enquadra em um paradigma de pesquisa qualitativo-interpretativista. Para geração dos dados, o trabalho registra a análise dos 10 contos gays mais votados pelos leitores do portal “Conto Erótico”, em cujos títulos há a menção do termo “negão”, a fim de identificar como são apresentados caracteres físicos e performances sexuais de homens negros descritos como bons amantes. Os resultados sugerem que essa fixação identitária sofrida por esses homens acaba reforçando o racismo estrutural, que, no Brasil, vem sendo enfatizado desde o estabelecimento das relações hierárquicas entre colonizadores europeus brancos e escravos africanos negros no decurso de séculos de escravidão oficial. Isso ainda hoje constrói um efeito de sentido objetal sobre o negro, posicionando-o como objeto de desejo na teia imaginária.

Palavras-chaves:
discurso; homens negros; virilidade; contos

ABSTRACT

This paper aims to address the naturalisation of black male virility discourse in homoerotic short stories published online. The theoretical framework includes the issue of race (BELL HOOKS, 1995HOOKS, bell. Intelectuais negras. Estudos feministas, ano 3, n. 2 - Dossiê: Mulheres Negras. Florianópolis, p. 464-478, jun/dez 1995.; FREITAS, 2011FREITAS, Marcel de Almeida. “O cotidiano afetivo-sexual No Brasil colônia e suas consequências psicológicas E culturais nos dias de hoje”.Ponta De Lança: Revista Eletrônica De História, Memória & Cultura5 (9), 2011, 63-68. https://seer.ufs.br/index.php/pontadelanca/article/view/1577
https://seer.ufs.br/index.php/pontadelan...
; FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. MBEMBE 2018MBEMBE, Achille. A crítica da razão negra. Tradução de Marta Lança. Lisboa: Antígona, 4. ed, 2018; WIEVIORKA, 2018WIEVIORKA, Michel. O racismo: uma introdução. São Paulo: Perspectiva, 2018.), a discourse-oriented perspective (FOUCAULT, 2002FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. ; 2012FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. ; MAINGUENEAU, 2010MAINGUENEAU, Dominique. O discurso pornográfico. Tradução Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. (Lingua[gem]; 42).), the concept of virility as well as its effects of meaning throughout History (TAMAGNE, 2012TAMAGNE, Florence. “Mutações homossexuais”. In: COURTINE, Jean-Jacques. (dir.) História da virilidade . Vol. 3. A virilidade em crise? Séculos XX e XXI. Petrópolis: Vozes, 2012.; THUILLIER, 2012THUILLIER, Jean-Paul. “Virilidades romanas: vir, virilitas, virtus”. In: VIGARELLO, Georges. (dir.) História da virilidade . Vol. 1. A invenção da virilidade. Da antiguidade às Luzes. Petrópolis: Vozes, 2012.). From a methodological standpoint, this study endorses a qualitative-interpretive approach. Data were gathered from the ten most voted gay short stories available in the Conto Erótico [Erotic Short Story] website, the titles of which include the term negão [big, black man], so as to verify in which ways the physical traits and sexual performances of black men described as good lovers are conveyed. Results suggest that such a portrayal ultimately reinforces structural racism in Brazil, which can be traced back to the establishment of hierarchical relations between white European colonisers and black African slaves over centuries of official slavery. Up to this day, such relations help to build an objectified effect of meaning around black men which portrays them as objects of desire in the social imaginary.

Keywords:
Discourse; black; virilities; Stories

INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo1 1 Este estudo está alicerçado dentro de uma Linguística Aplicada indisciplinar, que se constitui no âmbito de um arcabouço teórico transdisciplinar que promove um diálogo com as ciências humanas e sociais, cuja finalidade é criar materialidade aos problemas de ordem social e sua relação com linguagem e discurso (MOITA LOPES, 2006; SOUZA; ZOLIN-VESZ, 2018). Devemos também enfatizar que há um número abundante de trabalhos das teorias queer que procuram discutir a questão de gênero e performatividade. Porém, neste estudo, optamos por focalizar o conceito de virilidade diante de nosso contexto, no qual a figura mítica do pênis é a mais recorrente. é tratar do discurso sobre corpos de homens negros em contos pornográficos, tendo como premissa uma perspectiva de virilidade heteronormativa e sua relação com o preconceito racial. Este trabalho se funda na observação sobre como personagens negros masculinos - em narrativas pornográficas de conteúdo homossexual - eram sexualmente racializados. Nesse sentido, defendemos que essa representação de personagens traz em seus enunciados matrizes do racismo estrutural brasileiro.

Nesta pesquisa, fazemos uma relação entre discurso e virilidade na construção das masculinidades negras com base na influência dos estudos discursivos foucaultianos e sua produção de sentidos para sexualidade, que em princípio procuram questionar a manutenção de processos binários de hierarquização e de exclusão na sociedade. Em diálogo com as pesquisas foucaultianas, os estudos sobre virilidades colaboram no entendimento dos modelos de masculinidades desfiladas em contos homoeróticos e a escolha de certos personagens negros evidenciados em nossos dados gerados.

Discurso e sujeito, neste trabalho, devem ser compreendidos pelo viés foucaultiano. Portanto, o discurso é entendido como construção cultural da realidade que (re)produz relações de poder já determinadas pelos saberes institucionalizados da realidade social (FOUCAULT, 2012FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. ). E o sujeito, por seu lado, é a configuração do saber da sua contemporaneidade, uma figura de poderes, ciências e instituições cuja identidade, que acredita possuir, é representada dentro de determinado contexto sócio-histórico.

Foucault (1995)FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1995. apresenta a ideia de dispositivo quando se refere a diferentes mecanismos institucionais e estruturas de conhecimento que potencializam e mantêm hegemonias no poder dentro do corpo social. O discurso é dispositivo importante para o desenvolvimento do trabalho ora apresentado. O mesmo Foucault (2012)FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. compreende a sexualidade como um dispositivo discursivo de saturação. Desse modo, mobiliza um jogo paralelo entre poderes e prazeres, à maneira de um mecanismo de duplo estímulo. Segundo Foucault (1995)FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1995., o poder é uma prática social historicamente constituída, encontrado por toda parte e em constante transformação, sem identidade própria ou unitária e sem pertencer a alguém ou alguma instituição. É em decorrência desse jogo que determinados comportamentos sexuais são entendidos como socialmente aceitáveis, e outros não.

Reconhece-se, portanto, como legítimo esse jogo que ordena um traçado paralelo entre a posição em que o sujeito se instala no corpo social - e o poder que o coloca em tal posição - e a sexualidade que o sujeito poderá exercer - os prazeres a ele conferidos. A certas pessoas são impostas determinadas formas de demonstração de prazer, pois o lugar por elas ocupado no sistema social não lhes permite, dentro do imaginário social, exercer outros papéis.

No Brasil hoje, o discurso sobre a cor da pele do sujeito mantém-se como dispositivo que opera no social, concedendo a este sujeito poderes. Dito isso, com base em Wieviorka (2018, p. 09)WIEVIORKA, Michel. O racismo: uma introdução. São Paulo: Perspectiva, 2018., definimos racismo como uma construção discursiva que caracteriza um grupo humano por seus atributos naturais e que buscam associá-los às características intelectuais e morais de cada indivíduo com a finalidade de produzir processos de inferiorização e exclusão social.

A racialização dos corpos negros é um fenômeno discursivo e ideológico que foi amplamente difundido no século XVIII, justificando principalmente o processo de expansão colonial e escravocrata, e marcando peremptoriamente a ideia de estado-nação e, em consequência, a superioridade da “raça” branca sobre as outras.

Esse discurso inaugurou um racismo que procurava, nas características deterministas biológicas/físicas, justificativas para definições psicológicas e intelectuais coletivas e individuais de cada “raça”. Nesse caminho, segundo bell hooks (1995), os povos negros personificavam o primitivo numa fusão das concepções de homem e natureza, enquanto o branco, por sua vez, é concebido como representante da civilização, a racionalidade, a ordem e o equilíbrio.

Assim, sob esse viés, os brancos consideravam discursivamente os corpos dos homens negros como selvagens, robustos e primitivos. Freitas (2011) nos informa que, no período do regime institucional da escravização brasileira, era comum que os compradores de escravos analisassem cuidadosamente os corpos dos homens negros, como o tamanho do órgão genital com foco na reprodução no cativeiro ou a funcionalidade deles na produção de prazeres sexuais que poderiam proporcionar para aqueles que os possuíssem. Portanto, a virilidade dos corpos masculinos negros insere sua matriz originária no processo colonial, impactando até o presente os discursos em torno dos desejos sexuais socialmente difundidos.

A sistematização da racialização dos corpos (em detrimento do corpo negro), relacionando corpo, condição social e virilidade ocorrida no período colonial brasileiro já possui registros desde a época do Império Romano. Nesse período, os escravos eram representantes de outros povos e desempenhavam ocupações hierarquicamente inferiores às de um cidadão romano pleno, que costumavam exigir força física e, assim, o desenvolvimento de um corpo robusto, e os gladiadores - muitos deles gentios ou cidadãos romanos caídos em desgraça -, que precisavam expor corpos trabalhados ao espetáculo público na arena, espetáculo este viril na essência. Bestiais como escravos ou lutadores, esses “outros”, sempre menos racionais que o pleno cidadão, ocupavam imaginários de potência física e sexual (THUILLIER, 2012THUILLIER, Jean-Paul. “Virilidades romanas: vir, virilitas, virtus”. In: VIGARELLO, Georges. (dir.) História da virilidade . Vol. 1. A invenção da virilidade. Da antiguidade às Luzes. Petrópolis: Vozes, 2012.).

Essa memória discursiva que alia potência sexual e corpos de trabalhadores braçais - no caso do Brasil, homens negros - parece ser constantemente mobilizada em manifestações culturais homoeróticas, como é o caso de contos pornográficos homossexuais que, em conjunto com outros objetos culturais, colaboram na construção discursiva da noção de virilidade e negritude no imaginário social.

Tal memória mobilizada, sobre uma pretensa habilidade sexual de corpos negros, recupera um discurso racista, que procura fixar esses corpos como naturalmente apetitosos e voluptuosos, demarcando, portanto, sua importância social com base no que é dito sobre eles. Esse processo se manifesta pelos implícitos.

Para Achard (2015)ACHARD, Pierre. Memória e produção discursiva do sentido In: ACHARD, Pierre et al.O papel da memória .4. ed. Campinas: Pontes, 2015., os implícitos são passíveis de recuperação por serem paráfrases de outros enunciados, proferidos em outro lugar e momento e memorizados; além de poderem ser construídos no momento da formulação do enunciado, sem existência anterior. Esta última, o autor chama de construção discursiva de sentido, relacionada com a dialética entre a repetição e a regularização, estando a memória situada ao lado da regularização, que oscila entre o histórico e o linguístico e se apoia sobre o reconhecimento do que é repetido. Assim, um discurso em circulação aciona uma memória como paráfrase de enunciados proferidos em outro lugar na História.

Foucault (2012)FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. aponta que a memória recupera as filiações dos sentidos por meio do enunciado. O autor evidencia que discursos já efetuados são conservados estagnados e, eventualmente, podem voltar à circulação. Foucault (2012)FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. sugere que uma análise enunciativa retoma discursos com sentidos ainda remanescentes, indicando que há também esquecimento2 2 um enunciado proferido pressupõe dois esquecimentos: o esquecimento n. 1 (o enunciador não é a origem do enunciado) e o esquecimento n.º 2 (o enunciado já foi proferido em outros tempo e lugar), e a retomada do discurso numa instanciação seria sempre uma reformulação-paráfrase. (PÊCHEUX, 2009, p. 161-2) de alguns desses sentidos. Desta forma, Foucault (2012) estabelece que os enunciados remetem a um já-dito, não como cópias, mas como memórias, como paráfrases de reminiscências históricas cujas origens foram esquecidas.

Esta introdução tem por finalidade apresentar brevemente o tema de nossa pesquisa e a relação entre virilidade e questão racial. A análise se baseia na congruência entre discurso, virilidade e racialização dos corpos negros, demonstrada nas narrativas de contos homoeróticos com o intento de responder à seguinte questão: como ocorre o processo de naturalização discursiva da racialização dos corpos de homens negros nos contos eróticos gays? Para esquadrinhar nosso corpus, nos baseamos nos estudos sobre discurso e alguns princípios sobre virilidade e das questões étnico-raciais, buscando entender a naturalização do corpo do homem negro como um produtor de prazeres. A título de encerramento, procuramos refletir sobre a importância da pesquisa no atinente a discurso, virilidade e sexualidade no contexto digital, bem como em suas consequências políticas, culturais e sociais no âmbito dos estudos relativos à linguagem.

1. NOÇÃO DE VIRILIDADE, LINGUAGEM E PORNOGRAFIA NA RACIALIZAÇÃO DE HOMENS NEGROS

Segundo Thuillier (2012)THUILLIER, Jean-Paul. “Virilidades romanas: vir, virilitas, virtus”. In: VIGARELLO, Georges. (dir.) História da virilidade . Vol. 1. A invenção da virilidade. Da antiguidade às Luzes. Petrópolis: Vozes, 2012., a palavra virilidade se associa às correlatas latinas “vir”, “virilitas” e “virtus”, que significa “meu homem” em referência à atividade sexual. Portanto, para os romanos no apogeu do Império, alguém somente se torna homem, vir, após sua primeira experiência sexual com uma mulher. Nesse contexto, a virilidade masculina concedia a prerrogativa de ser sexualmente ativo/penetrador com “puer” (garoto e/ou escravo). Essa virilidade era demonstrada por corpo robusto associado ao pênis sexualmente funcional. O corpo do guerreiro deveria se evidenciar sempre disponível à luta corpórea. A feição rude era essencial. Homens esteticamente lidos como muito belos, perfumados e depilados, de cabelos encaracolados e que matraqueassem com mulheres, eram representativos de um estilo que desviava dos padrões romanos vigentes de virilidade. Portanto, o homem deveria impor-se, inclusive sexualmente, ao outro ou, em outras palavras, para os romanos, “virilidade é penetrar analmente os garotos, penetrar vaginalmente as mulheres (futuere, ‘transar’), e fazer-se fazer uma felação”. (THUILLIER, 2012THUILLIER, Jean-Paul. “Virilidades romanas: vir, virilitas, virtus”. In: VIGARELLO, Georges. (dir.) História da virilidade . Vol. 1. A invenção da virilidade. Da antiguidade às Luzes. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 84)

De acordo com Tamagne (2012)TAMAGNE, Florence. “Mutações homossexuais”. In: COURTINE, Jean-Jacques. (dir.) História da virilidade . Vol. 3. A virilidade em crise? Séculos XX e XXI. Petrópolis: Vozes, 2012., entre fins do século XVIII e começo do XIX, o pênis ainda era representado artisticamente - em proporções menores - dentro de uma estética grega, com a finalidade de diminuir o mal-estar plástico que tal anatomia causava. Essa leitura visual, ainda segundo Tamagne (2012)TAMAGNE, Florence. “Mutações homossexuais”. In: COURTINE, Jean-Jacques. (dir.) História da virilidade . Vol. 3. A virilidade em crise? Séculos XX e XXI. Petrópolis: Vozes, 2012., começa a ser mudada na segunda metade do século XIX, com o advento da fotografia. Assim, lutadores de feira, ex-soldados pagos para se despir - apresentam o pênis em dimensões reais na convenção artística. “A fotografia desnuda o pênis no centro de todo o dispositivo acadêmico - ou clássico - de representação”, aponta o autor supracitado, complementando que “é através dela que este perdura ao longo de toda a primeira metade do século XX, senil, obsceno e fascinante”. (p. 496)

Importante é salientar neste ponto a visão eurocêntrica a respeito dos outros: pessoas provenientes das colônias africanas, árabes e negros. Taraud (2012)TARAUD, Christelle. “Virilidades coloniais e pós-coloniais”. In: COURTINE, Jean Jacques. (dir.) História da virilidade. Vol. 3. A virilidade em crise? Séculos XX e XXI. Petrópolis: Vozes, 2012. pondera que, desde o fim da Primeira Guerra, ondas de trabalhadores vindos das colônias francesas na África se instalaram na metrópole europeia, especialmente na França. Em um primeiro momento, aponta a autora, as barreiras de classe, de gênero e de raça parecem de repente se fissurar para deixar lugar às relações mais misturadas (TARAUD, 2012TARAUD, Christelle. “Virilidades coloniais e pós-coloniais”. In: COURTINE, Jean Jacques. (dir.) História da virilidade. Vol. 3. A virilidade em crise? Séculos XX e XXI. Petrópolis: Vozes, 2012.). O pós-guerra seria marcado por um espírito mais despreocupado, e pela procura do prazer na renovação das experiências, abrindo mais espaço ao “outro”. Assim, a presença do outro - o árabe e o negro - torna-se parte do cotidiano, já que eles “invadem então simultaneamente as ruas, os locais de trabalho, os espaços de sociabilidades e de encontros sexuais, ao mesmo tempo em que sua presença trabalha com acuidade, entre fascinação e repulsa, os imaginários”. (TARAUD, 2012TARAUD, Christelle. “Virilidades coloniais e pós-coloniais”. In: COURTINE, Jean Jacques. (dir.) História da virilidade. Vol. 3. A virilidade em crise? Séculos XX e XXI. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 455)

O corpo negro recém chegado à Europa, “o outro” não-europeu e advindo das colônias, é mão de obra barata, é carne nova, é objeto sexual do imaginário frutífero e é objetal para satisfação de demandas sexuais do mundo eurocêntrico no pós-guerra. Acima de tudo, a presença desse corpo negro cria sentidos de dimensões e potências que cravejam sua imagem com aspectos animalizados, bestiais, aguçando mentes e desejos europeus por gozos inimagináveis.

Com o advento das interações digitais, a imagem viril inegavelmente se tornou mais complexa, mas ao mesmo tempo a presença de um pênis funcional em estado de manipulação tornou-se mais presente no cotidiano das pessoas. Seus movimentos podem ser ampliados, congelados e repetidos diversas vezes ao “gosto do freguês”. Aboudrar (2012)ABOUDRAR, Bruno Nassim. “Exibições: a virilidade desnudada”. In: COURTINE, Jean-Jacques. (dir.) História da virilidade. Vol. 3. A virilidade em crise? Séculos XX e XXI. Petrópolis: Vozes, 2012. considera que, entre fins do século XX e princípios do XXI, ocorreu, por parte de uma parcela de usuários da rede mundial de computadores, uma redescoberta da complexidade dos vínculos entre sexo anatômico do homem, sexo simbólico e identidade. Portanto, a ostentação de um pênis funcional como marca de virilidade recorre a uma memória discursiva que abrange títulos já conhecidos nas virilidades greco-romanas, a saber: a) autocontrole sem afeição a emotividades entre os parceiros; b) potência e disposição guerreira; c) afastamento das carícias, que sinalizava fraqueza física e/ou espiritual. Esses três elementos são amplamente recuperados nos textos que compõem nossa análise.

Em relação à homossexualidade viril, Tamagne (2012)TAMAGNE, Florence. “Mutações homossexuais”. In: COURTINE, Jean-Jacques. (dir.) História da virilidade . Vol. 3. A virilidade em crise? Séculos XX e XXI. Petrópolis: Vozes, 2012. adverte que, desde o início do século XX, foi construído um sentido que opera em torno de três elementos: a pederastia grega, a camaradagem masculina e a virilidade operária. O ideal estético de beleza se deveu aos gregos, que era constituído por um espírito guerreiro, corajoso, leal e carregado de sabedoria. O mito da camaradagem viril patrocinava a idealização de um mundo masculino e cavalheiresco, consagrando a amizade. Porém, a ausência de requinte dos homens de classe menos privilegiada afastava seus participantes do modelo mais cortês, desenvolvendo um clichê que se mantém como fetiche de virilidade até o presente: o rústico.

Essa estética, de acordo com Tamagne (2012)TAMAGNE, Florence. “Mutações homossexuais”. In: COURTINE, Jean-Jacques. (dir.) História da virilidade . Vol. 3. A virilidade em crise? Séculos XX e XXI. Petrópolis: Vozes, 2012., colaborou para criar imagens eróticas direcionadas à população homossexual masculina interessada em um cenário disposto por corpos musculosos sob a égide do fisiculturismo e do naturismo. Esses marcadores físicos contribuíram para desenvolver um “imaginário gay” alusivo ao machismo. No caso particular do Brasil, essa imagem recaía na forma desejada da virilidade ligada à cultura masculina negra.

Em relação à questão de linguagem, Maingueneau (2010)MAINGUENEAU, Dominique. O discurso pornográfico. Tradução Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. (Lingua[gem]; 42). registra que a escrita de textos pornográficos visa satisfazer à exaustão o desejo, pela saturação de todas as aberturas possíveis do corpo. Essa satisfação é atestada pelo orgasmo compartilhado, signo tangível que marca a fronteira da cena e constitui a prova plena da validade - legitimidade e eficácia - do dispositivo discursivo da pornografia.

O dispositivo pornográfico materializa-se nos contos eróticos por meio de escolhas lexicais que se tornam fonte de excitação, porque se localizam à margem do vocabulário socialmente legitimado como adequado às interações do cotidiano. A título de exemplo, temos a palavra “clitóris” que poderá, muitas vezes, ser objeto de abreviação no vocabulário pornográfico, tornando-se “clito”, e o emprego de “palavrões” (“cacete”, “xoxota”, “comer o cu”...). Se esse tipo de vocabulário fosse efetivamente utilizado na conversação cotidiana, perderia seu poder de catarse e de estimulação sexuais que enfatizam o desejo. Assim, o léxico pornográfico tem estatuto “atópico”: de um lado, são palavras e expressões efetivamente utilizadas e fazem parte do léxico, por outro lado, não “deveriam” ser empregadas.

Poderíamos classificar de discurso atópico essas práticas que, tal como a pornografia, de alguma maneira não têm lugar para existir, que se esgueiram pelos interstícios do espaço social. A pornografia partilha essa atopia com outras práticas verbais, que variam segundo as sociedades: palavrões, canções lascivas, ritos de bruxaria, etc. A lista acima apresenta práticas discursivas geralmente reservadas a espaços de sociabilidade muito restritos ou a momentos muito particulares.

Ressaltamos que o discurso pornográfico é constitutivo, seguindo normas sociais bastante rígidas3 3 Sob esta perspectiva, a produção pornográfica pode ser classificada como “canônica” - representativa de práticas compatíveis com os princípios sociais vigentes; “tolerada” - com atitudes julgadas como anormais, abrindo caminho para uma série de fetiches; e “interdita” - com atos que infringem as leis em voga. (MAINGUENEAU, 2010) . Como Maingueneau (2010)MAINGUENEAU, Dominique. O discurso pornográfico. Tradução Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. (Lingua[gem]; 42). nos aponta, a literatura pornográfica não pode ser entendida como uma entidade autônoma: ela se vale de outros discursos, que só aparentemente lhe são “externos”. O discurso pornográfico não poderia, por exemplo, ser o mesmo em uma sociedade na qual se pratica maciçamente a confissão e, em outra, na qual sexólogos podem ser consultados, em uma sociedade com contracepção e em outra sem contracepção. Portanto, estamos diante de um complexo dispositivo que regula desejos e práticas sexuais.

A pornografia, comumente, ao se referir ao corpo negro, busca mobilizar o signo racial por meio do olhar que, segundo Mbembe (2018)MBEMBE, Achille. A crítica da razão negra. Tradução de Marta Lança. Lisboa: Antígona, 4. ed, 2018, converte o que é visto em símbolo que atribui valores e ações práticas. Fanon (2008)FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008., ao analisar a questão racial, afirma que a propagação do olhar avaliador cria, fixa e desfigura o objeto humano contido no corpo negro. Já o olhar pornográfico, no seu desejo de posse, acaba escamoteando a história do sujeito negro visto apenas em sua ação sexual. Nesse jogo de olhar que constitui, o poder visibiliza certas questões e invisibiliza outras tantas. Nesse sentido, Mbembe (2018)FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. afirma que raça só existe por conta de “aquilo que não vemos”. Com isso, o “poder-ver racial se exprime inicialmente no fato de que aquele que escolhemos não ver nem ouvir não pode ouvir e nem falar por si só” (idem). Nesse sentido, na consciência racista, segundo o autor, a aparência física não é suficiente para determinar a raça, entendida como categoria de classificação reguladora, mas a aparência se torna a própria realidade das coisas.

Na próxima seção, apresentamos a metodologia da pesquisa e a seleção do corpus de análise.

2. METODOLOGIA

Este artigo faz parte de uma pesquisa em desenvolvimento em torno da relação entre linguagem e pornografia homossexual. Para este trabalho, focalizaremos contos eróticos gays que dialogam com a questão étnico-racial e virilidade, cuja finalidade é entender como os corpos de homens negros são descritos.

Com este propósito, escolhemos o portal Conto Erótico, no endereço http://www.contoerotico.com/princ.cfm, que, nada modestamente, se apresenta como “o melhor acervo de Contos Eroticos (sic) da língua portuguesa.”

Com 20 anos de atividades, em outubro de 2020 o portal contava com mais de 166 mil contos eróticos publicados, enviados por pessoas que nele se cadastraram, divididos em 17 categorias, dentre elas “Fantasia” (pouco mais de 5 mil contos), “Fetiche” (com quase 4 mil) e “Gays”, com mais de 34 mil contos publicados. Ao acessarmos esta última categoria, pudemos observar a recorrência de termos referentes a homens negros como “negão”, “roludo”, “23cm”, “dando para o negão”, “1,80 músculo”, “piroca maravilhosa”, “voz grossa”, “tora africana”, “arregacei”, nos títulos e nos conteúdos dos contos.

Para compor nosso percurso analítico-interpretativo, tomamos os seguintes procedimentos: a) leitura exploratória inicial para conhecer os contos que compõem o corpus deste trabalho que insinuavam prática de relação sexual com homens negros. Com base nesse reconhecimento prévio, selecionamos 10 contos discursivamente representativos como amostragem mais evidente de um discurso pornográfico que descreve ação sexual de homens negros; b) leitura e releitura do material que se mostrava em primeira pessoa, e, no total, c) sistematização e reunião dessas manifestações em categorias analíticas das recorrências discursivas; d) descrição de categorias de análise correspondentes a essas manifestações; e) seleção dos excertos do corpus dos contos para demonstrar as categorias de análise elaboradas; f) efetivação de análise interpretativa dos dados selecionados por meio dos excertos que são considerados representativos.

Após os referidos procedimentos, procedemos à análise cuidadosa dos dez contos que indicavam, no título, hiperbolização do corpo negro e seus efeitos na produção dos prazeres homoeróticos, nota-se que estas enunciações se apresentam em primeira pessoa, e o enunciador é o sujeito que é penetrado. Destes, destacamos um conto como amostragem mais evidente de um discurso pornográfico racializador por meio do qual o homem negro é descrito como uma máquina de prazer, que exerce aparentemente seu poder de macho viril no ato de penetrar.

Como texto representativo de nosso percurso analítico, examinamos o conto “O dia que virei putinha do pastor NEGÃO da minha igreja”4 4 Disponível em: https://www.contoerotico.com/conto/154218/167688/o-dia-que-virei-putinha-do-pastor-negao-da-minha-igreja.html. Acesso em: 09 out. 2020. , com a finalidade de evidenciar um discurso pornográfico constante nos 10 contos analisados que parecem enaltecer os atributos sexuais negros: a) “O marido da cabeleireira - Negão de tirar o chapéu”5 5 https://www.contoerotico.com/conto/29526/831546/o-marido-da-cabeleireira-negao-de-tirar-o-chapeu.html , b) “Caseiro negão me fudeu”6 6 https://www.contoerotico.com/conto/141627/966536/caseiro-negao-me-fodeu.html , c) “Novinho sendo fudido pelo enfermeiro Negão”7 7 https://www.contoerotico.com/conto/135339/856116/novinho-sendo-fudido-pelo-enfermeiro-negao.html , d) “Casado putinha de NEGÃO”8 8 https://www.contoerotico.com/conto/144543/895931/casado-putinha-de-negao.html , e) “O negão roludo e o filhinho do patrão”9 9 https://www.contoerotico.com/conto/54378/373156/o-negao-roludo-e-o-filhinho-do-patrao.html , f) “O negão Entregador da lista telefônica”10 10 https://www.contoerotico.com/conto/100300/833750/o-negao-da-entregador-da-lista-telefonica.html , g) “Dando para o negão Valmir”11 11 https://www.contoerotico.com/conto/33814/545672/dando-para-o-negao-valmir.html , h) “o negão pediu carona e depois meu cu”12 12 https://www.contoerotico.com/conto/132679/578662/o-negao-pediu-carona-e-depois-meu-cu.html , i) “O negão desmontou meu guarda roupa e meu cu”13 13 https://www.contoerotico.com/conto/54634/476198/o-negao-desmontou-meu-guarda-roupa-e-meu-cu.html .

Esclarecemos que a insuficiência de espaço que o gênero artigo determina não nos possibilita a descrição detalhada de todos os contos. Como forma de deixar mais clara a frequência dos enunciados de nosso eixo argumentativo, expomos alguns títulos e trechos de fragmentos de outros contos com a finalidade de evidenciar a recorrência discursiva de nossa análise.

Na seção seguinte, buscamos discutir a análise dos dados que compõem o nosso corpus de pesquisa.

3. CONSTRUÇÃO RACIALIZADORA DO CORPO NEGRO

Este trabalho destaca o conto intitulado “O dia que virei putinha do pastor NEGÃO da minha igreja”, do autor “casado putinha de negão”, a ser linguisticamente analisado, por exibir os caracteres principais que se repetem nos contos objeto deste trabalho. A alcunha do enunciador o situa em uma posição algo peculiar: ele se apresenta como “casado” (adjetivo substantivado no masculino e sem grau), ou seja, uma pessoa que é socialmente reconhecida como possuindo um compromisso com outra pessoa. Por acréscimo, também é “putinha” (adjetivo substantivado no feminino e com grau diminutivo), indicando uma posição de passividade e subjugo em relação a outro(s), no caso, “de negão” (preposição com ideia de pertencimento, seguida de adjetivo substantivado no masculino e no grau aumentativo). A antítese entre o feminino diminutivo e o masculino aumentativo dá o tom do jogo de poder estabelecido entre as personagens no texto.

Esse jogo entre as personagens nos alude à virilidade grega, que segundo Thuillier (2012)THUILLIER, Jean-Paul. “Virilidades romanas: vir, virilitas, virtus”. In: VIGARELLO, Georges. (dir.) História da virilidade . Vol. 1. A invenção da virilidade. Da antiguidade às Luzes. Petrópolis: Vozes, 2012., era caracterizada pela robustez do corpo masculino. No nosso caso específico, essa virilidade é marcada essencialmente pela cor da pele e pela potência peniana. Já no título do conto em questão, podemos inferir que o adjetivo “negão” traz para nossa memória discursiva um homem negro vigoroso com atributos sexuais destacáveis. Portanto, um pênis penetrante grande e funcional. Nesse sentido, a coisificação do homem viril pode sinalizar que ele pode deixar de pertencer à natureza humana para se tornar objeto puramente de satisfação.

Enquanto, a “putinha” nos remete ao imaginário da fragilidade do feminino que pode ser penetrado, insinuando um domínio viril do “negão” sobre o homem casado. Na leitura de vários contos, percebe-se que o “passivo” sempre pode ser compreendido aparentemente como inferior. Ser uma putinha pode sinalizar, entre diversos sentidos, o sujeito que está disponível para ser penetrado. Contudo, precisamos destacar que essa subjugação é apenas aparente. É digno de nota que quem é o predador é o passivo que cria situação para que o “negão” caia em sua armadilha. Tal atitude também pode ser lida como viril, pois a “caça” sexual habitualmente é uma qualidade de masculinidade. Na verdade, como iremos observar no percurso da nossa análise quem descreve e cria o contexto para se deleitar das habilidades do “negão” é o narrador que o apresenta essencialmente como uma máquina sexual.

Logo no início do conto e falando de si mesmo, o enunciador retoma, em linhas gerais, características que, segundo ele, estão detalhadas em outros contos anteriores, de sua autoria. Mesmo assim, ele constrói uma imagem sócio-heterossexual conservadora, “casado, novo, discreto e evangélico desde criança”, um pai de família que, em um domingo, “eu, minha mulher e meu filho nos arrumamos, pegamos nossas bíblias e fomos para a igreja”.

De modo frequente nos contos, é curioso observar que o sujeito passivo é descrito como alguém mais jovem e branco. Ser mais jovem nos remete ao papel grego de Kinaidos/katapugnon, que segundo Allouch (2010)ALLOUCH, Jean.O sexo do mestre. O erotismo segundo Lacan. Trad. Procopio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2010., seria um tipo de homem que almejasse ser apenas dominado e penetrado. Dentro dessa lógica, não é nenhuma surpresa que a organização tradicional familiar dos personagens se mantenha como mais um adereço erótico na narrativa. Já a cor da pele também parece assumir um destaque importante nos contos estudados. Costumeiramente, o homem branco se apresenta como sujeito mais passivo enquanto o negro como ativo com uma força física para a sua satisfação pela submissão do sujeito passivo.

Outro aspecto a ser considerado é a necessidade de ser “discreto”, essa qualidade parece ser uma moeda simbólica de troca importante para a preservação da heterossexualidade de ambos os personagens, pois eram casados e pais de família. Tal atitude pode nos remeter à virilidade grego-romana que se pautava no ideal de beleza guerreira na qual a lealdade é um dos aspectos a ser cultivado entre os homens. Tal comportamento promove a camaradagem, a amizade e o anonimato sem, no entanto, alterar o lócus que a experiência homossexual pode assumir na nossa sociedade.

Ambos os personagens, como veremos, focalizam apenas na satisfação de seus desejos. Assim, não há lugar para qualquer comportamento emotivo entre os parceiros. Em decorrência dessa situação, o foco das interações dos personagens costumeiramente recai na potência e na disposição sexual de ambos, enfatizando orifícios ou a dimensão peniana.

O “belo domingo de sol” se transforma em “um dia especial” quando, durante o culto, o pastor anuncia que estavam recebendo a visita de “um pregador do continente africano”. A procedência africana reafirma a genuinidade “daquele enorme negro que estava em cima do altar”, de quem o enunciador confessa que não conseguia tirar o olho durante a pregação, em especial “do volume na calça social [que] era visível mesmo de um pouco longe”, reforçando o estereótipo do negro viril de pênis avantajado. Ao fim do culto, o enunciador faz questão de dizer que foi “conversar com os irmãos e cumprimentar o irmão negão”, deferência no aumentativo que aponta distinção somente recebida pelo estrangeiro, diferenciando-o dos demais do coletivo.

O fato de a origem africana do pregador ser destacada nos configura uma memória discursiva sobre o imaginário eurocêntrico sobre as colônias africanas, como reforçada por Taraud (2012)TARAUD, Christelle. “Virilidades coloniais e pós-coloniais”. In: COURTINE, Jean Jacques. (dir.) História da virilidade. Vol. 3. A virilidade em crise? Séculos XX e XXI. Petrópolis: Vozes, 2012., na qual os homens negros eram lidos, como figuras luxuriantes e bestiais, que alimentavam o imaginário sexual com a promessa de gozos indescritíveis. Essa memória discursiva é evidenciada quando o narrador pontua o “volume na calça social” aguçando sua mente e, obviamente, os leitores pelo gozo iminente. É essa linguagem descritiva do formato peniano do homem negro, com base em Maingueneau (2010)MAINGUENEAU, Dominique. O discurso pornográfico. Tradução Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. (Lingua[gem]; 42)., que provoca a exaustão e o gozo do leitor.

Quando se inicia a discussão sobre onde o africano repousaria em sua estada, “na mesma hora ofereci minha casa”, salienta o enunciador, conquistando o direito de hospedar o pastor. Traça-se neste momento um movimento paralelo à visão eurocêntrica, que enxergava nos africanos vindos das colônias à Europa para o exercício de um trabalho árduo como seres sexualmente exóticos, viris por excelência.

Ressaltamos que o lugar onde ocorre as práticas sexuais - a casa do narrador - evidencia uma das características do discurso pornô que procura dar um efeito veríssimo ao acontecimento. O resultado de tal estratégia é provocar a sensação que certas situações sexuais podem acontecer com qualquer pessoa em qualquer ambiente, inclusive - e preferencialmente - com o leitor. Daí na sua totalidade os contos analisados apresentarem enunciador homodiegético, que é ao mesmo tempo personagem da história e narra suas aventuras sexuais a um terceiro, o leitor, em uma enunciação significativa, com a qual este possa se identificar.

No caminho para casa, sozinhos no carro, o enunciador inicia o reconhecimento do território perguntando se o pregador era casado. Este “disse que sim, porém fazia meses que não via a esposa, pois estava em pregação” e, nesta resposta, o enunciador enxergou “por onde atacar nessa hora”.

Na casa do enunciador e com o quarto de hóspedes organizado, o pregador africano pergunta se pode tomar um banho. O enunciador mostra o banheiro e, logo em seguida, lembra-se que não indicara onde ficavam as toalhas e bate à porta do banheiro para mostrar ao hóspede. Diz o enunciador: “eu quase caio para trás nessa hora, Gilberto estava somente de cueca o volume era imenso, e saia uns pentelhos para fora, exatamente como eu adoro”. Neste ponto ainda não sabemos o nome do enunciador e, pela primeira vez no texto, menciona-se que o prenome do pregador africano é Gilberto, sem mais detalhes e após uma série de caracteres físicos que o posicionam como o “enorme negro no altar”, o “irmão negão” com o “volume na calça social visível de longe”, indo ao encontro do estabelecido por Maingueneau (2010)MAINGUENEAU, Dominique. O discurso pornográfico. Tradução Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. (Lingua[gem]; 42). no tocante às identidades das personagens no discurso pornográfico.

Saliente-se que, logo após a menção ao nome do pastor africano, reforça-se o “volume imenso” na cueca de Gilberto que quase fez o enunciador cair para trás, além dos “pentelhos para fora”. Essas duas imagens, de pênis de tamanho hiperbolizado e de presença de pelos corporais, se contrapõe ao ideal do cidadão grego, de racionalidade e higiene, animalizando a figura do macho viril, com pênis grande e peludo, bem ao gosto do enunciador. “Sinto que Gilberto percebe minha admiração, porém se faz de desentendido”, declara o enunciador, encerrando esta primeira sequência de tensão sexual.

Após isso, hora do jantar com família e hóspede à mesa. Logo depois, “Gilberto diz que iria demorar um pouco a dormir ainda, pois fazia muitas orações e perguntou se eu não queria orar com ele, aceitei na hora, minha esposa foi deitar”, aponta o enunciador, o que o deixou a sós no quarto com Gilberto para o momento de oração. A tensão sexual volta à cena quando o enunciador explica que “entramos no quarto, Gilberto diz que vai tirar a calça e os sapatos para ficar mais à vontade, eu concordo. Ele dá um sorrisinho de canto de boca”. O “sorrisinho de canto de boca” estabelece a cumplicidade entre o enunciador e o negão pregador africano que ele hospeda, prestes a se semidespir para ficar mais à vontade.

“Gilberto ajoelha para orar é o elástico daquela cueca velha que usava não aguentou e seu pauzao caiu para fora, eu fiquei perplexo e ele diz: o que foi irmão?”. Na hora de orar, a elevação espiritual cede lugar à observação material do uso de uma “cueca velha” por Gilberto, denotando a simplicidade das roupas do forasteiro de terras africanas que é recebido em outro território. A visão com traços eurocêntricos do enunciador com relação ao africano que ele recebe em seu lar é ratificada pela simplicidade hierarquicamente inferior, de alguém cujo elástico da cueca velha não aguentou e, por consequência, “seu pauzão caiu para fora”, numa nomeação que caracteriza o pênis de Gilberto como firme e grande - pelo aspecto semântico do termo “pau” e pelo uso do grau aumentativo.

Ao responder a pergunta “o que foi, irmão?” com a frase “nunca vi um pênis tão grande e grosso”, o enunciador reforça a característica viril de posse de um pênis avantajado por parte de Gilberto, que treplica: “eu vi que você ficou de olho na hora do banho, pode tocar.” Neste ponto, o momento de oração se esvai, abrindo espaço à voluptuosidade da carne e, em especial, ao tamanho do pênis de Gilberto. Até o momento o texto deixa de lado características físicas do enunciador - que disse estar descrito em textos anteriores de sua autoria, e mesmo do pregador Gilberto, cujas características descritas até o momento são: ser negro, presumidamente de porte robusto (“enorme negão no altar”) e possuir um pênis avantajado, e nada mais. Todos os demais caracteres físicos se tornam desnecessários, à parte a cor da pele e o tamanho do pênis.

Como se vê, essas escolhas linguísticas não aparecem no vácuo, e muito menos, são fruto da preferência do enunciador, mas ressoam relações de poder, percepção sobre o que são virilidades e masculinidades, entre outros tantos sentidos.

“Na mesma hora ele senta na cama e eu pego naquela jeba preta de verdade, que começou a crescer na hora”, explica o enunciador, que detalha a jeba preta como “chegando a medir uns 25 cm, muito grossa e pentelhuda”. Neste ponto, para além da cor, do tamanho avantajado e da presença dos pelos corporais, garante-se a funcionalidade do pênis de Gilberto com a ereção. Segundo Thuillier (2012)THUILLIER, Jean-Paul. “Virilidades romanas: vir, virilitas, virtus”. In: VIGARELLO, Georges. (dir.) História da virilidade . Vol. 1. A invenção da virilidade. Da antiguidade às Luzes. Petrópolis: Vozes, 2012. e Tamagne (2012)TAMAGNE, Florence. “Mutações homossexuais”. In: COURTINE, Jean-Jacques. (dir.) História da virilidade . Vol. 3. A virilidade em crise? Séculos XX e XXI. Petrópolis: Vozes, 2012., são características viris do período greco-romano - e cuja memória discursiva é frequentemente mobilizada no conto em questão - uma tez com a melanina da exposição ao sol de uma vida pública (às mulheres cabia a tez alva garantida pelos serviços domésticos protegidas do sol), a presença de pelos corporais (que afastava o perfil do guerreiro da efeminação de um homem sem pelos) e, claro, a ostentação de um pênis funcional, com ereção que o permitisse penetrar mulheres, garotos ou escravos. “Senti que era meu dia de sorte”, resume o enunciador.

“Gilberto diz pode mamar irmão, faz muito tempo que ninguém me mama, nem precisou terminar de falar e cai de boca naquele pauzão imenso, tentando engolir o máximo que podia”. Gilberto confirma a permissão de acesso ao próprio corpo, ao que o enunciador inicia a felação, sempre reforçando que o pregador africano possui “pauzão imenso”, quase que característica definitiva deste corpo negro. “Gilberto então me avisa o que eu já sabia: hoje o irmão tá fudido. Amei ouvir aquilo é mamava mais ainda aquela anaconda preta dura como aço...” O paralelismo no uso de palavras de cunhos religioso e chulo - “o irmão tá fudido” - aponta para o vocabulário utilizado no texto pornográfico, conforme Maingueneau (2010)MAINGUENEAU, Dominique. O discurso pornográfico. Tradução Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. (Lingua[gem]; 42)., que prevê a utilização desses termos. A centralidade do órgão genital na existência da personagem africana - “o negro é pênis”, segundo Taraud (2012)TARAUD, Christelle. “Virilidades coloniais e pós-coloniais”. In: COURTINE, Jean Jacques. (dir.) História da virilidade. Vol. 3. A virilidade em crise? Séculos XX e XXI. Petrópolis: Vozes, 2012. - se mantém na descrição do objeto de felação do enunciador: “anaconda preta, dura como aço”, apontando tamanho, cor e funcionalidade.

“Gilberto logo se levanta e me coloca deitado na cama de joelhos no chão e sem pestanejar abre minha bunda dizendo: que banquete você me preparou irmão”. Neste momento a característica viril do controle das ações é claramente assumida por Gilberto, que subjuga o enunciador, colocado “deitado na cama de joelhos no chão”, posição anatômica de entrega. Tendo o corpo manipulado por Gilberto, o narrador torna-se objeto a ser apreciado/devorado pelo pregador africano.

“Nisso sinto o pau na portinha do meu cuzinho (foto abaixo) vejo que ele estava sem camisinha e não tinha como pegarmos, nem liguei, fiz que não vi”. O órgão genital de Gilberto, já mencionado em formatos hiperbolizados e no grau aumentativo diversas vezes no texto, aparece nesta passagem sem grau, mas em contraste com o diminutivo dos aspectos físicos do enunciador, mantendo a dicotomia. Pontuamos, a ausência de preservativo foi justificado pela necessidade de manter a discrição, mas, saliente-se, que têm sido raros os contos publicados em portais da internet que mencionam o uso do preservativo, uma característica marcante na produção de materiais pornográficos atualmente, sinalizando para uma despreocupação dos resultados que esse tipo de comportamento pode trazer: “nem liguei, fiz que não vi”, assume o enunciador14 14 Neste trabalho, não procuramos nos delongar na discussão sobre o não uso de preservativo, pois não é foco principal da pesquisa atual. Ficando essa discussão para estudos futuros. .

Uma das possíveis explicação para o não uso do preservativo pode estar relacionado ao fato de que os personagens serem homens religiosos, casados e discretos. Esse perfil certamente provoca a confiança entre os personagens que podem ver nessas características sinais de proteção a doenças sexualmente transmissíveis. Também, a ideia de um corpo saudável e viril parece ser um dos elementos que povoam o imaginário dos homens que têm alguma relação sexual constante com outros parceiros (MISKOLCI, 2017MISKOLCI, Richard. Desejos digitais: uma análise sociológica da busca por parceiros on-line. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.), criando a ilusão de ser saudáveis e mais imune a qualquer DST.

Em relação ao não uso de preservativo, Kesteren, Hospers e Kok (2007)KESTEREN, Nicole M.C; HOSPERS, HARM J.; KOK, Gerjo. Sexual risk behavior among HIV positive men who have sex with men. A literature review: Patient Education and Couseling, n.65, p. 5-20, 2007. constataram, em vários estudos, a ocorrência de prática de sexo anal entre homens sem proteção - após um período de mudanças de experiências sexuais posteriormente o advento do HIV. Essas pesquisas apontam que há uma volta às práticas sexuais mais arriscadas. Os contos, em conjuntos com outros artefatos pornográficos, parecem acompanhar essa tendência que se ampliou devido ao desenvolvimento de medicamentos que auxiliam na preservação da vida após a contaminação global da AIDS.

A penetração é descrita pelo enunciador da seguinte forma: “sem ter tempo, Gilberto crava aquela tora africana no meu rabinho, me fazendo ver estrelas, ele força minha cabeça contra a cama para eu não gritar, eu sinto meu cuzinho se rasgar como nunca antes, começo a chorar em silêncio, porém amando tudo aquilo, tendo cada vez mais certeza que nasci para servir e satisfazer negão roludo safado”. O controle da ação é todo de Gilberto, traço de virilidade, assim como o retorno à adjetivação hiperbolizada de seu órgão genital - tora africana. O sofrimento que a penetração causa no enunciador - ver estrelas, ter a cabeça forçada contra a cama para não gritar, sentir-se rasgado, chorar em silêncio - confirma o subjugo do passivo à frente do exercício do poder viril do ativo. Isso tudo o enunciador afirma que ama, certificando-o da sua condição de ter nascido “para servir e satisfazer negão roludo safado”, uma sina da qual ele não parece fazer questão de fugir.

O ato sexual se desenvolve com lugares bem definidos: o ativo Gilberto dominador, no controle das ações, e o passivo enunciador submisso, deixando-se controlar:

Gilberto quando vê que sua rola tá inteira dentro de mim, começa a socar forte, ele calça um pé na cama e manda brasa no meu rabinho sorte que o quarto era no fundo da casa. Gilberto me fode de bruços, de ladinho, de 4, de frango assado entre outras posições, mesmo vendo que saia um pouco de sangue de mim. Ele não parou, nem eu reclamei, nem tirei o cuzinho da reta, até Gilberto avisar que vai gozar, tento sair fora, porém ele me agarra pela cintura e goza com o pau no talo no meu cuzinho, sinto muita porra dentro de mim.

A forma enérgica como Gilberto “soca forte”, colocando o corpo do enunciador em várias posições anatomicamente sexuais e mantendo a penetração mesmo depois de notado o sangramento retal, garantem ao ativo a posição de exercício de poder. Resta ao passivo não reclamar e ainda ser agarrado pela cintura quando faz menção de “sair fora” ao ser avisado que o ativo vai ejacular, sendo forçado a receber a ejaculação do ativo dentro de seu corpo, um objeto sendo manipulado ao bel-prazer do macho viril.

Essa situação de aparente imposição da força física do ativo “negão” evidencia o exercício da satisfação na submissão do sujeito passivo. Sendo assim, a dor do passivo e a violência do ativo marcam peremptoriamente os enunciados dos contos. É recorrente o uso de palavras como mastro, tora, vara sugerindo atos semelhantes ao estupro, reforçando a natureza animalesca do “negão” que, sem nenhuma piedade, se diverte em causar dor ao passivo “A cabeça passou e eu dei um grito, nunca tinha dado para um pau daquela grossura” (conto “Caseiro negão me fudeu”)

O enunciador continua o processo de animalização do negro-pênis (TARAUD, 2012TARAUD, Christelle. “Virilidades coloniais e pós-coloniais”. In: COURTINE, Jean Jacques. (dir.) História da virilidade. Vol. 3. A virilidade em crise? Séculos XX e XXI. Petrópolis: Vozes, 2012.): “eu disse: nossa você parece um cavalo, nisso ele diz que fazia 5 meses que não comia ninguém, que até tinha umas irmãs que se insinuavam, mas ele sabe que mulher é raro as que aguentam, que ele sabia que ia achar um irmão putinho pelo caminho”. O negro-pênis, restrito à comparação com um cavalo, confirma a visão selvagem e animalizada construída em torno da figura do negro, que exerceu seu poder viril por uma força da natureza, já que “não comia ninguém” havia cinco meses, que era raro mulheres aguentarem o tamanho do seu genital, o que o teria feito aguardar até “achar um irmão putinho pelo caminho”, indicando a posição do enunciador na relação.

A antítese construída pela expressão “irmão putinha”, nos remente a Le Gall (2012) quando faz consideração à virilidade protestante - segmento religioso ao qual o enunciador e o negão pertencem - fazem questão de se diferenciarem dos clérigos católicos desde a Idade Média quanto ao padrão viril. Acusados de insuficiência viril, os padres católicos imberbes eram apontados como fracos. «Os pregadores e pastores protestantes ostentam longas barbas, cujo costume instalou-se em toda a Europa a partir dos anos 1520, e denunciam os que se barbeiam» (LE GALL, 2012LE GALL, Jean-Marie. “A virilidade dos clérigos”.In: VIGARELLO, Georges. (dir.) História da virilidade .Vol. 1. A invenção da virilidade. Da Antiguidade às Luzes. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 246). O estilo imberbe do clérigo apontaria para sua infantilização e/ou feminilização, opondo-se ao varão protestante, termo cunhado na correlação latina «vir/virilitas», como explica Thuillier (2012)THUILLIER, Jean-Paul. “Virilidades romanas: vir, virilitas, virtus”. In: VIGARELLO, Georges. (dir.) História da virilidade . Vol. 1. A invenção da virilidade. Da antiguidade às Luzes. Petrópolis: Vozes, 2012. e frequentemente utilizado ainda hoje no discurso evangélico para se referir ao homem que é irmão na fé e viril por excelência.

“Gilberto soca a rola mais um pouco aproveitando a lubrificação natural, até que tira a rola do meu cu é pede para eu limpar para ele, prontamente o faço...” O subjugo do passivo ao ativo viril é textualmente evidenciado pelo exercício dos verbos de ação por parte deste. Ao passivo resta a posição objetal de sucumbir aos desejos do ativo, inclusive prontamente limpar o genital do macho animalizado que acaba de sair de dentro do corpo do enunciador.

Continua o enunciador: “nos despedimos e ele avisa: ainda tenho 2 dias na sua casa, não se esqueça, obvio que nunca esquecerei, dou um sorriso feliz e volto pro meu quarto com o cuzinho em brasa cheio de gala africana”. O controle das ações pelos próximos dois dias de estadia continuará nas mãos do macho viril, evidenciado pelo “aviso”, pacto selado com o conivente sorriso de felicidade do enunciador, que volta para o quarto com a presença física do macho viril dentro de si, a animalizada “gala africana” produzida pela ejaculação do corpo negro.

A satisfação do enunciador após o ato fica evidenciada pela continuação do texto: “minha mulher acorda e pergunta de estava boa a oração, falei que nunca tinha feito uma oração tão boa...” O conto se encerra com a expectativa de que a experiência se repita durante a estada do pregador africano na casa do enunciador: “passei a noite quase em claro, meu cuzinho amanheceu inchado, porem eu sabia que ele não teria descanso, naquele e no próximo dia ainda...”.

Ao fim do relato, o autor “casado putinha de negão” deixa suspensa a possibilidade de repetição da experiência, o que não é possível inferir se foi efetivada, dado que até a finalização deste texto não havia sido publicada uma continuação. O conto relatado, em linhas gerais, contém as características encontradas em todos os outros da mesma categoria: personagens sem muita complexidade psicológica que estão em cena para a satisfação dos desejos sexuais. Há, nos contos analisados, um enunciador que jamais se identifica como “negão” e que ocupará a posição passiva no ato sexual. E há um outro, um corpo negro robusto em muito resumido a seu órgão genital - o negro-pênis. Esta personagem é sempre descrita como um “negão” que acumula uma série de traços viris: robustez física, agilidade de ações, pênis funcional. Para o “negão”, além da funcionalidade é sempre reforçado à exaustão o tamanho avantajado do órgão genital.

A animalização deste corpo, aproximando a figura do “negão” à de um selvagem que segue instintos de um caçador - como aguardar a hora certa de atacar uma presa, já que esperava para saciar seus desejos sexuais quando encontrasse um “irmão putinha”, também é praxe nos contos eróticos analisados, na autoria destes contos, enxerga no outro-negro um objeto exótico a ser explorado (inclusive sexualmente), como os negros e árabes que, ao longo do século XX e início do século XXI, vão das (ex-)colônias africanas em busca de uma vida melhor na Europa. Esse mesmo padrão discursivo podemos encontrar nos dez contos que formam o corpus de nossa pesquisa em sua totalidade, como se observa nas recorrências discursivas que podem ser resumidamente observadas no quadro que segue.

Quadro 1
recorrências discursivas de enunciados sobre o corpo do homem negro

Como pode ser inferido a partir dos dados apresentados no quadro acima, os enunciados tendem a construir um corpo animalizado e sexual. Frequentemente, há alusão ao atributo físico e à sua condição de homem trabalhador e do tamanho avantajado do pênis, somando-se à atitude agressividade no ato sexual. Destacam-se que as metáforas utilizadas para descrever o falo do corpo negro masculino: “tora, vara, pau, mastro, anaconda, cacete”, sempre são associadas a um objeto ou a um animal que esmaga e/ou exerce força, evidenciando apenas sua natureza primitiva. Essa composição parece reforçar a desconceituação da figura humana no corpo negro, tornando-o apenas um estimulador visual do observador desses objetos sexuais. Essa constatação reforça o que Mbembe (2018)MBEMBE, Achille. A crítica da razão negra. Tradução de Marta Lança. Lisboa: Antígona, 4. ed, 2018 e Fanon (2008)FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. asseveram a propósito dos signos que colaboram na construção da representação do outro.

Na próxima seção, apresentamos as considerações finais deste artigo, destacando as possíveis implicações sociais, culturais e políticas da racialização do corpo do homem negro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, a partir de uma amostra representativa de 10 contos pornográficos gays, buscamos analisar um conto que discursivamente racializa o corpo de um homem negro em seus enunciados, configurando-se em dispositivo que legitima papéis sociais no imaginário coletivo, mobilizando sentidos de uma memória discursiva mais que milenar. Nosso trabalho contou com um aporte teórico com base nos estudos sobre racialização, virilidade e discurso.

Mediante este estudo, intentamos depreender que os enunciados retomam, por meio de uma memória discursiva, a condição do homem negro como uma animalesca criatura sexual. São traços marcantes dessa animalização, para os gregos, a irracionalidade da posse de um pênis avantajado; e para os romanos, o descontrole da sucumbência a desejos socialmente condenáveis da carne. Tal visão também é tributária do período colonial que buscava em homens negros escravizados, atributos físicos que pudessem ampliar a produção agrária, bem como a satisfação pessoal. Nossa análise não pinçou nenhuma generalização sobre a vida sexual cotidiana das pessoas, tampouco criou preceitos normativos, mas o risco que corremos, ao reduzir os corpos masculinos a máquinas viris, é reforçar o racismo estrutural brasileiro impondo homens negros à eterna servidão dos desejos dos brancos. Assim, considerado como apenas um ser da natureza, esse homem negro sexualizado não precisa demonstrar outros atributos que não aqueles que lhe garantem o desempenho de seu papel de objeto do desejo sexual, sua posição cativa no seio de nossa sociedade.

Esse discurso não se situa isolado, reúne-se com outras distinções generalizadoras ou estereotipadas sobre o corpo do homem negro. Quando se mobilizam esses sentidos na memória discursiva, certifica-se a manutenção do ideário escravocrata que orbita nossas ações cotidianas. Disso podem resultar ações geradoras de atitudes que fomentem a discriminação contra aqueles considerados diferentes.

Nesse sentido às implicações sociais e culturais do discurso de virilidade negra - além de colocar o homem negro na condição penetrador - negligencia a possibilidade de ele assumir o papel de sujeito passivo nas relações sociais cotidianas. Dessa forma, construindo o ideário de uma hegemonia de comportamento sexual negro. Sendo assim, figura uma imagem que pode limitar e constranger aqueles que não desejam exercer tal posição no imaginário social do que seja viril. Como afirmamos, ao longo da pesquisa, ser passivo não significa necessariamente uma postura de inferioridade nas relações homoafetiva entre homens. Porém, diferente papel na economia das vivências sexuais humana.

Se atentarmos às consequências políticas extraídas nos contos que adornam o corpus desta pesquisa, pode ser notada a necessidade premente de revisitar esse discurso que parece pretender engajar seus leitores em práticas sexuais homogêneas, apagando qualquer outra forma de manifestação de identidade que não seja dita padrão e opressora. Acreditamos que futuras pesquisas em estudos de linguagem necessitam investigar detalhadamente a naturalização discursiva do corpo negro.

REFERÊNCIAS

  • ACHARD, Pierre. Memória e produção discursiva do sentido In: ACHARD, Pierre et al.O papel da memória .4. ed. Campinas: Pontes, 2015.
  • ABOUDRAR, Bruno Nassim. “Exibições: a virilidade desnudada”. In: COURTINE, Jean-Jacques. (dir.) História da virilidade Vol. 3. A virilidade em crise? Séculos XX e XXI. Petrópolis: Vozes, 2012.
  • ALLOUCH, Jean.O sexo do mestre O erotismo segundo Lacan. Trad. Procopio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2010.
  • FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
  • FREITAS, Marcel de Almeida. “O cotidiano afetivo-sexual No Brasil colônia e suas consequências psicológicas E culturais nos dias de hoje”.Ponta De Lança: Revista Eletrônica De História, Memória & Cultura5 (9), 2011, 63-68. https://seer.ufs.br/index.php/pontadelanca/article/view/1577
    » https://seer.ufs.br/index.php/pontadelanca/article/view/1577
  • FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
  • FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder Rio de Janeiro: Graal, 1995.
  • HOOKS, bell. Intelectuais negras. Estudos feministas, ano 3, n. 2 - Dossiê: Mulheres Negras. Florianópolis, p. 464-478, jun/dez 1995.
  • KESTEREN, Nicole M.C; HOSPERS, HARM J.; KOK, Gerjo. Sexual risk behavior among HIV positive men who have sex with men. A literature review: Patient Education and Couseling, n.65, p. 5-20, 2007.
  • LE GALL, Jean-Marie. “A virilidade dos clérigos”.In: VIGARELLO, Georges. (dir.) História da virilidade .Vol. 1. A invenção da virilidade. Da Antiguidade às Luzes. Petrópolis: Vozes, 2012.
  • MAINGUENEAU, Dominique. O discurso pornográfico Tradução Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. (Lingua[gem]; 42).
  • MISKOLCI, Richard. Desejos digitais: uma análise sociológica da busca por parceiros on-line. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
  • MBEMBE, Achille. A crítica da razão negra. Tradução de Marta Lança. Lisboa: Antígona, 4. ed, 2018
  • MOITA LOPES, L. P. (org.) Por uma linguística aplicada (in)disciplinar São Paulo: Parábola, 2006.
  • PÊCHEUX, Michel.Semântica e discurso:uma crítica à afirmação do óbvio. 4. ed. Campinas: EdUNICAMP, 2009.
  • SOUZA, Daniele. S.; ZOLIN-VESZ, Fernando. Da hospitalidade à intolerância ao migrante árabe: construções discursivas sobre um mesmo Brasil. Trabalhos em linguística aplicada, v. 57, p. 877-893, 2018.
  • TAMAGNE, Florence. “Mutações homossexuais”. In: COURTINE, Jean-Jacques. (dir.) História da virilidade . Vol. 3. A virilidade em crise? Séculos XX e XXI. Petrópolis: Vozes, 2012.
  • TARAUD, Christelle. “Virilidades coloniais e pós-coloniais”. In: COURTINE, Jean Jacques. (dir.) História da virilidade Vol. 3. A virilidade em crise? Séculos XX e XXI. Petrópolis: Vozes, 2012.
  • THUILLIER, Jean-Paul. “Virilidades romanas: vir, virilitas, virtus”. In: VIGARELLO, Georges. (dir.) História da virilidade . Vol. 1. A invenção da virilidade. Da antiguidade às Luzes. Petrópolis: Vozes, 2012.
  • WIEVIORKA, Michel. O racismo: uma introdução. São Paulo: Perspectiva, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2020
  • Aceito
    08 Mar 2021
  • Publicado
    22 Mar 2021
UNICAMP. Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) Unicamp/IEL/Setor de Publicações, Caixa Postal 6045, 13083-970 Campinas SP Brasil, Tel./Fax: (55 19) 3521-1527 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: spublic@iel.unicamp.br