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Imaginação e processos de criação na perspectiva histórico-cultural: análise de uma experiência

Imagination and creation processes within a historical cultural perspective: Analysis of an experience

Resumos

Este artigo aborda a imaginação como processo psicológico fundamental do ser humano, tomando como base os trabalhos de Vigotski e seus interlocutores, e tendo como eixo reflexivo uma pesquisa-intervenção desenvolvida em uma Organização Não Governamental de arte-educação. A investigação se caracterizou pela oferta de oficinas de percussão, produção de espetáculo musical e produção de vídeo sobre esse espetáculo, tendo como sujeitos crianças e jovens de 9 a 14 anos que frequentavam a entidade. Uma análise da experiência vivida por esses sujeitos na relação com os pesquisadores toma como base a imaginação e seus desdobramentos no processo de criação. Nesse processo de criação, a experiência (re)significada pelos sujeitos vai compondo núcleos de memória, de forma que a atividade imaginativa se apresenta como um processo psicológico (re)combinador, objetivada em um novo produto.

Imaginação; Espetáculo musical; Processos de criação; Psicologia histórico-cultural


This paper deals with imagination as a fundamental psychological process of human beings, based on the work of Vygotsky and his interlocutors. The intervention research was developed at a Non-Governmental Organization in Art Education. The investigation was characterized by offering percussion workshops, musical show production and video production about the show, to a group of 9 to 14-year-old children who attended the Non-Governmental Organization. The analysis of the experience of these subjects with the researchers was based on imagination and its developments in the creation process. In this process of creation, the (re)signified experience of the subjects forms memory cores in a way that the imaginative activity emerges as a (re)combining psychological process objectified in a new product.

Imagination; Musical show; Creation process; Cultural-historical psychology


Este artigo aborda a imaginação como processo psicológico fundamental do ser humano, tomando como base os trabalhos de Vigotski e seus interlocutores, e tendo como eixo reflexivo uma pesquisa intervenção desenvolvida em uma Organização Não Governamental (ONG) de arte-educação, situada em uma localidade de baixa renda, na cidade de Florianópolis (SC). A ONG, localizada na periferia da cidade, oferecia a crianças e jovens, no contraturno escolar, oficinas de arte e/ou aulas de reforço, dentre as quais as crianças e jovens escolhiam o que fazer.

A investigação ocorreu em diferentes etapas, entre 2006 e 2009, contemplando em sua totalidade a oferta de oficinas de percussão, a produção de um espetáculo musical e a produção de um vídeo sobre esse espetáculo. Os sujeitos foram constituídos por crianças e jovens de 9 a 14 anos, que frequentavam a referida ONG no período vespertino.

O trabalho, desde o início, tinha como propósito oferecer uma oficina e, ao mesmo tempo, realizar uma investigação. A pesquisa partiu do pressuposto de que a música atua como mediadora de coletivos (Maheirie, 2001Maheirie, K. (2001) Música popular, estilo estético e identidade coletiva. Revista Psicologia Política, 2(3), 39-54.) e aumenta a potência de ação dos sujeitos. A equipe de trabalho era composta pela pesquisadora coordenadora, por alunos de graduação ou mestrado em Psicologia e por um professor de música, caracterizando-se como uma pesquisa-intervenção. Adotou-se a modalidade musical "percussão" por ser essa a área de competência do professor que se propôs a realizar o trabalho.

Assim que as inscrições foram abertas para a oficina de percussão, aproximadamente vinte sujeitos se inscreveram. Era-lhes oferecido optar entre a oficina de percussão ou aulas de reforço em matemática, sem que os pesquisadores soubessem disso à época.

No primeiro semestre das oficinas, o número de participantes foi diminuindo para dez, em função da discrepância entre o que eles procuravam e o que o ensino da música exigia deles. A percussão, para eles, era a possibilidade de um espaço para brincadeiras, assim como para extravasar sua energia, que não encontrava outro espaço para se dissipar. O professor tentava focar aspectos que pudessem levá-los à apropriação de saberes e técnicas, enquanto eles queriam batucar sem regras e gritar, experimentando o espaço estético no horizonte do brincar. Em meio a tantas contradições, dificuldades e incongruências, com muito esforço para estabilizar algumas combinações, as dez crianças que permaneceram nas oficinas puderam se apropriar do conhecimento disponibilizado a elas, durante dois semestres.

No segundo semestre, os participantes se mostraram desmotivados para a percussão, o que fez a equipe repensar sua continuidade nos moldes em que vinha acontecendo. Assim, recriaram-se estratégias interventivas nas oficinas, inserindo outras formas de linguagem artística, como teatro, figurino, pintura e confecção de máscaras. Os oito participantes que permaneceram, com idade entre 9 e 14 anos, criaram uma história, montaram o espetáculo, inserindo a percussão quase no final do processo.

O espetáculo, que se intitulou "O Mágico Contra o Som", tratava da história de uma princesa e uma bruxa. A princesa tem seu sono despertado por uma feia bruxa, que vem assustá-la à noite; a mãe da princesa, a rainha, acode para acalmá-la, enquanto a bruxa foge para a floresta. Pela manhã, a princesa vai passear pela floresta, quando encontra uma linda flor que a faz ajoelhar para sentir seu delicioso perfume. Ao levantar-se, ela tropeça nas raízes de uma grande árvore. Porém, tanto a flor quanto a árvore estão enfeitiçadas: todas as pessoas que cheiram a flor tropeçam nas raízes e caem. Caindo ao chão, a princesa se depara com a árvore e a admira, quando surge um mágico que conversa com ela e faz uma magia para que fique boa. A princesa agradece e continua seu passeio. A bruxa, avisada pelo mágico, vai até a princesa e a prende num calabouço. Bruxa e mágico são seres maus, porque não gostam de música e passam a história impedindo que se toque qualquer instrumento na floresta. Surgem duas fadas que libertam a princesa, desfazem os feitiços do mágico e também transformam a ele e à bruxa em seres do bem. A trama finaliza com todos os participantes tocando percussão em roda. Dos oito participantes, as sete meninas atuaram como personagens, enquanto o único menino foi responsável pela sonorização.

A criação da história envolveu todos os participantes, sendo que os pesquisadores buscaram inicialmente não interferir. A história foi construída a partir dos núcleos de memória que as crianças foram trazendo para a experiência das oficinas, mesclando e (re)criando aspectos de histórias que faziam parte de suas vidas, como experiências anteriores no teatro e aquelas disponibilizadas em programas infantis na televisão. Acordos iam sendo estabelecidos entre eles conforme houvesse alguma discordância na construção do enredo. Papéis para os diferentes personagens iam sendo construídos em meio a conflitos e resoluções, sendo necessária, algumas vezes, a mediação da equipe de pesquisadores, agora mais participativa no enredo.

Depois de finalizada a história, os sujeitos construíram os figurinos e cenário, inseriram a música, agora já reconfigurada, e se apresentaram publicamente em duas situações. No ano seguinte, a construção de um vídeo sobre a experiência vivida por eles foi objeto da última oficina oferecida pela equipe de pesquisadores.

Todas as oficinas foram filmadas e seu conteúdo foi digitalizado, sendo posteriormente decupado, ou seja, segmentado em temas com seu tempo correspondente. A história, dramatizada e sonorizada no espetáculo, foi apresentada publicamente na ONG que frequentavam e, posteriormente, em um festival de teatro promovido pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), ocorrido no Teatro da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Após essa apresentação pública, os sujeitos foram entrevistados, utilizando-se um roteiro que buscava investigar o impacto e os sentidos daquela apresentação para eles.

Método

Participantes

No ano seguinte à oficina de criação e à montagem do espetáculo, na terceira etapa do trabalho - objeto do presente estudo , a equipe de pesquisa ofereceu oficinas de vídeo, em que as sete meninas aprenderam técnicas videográficas e de criação de roteiro (o menino havia saído da ONG e não pôde ser localizado). Por meio da memória, elas puderam (re)significar toda experiência do espetáculo criado, que teve a música como linguagem e tema de todo o processo.

Portanto, dos oito participantes da etapa anterior, especificamente nessa etapa, a investigação contemplou o trabalho com as sete meninas que se conseguiu contatar para este estudo.

Instrumentos

O material para a construção do vídeo foi aquele produzido nas oficinas anteriores, que estava digitalizado no computador da sala da equipe de pesquisa. Foram realizados encontros semanais com o grupo das sete meninas, os quais foram videogravados e registrados em diário de campo pelos membros da equipe de pesquisa. Ao final, foram realizadas entrevistas abertas com as participantes, às quais era solicitado que falassem sobre a experiência vivenciada nas oficinas até aquele momento. Além disso, as garotas elaboraram uma redação temática acerca de toda a experiência.

Em síntese, utilizaram-se como instrumento de pesquisa: diários de campo, entrevistas abertas e coletivas, produção individual de redação, produção de imagens paradas (fotografias produzidas por meio do congelamento das filmagens coletadas anteriormente) e imagens em movimento que compunham as decupagens.

Procedimentos

Primeiramente, todo o material foi decupado, visando disponibilizar aproximadamente duas horas e meia de filmagem para a montagem do vídeo. As imagens foram organizadas por temática, de acordo com as cenas que faziam parte do espetáculo e de acordo com as etapas do processo de criação: ensaio, criação do roteiro do espetáculo, criação dos personagens, ensaio, figurino, cenário, percussão, momentos de descontração e apresentação no Teatro da UFSC.

Todos os encontros que compuseram essa oficina ocorreram na sala de pesquisa da equipe, tendo sido filmados e armazenados digitalmente.

Para a construção da análise, foram pesquisadas as situações, falas e depoimentos orais e escritos que as meninas produziram ao longo da experiência, tendo como alicerce teórico as contribuições de Vigotski e interlocutores. Para a construção deste artigo, elegeu-se a imaginação como foco principal do processo de criação.

Ao conceber a música como uma forma de linguagem, entende-se, assim como Vigotski (1934/1992), que "a linguagem é constitutiva/constituidora do sujeito, de modo que o pensamento e a linguagem refletem a realidade de uma forma diferente e se constituem no ponto central para se compreender a consciência humana" (Maheirie et al., 2008, p.190Maheirie, K., Strappazzon, A., Barreto, F. R., Lazarotto, G., Zonta, G. A., Soares, L. S., ..., Schoeffel, S. A. (2008). (Re)composição musical e processos de subjetivação entre jovens de periferia. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 60, 187-197.).

Ao discorrer sobre a linguagem e o pensamento, Vigotski (1934/1992) afirma que ambos surgem e se configuram durante o processo de desenvolvimento histórico da consciência humana. Ambos são produtos do processo de formação do ser humano, de modo que a relação entre eles surge, transforma e cresce em conformidade com o desenvolvimento do indivíduo. Essa relação é um processo, é desenvolvimento: o pensamento culmina na palavra, possuindo movimento, fluidez e desempenhando uma função. Em suma, o pensamento "resolve uma tarefa determinada" (p.296). Nessa direção, o autor alerta que a estrutura da linguagem não é simples reflexo da estrutura do pensamento. Ela não expressa o pensamento puro, pois este se modifica ao transformar-se em linguagem, a qual se faz uma realização daquele e não sua expressão. Assim, os aspectos semântico e verbal da linguagem se colocam em direções opostas, mesmo sendo um único processo.

Para Vigotski (1934/1992), o significado da palavra é a unidade do pensamento e da linguagem: o significado é a própria palavra como um fenômeno de linguagem e como um fenômeno de pensamento; é verbal e intelectual, evoluindo do mais simples ao mais complexo. O significado representa uma generalização, um modo de refletir a realidade e, quando se constitui em sua forma mais complexa, encontra sua expressão nos conceitos abstratos.

Tomando como base os trabalhos de Pauhlan, Vigotski (1934/1992), continua suas ideias acerca da linguagem em suas diferentes formas, diferenciando significado e sentido. Enquanto este se caracteriza por uma "formação dinâmica, variável e complexa que tem várias zonas de estabilidade diferente" (p.333), o significado "é só uma dessas zonas de sentido, a mais estável, coerente e precisa" (p.333). Sendo assim, o sentido é infinito e deve ser buscado num contexto mais amplo, caracterizando-se como uma singularização na relação com a pluralidade.

A palavra está inserida no contexto, do qual toma seu conteúdo intelectual e afetivo, carregando esse significado e ampliando seu repertório, de modo a adquirir novos conteúdos. O sentido nunca está acabado, pois depende da interpretação do mundo e da singularidade do sujeito.

No que se refere ao pensamento, Vigotski (1934/1992) afirma que este nunca coincide com as palavras. Ele é movimento, sempre tende a unir algo com algo e sempre está mediado por signos e significados, até que faça seu caminho em direção às palavras. Para o autor, o pensamento sempre está por trás das palavras, como um "subtexto" (p.340), apresentando-se de forma mais extensa e volumosa do que elas.

O pensamento nasce "da esfera motivacional de nossa consciência, que abarca nossas inclinações e nossas necessidades, nossos interesses e impulsos, nossos afetos e emoções. Detrás de cada pensamento há sempre uma tendência afetivo-volitiva" (Vigotski,1934/1992, p.342). Assim, para compreender a linguagem, não é suficiente compreender as palavras: é preciso compreender o pensamento e o desejo do interlocutor, e aquilo que os embasa, isto é, sua motivação e a base afetivo-volitiva que o sustenta.

Vigotski (1934/1992) finaliza o texto "Pensamiento y palavra", apontando que pensamento e linguagem constituem a chave para a compreensão da consciência humana, uma vez que ela é a consciência que existe na prática para os outros e, por consequência, para o indivíduo. Mesmo focando fundamentalmente na linguagem verbal/escrita, as reflexões do autor indicam que, como constituintes e constituídas pelos sujeitos, as diferentes formas de linguagem se definem por ser uma objetivação transformada do pensamento, o qual se fez possível por meio da apropriação da linguagem.

Para Vigotski, assim como para Bakhtin, a linguagem é mais que um simples signo: ela é trabalho e processo, na medida em que constitui ação sobre o pensamento e a cultura (Morato, 2000Morato, E. M. (2000). Vigotski e a perspectiva enunciativa da relação entre linguagem, cognição e mundo social. Educação & Sociedade, 21(71), 149-165.), regulando a relação cognição - mundo social. Nessa perspectiva, seria prudente afirmar que toda base afetivo-volitiva é estruturada nas condições objetivas, materiais e concretas do sujeito, de forma que se faz também sob a raiz das normas pragmáticas utilizadas na linguagem. Sua função reguladora se constitui entre a fala e a ação (Morato, 2000Morato, E. M. (2000). Vigotski e a perspectiva enunciativa da relação entre linguagem, cognição e mundo social. Educação & Sociedade, 21(71), 149-165.) e, uma vez que se aprende a usar "a função planejadora da linguagem" (Vigotski, 1934/1992), o futuro faz parte constante de seu campo psicológico. Assim, o pensamento, sua base afetivo-volitiva, está apontado para o futuro, para o devir, para aquilo que ainda não se é.

Nessa direção, a presente investigação apontou para a esfera da temporalidade dialética, onde se entrelaçam o passado, o presente e o futuro na inteligibilidade do movimento do sujeito em contextos sociais específicos, alertando para uma condição ontológica de superação do instituído, por meio do processo de criação. Para Vigotski (1925/1998), os processos de criação que envolvem objetivações artísticas têm a especificidade de promover relações estéticas, bem como de provocar transformações nos sujeitos que com elas se implicam, singular e coletivamente.

Por isso, faz-se importante trazer uma afirmação de Morato (2000)Morato, E. M. (2000). Vigotski e a perspectiva enunciativa da relação entre linguagem, cognição e mundo social. Educação & Sociedade, 21(71), 149-165., quando a autora defende que "o que Vigotski traz com uma força intempestiva para a pesquisa atual é a ideia de continuidade (não apenas funcional ou estrutural, mas sígnica) entre cognição e linguagem, entre linguagem e cultura, entre cultura e arte, entre arte e política" (p.155).

Na análise das artes proposta por Vigotski (1925/1998), o interesse se volta para os processos implicados na criação artística por seres humanos que produzem e consomem arte num determinado contexto sócio-histórico. A arte é entendida, então, como um sistema simbólico elaborado pelo artista com o intuito de provocar no seu público um tipo específico de reação, a reação estética. O autor afirma que a reação estética possibilita que emoções angustiantes e desagradáveis sejam submetidas a uma descarga, à sua destruição, capaz de transformá-las em sentimentos opostos. Assim, "a reação estética como tal se reduz, no fundo, a essa catarse, ou seja, à complexa transformação dos sentimentos" (p.270).

De acordo com Pino (2006)Pino, A. (2006). A produção imaginária e a formação do sentido estético: reflexões úteis para uma educação humana. Pró-Posições, 17(2-50), 47-69., o sentido estético, assim como tudo que é especificamente humano, é construído histórica e culturalmente, sendo portanto objeto de formação e educação.

Os processos educativos voltados para a ampliação do sentido estético possibilitam maior riqueza da experiência perceptiva, a qual se faz fundamental para a produção de imagens. Nas palavras de Pino (2006)Pino, A. (2006). A produção imaginária e a formação do sentido estético: reflexões úteis para uma educação humana. Pró-Posições, 17(2-50), 47-69.:

Se é pelo corpo que entramos em contato com as "coisas" que formam a realidade do mundo, então a sensorialidade é fundamental e os órgãos sensoriais, ou "sentidos", são essenciais para a percepção sensível; a tal ponto que, se não funcionam, ou funcionam de forma deficiente por falhas fisiológicas, anatômicas ou outras, uma de duas: ou perdemos a percepção das coisas ou temos uma percepção distorcida delas. O fato de constituir a forma elementar, ou biológica, da percepção não quer dizer que a sensorialidade não entre no quadro do que entendemos por "sentido estético", pois sem ela não temos o que dizer a respeito. Acontece que a tese da dupla série de funções de que fala Vigotski supõe que os órgãos receptores funcionem bem, o que no caso humano, embora necessário, não é suficiente, pois o que resulta da percepção sensorial não são apenas imagens, mas imagens humanas passíveis de interpretação e de múltiplas reelaborações semióticas (p.67).

Ou seja, continuando a tese de Pino (2006)Pino, A. (2006). A produção imaginária e a formação do sentido estético: reflexões úteis para uma educação humana. Pró-Posições, 17(2-50), 47-69., a qual está em consonância com a tese da dupla série de funções, uma percepção "refinada" das materialidades sensoriais "é fundamental para a constituição nelas das funções culturais (simbólicas) fundamento do sentido estético" (p.67). Aumentar a potência de ação dos sentidos produz novas emoções e novas imagens que com aquela se unificam e que foram possíveis por meio da percepção anterior das materialidades sensoriais. Ao potencializar os sentidos estéticos, o sujeito pode chegar a processos de criação, objetivando novos produtos nos entornos que ocupa.

Na perspectiva da psicologia histórico-cultural, o homem é um ser de relações, ou seja, nada é, senão na relação com os outros, com a natureza, com o tempo, com as coisas e com seu próprio corpo. Como consequência, o sujeito é produto do contexto que vivencia e é, ao mesmo tempo, produtor desse contexto. O processo criativo, então, é produzido nas relações e se faz também como produto e produtor do contexto no qual o sujeito está inserido.

Para Vigotski, a criação é uma capacidade humana, uma condição ontológica conquistada no processo evolutivo, que permite tomar o rumo da própria evolução (Pino, 2006), caracterizando o processo de humanização. Porém, a condição ontológica está submetida às condições materiais concretas e às possibilidades efetivas que se encontram para a criação.

Resultados

Apontamentos da experiência base

que gerou o vídeo

No contexto investigado, as condições enontradas constituíram dificuldades que posteriormente foram sendo ultrapassadas. No início, vale lembrar, a atividades oferecidas pela ONG, incluindo a oficina de percussão, eram praticamente obrigatórias, de forma que a percussão surgiu para as crianças como uma forma de brincar com o barulho oriundo dos instrumentos musicais. O professor da oficina logo mostrou que, para tocar percussão, era necessário muito esforço, atenção, coordenação e disciplina.

Após as oficinas de percussão, nas quais as crianças reclamaram da postura e da disciplina exigida pelo professor, elas acabaram se apropriando de técnicas e fazeres musicais, culminando na construção coletiva do espetáculo musical em diferentes linguagens artísticas. Diferentes conhecimentos sobre outras linguagens foram oferecidos às crianças e jovens, para que vivenciassem experiências mediadas por saberes técnicos, as quais também valeram para que o conhecimento musical encontrasse novos caminhos de objetivação (Maheirie et al., 2008Maheirie, K., Strappazzon, A., Barreto, F. R., Lazarotto, G., Zonta, G. A., Soares, L. S., ..., Schoeffel, S. A. (2008). (Re)composição musical e processos de subjetivação entre jovens de periferia. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 60, 187-197.). A mediação dos instrutores se mostrou fundamental para a apropriação do conhecimento e das técnicas necessárias à criação do espetáculo musical e, posteriormente, à produção do vídeo sobre tal experiência. O processo de criação não é mágico nem surge do nada, uma vez que implica, necessariamente, no que Vigotski (1930/2009) chamou de "torturas da criação". Ou seja, esta se constitui a partir dos esforços empreendidos pelo indivíduo, não sem sofrimento, para que se aproprie de um saber que posteriormente servirá de base para seu ultrapassamento.

Os sujeitos produziram o enredo durante os encontros, por meio de debates, conversas, brigas e brincadeiras, dialetizando de forma reflexiva e afetiva no momento em que foram apresentadas as possibilidades de figurino. Os ensaios começaram a ser realizados nas primeiras reuniões, baseados no breve enredo desenvolvido. No entanto, as falas e posicionamentos, assim como a inserção da percussão, aconteceram durante os ensaios subsequentes, nas improvisações do grupo.

Vigotski (1930/2009) aponta que a imaginação se faz possível por um processo anterior de apropriação do conhecimento, o qual é recombinado de uma nova maneira pela imaginação e posteriormente objetivado no contexto. Sendo assim, os processos de criação musical têm seu início na percepção que se tem do mundo concreto e seus objetos, sempre mediada semioticamente, o que possibilita sua reorganização por meio da fantasia, para que, em seguida, se objetive o novo. Portanto, a atividade criadora se realiza pela síntese da fantasia com os objetos que constituem o mundo, fazendo surgir o novo, que aponta sempre como uma possibilidade, ou seja, como projeto e devir.

A construção do espetáculo sintetizou fantasia e realidade, culminando na objetivação de um novo produto. A partir de materiais como papelão, tinta, tesoura, papel, pincel, cola e lápis, os participantes criaram o castelo, o calabouço e sua chave, a vara e o chapéu da bruxa, bem como a varinha da fada. Os vestidos que compunham o figurino da peça foram emprestados pela instituição, e cada ator escolheu o que melhor se ejustava a seu personagem. Finalizando o momento da construção do espetáculo, foram feitos os ensaios finais e realizadas as duas apresentações já referidas.

Para Vigotski (1930/2009), a atividade criadora ocorre partindo dos elementos que as pessoas percebem e significam na/da realidade e que são registrados por meio da memória. A partir desses núcleos de memória, os quais constituem as histórias de vida dos sujeitos, a atividade imaginativa se apresenta como um processo psicológico (re)combinador. Entretanto, a atividade criadora pressupõe necessariamente a objetivação, ocorrendo somente quando completa seu ciclo, ou seja, quando seu produto volta à realidade, produzindo algo no mundo. Quando isso acontece, o sujeito transforma a realidade e a si próprio, dando novo sentido a suas experiências.

O autor (Vigotski, 1930/2009), ao falar sobre brincadeira de crianças, observa que elas refletem na brincadeira aquilo que percebem no contexto. No entanto, esse reflexo nunca é meramente uma cópia, mas sim um trabalho criativo de recombinação das impressões que a criança tem do contexto. Ela combina e usa tais impressões para construir uma "nova realidade" que corresponda às suas próprias necessidades e desejos. Portanto, ao brincar e imaginar, a criança recria o seu contexto num plano imaginário, organizando assim suas ideias sobre o seu lugar social. Visto isso, é possível entender a importância de espaços que permitam e estimulem a criação infantil, pois estes acabam por ser excelentes ferramentas de mudança social, ao permitir às crianças testar o novo no faz-de-conta, no plano da imaginação, lugar onde tudo se torna possível.

Para Vigotski (1930/2009), os sentimentos movem a imaginação, a atividade imaginativa cria novos sentimentos, em um movimento em que emoção e pensamento se vinculam. Ou seja, na atividade criadora sentimentos e emoções se ressignificam. Essa transformação de sentimentos, por meio da imaginação e da criação estética, pôde ser observada diversas vezes durante esta investigação, em suas múltiplas fases.

Com o espetáculo em processo de finalização, a percussão foi reaparecendo entrelaçada na linguagem teatral. Conhecimentos musicais apropriados anteriormente se fizeram a base para a reapropriação da percussão no espetáculo; uma vez desconstruídos, foram recombinados em um novo produto (Maheirie et al., 2008Maheirie, K., Strappazzon, A., Barreto, F. R., Lazarotto, G., Zonta, G. A., Soares, L. S., ..., Schoeffel, S. A. (2008). (Re)composição musical e processos de subjetivação entre jovens de periferia. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 60, 187-197.). Os participantes foram atribuindo características musicais aos personagens e à própria história, trazendo grande parte das batidas da percussão aprendidas anteriormente. Assim, "a criatividade dos sujeitos apareceu por meio da (re)composição musical, possibilitada pela construção de conhecimentos que os instrumentalizaram para que pudessem objetivar a sua subjetividade na formação do espetáculo" (p.193).

Discussão

Atividade criadora na experiência das meninas

A história criada para o espetáculo, revivida pela memória na produção do vídeo, é compreendida como unificação das experiências vividas na história dessas meninas. É possível perceber no discurso de algumas participantes a preocupação com a dicotomização, bom vs mal, certo vs errado, coisa de menino vs coisa de menina. Nessa perspectiva, a própria história-enredo criada pode ser resumida como a luta do mal contra o bem, em que o bem tenta regenerar as pessoas más. É importante ressaltar que algumas das participantes já haviam tido contato com o fazer teatral, e a história criada naquele contexto em muito se assemelhava com a criada na oficina de criação deste espetáculo. Vigotsky (1930/2009) aponta que as criações não são produzidas a partir do nada, mas que tais produções são sempre fruto da combinação de elementos retirados de outras experiências, e que essa capacidade de criação é o que permite ao homem transformar-se a partir de novas situações. Dificilmente os elementos mudam, mas as relações cambiam de acordo com a imaginação de quem o faz.

Quanto mais rica for a experiência vivida por alguém, maior será a magnitude e complexidade das coisas por ele criadas (Vigotski, 1930/2009). Assim, é possível entender que essa concepção dualista de bem e mal presente na história das crianças não é somente uma significação individual, mas algo que já foi experimentado, provavelmente na leitura de histórias de contos de fadas, ou conversas ouvidas de pessoas a seu redor. Isso permite entender claramente que toda criação é um produto histórico e social, que representa conceitos e ideias de uma época e um lugar. Já que não há muitos novos elementos nas criações, quase tudo que nelas é usado já foi antes observado ou experimentado, de alguma forma, no universo em que o criador está inserido.

A criação é a combinação de elementos já vividos com novos. A habilidade de combinar o velho com o novo constitui a base da criação. Quanto mais rica for a experiência da criança, mais importante e produtiva a atividade de sua imaginação (Vigotski, 1930/2009). Na entrevista com uma das crianças, pode-se ver que elementos de outra experiência de criação teatral entraram na criação da nova peça:

Entrevistador: Você já tinha feito teatro antes?

Luana: Já, já tinha feito, na escola.

Entrevistador: E como era o teatro lá?

Luana: A gente fazia, era o ataque das formigas. Tinha a formiga rainha, formiguinha, tinha a formiga do mal.

Entrevistador: Era mais ou menos parecida com a peça que vocês mostraram na Casa da Criança, que tinha rainha, também tinha as formiguinhas, também tinha os personagens do mal, né? O mágico, a bruxa.

Luana: É, parecida.

A experiência das meninas com a música - ou seja, a música que escutam em suas casas, ou que seus familiares e amigos lhes apresentam , gira em torno de gêneros como o pagode, o rap e, mais especialmente, o funk. A finalização do espetáculo se deu com a percussão no ritmo do funk, por escolha e criação dessas meninas. As sonoridades presentes em todo o espetáculo unificam-se com suas vivências musicais, apresentando melodias conhecidas desde a infância.

No espetáculo produzido a partir de oficinas de percussão e criação de roteiro e cenário, para além da criação de todos os pormenores da obra, pode-se também refletir também sobre o próprio ato de atuar, de experenciar o que fora antes imaginado.

A imaginação, como subjetivação de materialidades em imagem mediadas semioticamente, é o exercício do imaginário que, para Pino (2006)Pino, A. (2006). A produção imaginária e a formação do sentido estético: reflexões úteis para uma educação humana. Pró-Posições, 17(2-50), 47-69., é comparável a uma fábrica de produção. Tal ideia indica a relação inexorável entre o real e o imaginário, em que o primeiro precede o segundo, enquanto este o modifica, material e simbolicamente.

Maria, outra menina participante do projeto, ao assistir o vídeo de uma etapa da criação do espetáculo, lembrou que, inicialmente, havia um circo no qual Eliane era o palhaço:

Eliane, conta-nos Maria, gesticulava chamando as pessoas para assistir a um show, "venham, venham!", gritava com um maço de papel na mão. Luana logo lembra à amiga que o maço de papel era um exemplar do Diário Catarinense [jornal de circulação diária]. "Que memória!", exclama o pesquisador, "mas e aí, como foi que você virou flor, Eliane?" A menina responde: "foi o mágico quem me transformou". Luana, o mágico, complementa mais uma vez com sua voz tímida: "ela não me deixava entrar dentro do circo, aí transformei ela em uma flor". Enquanto houvesse um palhaço a segurar um jornal nas mãos, o mágico não poderia entrar no circo. Mas, como todo bom mágico, habitante do plano irreal, Luana imaginou o arlequim não mais com seu nariz vermelho, mas com pétalas e flores, e enfim executou o seu plim transformador: estava livre, pela mágica, para entrar no circo (Anotações de campo).

Tomando como eixo principal a imaginação para entender os processos de criação e com base no princípio da interconexão entre os processos psicológicos complexos (Pino, 2000Pino, A. (2000). O Social e o cultural no obra de Lev S. Vigotski. Educação & Sociedade, 21(71), 45-78.), pode-se conceber a percepção e a cognição como Processos Psicológicos Complexos (PPC) que alimentam e produzem a imaginação. Se alguém fizer como Luana, pode imaginar uma flor. Assim como quem percebe uma flor, quem a imagina vai enxergá-la em perfis - mas de maneira imediata. Pode girá-la e olhar por dentro de suas pétalas; pode olhá-la por cima, pelo lado, por baixo, enfim, por todos os perfis ao mesmo tempo, o que não seria possível na percepção. Porém, nenhum perfil ou elemento imaginado poderia sê-lo antes de ser percebido ou conhecido, já que a imaginação é a transformação de um conhecimento antes apropriado.

Diferentemente da flor que se percebe, na qual cada novo olhar revela um detalhe não visto, na flor que se imagina os detalhes antes apropriados são recriados. As crianças, ao brincarem com uma imagem de flor, foram afetadas pela imagem-lembrança de um teatro do qual haviam anteriormente participado, ou de outra experiência vivida com uma flor. De qualquer forma, o saber acerca desse objeto se dá no próprio ato em que ele surge como imagem, mesmo que não se reconheça o conhecimento nesse ato.

Sartre, partindo de bases epistemológicas distintas das de Vigotski, pode contribuir com estas reflexões, ao ponderar que o saber é fundamental ao imaginário. Para ele, a intenção está no centro do [ato de imaginar]: é ela que visa o objeto, isto é, que constitui pelo que ele é. O saber, que está indissoluvelmente ligado à intenção, especifica que o objeto é este ou aquele, acrescenta sinteticamente determinações. [Nosso] "saber é um saber do objeto, um saber tocando o objeto" (Sartre, 1936/1996, p.24, grifo do autor).

Para o autor, imaginar é dirigir-se a um objeto irreal ou ausente, como impulso a alguma coisa. Sua definição indica a imaginação como relação e que o imaginário (como substantivo) não se confunde com um depósito onde se armazenam imagens. Ao contrário, tal postura aponta o caráter transfenomênico da imaginação, a qual, assim como a percepção e a reflexão, também precisa de um objeto para se fazer. Ao colocar a imaginação como ato que envolve a subjetividade em direção a um objeto, Sartre contribui com as reflexões desenvolvidas neste artigo, que concebe o imaginário como um processo psicológico complexo, na medida em que envolve a relação entre o subjetivo e o objetivo.

A flor que Luana imaginou, esse objeto em imagem, não estava "dentro" dela; portanto só existiu com uma intenção e um saber que posicionasse tal objeto. Seu ato de imaginar visou o objeto enquanto objeto concreto e situado, assim como o ato perceptivo e o ato reflexivo visam o seu objeto - mesmo que o façam, cada qual, à sua maneira.

Criar é uma forma de transcender o já vivido em função do ainda não existente. É recombinar os elementos da realidade que foram apreendidos, por meio da percepção significativa, do sentido estético e da reflexão, para desconstruí-los e reconstruí-los de outra forma, impulsionados pela imaginação. Assim, é possível compreender o motivo pelo qual a imaginação é a base para toda e qualquer forma de criatividade, seja ela artística, científica ou técnica, já que nela o sujeito vai além de seu passado e de suas experiências vividas, projetando-se em função de um porvir. Portanto, o processo de criação implica na subjetividade realizando uma articulação temporal, visando a uma transformação da objetividade (Maheirie, 2003Maheirie, K. (2003) Processo de criação no fazer musical: uma objetivação da subjetividade, a partir dos trabalhos de Sartre e Vygotsky. Psicologia em Estudo, 8(2), 147-153.).

Função psicológica complexa do campo da subjetividade, a imaginação é uma atividade criadora ou, como afirma Pino (2006)Pino, A. (2006). A produção imaginária e a formação do sentido estético: reflexões úteis para uma educação humana. Pró-Posições, 17(2-50), 47-69., uma atividade produtiva, na qual o indivíduo forma os objetos a partir de uma síntese de elementos afetivos e elementos de seu saber. Por isso, as produções imaginárias se fazem imprescindíveis para toda produção humana, seja material ou simbólica. Imaginar, nessa perspectiva, é da ordem do humano, da "autodeterminação, da liberdade e da consciência" (p.49).

O personagem não é o ator. Eliane não é a princesa. Mas isso não significa que ela não tenha se mobilizado para produzi-la, enquanto atuava no palco e enquanto criava o roteiro com as amigas. Ela utilizou seus sentimentos e gestos, como aná-logos ao sentimento da princesa, e se colocou in-teiramente na história criada, realizando-se em seu personagem.

A atitude imaginante tem um sentido e uma utilidade para a dinâmica psicológica. Sabe-se que é ela que permite ao indivíduo lançar-se além do presente, sobre o passado, visando um futuro, permitindo-lhe projetar algo novo, para uma situação além da condição material que lhe é dada.

Modos de apropriação da experiência

de criação

Em todas as redações produzidas pelas meninas ao final da experiência de criação, apareceram agradecimentos. Elas também escreveram palavras como "legal", "divertido", "muito bom", "engraçado", apontando o lúdico e prazeroso como parte do processo experenciado. Além disso, trouxeram também relatos da dificuldade em se aprender a técnica musical da percussão, apontando que "no começo eu levava tudo na brincadeira, mas depois eu vi que o bagulho tava ficando mais sério e dali pra frente eu resolvi mudar nas atitudes do teatro e eu comecei a levar o que eu queria pra mim mais a sério", relata Maria, que gostou muito de ser aplaudida na apresentação final no Teatro da UFSC.

Eliane relata que "vai levar para o resto da vida tudo o que aprendi com vocês", e Bianca explica que não fala que "valeu a pena da boca pra fora nem para agradar vocês, é porque eu gostei mesmo de coração!". Nesses relatos, percebe-se nitidamente o envolvimento afetivo entre as participantes e os mediadores das oficinas, aliado ao tom de "quero mais" e "de que foi uma oportunidade maravilhosa".

É comum também o relato da dificuldade em aprender a tocar música. Tal dificuldade foi relacionada à figura do professor de percussão, na medida em que as falas sobre ele estão sempre voltadas às dificuldades no aprendizado da técnica. Por exemplo, Luana afirma: "Não gostei quando eu tava lá brincando com o 'coisinha' e o professor pegou no meu pé, não sei o quê, porque eu tava brincando. Porque eu tava assim, 'ah! Eu não sei tocar essa coisa aí', mas aí teve uma hora que eu tive que aprender, né". Aprender uma nova técnica nunca é fácil, é necessário disciplina, esforço, persistência até que a técnica fique suficientemente incorporada para que seja possível a criação do novo a partir dos elementos já conhecidos da técnica.

Estas garotas relatam terem tido importantes recompensas pelo seu esforço, como se apresentar para um público novo e para suas famílias, conhecer outros espaços e fazer amigos, o que as estimulou a aprender, cada vez mais. Tendo conseguido se apropriar da percussão e realizar o espetáculo, muitas demonstraram um grande aumento da auto-estima. Por exemplo, nas palavras de Maria,

"Ai, eu sempre fui... tipo eu sempre me destaquei em coisas assim, de tocar. Aí eu fui à primeira aluna a aprender direito o que ele tava ensinando. Aí ele me entregou o bumbo e eu comecei a tocar". Luana conta que passou a ter uma visão diferente acerca de si mesma: "Mudou! Porque antes eu era bem burra, não sabia, Daí o professor ficava pegando no meu pé e ficava, aí eu ficava: 'ai mas eu não sei fazer isso! Eu não vou fazer...' Daí agora eu sei! Agora mudou porque agora eu sei!"

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A criação implica uma postura afetiva, o que é fundamental para a criação (Maheirie, 2003Maheirie, K. (2003) Processo de criação no fazer musical: uma objetivação da subjetividade, a partir dos trabalhos de Sartre e Vygotsky. Psicologia em Estudo, 8(2), 147-153.), que necessita da crítica para se alimentar. Como processo de construção social, ela não se confunde com a noção de talento inato ou vocação. Processos psicológicos complexos são fundamentais para a produção criativa, possibilitando não só a composição do novo, mas também seu resultado. Ou seja, a partir da criação, o sujeito modifica suas possibilidades afetivo-cognitivas, o que, por sua vez, transforma a vida e a própria leitura de seu contexto. A objetivação criadora, por seu turno, transforma também a própria realidade, uma vez que possibilita uma reação estética (Vigotski, 1925/1998) nos sujeitos que com ela vierem a se relacionar. Assim, consequência das relações semioticamente mediadas, os processos psicológicos complexos são construídos e reconstruídos ao longo da história dos sujeitos, graças à subjetivação de ferramentas simbólicas (Riviére, 1985Riviére, A. (1985). La Psicologia de Vygotsky. Madri: Visor Distribuiciones.).

Para Vigotski (1931/1983), as funções psicológicas superiores são constituídas por processos que se dão a partir do desenvolvimento cultural, como o idioma, a escrita etc., e são conhecidas atualmente por atenção, imaginação, memória lógica, formação de conceitos etc. Processos psicológicos complexos, segundo a psicologia de Vigotski, são necessariamente mediados por signos, e possibilitam ao ser humano a relação com a realidade, com os outros e consigo mesmo, mediatizada pela cultura (Zanella, 2001Zanella, A. V. (2001) .Vigotski: contexto, contribuições à psicologia e o conceito de zona de desenvolvimento proximal. Itajaí: Univali.).

Partindo de uma concepção de sujeito que se define histórica e socialmente, os processos criativos se constituem, como os demais processos psicológicos complexos, como relações sociais internalizadas (Pino, 2000Pino, A. (2000). O Social e o cultural no obra de Lev S. Vigotski. Educação & Sociedade, 21(71), 45-78.) ao longo do desenvolvimento histórico do sujeito. Assim, sua origem e desenvolvimento se dão no movimento de uma subjetividade que se objetiva singularmente, ao mesmo tempo semelhante e diferente do outro, o qual se faz mediação na sua constituição. A condição dos processos de criação, assim como de outros processos psicológicos complexos é, justamente, a de não surgir do nada, uma vez que vai se ancorando inicialmente numa realidade social para, depois, se individualizar ao longo da história do sujeito. A imaginação, processo psicológico que possibilita qualquer atividade criadora de um sujeito singular, está sempre atrelada à realidade, a qual é sempre lida, interpretada e significada através da mediação dos signos e das palavras, indicando que a atividade criadora de sujeitos singulares depende diretamente de suas experiências (Vigotski, 1930/2009).

Luana, fascinada com a universidade, ao ser informada de que um dia poderia nela trabalhar, questionou prontamente o pesquisador: "como trabalhar? assim, limpar?" Quando se imaginou trabalhando, imaginou a partir de suas condições concretas de vida, trazendo um saber anterior das tarefas já aprendidas. Depois de informada de que poderia ali trabalhar como estudante e pesquisadora no futuro, Luana experimentou esse outro futuro também como possível, abrindo uma nova perspectiva a se imaginar e objetivar, caso as condições concretas e materiais o viabilizem.

Considerações Finais

No que diz respeito à implicação das atividades oferecidas pela investigação para os sujeitos participantes (oficinas de música, teatro e vídeo), pôde-se perceber, no relato de alguns deles, uma ampliação das perspectivas futuras. O futuro só é possível em função da imaginação, processo psicológico complexo, imprescindível a uma existência efetivamente humana. Assim, fez-se importante descrever a imagem para poder compreender a grande função da imaginação, destacando sua aparição no decorrer do processo de criação do espetáculo "O mágico contra o som".

O fato de ser uma pesquisa-intervenção possibilitou que isso acontecesse, uma vez que as oficinas promovidas pelo projeto também possibilitaram para as crianças o aprendizado de técnicas de percussão, teatro e edição de vídeo, via mediação da equipe de pesquisa, apesar de todas as dificuldades encontradas no percurso.

Ao apostar em novos modos de subjetivação e objetivação que serão possíveis em seus devires, entende-se que eles estão se expandindo, ou seja, expandindo a vida como potência, que pode ser aumentada nos encontros com os outros.

Os processos de criação implicam, necessariamente, recurso, utilização e desenvolvimento de processos psicológicos considerados complexos. A imaginação é, talvez, uma das características mais importantes do processo. Sendo assim, não há um antagonismo entre realidade e imaginação, uma vez que se extraem da realidade os elementos para a composição da fantasia (conteúdo do processo imaginativo). Isso implica que a história de vida de um sujeito, suas objetivações e subjetivações, revelam a fonte do processo de imaginação. Além disso, há a combinação dos elementos extraídos da realidade e os que o sujeito produz em fantasia, indicando a imaginação como um exercício de estruturação dessas fantasias. Por fim, há um enlace emocional que engloba a imaginação, carregando de afeto a relação do sujeito com o contexto imaginário que produz. O produto dessa fantasia se objetiva em algo novo, a criação propriamente dita, que modifica o sujeito e o contexto no qual o produto se insere.

A objetivação do processo de criação pode proporcionar ao sujeito um ultrapassamento de sua situação, um movimento de superação na sua história, uma transformação em seus sentimentos e emoções, em direção a uma postura mais emancipatória. Daí a importância de se realizar esta análise, a fim de avaliar criticamente o trabalho empreendido, o qual envolve a música e outras linguagens artísticas com populações de baixa renda, em um contexto sociocultural específico. Entende-se que a experiência vivida por essas meninas na oficina de percussão foi redimensionada a partir da oficina de construção do espetáculo, e novamente (re)significada na construção do vídeo sobre toda a experiência. Ou seja, a experiência vivida por elas torna-se material de elaboração para novas experiências.

Sob esta ótica, cabe perguntar se, de fato, as objetivações criativas no campo supracitado, e seus sentidos para as meninas que as produzem, fazem-se traduzir em uma orientação mais humano-genérica, reconhecendo seu produto no contexto da humanização.

Acredita-se que esta pesquisa-intervenção não alcança objetivos tão complexos. Não obstante, o produto que dela deriva é sempre coletivo e, sob esta ótica, cumpre necessariamente uma função social.

A experiência afetou intensamente grande parte da equipe de pesquisa. Os pesquisadores, ao mesmo tempo que mediaram da apropriação de novos saberes, viram-se na experiência modificando seus propósitos e horizontes. Foram constituídos por múltiplas vozes, que se entrelaçaram às vozes das meninas nessa grande experiência, transformando-os como sujeitos e apontando para novos devires.

Esta experiência de pesquisa coloca, perante o investigador, um produto dialógico e ideológico ao mesmo tempo. Os resultados da investigação e o entrelaçamento teórico que a envolve se faz por um embate de vozes sociais que se compõem e se objetivam em uma peça que ora se apresenta aqui, na forma deste artigo. Ao mesmo tempo, "nesse jogo de forças toda palavra proferida apresenta sua condição ideológica, pois está para um outro como um signo, sempre e necessariamente posicionado em relação a um leitor pressuposto e ao próprio foco do discurso" (Groff, Maheirie, & Zanella, 2010, p.99Groff, A. R., Maheirie, K., & Zanella, A. V. (2010). Constituição do(a) pesquisador(a) em ciências humanas. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 62(1), 97-103.).

Recriando e transformando sujeitos e contextos, esta investigação acerca dos processos de criação traz sentidos em torno da experiência de criar que não se localizam no discurso das meninas nem na fala dos pesquisadores, mas no enlace da produção discursiva que se fez em ato no contexto da investigação. Assim, este trabalho aponta alguns possíveis sentidos dos fragmentos da experiência focada e alguns possíveis desdobramentos, os quais talvez ocupem espaços que hoje estão fora do que a imaginação pode alcançar.

Referências

  • Groff, A. R., Maheirie, K., & Zanella, A. V. (2010). Constituição do(a) pesquisador(a) em ciências humanas. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 62(1), 97-103.
  • Maheirie, K. (2001) Música popular, estilo estético e identidade coletiva. Revista Psicologia Política, 2(3), 39-54.
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  • Maheirie, K., Strappazzon, A., Barreto, F. R., Lazarotto, G., Zonta, G. A., Soares, L. S., ..., Schoeffel, S. A. (2008). (Re)composição musical e processos de subjetivação entre jovens de periferia. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 60, 187-197.
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  • Sartre, J. P. (1996). O imaginário. São Paulo: Ática. (Publicado originalmente em 1936).
  • Vigotski, L. S. (1983). Historia del desarrollo delas funciones psíquicas superiores. In: Obras escogidas III. Madrid: Visor Distribuiciones. (Publicado originalmente em 1931).
  • Vigotski, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico: apresentação e comentários de A. L. Smolka. São Paulo: Ática. (Publicado originalmente en 1930).
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  • Vigotski, L. S. (1998). Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes. (Publicado originalmente em 1925).
  • Zanella, A. V. (2001) .Vigotski: contexto, contribuições à psicologia e o conceito de zona de desenvolvimento proximal. Itajaí: Univali.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2012
  • Revisado
    01 Abr 2014
  • Aceito
    23 Abr 2014
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